Se fosse uma luta, Lula teria dado uma surra em Donald Trump

Os analistas da mídia ficaram cheios de dedos, mas os fatos são bastante claros.

O que aconteceu na Assembleia Geral da ONU foi o desdobramento  dessa guerra político-comercial entre Estados Unidos e Brasil, deflagrada com o tarifaço de Donald Trump, em agosto.

Pela primeira vez, ao invés de curvar-se às pressões de Tio Sam, o Brasil reagiu e, sem abrir mão das negociações, foi à luta e buscar alternativas para os produtos ameaçados, sem mudar o rumo das iniciativas que provocaram o ataque – o processo contra Bolsonaro e golpistas do 8 de janeiro, os acordos de cooperação comercial com a China e a regulação das big techs.

No primeiro mês, as tarifas de 50% impostas por Trump derrubaram em mais de 15% as exportações para os Estados Unidos.  Mas, no total, o pais conseguiu aumentar em 3% as suas vendas para o exterior.

Também não surtiram efeito as sanções a ministros e altos funcionários brasileiros: Bolsonaro e seus golpistas foram condenados e estão presos.  As pesquisas mostram que a opinião pública apoia a punição e é contra qualquer  anistia.

A regulação das big techs e redes sociais que operam no país, obstruida no Congresso, avançou pelo STF. E as relações comerciais com a China seguem florescentes, com acordos bilionários para investimento em infraestrutura e outras áreas. O comércio entre os dois países bate recordes.

Em síntese,  se é possível comparar esse embate com uma luta, o Brasil venceu sem dificuldade maior o primeiro round.

O segundo round, foi o que ocorreu na 80a. Assembleia Geral da ONU, nesta terça-feira, 23 de setembro de 2025.  E aí, se é válida a metáfora do pugilato, pode-se dizer que o Brasil deu uma surra.

Lula disse o que precisava ser dito. Não citou os Estados Unidos, nem Trump, mas  o recado foi claro, contra os autocratas, que tomam medidas unilaterais, os que querem interferir na soberania de outros países, os que apoiam as guerras e o genocídio…

Trump em seu discurso foi patético, falseando fatos, atacando a ciência, s. Foi duro com o Brasil, mas no trecho  mais agressivo interrompeu a leitura,  para dizer que não se sentia muito confortável em falar aquilo porque havia cruzado com o líder do Brasil nos corredores e havia gostado dele. “Nos abraçamos”.  E anunciou que combinaram uma reunião na próxima semana.

Dizer que “jogou a toalha” é exagero. Esse embate se dá num cenário internacional de alta instabilidade e muitos pontos de extrema tensão, impossível imaginar sequer quantos rounds terá a luta. Certo é que os dois primeiros, ganhou o Brasil.  O terceiro será a reunião de Lula com Trump, ainda não marcada.

 

ELMAR BONES / Mino Carta, mestre de todos nós

Mino Carta não gostava de ser chamado de mestre, mas ele não foi outra coisa senão o grande mestre de duas gerações de jornalistas brasileiros, entre os quais orgulhosamente me incluo.

Tinha 24 anos, era um “foca” provinciano quando o conheci, em São Paulo, no curso da Editora Abril, em 1968. Ele formava a equipe que ia fazer a Veja.

Lembro de sua figura elegante, um Mastroiani, rumo à sua sala no fundo da redação, no sexto andar da Abril, onde ele reuniu uma seleção de editores de primeira linha: Sérgio Pompeu, Luís Garcia, Renato Pompeu, Raimundo Pereira, Sebastião Gomes Pinto, Leo Gilson Ribeiro, José Ramos Tinhorão, Carmo Chagas, Geraldo Mayrink, Ulisses Alves de Souza, Bernardo Kuscinsky, Roberto Muggiatti, Henrique Caban… Mino Carta regia aquele grupo, brilhante e heterogêneo, com  maestria.

Não era diretor de ficar no gabinete dando ordens. De portas abertas, discutia em voz alta, às vezes italianamente aos gritos, raramente perdendo o humor. Acompanhava todo o processo, da reunião de pauta ao fechamento. Em cima de sua mesa tinha sempre os diagramas, onde ia desenhando página a página da revista.

Fiquei quatro anos na Veja e posso dizer que ali me formei. Com Mino e aquele grupo, percebi o jornalismo, com suas responsabilidades, seus riscos e suas ilusões.

