Tanto denunciar, tanto delatar

Luiz Recena
Jornalista
Tanto denunciar, tanto delatar
Tanto aceitar, tanto mar, tanto mar
Um fantasma português ronda o Supremo Tribunal Federal: é o fantasma de Gil Vicente, o criador do teatro lusitano e autor, entre outras obras primas, do auto Todo Mundo e Ninguém.
Os inquilinos atuais das togas superiores, que parecem às vezes brincar de reunião de condomínio, ou não leram ou faltaram à reunião que discutiu a importância do teatro português na formação da nossa cultura, tema sempre presente nos seminários que o instituto do superior togado Gilmar Mendes costuma realizar, com patrocínios, em terras dantes visitadas pela elite nacional, desde os tempos do imenso Portugal.
O auto foi levado à cena por vez primeira por ocasião do nascimento do príncipe, filho de dom João III, em 1532. Gil tinha para permissão matar, digo, permissão real para alguma crítica. E não a deixou passar. Todo Mundo é um rico mercador, primeiro a entrar em cena, procurando oportunidades e fortuna. Ninguém é um pobre a fazer perguntas e pensar na vida. Belzebu e o auxiliar Dinato espiam e comentam.
Ninguém: Que andas tu aí buscando?
Todo o mundo: Mil cousas ando a buscar :
delas não posso achar,
porém ando porfiano /por quão bom é porfiar.
Ninguém: Como hás nome, cavalheiro?
Todo o Mundo: Eu hei nome Todo Mundo
e meu tempo todo inteiro
sempre é buscar dinheiro
e sempre nisto me fundo
Ninguém: Eu hei nome Ninguém,
e busco a consciência
Belzebu: Esta é boa experiência:
Dinato, escreve isto bem.
Dinato: Que escreverei , companheiro?
Belzebu: Que ninguém busca consciência,
e todo mundo dinheiro.
Ninguém: E agora que buscas lá?
Todo o mundo: Busco honra muito grande.
Ninguém: E eu virtude, que Deus mande
que tope com ela já.
Belzebu: Outra adição  nos acude:
escreve logo aí, a fundo
que busca honra todo mundo
e ninguém busca virtude.
Ninguém: Buscas outro mor bem qu’esse?
Todo o mundo: Busco mais que me louvasse
tudo quanto eu fizesse.
Ninguém: E eu quem me repreendesse
em cada cousa que errasse.
Belzebu: Escreve mais.
Dinato: Que tens sabido?
Belzebu: Que quer em extremo grado
todo o mundo ser louvado,
e ninguém ser repreendido.
Ninguém: Buscas mais, amigo meu ?
Todo o mundo: busco a vida a quem ma dê.
Ninguém: A vida não sei o que é,
a morte conheço eu.
Belzebu: Escreve lá outra sorte.
Dinato: Que sorte?
Belzebu: Muito garrida:
Todo o Mundo busca a vida
e ninguém conhece a morte.
Todo o Mundo: E mais queria o paraíso,
sem mo ninguém estorvar.
Ninguém: E eu ponho-me a pagar
quanto devo para isso.
Belzebu: Escreve com muito aviso.
Dinato: Que escreverei ?
Belzebu: Escreve
que todo o mundo quer o paraiso
e ninguém paga o que deve.
Todo o Mundo: Folgo muito d’enganar,
e mentir nasceu comigo.
Ninguém: Eu sempre verdade digo
sem nunca me desviar
Belzebu: Ora escreve lá, compadre,
não não sejas tu preguiçoso.
Dinato: Quê?
Belzebu: Que todo o mundo é mentiroso,
E ninguém diz a verdade.
Ninguém: Que mais buscas?
Todo Mundo: Lisonjear.
Ninguém: Eu sou todo desengano.
Belzebu: Escreve, ande lá mano.
Dinato : Que me mandas assentar?
Belzebu: Põe aí mui declarado,
Não te fique no tinteiro:
Todo o mundo é lisonjeiro,
e ninguém desenganado.
STF e o togado Fachin completam:
Todo Mundo é culpado/ Ninguém deve ser maltratado.
 

