Lourenço Cazarré
A obra foi tão gigantesca que o título do livro em que sua saga foi narrada exigiu dois subtítulos: “Sonhos de pedra – a história da construção dos molhes – uma das maiores obras da engenharia marítima”.
Desde seu começo, no início do século 19, o porto do Rio Grande, no extremo Sul do país, foi um pesadelo para os navegantes. Para chegar até ele, as embarcações precisavam atravessar um traiçoeiro canal, de profundidades variáveis, visto que a areia fina do fundo era deslocada o tempo todo pelas fortes correntes marítimas.
Surgem logo os práticos – conhecedores dos volúveis bancos de areias e das correntes traiçoeiras – que conduzem os navios ao porto em segurança. Mas adiante, para esta mesma missão, é fundada uma companhia de rebocadores, de propriedade do múltiplo Irineu Evangelista de Souza, o visconde de Mauá, o megaempresário do Império.
Lá pelos anos 1870 começam os estudos que acabariam levando à construção de dois grandes braços de pedregulhos que avançariam por milhares de metros para dentro das águas furiosas, geladas e cinzentas do Atlântico Sul.
Um deles partiria da maior praia do mundo, a do Cassino, que vai de Rio Grande até a barra do Chuí, na fronteira com o Uruguai, num rali de 230 quilômetros sobre um areião fino permanentemente batido por ventos implacáveis que fazem voar latas de cerveja, cheias, nos dias de verão. O outro braço partiria de São José do Norte, uma pequena cidade perdida por trás de dunas ao final de uma árida e quase sempre deserta rodoviazinha que corre junto ao mar, mais conhecida como a Estrada do Inferno.
Essa obra ciclópica ocorre, paralelamente, a construção das duas mais importantes rotas marítimas do universo: os canais de Suez e do Panamá. Alguns protagonistas da construção brasileira, em um ou em outro momento, trabalharam nas outras duas. Afinal, naquela época, como hoje, os homens que sabiam amansar oceanos não eram tão numerosos assim.
A obra se estendeu por uns trinta anos. Só foi concluída em 1915, quando adentrou o canal de Rio Grande o navio-escola Benjamim Constant.
Hoje deslizam em direção do super porto de Rio Grande navios de 15 metros de calado. Mas, nas medições iniciais, há dois séculos, a fundura das águas chegava em alguns pontos a pouco mais de dois metros. Por décadas, às vezes os navios precisavam esperar semanas ou meses, fundeados em mar aberto, as condições propícias para ingressar no estreito e tempestuoso caminho até o ancoradouro sulista.
Grosseiramente, o que se fez foi o seguinte. Ao longo de mais de uma década, incessantemente, homens e máquinas portentosas – entre as quais dois gigantescos guindastes – despejaram grandes blocos de pedra em duas linhas retas oceano a fora.
Mas onde foram os construtores encontrar tantas pedras assim? Na vizinha cidade de Pelotas. Lá em dois distritos, Capão do Leão e Monte Bonito, foram destruídos à dinamite e picareta grandes maciços graníticos. Em cenas que relembravam o erguimento das pirâmides, milhares de homens – muitos deles imigrantes europeus: franceses e espanhóis na maioria – trabalharam por muitos anos, em precárias condições de segurança, nessas pedreiras. Os mortos por explosões e deslizamentos não foram poucos. A pedra retalhada era depois levada de trem até dois finais de linha: um em São José do Norte e outro no Cassino, onde surgira em 1890 o primeiro balneário do Estado. A Biarritz gaúcha.
Paralelamente, o tempo todo, dragas arrancavam a areia fina que dançava no fundo do canal. Esse era e é ainda um trabalho hercúleo. Desde cedo se descobriu que as areias submersas eram movediças porque elas acabavam engolindo a maioria dos incontáveis barcos que por ali soçobravam. Em média foram registrados dois naufrágios por ano na segunda metade do Século 19.
Hoje ou no passado, uma obra de construção brasileira é sempre uma obra bem brasileira. Aqui e ali pipocam suspeitas. Quem está ganhando? Quanto? Como? Por quê? Sempre há os que se dizem nacionalistas e que defendem – garantem eles – os mais legítimos interesses da sua mãe, a Pátria amada. E sempre há também aqueles que os nacionalistas costumam chamar entreguistas, que seriam em teses operadores de interesses escusos, geralmente de países mais ricos ou de capitalistas mais espertos.
A construção dos molhes da barra do porto do Rio Grande, empreendimento caríssimo, não teve roteiro muito diferente. Houve muitas brigas entre os envolvidos na tarefa: administradores públicos, empresários e investidores estrangeiros.
O autor do livro, o jornalista Klécio Santos – que há muito navega de escafandro nas águas turvas da política brasiliense – conta alguns episódios que nos remetem ao jornalismo político dos dias atuais, em geral divulgado quase todo nas páginas policiais.
Trecho que trata da possibilidade da construção de um porto alternativo – na cidade de Torres, no Norte do Estado – ao de Rio Grande:
“Ainda na República, o marechal Deodoro da Fonseca retornou a ideia, mas esbarrou na resistência de seu ministério em destinar a concessão do porto em Torres ao amigo pessoal Trajano Viriato de Medeiros”.
Outro trecho se refere a Ramiro Barcellos, político e escritor gaúcho, que era genro de um grande capitalista de Rio Grande:
“Uma discussão com o deputado Ildefonso Simões Lopes a bordo do paquete Orion, durante uma viagem ao Rio de Janeiro, quando Barcellos tentaria mudar cláusulas do contrato, acabou nas páginas do Echo do Sul. A resistência foi geral, mas a questão da desapropriação das terras de Otero se prolongou com denúncias de extorsão, mencionadas até mesmo na biografia do investidor Percival Farquhar, escrita por Charles Gauld: ´Os políticos gaúchos e o inspetor federal das obras – possivelmente um homem de Pinheiro Machado – criaram confusão`. As terras onde seria construído o novo porto haviam sido adquiridas e teriam sido ofertadas como preços superfaturado”.
Parodiando certo livro da Bíblia, talvez se possa dizer: nada de novo sob o sol brasileiro.
Mas a grande obra lá está. Uma construção daquelas que não interessam muito aos políticos. Porque é submersa. Tão pouco visível quanto uma rede de esgotos. Uma obra, que, enfim, não rende votos. Mas a verdade é que os tais braços de pedra salvaram e enriqueceram uma cidade.
Resenha do livro Sonhos de pedra – a história da construção dos molhes – uma das maiores obras da engenharia marítima, de Klécio Santos, editora Cabrion, 235 páginas.