Não tínhamos proximidade e, nos últimos anos, nos encontramos esporadicamente. A última vez que fui a São Paulo, em julho, ele já não recebia visitas.

Como profissional, porém, acompanhei-o sempre, como uma referência segura e inspiradora, que ele foi e será sempre para todos os que exercem esse difícil e espinhoso ofício de “informar o que acontece”.

(Texto que escrevi a pedido do meu amigo Luís Augusto Fischer para a revista Parêntese)

Ruy, Jaguar, Verissimo, Mino Carta… logo agora?

Sempre achei que certas pessoas alcançam uma condição que se tornam arquétipos e não deveriam morrer ou, pelo menos, deveriam ter um prolongado tempo para servir de referência a muitas gerações, para que a evolução fosse mais rápida.

Claro, não é assim e cá estamos nós, no espaço de um mês,  diante da morte do Ruy Ostermann,  do Jaguar,  Luis Fernando Verissimo, Mino Carta…

A morte não os aniquila, ainda bem. Restam suas obras, seus ensinamentos, sua inspiração.  Mas logo agora?

Neste momento em que o Brasil vive o maior desafio de sua história perder alguns de seus melhores intérpretes! É sacanagem! (E.B)

A solidão no poder: Lula contra todos os partidos

Paulo Baía *

O Brasil político de agora é uma máquina de fingimentos. Lula, no centro da engrenagem, governa com ministros que representam partidos que, na prática, não o apoiam. Ocupam espaços no Executivo, circulam com a liturgia do poder, mas no Congresso Nacional agem como sabotadores discretos. A base que o sustenta é a mesma que o solapa. A coalizão formal não passa de um corpo sem nervos, sem alma, sem fidelidade. É uma dança sem música entre o presidente e forças que não querem dançar, só arrancar concessões.

Essa encenação diz muito mais do que parece. Trata-se de uma forma de dominação que opera por dentro da institucionalidade, esvaziando-a de sentido. O presidencialismo de coalizão, antes pragmático, tornou-se um jogo de sequestro e resgate. O governante se vê obrigado a pagar resgates diários para manter o governo refém de pé. Ministérios são entregues como moeda de troca, mas não há entrega política em contrapartida. Há apenas o parasitismo elegante de quem finge governabilidade para manter as aparências enquanto o poder real escorre por entre os dedos.

Lula, nesse cenário, emerge como uma figura trágica: o político mais experimentado do país, com um vínculo afetivo profundo com os setores mais pobres da população, mas isolado no comando de um governo que é dele e não é. Um presidente que fala para o povo, mas é silenciado por um Parlamento que fala apenas para si. Ele carrega um mandato que lhe foi dado pelo voto, mas está cercado por forças que desconfiam do voto como expressão legítima da soberania popular. O Congresso atual é um espelho invertido da vontade coletiva: projeta um país que não existe e combate o país que existe.

Essa forma de operar o poder é mais do que cálculo. É uma cultura, uma prática social arraigada, uma antropologia do cinismo. Os partidos se tornaram agremiações negociantes, onde o conteúdo ideológico foi dissolvido na ambição por espaços. Não há aliança possível com projetos que desejam o colapso silencioso do próprio governo que integram. A política virou um mercado onde se vende estabilidade a preços exorbitantes e se entrega sabotagem com recibo institucional. A traição é sistemática, mas cuidadosamente protocolada.

O que torna essa situação ainda mais brutal é o fato de que não há exceções. Nenhum partido com representação no Congresso Nacional atua hoje com coerência em defesa do governo que ajudou a compor. Os que indicaram ministros estão mais interessados em benefícios orçamentários do que em apoiar efetivamente um programa de governo. Os que se dizem de centro apenas calculam seus ganhos em silêncio. E os que integram o Executivo se tornaram operadores do seu próprio projeto, divorciado da Presidência. Nenhum partido, de fato, se compromete com a travessia política de Lula. Todos, de maneira direta ou omissa, colaboram para a erosão de sua autoridade.

A resposta possível a esse estado de coisas seria a ruptura com o pacto podre. Não no sentido antidemocrático da ruptura institucional, mas na dimensão simbólica de abandonar a hipocrisia. Convocar o povo, não para protestos desesperados, mas para a construção de uma nova linguagem política. Uma linguagem que não aceite mais a conciliação como destino, mas que reivindique o conflito como terreno legítimo da transformação. Isso exigiria um gesto raro: renunciar à zona de conforto do governismo e encarar de frente a realidade brutal do país que se nega a mudar.