Para que a palavra guerra provoque náusea

 
Lourenço Cazarré
A menina Svetlana Aleksiévitch, nascida em 1948 na Ucrânia, não gostava de livros de guerra, numerosos em sua casa, mas na escola – na Bielo-Rússia, onde cresceu – era obrigada a lê-los. “Estivemos sempre a combater ou a preparar-nos para a guerra… Na escola, ensinavam-nos a amar a morte”. Ao seu redor, todos liam. Afinal, eles, os soviéticos, haviam sido os vencedores do conflito recente contra os alemães.
“Depois da guerra, a aldeia da minha infância era feminina… Não me lembro de vozes masculinas”, escreve Svetlana na abertura de A guerra não tem rosto de mulher (Companhia das Letras, 2016, 392 páginas). Os homens eram poucos porque milhões deles morreram na Grande Guerra Patriótica (assim chamada pelos soviéticos). A Bielo-Rússia teve dizimado um terço de sua população. A Rússia perdeu cerca de 22 milhões de pessoas.
Svetlana formou-se em jornalismo em 1972. No final daquela década, resolveu escrever um livro sobre os seres humanos na guerra. “Não escrevo a história da guerra, mas a história dos sentimentos. Sou historiadora da alma”. Passou a colher depoimentos de mulheres que haviam atuado no Exército Vermelho. Surgiria então um estilo (literário, jornalístico?) que décadas depois seria consagrado com o Nobel de Literatura (2015).
O efetivo feminino das forças soviéticas chegou a um milhão. Svetlana parou de contar suas entrevistadas quando elas ultrapassaram 500. Gravou longas conversas com lavadeiras, cozinheiras e enfermeiras, mas também com franco-atiradoras, pilotos de aviões de caça e comandantes de artilharia. Entre elas encontrou “narradoras espantosas”.
Das confissões dessas mulheres Svetlana pinçou os trechos mais impactantes ou tocantes. Quase sempre devastadores. E com eles montou um livro-mosaico que foi recusado por muitas editoras antes de chegar ao prelo, em 1985, já nos estertores do comunismo. A obra vendeu dois milhões de exemplares nos primeiros cinco anos.
Escritos polifônicos
Com a técnica de traçar vastos painéis a partir de incontáveis narrativas de pessoas comuns, Svetlana produziu outros escritos polifônicos sobre sofrimento e coragem. Entre seus livros publicados, destacam-se Rapazes de zinco (sobre os jovens russos que, sem saber o motivo, lutaram no Afeganistão); O fim do homem soviético (sobre a desilusão dos que cresceram durante os anos em que o comunismo garantia emprego a todos os que não abrissem o bico para criticar o regime); e Vozes de Tchernóbil (relatos dos que sobreviveram à grande catástrofe nuclear).
Desmontando mentiras
Ao contrário dos livros sobre a guerra escritos por (e para) homens, a obra de Svetlana não apresenta heróis nem proezas incríveis, não descreve batalhas nem gaba armamentos. Mostra apenas “as pessoas ocupadas na sua atividade humana e simultaneamente desumana”. Dor, fome, frio, desespero, infestação por piolhos e mutilados, muitos mutilados, estão em cada uma das páginas.
Svetlana confessa que, com este livro, pretendia desmontar todas as mentiras tramadas em torno das guerras, de modo que a palavra guerra passasse a provocar náusea e que a simples ideia de que pudesse existir fosse repugnante. Desejava, enfim, que seu trabalho “faça vomitar os próprios generais…”
A obra é dividida em 17 capítulos. Nos primeiros vemos o entusiasmo das moças que faziam de tudo a fim de serem convocadas para enfrentar os nazistas, que haviam invadido a Rússia e que logo chegaram à periferia de Moscou. Mas também fica clara a resistência dos chefes militares que não desejavam ter garotas na frente de combate.
A primeira versão de A guerra não tem rosto de mulher sofreu vários cortes impostos pelos censores. A versão mais recente traz alguns dos trechos eliminados. Num deles, num dos poucos depoimentos masculinos, um soldado fala sobre o avanço pela Alemanha derrotada no final de guerra: “Somos jovens. Fortes. Há quatro anos sem mulher. Apanhávamos garotas alemãs e… Dez homens violavam uma. Apanhávamos meninas… Doze treze anos… Se chorassem batíamos, metíamos qualquer coisa na boca… A única coisa que temíamos era que nossas colegas descobrissem…”
O bebê debaixo da água
Uma aviadora que se recusou a ser entrevistada disse a Svetlana por telefone: “Durante três anos não me senti mulher. O meu corpo adormeceu. Fiquei sem menstruação, quase sem desejo feminino”.
Uma mulher fala do que uma de suas amigas fez para sobreviver na época da grande fome na Ucrânia: “Morreram o pai, a mãe e os irmãos mais pequenos, e ela só se salvou porque de noite roubava estrume de cavalo para comer”.
Uma enfermeira para diante de um jovem capitão que agoniza e pergunta em que pode ajudar. Ele sorri. “Desabotoe a blusa. Mostre-me seu peito”. Desconcertada, ela corre. Uma hora depois ela volta. O capitão está morto.