Há um poder novo que só emerge quando tudo parece perdido: o poder de quem não deve nada ao cinismo. Um presidente cercado por inimigos elegantes, que vestem a institucionalidade como disfarce, pode descobrir nesse cerco uma liberdade radical. A liberdade de nomear as coisas como são. A coragem de dizer ao povo que o governo está cercado por aqueles que se beneficiam do fracasso do país. Não se trata de heroísmo, mas de lucidez. A lucidez de quem compreende que a governabilidade que hoje se oferece ao Brasil é um pacto de mediocridade.

A corrosão da democracia brasileira não se dá apenas pelo autoritarismo explícito, mas pela captura do processo democrático por interesses privados. O Congresso se converteu numa federação de negócios, impermeável à dor social, alheio ao povo e devotado apenas à manutenção de seus próprios privilégios. Suas decisões raramente ecoam as urgências do país. É um poder que fala uma língua que ninguém mais entende, porque já não fala com ninguém.

Romper esse ciclo exige mais que força. Exige beleza, forma, narrativa. É preciso reencantar a política com um discurso que não tema a frontalidade. O Brasil precisa ouvir, com clareza, que está sendo governado contra si. E que há, sim, uma saída: não pelos atalhos do autoritarismo, mas pela reinvenção do poder como espaço de verdade. A verdade, nesse caso, é cruel, mas libertadora: o presidente está só. E justamente por isso pode ser mais livre do que nunca. Porque nada mais o prende aos ritos de uma aliança que nunca existiu.

O país está diante de um espelho. De um lado, a imagem oficial da institucionalidade, feita de siglas ocas e discursos calculados. Do outro, o reflexo cruel de um governo que tenta sobreviver num ambiente que o quer sangrar até o fim. Lula ainda é o único elo entre o povo real e a política possível. Mas esse elo está sendo testado, esticado até o limite. A história não perdoa aqueles que fingem que tudo está bem quando o mundo desmorona. Talvez tenha chegado a hora de não fingir mais. A solidão do poder pode ser, também, o início de sua purificação. E essa solidão, hoje, é absoluta: Lula está só diante de todos os partidos. E diante da história.

* Sociólogo, cientista político e professor da UFRJ

Ricardo Chaves, Kadão: anotações para um perfil

“Morreu o Kadão”!

Estava num bar no Bom Fim com Jorge Polydoro, quando ele recebeu a notícia no celular. Minha memória disparou, vi o menino,  filho do Hamilton Chaves, na sede da Ecad no centro de Porto Alegre, em 1967.

Hamilton, jornalista, compositor, vereador, cassado em 64, estava empenhado, junto com Lupicínio Rodrigues, na valorização do trabalho dos músicos locais.

Tentavam organizar a sociedade arrecadadora de direitos autorais, que não tinha representação no Rio Grande do Sul. Lupicínio, na verdade, só emprestava o nome e o prestígio. Dinâmico, bem relacionado, cheio de ideias, Hamilton Chaves é que dava vida àquela pequena sala, alugada num edifício na rua da Praia.

Kadão teria 13 anos, ia encontrar o pai no final do expediente. Fui revê-lo dez anos depois,  já como fotógrafo profissional, na Coojornal. Trabalhava na Veja, mas era sócio da cooperativa e colaborador ligado à equipe de Assis Hoffmann.

Foi, quem sabe, o mais bem dotado herdeiro daquela tradição representada por Assis Hoffmann e que tinha raízes na Última Hora gaúcha, o mais original dos jornais da rede de Samuel Wainer.  O repórter e o fotógrafo formavam uma unidade empenhada em produzir uma reportagem.

O fotógrafo não era mais o retratista, que trazia uma imagem formal para “ilustrar” o texto do repórter. A fotografia tinha que trazer a informação complementar ou, às vezes, a mais importante, para passar ao leitor o que realmente havia acontecido.

O papel que, segundo Luiz Cláudio Cunha, Kadão teve no desvendamento do “sequestro dos uruguaios”, é exemplar desse novo papel dos fotógrafos na cobertura jornalística, naqueles anos remotos.

Na passagem pela Veja, em São Paulo, convivendo no dia-a-dia com os melhores fotojornalistas em atividade no país, Kadão consolidou sua vocação. Daí em diante, cresceu exponencialmente.

Outra característica daquele grupo, que em determinado momento se aglutinou na Coojornal, foi o espírito solidário, de generosidade, que o Kadão requintou.

Sempre lembro o caso do Arfio Mazzei, que morreu recentemente, fotógrafo respeitado. Estava perdido na vida, teve uma chance na fotografia do jornal A Platéia, de Livramento.  Não sabia nada, nem máquina tinha. Kadão recebeu-o, ministrou-lhe um treino intensivo e, se não me engano, ainda emprestou uma câmera.

Kadão morreu na sexta-feira, 4 de abril de 2025. Ainda está muito próximo para que possamos perceber toda a sua dimensão e seu devido lugar na história do fotojornalismo brasileiro. (Elmar Bones)

 

 

Por que o súbito interesse dos EUA na Groelândia?

Henrique Casanova

Donald Trump escandalizou o ambiente da geopolítica internacional quando declarou sua intenção de anexar a Groelândia. O Presidente norte-americano é conhecido como um excêntrico e a afirmação foi vista com certo humor por parte dos seus seguidores.

Analistas mais bem informados, porém, rapidamente ligaram a surpreendente fala com o fato de que a Groelândia tem solo rico em minérios relevantes na produção de energias alternativas.

A Groelândia, que é um território autônomo vinculado à Dinamarca, tem grandes reservas de minérios, alguns destes raros, necessários no desenvolvimento dos  carros elétricos. Importante lembrar que famosos bilionários do setor estão literalmente na cúpula do governo Trump. É esperado um boom de mineração naquele território para os próximos anos.

 

Tensões com China e Rússia

Com o progressivo recuo das geleiras, devido ao aquecimento global, as rotas marítimas do círculo polar ártico tornam-se cada vez mais navegáveis. O país com mais território nessa região é a Rússia, adversário histórico dos Estados Unidos, mas também a China (contra quem o Império norte-americano prevê uma guerra) tem o mar ártico como importante rota da sua pujante economia.

Restringir o acesso da China àquela região é a preocupação estratégico-militar dos Estados Unidos quando falam que anexar a Groelândia é uma questão de “segurança nacional”. A intenção é ampliar a presença militar naquele território (os EUA já possuem uma base militar ao Norte da ilha). Donald Trump, em reunião com o Secretário Geral da OTAN, Mark Rutte, semana passada, afirmou que controlar a Groelândia é do interesse da segurança de todo o bloco Ocidental.

O que pensa disso tudo o povo Groelandês?

Uma pesquisa realizada com a população nativa em janeiro deste ano mostra que 85% da população se opõe a fazer parte dos Estados Unidos. O grupo de pesquisa Verian, endossado por jornais locais e dinamarqueses, levantou ainda que foram apenas 6% os que responderam favoráveis, com 9% de indecisos.

Considerada a maior ilha do mundo, a Groelândia tem clima hostil, já que seu território está localizado nas altas e gélidas latitudes polares. Sua população concentra-se na costa Oeste e compõe cerca de 60 mil habitantes, a maioria da etnia esquimó “Inuíte”. Seu governo é autônomo, com parlamento próprio. O país tem sistema de saúde e ensino superior gratuitos.

Os Groelandeses cultivam distanciamento até mesmo com a Dinamarca, almejando sua completa independência enquanto país. Seu primeiro ministro, Mute Egede, é de etnia nativa e afirmou, neste 13 de março, que “é necessário endurecer a rejeição a Trump. As pessoas não podem continuar nos desrespeitando”.

 

 

 

 

 

 

Arfio Fontoura Mazzei: anotações para um perfil

1981. Precisávamos de um fotógrafo no jornal A Platéia, de Santana do Livramento.

Pedi uma indicação ao Danilo Ucha, meu sócio naquela empreitada insana.

Teria que ser um principiante porque o salário era exíguo. Estávamos tentando reabilitar um jornal falido.

Ninguém queria ir para o interior ganhando pouco.

Ucha apresentou uma alternativa: o Arfio Fontoura Mazzei, seu enteado, estava interessado na vaga. Tinha 27 anos, não sabia nada de fotografia, mas estava disposto a aprender.