Membros da resistência russa estão num pântano cercados por alemães. Uma das mulheres tem um bebê recém-nascido no colo. A criança chora de fome porque a mãe, desnutrida, não tem leite. Sem que alguém fale, a mulher compreende que só há uma solução para não serem descobertos. “Mete o embrulho com o bebê debaixo da água e o mantém ali durante muito tempo”.
Uma das mulheres regressa da guerra. A mãe permite que descanse em casa por três dias. Depois lhe dá uma trouxa e manda que se vá: “Tens duas irmãs mais novas. Quem é que vai desposá-las? Sabem todos que estiveste na guerra quatro anos com os homens”.
Outra fala de sua desilusão ao fim dos combates. “Pensávamos que tudo ia mudar… Stálin acreditaria no seu povo… Foram presos os que caíram prisioneiros, os que sobreviveram aos campos de concentração, os que foram levados pelos alemães para trabalhar, todos os que tinham ido à Europa e podiam contar como o povo vivia lá”.
O potrinho
Depoimento de uma franco-atiradora: “Confesso que tinha medo de agarrar no fuzil… Aprendemos a desmontar a arma de olhos fechados, a determinar a velocidade do vento, o movimento do alvo, a distância até o alvo… Regressei da guerra grisalha. Com vinte um anos, já estava toda branquinha… Passamos três dias comendo só pão seco, as línguas ficaram tão ásperas que mal as podíamos mover… De repente vemos um potrinho na faixa neutra… Nem tive tempo de pensar, com a força do hábito, apontei e disparei. As pernas do potro dobraram-se e ele caiu para o lado… À noite trazem o jantar. Os cozinheiros dizem: “Muito bem, atiradora. Hoje temos carne na panela”… Desatei a chorar e corri do abrigo… As colegas correram atrás de mim e me consolaram… Pegaram nas marmitas e começaram a comer… Ele vê o meu uniforme, as condecorações e pergunta: ‘Quantos alemães mataste?’. Respondo: setenta e cinco…”
Uma enfermeira aproxima-se de um soldado ferido que tem o braço quase arrancado, seguro apenas por tendões. Procura faca ou tesoura para cortá-lo. Não as encontra na bolsa. “O que fazer? Pus-me a cortar aquela carne com os dentes…”
Uma instrutora da companhia de fuzileiros: “Durante a marcha caminhávamos três pessoas de mãos dadas, e a do meio dorme uma hora ou duas. Depois trocamos. Cheguei até Berlim. Escrevi na parede do Reichstag: Eu, Sofia Kuntsévitch, cheguei aqui para matar a guerra”.
Uma agente de saúde conta que, para se livrar do assédio, ligou-se ao comandante do batalhão: “Era boa pessoa, mas não o amei… Poucos meses depois entrei no abrigo que ele ocupava. Que saída tínhamos? Vivíamos rodeadas por homens, pelo que era preferível viver só com um do que com medo de todos…”
“Como é que a Pátria nos recebeu?”, indaga uma franco-atiradora. E ela mesma responde: “Os homens não diziam nada, mas as mulheres… Gritavam conosco: ‘Sabemos o que vocês fizeram por lá… Seduziram nossos homens… Putas da frente… Galinhas das trincheiras…’”
Uma mulher da resistência regressa à Minsk e descobre que seu marido está na prisão por ter sido prisioneiro dos alemães. Ali, partiram-lhe as costelas. “Antes, na prisão fascista, esmagaram-lhe a cabeça e quebraram-lhe o braço… Em 1945 o NKVD acabou por torná-lo inválido”.
Uma telefonista fala sobre a entrada dos russos na Alemanha vencida: “Escrevem pouco sobre isso, mas é a lei da guerra. Os homens passaram tantos anos sem mulher, além disso há ódio. Entramos numa vila ou aldeia. Os primeiros três dias são para saquear… Apareceram cinco mocinhas alemãs para falar com o comandante do nosso batalhão… Choravam… Foram vistas por um ginecologista… Tinham feridas. Feridas rasgadas…. Mandaram formar o batalhão… Disseram a essas moças que apontassem os culpados… Mas elas choravam e não se mexiam… Não queriam mais sangue…”
Sangue e água
Relata uma oficial de comunicações: “Estamos em marcha.. Umas duzentas mulheres, seguidas por uns duzentos homens. Está calor. É uma marcha de ataque.: trinta quilômetros…. Marchamos deixando marcas vermelhas na areia… E essas coisas.. As nossas… Não dá para disfarçar nesta situação. Os soldados marcham atrás de nós e fingem não reparar em nada… Não olham para o chão… As calças secavam em nós , tornavam-se como de vidro, machucavam a pele.  Faziam feridas, o cheiro de sangue era constante…  Pois não nos distribuíam nada… Apareceu roupa interior de mulher talvez só dois anos mais tarde… Mal chegamos à passagem, os alemães começam a bombardear. Os homens correm para se esconder. Gritam nos chamando… Não ouvimos o bombardeio, não nos importa o bombardeiro, nós nos lançamos ao rio… Água! Aquela foi, provavelmente, a primeira vez que desejei ser homem…”
(*) Os trechos transcritos foram adaptados da tradução para o português de Portugal.