Ricardo Chaves, o Kadão,  cuja generosidade é inexcedível, era fotógrafo da Veja em Porto Alegre e aceitou  acolher o candidato a fotógrafo em seu laboratório e passou-lhe os fundamentos do ofício, sem qualquer ônus.  Aplicado e meticuloso, em pouco tempo era um craque.

Um dos orgulhos que guardo é ter acreditado no “Alemão”.  A fotografia era sua vocação e ele soube honrá-la.

Deixou sua pegada no JÁ, no Jornal da Noite e na Zero Hora, entre outros.

Não sei se  seu acervo está organizado, nem se está preservado. Sei que tem valor, principalmente  no que tem de sensível  ao registrar a vida no campo e a natureza do pampa, hoje ameaçada.

Arfio Mazzei tinha 71 anos e faleceu nesta  terça-feira 14 de janeiro de 2025.

https://www.jornaldocomercio.com/geral/2025/01/1187176-fotografo-gaucho-arfio-mazzei-morre-aos-71-anos-em-porto-alegre.html

(Elmar Bones)

Semana Farroupilha: quando o marketing se apropria da História

A chamada “Revolução Farroupilha” tornou-se um caso exemplar de apropriação da história por interesses do presente, com graves prejuízos para o entendimento dos fatos históricos.

Foram quase dez anos de guerra – do dia 20 de setembro de 1835, com a tomada de Porto Alegre, até fevereiro de 1845, quando a paz foi assinada em Ponche Verde, no acampamento das tropas rebeldes, reduzidas a algumas centenas de homens, mal armados, já sem roupas para aguentar o inverno que se avizinhava.

Houve feitos heroicos e eventos memoráveis, sem dúvida.

No conjunto, foi uma aventura política mal sucedida. Começou como uma rebelião, desandou numa sedição, proclamando uma república, que nunca se instituiu, e terminou de forma melancólica, com acusações, brigas entre os líderes, e até assassinatos.

Em todo caso, foi a primeira experiência republicana no Brasil e, meio século depois, quando a luta pela República tornou-se um movimento nacional, foi inevitável o resgate dos farroupilhas, “heróis que se levantaram contra a opressão do regime imperial”.

Construiu-se, então, a lenda do “decênio heroico” e uma corrente de historiadores se dedicou a desentranhar as ações e as ideias “dos homens de 1835”.

Essa apropriação da história farroupilha para fins políticos e ideológicos, com graves prejuízos para a verdade histórica, se estendeu por todo o século XX, embora várias tentativas de revisão tenham sido feitas.

Sérgio da Costa Franco, que muito pesquisou e escreveu sobre os farrapos, disse numa entrevista*: “Toda a historiografia do ciclo farroupilha é marcada pela devoção reverencial, senão por sua apaixonada mitificação. Dessa fatal parcialidade provavelmente nunca se livrará a bibliografia histórica rio-grandense por mais revisões que se faça”.

Neste início de século 21, uma outra forma de apropriação se superpôs, no bojo de um modelo econômico que busca oportunidade de lucros no real e no imaginário. O apelo popular do “decênio heroico” despertou interesses comerciais e mercadológicos e o marketing identificou no gauchismo um “nicho de mercado”.

A apropriação da história para fins políticos já foi bem dissecada  por Yeda Guttfreind e outros historiadores. A leitura dos principais autores desse período levou o então sociólogo  Fernando Henrique Cardoso a concluir que “o gaúcho tinha uma autoimagem deformada”.

Sobre essa atual apropriação da história pelo marketing, pouco ou nada se estudou, ainda.  Mereceria porque, sem dúvida, é exemplar, embora não seja original.

De um lado tem-se o MTG, movimento tradicionalista com seus dois mil centros de tradições gaúchas no Estado, no Brasil e no exterior. O circuito de bailes e eventos se desenvolveu em torno dos CTGs, criando um mercado para músicos, produtores e outros profissionais, sustentado por um público urbano, nostálgico de suas raízes rurais, às vezes imaginárias.

O movimento tradicionalista nasceu em 1948, numa reação, de um lado, ao sufocamento das identidades regionais, promovido pela ditadura do Estado Novo e, de outro, à invasão cultural americana.

Paixão Cortes e Barbosa Lessa foram às fontes populares resgatar os cantos, as danças, a indumentária e as manifestações da cultura regional nas diversas comunidades do Rio Grande do Sul. Eles descobriram um rico e diversificado acervo, que por razões a serem buscadas, acabou reduzido ao “gaitaço galponeiro”, o “gritedo”, de que reclamava Luiz Carlos Borges, hoje elevado à expressão principal da dita “cultura gaúcha”.

Outro vetor desse processo é a televisão, especialmente o programa “Galpão Gaúcho”, da RBS TV, lançado em 1982, não por acaso um ano depois do primeiro Acampamento Farroupilha, em Porto Alegre, a cidade que na história real sempre rechaçou os farrapos.

Mesmo oscilando ao sabor da grade de programação da Rede Globo, o Galpão Crioulo, pelo grande alcance da RBS através de suas retransmissoras no interior, deu tração ao movimento tradicionalista, dele se alimentou e se alimenta.

Com o novo viés da RBS, de potencializar negócios, esse tradicionalismo, que é “uma doença infantil do gauchismo”,  se apresentou como um nicho perfeito: sela  a aliança com o “público gaúcho” e mobiliza os grandes anunciantes nacionais que querem falar  a esse “público gaúcho”.

O problema é que essa apropriação da história pelo marketing  não se faz sem danos. O marketing tende a simplificar para produzir mensagens sucintas e convincentes, mesmo a custa dos fatos.

É o que está acontecendo, em dose cavalar (sem trocadilho).

Basta dizer que fizeram do 20 de setembro o “Dia do Gaúcho”, em reverência aos heróis de 1835, homens de uma época em que chamar alguém de “gaúcho” era uma ofensa. (Elmar Bones)

 *República Riograndense”, Revista JÁ, 2016

 

Trabalhistas falam em reconstrução na Inglaterra

A vitória da esquerda na França e a volta do Partido Trabalhistas na Inglaterra são sinais de algo maior do que meros movimentos de opinião traduzidos em disputas partidárias.

Há um movimento profundo em toda a Europa de reação às políticas neo-liberais que com pequenos hiatos há meio século se impõe a todos os países e não só lá.

A Inglaterra, com Margareth Tatcher, foi um marco inicial desse processo, foi referência para sua difusão pelo mundo inteiro.

Hoje os ingleses conhecem a face cruel desse modelo.

Agora, os trabalhistas voltam ao poder com uma acachapante maioria (412 contra 121 dos conservadores) sob a liderança de Keir Starmer, de 52 anos.

Ele será primeiro ministro e sinaliza  uma mudança de rumo. Os analistas dizem que ele surpreendeu os céticos e reconstruiu o Partido Trabalhista “Agora ele deve fazer o mesmo pela Grã Bretanha”, disse um deles.

Andrew Rawnsley, do Observer, escreveu que “Sue Gray, chefe de gabinete de Keir, tem uma “lista de merda” que são as emergências que podem surgir já no inicio do governo, variando da falência de universidades  a uma crise total nas prisões”.

“A dívida do governo em relação à produção está no seu maior nível em 60 anos”.

“Os impostos como proporção do PIB estão caminhando para o nível mais alto desde 1948”.

“Ao mesmo tempo, serviços públicos críticos estão de joelhos ou no chão”.

Reconstruir é a palavra que os jornais já estão usando.

(Elmar Bones )

Roberto Müller: anotações para um perfil

Fiquei uma manhã em choque com a notícia da morte do Roberto Müller.

Sim, a morte dos velhos amigos é quase uma rotina para um octogenário, mas o Roberto Müller no meu imaginário era daquelas figuras arquetípicas que deviam ficar como referência para muitas gerações – no caso dele, para muitas gerações de profissionais que se dediquem a esse ofício de  “informar o que acontece”.

Levei um segundo choque ao ver que a dita imprensa, os veículos tradicionais do jornalismo, praticamente ignorou a morte de um profissional como ele,  que foi um baluarte dessa profissão, no que ela tem de melhor.

No que li nas redes sociais, faltaram dois momentos fundamentais que dão a dimensão da importância do jornalista Roberto Müller:

1) o papel de catalisador que a Gazeta Mercantil teve na articulação que levou a elite empresarial do país a desembarcar da ditadura, com os dois manifestos, de 1978 e 1983;

2) o afastamento dele da direção do jornal que resistia ao processo da financeirização da economia, que acabou se consumando, com a falência da Gazeta e o surgimento do Valor.

Duas histórias a ser contadas, dois pontos cruciais da história brasileira recente em que Roberto Müller foi protagonista. (Elmar Bones)