Cem anos de revolução no Sul da América

Lourenço Cazarré
Leitor entusiasmado dos historiadores que narraram as incontáveis guerras, revoluções, revoltas, insurreições, quarteladas e rebeliões que sacudiram o Cone Sul entre os séculos 18 e 19, o jornalista gaúcho José Antônio Severo devorou também as negligenciadas obras publicadas em pequenas editoras por autores de final de semana. Para conferir, visitou os locais que foram palco das maiores batalhas travadas naquele período. E juntou a tudo isso conversas que, quando menino, escutava de seus ancestrais, participantes desses entreveros. Para amarrar o pacote, inventou um fio literário – a vida de um dos maiores militares brasileiros, o general Manuel Luís Osório, o marquês do Herval.
Com uma carreira jornalística de mais de meio século, vivida em algumas das principais redações do país, José Antônio Severo escreveu em cerca de 10 meses 100 anos de guerra no continente americano, obra de dimensões pampianas, com um total de 1.089 páginas, que foi dividida em dois volumes pela editora Record: Rios de Sangue (1) e Cinzas do Sul (2).
Talvez se possa dizer que o grande mérito deste livro, além, claro, de sistematizar toda uma vasta e dispersa bibliografia, é a presença de um jornalista em uma seara quase sempre restrita a excessivamente contidos, ou por vezes derramados, historiadores. Com um texto ágil, claro e direto, despido dos conhecidos rococós retóricos característicos da América latina, Severo esboça diante de seus leitores um quadro amplo e detalhado das lutas que acabaram por moldar quatro dos países do extremo sul da América Latina.
Repórter acima de tudo, o autor comparece com um grande número de informações pouco ventiladas que surpreendem até mesmo ratos de biblioteca razoavelmente versados nesse tipo de literatura. Severo entremeia sua narrativa com causos miúdos que, na linguagem simplificadora das redações, seriam chamados de “historinhas”. Assim, na leitura, nos defrontamos com centenas de historinhas curiosas, surpreendentes, esclarecedoras e por vezes verdadeiramente significativas.
As ações guerreiras começam em 1.777 quando o recém nomeado primeiro vice-rei do Prata, Pedro de Ceballos, a caminho de Buenos Aires, ataca à atual ilha de Santa Catarina para tomar posse de uma terra que julgava pertencer à Espanha. Ao retratar essa luta remota, Severo demonstra uma de suas principais virtudes que é a de descrever com minúcia e abrangência escaramuças e batalhas. Surgem então pontos conhecidos hoje dos muitos turistas que visitam a badalada Florianópolis: Santo Antônio de Lisboa, ilha de Anhatomirim, Jurerê, Canasvieiras e São José da Terra Firme.
Já naquela época, antecipando a quebradeira em que a nação vive hoje, a defesa da cidade estava à míngua: “por falta de verba, apenas dez dos 40 canhões estavam em condições”. O pânico espalhou-se pela ilha e as pessoas fugiram para o continente levando o que podiam. Os que não lograram escapar sofreram na mão dos invasores. “Os homens foram separados e encerrados, depois obrigados a trabalhar, quando não eram simplesmente mortos… As mulheres foram entregues às tropas. Oficiais e graduados tiveram preferência na escolha, mas a maioria ficou à mercê da soldadesca, na base de dez homens para cada uma. Meninas, mulheres de meia-idade e velhas, não escapou nenhuma”. Os que conseguiram fugir para o continente foram recepcionados pelas flechas e lanças dos índios carijós, cuja ferocidade nada ficava a dever à dos espanhóis.
Anos depois, Pedro Luís Borges esclareceria a seu filho, Manuel Luís Borges, que viria a ser pai do futuro general Osório, que, naquela invasão, ele estivera bem seguro na barriga de sua mãe, porque, como as demais grávidas, ela havia sido protegida pelos padres.
Em 1793, aos 16 anos, Manuel Luis Borges alistou-se como voluntário no Exército português. Em 1796 passou a furriel, posto equivalente ao de sargento. Certo dia, injustamente condenado ao açoite, teve a ousadia de aparar uma pranchada regulamentar que lhe foi desferida por um oficial. Foi preso e, antes de receber a inevitável condenação à morte, fugiu em direção ao Sul. Sua jornada em direção à Província de São Pedro pelo meio do mato acabou fazendo com que desse com o costado em Nossa Senhora da Conceição do Arroio (atual Osório). Ali acabou casando com Anna Joaquina Osório, cujo nome de família adotaria para sua descendência. Anos depois, livre da pecha de desertor, o mané Manuel Luís foi reincorporado ao Exército português
Rios de sangue estende-se até o final da guerra da Cisplatina, que durou de 1825 a 1829, com direito a incontáveis batalhas. O melhor momento do primeiro volume sem dúvida é a descrição dos preparativos para a decisiva batalha de Passo do Rosário/Ituzaingó. Homens excepcionais lideravam os dois lados: as tropas do Império eram comandadas por Felisberto Caldeira Brant Pontes de Oliveira Horta, o Marquês de Barbacena, e os argentinos e uruguaios eram chefiados por Carlos Maria de Alvear.
“É impressionante a simetria entre os dois generais”, escreve Severo. Ambos nascidos na América, filhos de nobres, cursaram academias militares da metrópole. Felisberto Brant nascera em Mariana (MG); Alvear era de Santo Angel, atual Santo Ângelo (RS).
A Batalha do Passo do Rosário, vencida por Alvear, pois Barbacena abandonou o terreno, mesmo ainda tendo possibilidade de lutar, determinou a criação do Uruguai, nação-tampão entre dois gigantes brigões. Uma das curiosidades da Guerra da Cisplatina é que dom Pedro I chegou a viajar ao Rio Grande do Sul para comandar as tropas do Império, mas mal botou o pé por lá recebeu a notícia do falecimento de sua esposa, Leopoldina, e teve que retornar ao Rio de Janeiro.
Em Cinzas do Sul temos relatos esclarecedores sobre a demorada Guerra dos Farrapos e a devastadora Guerra do Paraguai. Entre elas, a Guerra do Prata que levou à derrota de Manuel Oribe, caudilho uruguaio, e à deposição de Juan Manuel Rosas, ditador em Buenos Aires por 17 anos.
Todos esses conflitos sangrentos foram causados por divergências incessantes, às vezes ridículas, entre os grupos políticos que tentavam tomar o poder nas nações em formação. Severo assim resume essa pendenga: “Ideologicamente, a linha de identidade entre os países do Prata, descontadas as lutas internas entre os caudilhos que disputavam o poder, corria em linha reta: unitários argentinos/blancos uruguaios/liberais moderados do Rio Grande do Sul de um lado e do outro federales argentinos/colorados uruguaios e liberais exaltados rio-grandenses”. Os primeiros eram republicanos que aceitavam uma monarquia apartidária e a escravidão. O outro agrupamento defendia a abolição e a criação de um estado unitário integrado por províncias autônomas.
O jornalista gaúcho apresenta um número incrível de informações em geral desprezadas pelos praticantes da historiografia ortodoxa: fala da introdução da alfafa em uma terra onde os pangarés só comiam grama rala; das carretas de bois que necessitavam de doze juntas para arrastar 80 arrobas; que o custo de um escravo era cinco vezes maior do que o de um imigrante europeu; conta que os caudilhos argentinos Rosas e Urquiza eram os dois homens mais ricos daquele país; que cada soldado de cavalaria arrastava consigo três rocins mal nutridos; que os fortíssimos cavalos de batalha, ferrados e alimentados a milho, só eram usados nas cargas; que os cavaleiros minuanos e charruas levavam um homem na garupa para lançá-lo dentro da linha de defesa dos brancos; descreve a tomada de Porto Alegre pelos guerreiros farroupilhas e de como eles a perderam depois de um porre geral e homérico; informa que dom Pedro II já era a favor da abolição em 1845 e que lamentava que ela não fosse aprovada no Parlamento por oposição das bancadas de Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo; esmiúça a profunda ligação de Caxias com o Rio Grande do Sul por 20 anos (foi governador e senador pelo Estado); informa que para viajar a Mato Grosso a rota mais cômoda era a marítimo-fluvial, passando por Montevidéu e seguindo por rios interiores; que o Paraguai antes da guerra não tinha moeda, mas havia implantado a primeira linha da América do Sul; que Solano Lopez em sua fuga final conduzia sua mãe e sua irmã, prisioneiras, em uma jaula; que o espião do Paraguai em Montevidéu era o embaixador português; e lamenta os imensos prejuízos trazidos por esses conflitos sempre acompanhados de saques e violações.
Falando de Osório, o lendário general, Severo relata que nas grandes cidades por onde ele passava o povo costumava desatrelar os cavalos da carroça em que viajava a fim de rebocar pelas ruas, com a força dos braços, o herói da Guerra do Paraguai.
Por fim, ficamos sabendo que a Argentina – sacrificada por incontáveis carnificinas, só unificada mais de 60 anos após a libertação da Espanha – conseguiu, após o fim dos conflitos, atrair o excedente de mão de obra de uma Europa tomada pela industrialização para transformar-se, já na virada para o século 20, na quarta nação mais rica do mundo.

As fontes renováveis e a segurança energética

Fernando Zancan
Associação Brasileira de Carvão Mineral
Heiner Flassbeck, ex-secretário do ministério de Finanças da Alemanha, afirmou que a Alemanha não poderá confiar somente na energia renovável, por mais que invista na capacidade destas fontes, para sua segurança energética. No último inverno europeu, houve pouco sol com uma alta pressão e intenso fog (nevoeiro intenso), afetando também as usinas eólicas. Durante várias semanas a Alemanha sofreu com a falta de sol e vento.
Para Heiner, não é viável que a Alemanha desative sua base de energia (nuclear e carvão) sem afetar a sua segurança de suprimento. As lições da experiência alemã, nos mostram que será necessário a energia despachável, que independe dos humores de São Pedro. As fontes despacháveis fornecem eletricidade 24hs/dia, sete dias por semana, só dependendo do fornecimento do combustível e da disponibilidade das máquinas, que operam mais de 90 % do tempo.
As mesmas conclusões foram tiradas do seminário realizado em julho de 2015 em Cambridge, Massachusetts/USA, onde especialistas do setor de energia discutiram a operação de sistemas com mais de 50% de renováveis na geração de energia elétrica em um mundo de baixo carbono. Concluíram também que a nova matriz de geração deverá levar em consideração uma transição que não privilegie tecnologias específicas, mas sim um portfólio de fontes intermitentes e despacháveis. Essas fontes de base aliam despachabilidade e inércia ao sistema como um todo, gerando qualidade de energia e segurança.
No Brasil, um recente relatório do Instituto Acende Brasil, conclui que no país onde cerca de 80% da geração de energia elétrica é renovável, meta que a Alemanha pretende chegar em 2050, será necessário o uso de térmicas despacháveis para manter a segurança energética. Como dependemos das usinas hidráulicas para gerar energia com a finalidade de complementar as usinas eólicas, a baixa hidraulicidade e a construção de usinas a fio d’agua, tornam cada vez mais imprescindíveis as usinas despacháveis de gás e carvão, principalmente carvão que é abundante e de baixo custo.
Portanto, será cada vez mais importante a discussão das tecnologias de baixo carbono e implantação de políticas públicas de baixo carbono, iniciando com a substituição das usinas térmicas antigas, por máquinas mais modernas com menor emissão de CO2/KWh gerado, e avançando com tecnologias de combinação de carvão e biomassa e por último o desenvolvimento da Captura e do Armazenamento do Carbono (CCS).
 

O regime dos caciques

O voto em lista não tem pai nem mãe. Mas a criatura virá para o centro do palco e pode arrebatar a cena. Financiamento público de campanha puro é sinônimo de voto em lista partidária.
A luta pelo voto sai das ruas e vai para as convenções partidárias.
Lista é o modelo europeu e que funciona na maior parte das chamadas democracias avançadas da Europa e Ásia. Monarquias ou repúblicas. Socialistas ou neoliberais.
É o regime dos caciques, banindo dos plenários os comunicadores, bigbrothers, atletas e palhaços profissionais. Salvo alguns tropeços para confirmar a exceção da regra, como a estrela pornô Cicciolina, na Itália.
No escurinho dos conluios começa a briga de foice pelo lugar na lista. Normalmente o líder (como se diz na Europa) entra em primeiro. Mas isto no parlamentarismo. Aqui deve ser diferente.
Vão se esmurrar caciques, corporações, minorias, religiosos, puxadores de voto leigos ou ateus e assim por diante. E os majoritários, presidente e vice, governadores, senadores?
O objetivo imediato é tirar o “centrão” do jogo, em nome da governabilidade. Haveria um objetivo secundário que seria dar chapa a políticos acusados de corrupção. Pode ser que se crie também uma cota para indiciados.
O fundamental é que com a proibição de uso de dinheiro próprio ou de terceiros por candidatos individuais, não haverá forma de ratear os recursos do Fundo Partidário. Terá de ser tudo canalizado para as listas.
Mesmo as contribuições legais, individuais de pessoas físicas controladas pelo CPF do doador, não podem ser usadas por candidatos individuais. Entra no caixa do partido e vai para o rateio.
Este é o problema. Ninguém quer falar disso, mas todos sabem que no fim do túnel a chamada “classe política” vai se justificar com a necessidade inexorável de entregar aos partidos a administração dos recursos.
Então a lista é a única forma de fazer uma eleição igualitária, dirão.
Porque isto? A Justiça Eleitoral, apoiada nas polícias, vai vigiar e controlar todos os gastos legais e descobrir os ilegais. Ninguém terá coragem de burlar a Lei, pois a mão da moça de olhos vendados será pesada.
Contra a força não há resistência, dizia-se no Rio Grande nos tempos das revoluções. O ditado político volta a assombrar partidos e candidatos, só que desta vez são os grampos da Polícia Federal e não mais os mosquetões do Provisórioss do Dr. Borges de Medeiros.
A percepção dos profissionais do ramo (dirigentes, burocratas de partidos e marqueteiros eleitorais) é que não vai dar para gastar nem um centavo por baixo do pano nem falar bobagem ao telefone.
Também não vai ser possível fazer encontros fortuitos, nem receber pacotes suspeitos, nem pagar contas em dinheiro.
Cuidado com o que os dedos teclam nos e-mails, tweeter, face book, redes sociais.
Também estão expostas aos hackers as movimentações financeiras. Cuidados com palavras ditas ao vento: quem estiver militando em campanhas deve falar sempre com a mão na boca.
Quem estiver metido em política que ande sempre com as mãos à mostra, os bolsos para fora das calças, tudo bem à mostra porque não há como escapar da vigilância fina. Qualquer passo em falso pode gerar uma impugnação.
Tudo em nome do aperfeiçoamento da democracia, da verdade eleitoral e da lisura do pleito. Dinheiro só do Fundo Partidário. Financiamento púbico de campanha. Sair desses limites é um risco para lá de arriscado.
É inesgotável estoque de grampos, infinito o número de câmaras e microfones. A parafernália eletrônica aposentou os antigos “ratões” dos tempos da ditadura. É de fazer inveja aos abelhudos do SNI dos tempos do Presidente Médici.
A jovem democracia brasileira parece que levou a extremos inimagináveis o velho lema da antiga UDN: “O preço da Liberdade é a Eterna Vigilância”. Bota vigilância nisto.
Sonho de uma noite de verão? Quem viver verá, dizia o velho Acácio.

O alvo era o Lulinha

Pinheiro do Vale
A vaca foi “pro” brejo? É o que parece: a grande imprensa golpista foi com toda sua sede na Operação Carne Fraca, certa de que iria pegar Lulinha no contrapeso, mas não encontrou nada.
Mesmo vasculhando os porões da Friboi a Polícia Federal encontrou apenas carne adulterada.
Nem sinal dos contratos de gaveta que dariam ao filho do ex-presidente a propriedade de uma fatia do maior frigorífico do mundo.
Quando os jornalões e a Rede Globo se deram conta da “barriga” já era tarde, pois as denúncias amplificadas já corriam o mundo e a pecuária brasileira jogava sua credibilidade na lata do lixo.
Não bastassem as denúncias, o presidente ilegítimo convidou os embaixadores para um churrasco de desagravo num espeto corrido de Brasília.
Entretanto, para confirmar a “competência” da comunicação golpista, os marqueteiros de Temer levaram os diplomatas à uma churrascaria que só serve carne estrangeira. Parece anedota.
Enquanto Lula num golpe de mestre reassume a paternidade da transposição do Velho Chico, Temer se afunda num festival de desmentidos inverossímeis.
Por mais que a Carne Fraca fosse um tiro n’água de um delegado de polícia faminto por holofotes, não dá para acreditar em tamanha repercussão só pela denúncia de um fiscal do Ministério da Agricultura despeitado.
Algumas vozes de viés conspirativo estão debitando a operação na traição à Pátria dos federais, que estariam a serviço de potências estrangeiras carnívoras. Seria o segundo passo do projeto Lava Jato que baniu a Engenharia e a construção civil brasileiras do mercado internacional e abre as portas do País às construtoras estrangeiras. James Bond perde.
E o gaúcho desconfiado ainda acrescenta: isto é coisa de argentino para tirar nossa carne da frente. “Os castelhanos não se conformam que lhes tiramos o campeonato da carne”, diz o gaudério.
Brincadeira. Se sujar a marca da carne brasileira leva junto a imagem dos vizinhos. Ganham norte-americanos e australianos.
O que parece mais plausível até este momento era o objetivo de pegar Lulinha, bem no dia em que seu pai renascia das cinzas na inauguração verdadeira da transposição do São Francisco. “Se for candidato ganho”, disse Lula.
Tiro n’água do Velho Chico, pois Lulinha não tinha um mísero centavo aplicado na Friboi e a Carne Fraca veio a público na data do aniversário da Lava Jato, misturando esse fiasco com os desmandos de Curitiba.

O truque do Janot para implodir a candidatura do Lula

Jeferson Miola
O que poderia ser celebrado como sinal de normalidade institucional – os pedidos do Rodrigo Janot ao STF para abrir inquéritos das delações da Odebrecht – na realidade é apenas um truque do procurador-geral para [i] proteger o bloco golpista, em especial o PSDB; mas, sobretudo, para [ii] viabilizar a condenação rápida do Lula e, desse modo, impedir a candidatura do ex-presidente em 2018, isso se a eleição não for cancelada pelos golpistas.
Janot seguiu fielmente Maquiavel: “aos amigos, os favores; aos inimigos, a lei”. Os golpistas, cujos indícios de crimes são contundentes, com provas de contas no exterior, jantares no Palácio Jaburu, códigos secretos para recebimento de dinheiro da corrupção e “mulas” para carregar propinas, serão embalados no berço afável do STF.
Lula, sobre quem não existe absolutamente nenhuma prova de crime, foi denunciado por Janot e será julgado por Sérgio Moro, um juiz parcial, que age como advogado de acusação. Ele é movido por um ódio genuíno e dominado por uma obsessão patológica de condenar Lula com base em convicções [sic]. Janot entregou a este leão faminto e raivoso a presa tão ansiada.
Os fatores que permitem prospectar esta hipótese da sacanagem do Janot são:

  1. as listas parciais divulgadas em 14 e 15/03/2017 implodiriam qualquer governo, quanto mais o apodrecido e ilegítimo governo Temer – implodiriam, mas não implodirão, porque estamos num regime de exceção;
  2. foram denunciados nada menos que: seis ministros [Padilha, Moreira Franco, Aloysio Nunes, Bruno Araújo, Kassab e Marcos Pereira] + os dois sucessores naturais do presidente em caso de afastamento do usurpador [Rodrigo Maia e Eunício Oliveira] + o idealizador da “solução Michel” para estancar a Lava Jato, atual presidente do PMDB [Romero Jucá] + o presidente do PSDB [Aécio “tarja-preta”] + quatro senadores da base do governo + cinco governadores + três deputados que apóiam Temer + três senadores da oposição + dois deputados de oposição;
  3. uma pessoa iludida poderia concluir: “é uma decisão corajosa e imparcial do Janot”; afinal, ele investiga personagens poderosos e, aleluia, inclusive o PSDB. Ilusão: esta é, exatamente, a manobra diversionista do Janot;
  4. os denunciados do governo golpista, todos eles, inclusive os sempre protegidos tucanos, têm foro privilegiado, e por isso serão investigados pelo STF, e não nas instâncias inferiores do judiciário [com minúsculo]. É verdade que Janot denunciou também golpistas sem foro privilegiado. Esses, porém, são as “genis” Eduardo Cunha e Sérgio Cabral, já presos; e Geddel Vieira Lima, que já está no corredor do cárcere;
  5. o supremo [com minúsculo], demonstram estudos da FGV, é a instância mais lenta, mais politizada [eventualmente mais partidarizada, para não dizer tucana] e mais inoperante do judiciário. A primeira lista do Janot, por exemplo, entrou no sumidouro do STF há dois anos [em março/2015], e lá dormita até hoje, sem nenhuma conseqüência na vida dos políticos denunciados por corrupção;
  6. a composição ideológica do STF é aquela mesma que, agindo como o Pôncio Pilatos da democracia brasileira, lavou as mãos no processo doimpeachmentfraudulento, e assim converteu o supremo em instância garantidora do golpe de Estado que estuprou a Constituição para derrubar uma Presidente eleita com 54.501.118 votos;
  7. é fácil deduzir, portanto, qual será a tendência do STF na condução dos processos dos golpistas. Se esses julgamentos iniciarem antes de 2021, será um fato inédito.

A lista do Janot é um instrumento ardiloso da Lava Jato e da mídia para a caçada do Lula. Janot faz como o quero-quero, pássaro que grita longe do ninho para distrair os intrusos, afastando-os dos seus filhotes.
As instituições do país estão dominadas pelo regime de exceção que violenta a Constituição para permitir um processo agressivo e continuado de destruição dos direitos do povo, das riquezas do país e da soberania nacional.
O anúncio imediato da candidatura presidencial do Lula, abrindo uma etapa de mobilizações permanentes e gigantescas do povo, é a urgência do momento. É a garantia de proteção popular do Lula contra os arbítrios fascistas do regime de exceção e, ao mesmo tempo, fator que pode modificar a correlação de forças na sociedade.
O êxito dos protestos deste 15 de março, que levaram milhões de trabalhadores às ruas em todo o país, é um sinal positivo da retomada da resistência democrática e da luta contra o golpe e os retrocessos.
A democracia e o Estado de Direito somente serão restaurados no Brasil com a mobilização popular intensa e radical, e a candidatura do Lula é um motor para esta restauração.
Artigo originalmente publicado em http://www.facebook.com/jefmiola/posts/263773757365939
 

Anistia ao Caixa 2

Pinheiro do Vale
A chamada classe política decidiu chutar o balde. Às favas a opinião pública, aquela “rainha do universo” de que falava Bento Gonçalves.
O importante agora é salvar o pelo, livrar-se da cadeia. Depois, que cada qual se explique a seu eleitorado como puder, safando-se da execração, se for possível.
No Senado e na Câmara dos Deputados, os líderes e as bancadas dos grandes partidos estão esculpindo uma estátua de Belzebu, o “Anjo Caído”, bonito por fora e demônio por dentro: será aprovada no Congresso uma lei duríssima contra o Caixa 2, mandando doadores e beneficiados para o fundo as masmorras se um tostão furado (a moeda mais vil que circulou no mundo lusitano) entrar num bolso “não contabilizado”.
Dureza, tolerância zero, transparência translúcida. Ferro e fogo. Com a nova lei, os velhos crimes ficam no passado. Só paga quem transgredir daqui para frente.
Uma manobra neste sentido já fora tentada, mas caiu diante do clamor da imprensa e de todas as vozes moralistas. Os deputados deram meia volta.
Nesta nova investida os congressistas vão botar para quebrar. Mas não vão dormir de touca: no projeto de reforma política virá algum tipo de votação em lista, isto é, o eleitor sufraga o partido e não mais o nome do candidato.
Com isto, o golpe de mestre: as lideranças envolvidas na Lava Jato, anistiadas pelo Caixa 2 com a lei que vem vindo, por aí podem entrar nas listas, sem necessidade de apresentar seus “santos” nomes ao distinto público.
Os líderes no Congresso aprontam o pé para aplicar um chute no bumbum da Rainha do Universo. É o medo das grades.
Está aí o dia 26 de março, marcado para as grandes manifestações de rua.
É bom lembrar, como está no excelente livro de Euclides Torres, “Bento Manoel, o Caudilho Maldito”, a última reunião do Conselho de Estado do Império, na manhã de 9 de novembro de 1889, horas antes dos primeiros acordes das orquestras no baile da Ilha Fiscal.
Nessa reunião, na presença de Dom Pedro II, o conselheiro Andrade Figueira denunciava: “ Os dinheiros públicos, Senhor, estão sendo desbaratados para pagamento de compra de votos”, e continuava, para concluir que um golpe de estado parecia iminente, oferecendo uma opção perversa: “Corrupção ou violência? Se eu fosse governo e tivesse de escolher entre violência e corrupção, preferia a violência, porque a corrupção avilta não somente quem é corrompido mas também quem corrompe”.
 

Por um Estado democrático e transparente

Benedito Tadeu César
Intelectual e acadêmico da UFRGS, aposentado
Os deputados do PMDB estão repetindo a mesma cartilha. É o que se deduz de manifestações recentes do líder do governo na Assembleia e de um ex-presidente do partido na imprensa gaúcha.
Em artigos no Correio do Povo, no dia 18 de fevereiro, e na Zero Hora, no dia 28 do mesmo mês, os parlamentares classificaram de “´pseudointelectuais ideológicos” e de “academicistas ideológicos divorciados dos anseios sociais” todos os que ousam discordar das medidas de “modernização” propostas pelo governador José Ivo Sartori e acatadas inconteste pelos governistas.
O conceito de ideologia está ligado à ideia de distorcer a realidade para favorecer os interesses de determinados grupos. Assim, talvez o epíteto de ideológico se adeque melhor a políticos que defendem medidas sem serem capazes de comprovar sua real necessidade e eficácia.
Afirmam, os deputados, que “as propostas resultam de análise profunda”, que “as ações para resgatar o Estado do naufrágio foram debatidas Estado (sic) afora” e, ainda, que “uma pesquisa encomendada por entidades representativas do setor produtivo já revelou que 72,4% dos gaúchos aprovam o plano de Sartori”.
Onde está a “análise profunda”, que não foi apresentada sequer ao Legislativo? Onde estão os estudos dos impactos das extinções e das privatizações pretendidas? Quem os realizou? Onde estão as informações sobre as datas, as localidades e o número de presentes em cada debate realizado sobre as medidas?
Sem questionar os interesses que moveram o gesto dadivoso das entidades que financiaram a pesquisa, o que se pergunta, seguindo a metodologia recomendada, é se os entrevistados foram inquiridos, ao iniciar suas respostas, sobre o seu grau de conhecimento das competências e orçamentos das fundações e empresas ameaçadas.
Nenhuma dessas informações veio à luz, não obstante tenha sido encaminhado um pedido de diálogo ao governador, no dia 9 de janeiro, por meio de uma carta aberta encabeçada por 66 artistas e acadêmicos reconhecidos em suas áreas e que conta hoje com cerca de 1,5 mil subscritores.
Reafirmando que encaminhar reformas não expostas claramente à sociedade constitui postura ideológica, mantenho, como um dos signatários da carta aberta, nossa disposição ao debate democrático e renovo o pedido de divulgação dos estudos e de instalação de um fórum com representantes da sociedade civil para elaborar alternativas para o desenvolvimento do RS.
 

Temer por um fio

Pinheiro do Vale
O mandato de Michel Temer está por um fio. Delatado e prestes a ser indiciado por crime eleitoral, este delito está fora da margem de imunidade,  que o exime de qualquer responsabilidade por falcatruas anteriores à sua posse.
Portanto, se a eleição foi fraudada, este mandato não vale mais e assim, já ex-presidente, ele voltará para a primeira instância da Justiça Federal, porque seu governo, além de obtido num golpe parlamentar, será invalidado pela ilegalidade do pleito.
Isto é muito sério e já acende a luz vermelha no Palácio do Planalto.
Mentes mais crédulas admitem que esse processo não chegará a tempo de tirá-lo da residência oficial do Jaburu. Afinal, o governo acaba no ano que vem. O processo será lento e cheio de idas e vindas.
Mas só o fato em si já dá arranque no motor da política. Por isto, o croupiê já está com a mão na roleta eleitoral. Cada qual botando suas fichas. E aí aparece um quadro de apostadores que não estavam no pano verde.
Na primeira vaza, a nova aposta dos tucanos, o prefeito de São Paulo João Doria Jr. O trio de ouro do partido está fora do jogo: Aécio Neves e José Serra caem ainda neste primeiro semestre, fulminados pelo Caixa 2 da Operação Lava Jato.
O terceiro nome, o governador Geraldo Alkmin, também está em fase de descarte, por falta de apelo eleitoral.  Nas pesquisas seu nome não se mexe, nem para baixo, nem para cima. O número estável é seu recall está vitaminado por São Paulo, em torno de 8% no âmbito nacional .
Nos demais estados cai para traço, ou seja, perto de zero. Será candidato a senador.
A aposta em João Doria revela o desespero do golpismo tucano. O almofadinha paulista é um estreante político, com alcance apenas municipal. Assim mesmo, eles já estão pensando em botá-lo no páreo quando não terá cumprido sequer metade de sua prefeitura. Perigo.
Os argumentos a seu favor são pífios: O mais ousado diz que Doria não tem rejeição. Isto é óbvio, pois é um homem não testado. Quando começarem a aparecer as mazelas da cidade ele vai naufragar, como todos os demais prefeitos da Pauliceia Desvairada..
O segundo argumento é que seu nome foi reconhecido por 61 por cento dos entrevistados. É muito pouco, mesmo considerando que a Rede Globo fala dele todos os dias em rede nacional.
Há muitos outros “poréns”. O mais óbvio será quando trair sua própria eleição, abandonando o posto em nome de uma ambição desmedida. Isto nunca deu certo.
Os demais candidatos da direita são irrelevantes. Mesmo o estapafúrdio capitão Jair Bolsonaro, que vem repontando nas pesquisas estimuladas. Espera-se que ele não cresça, embora seja um perigo real. Aí está Collor para mostrar como não se deve errar.
Intelectuais e analistas vêm chamando atenção dos partidos de esquerda para a tática de enfrentamento com o cometa a direita. A tática de tentar descontruir e desqualificar foi aplicada em Collor, que era apenas um histrião moralista, mas foi subindo nos degraus da anti-propaganda.
As pessoas mais lúcidas estão dizendo que devem combater Bolsonaro com ideias e propostas, impedindo assim que seu discurso populista ganhe força, como foi no caso do alagoano.
Ele não tem base política. Na eleição para presidente da Câmara teve apenas quatro votos, o dele, do filho e de dois policiais militares deputados. Deixá-lo crescer seria muita incompetência de seus adversários.
Collor cavalgou o naufrágio das candidaturas dos políticos tradicionais: Covas, Ulysses, Aureliano, Maluf, Afif Domingos.
Brizola e Lula chegaram divididos, mas a reação se uniu em torno do galã de Maceió. Deu no que deu. O erro foi atacar Collor pelo lado errado.
Há as duas opções à esquerda: Ciro Gomes que sonha ocupar a vaga de Lula, quando o líder petista for e declarado inelegível. Sonho de uma noite de verão. Lula somente será barrado em caso de condenação em segunda instância, o que é impossível pois será no máximo processado, mas não julgado no tribunal básico. Não há provas contra ele, só denúncias de dedos-duros.
A outra seria da ecologista Marina. Seu desempenho na última eleição demonstra que é um cavalo paraguaio, de tiro curto.
Quando a Lula, sua posição melhora todos os dias. Além de ter um recall extraordinário, na faixa dos 30 a 35%, sua rejeição, produzida pela propaganda massacrante, cai assim mesmo. Esteve com 71% negativos e na última pesquisa reduziu para 60 por cento. Botando uma campanha rua o líder paulista pode descer a níveis aceitáveis de 40 por cento. Isto seria normal num primeiro turno.