ELMAR BONES/ Jornalismo: a esperteza engoliu o dono

O que está em crise não é o jornalismo.

O que está em crise é o modelo de negócios montado em cima do jornalismo.

O jornalismo padece de um efeito colateral dessa crise do modelo.

Esse modelo nasceu quando um espertalhão descobriu que, além de vender notícias, um jornal podia também vender anúncios.

Consta que foi um alemão no porto de Bremen, dono de um folheto que informava sobre o movimento de navios.

Passou a ter duas receitas,  do produto (o folheto que vendia nas ruas) e dos espaços dentro do folheto, vendidos a comerciantes.

A combinação permitiu baratear o produto, ampliar a circulação, atrair mais anunciantes…

Bem aplicada, a fórmula construiu impérios de todos os portes ao redor do mundo, o modelo disseminou-se por mais de dois séculos.  Agora faliu.

A esperteza engoliu o dono, os anunciantes tomaram conta do negócio e contaminaram irreversivelmente o produto (o noticiário).

Já o dominavam completamente quando a internet chegou com a pá de cal. Com as redes sociais, o anunciante não depende mais do jornalismo para alcançar seu público.

E como fazer jornalismo num grupo cujo negócio é usar o jornalismo para fazer negócios?

O modelo ruiu. Soterrado nos escombros está o jornalista. Justamente no momento em que é mais necessário e na hora em que novos meios oferecem possibilidades como nunca.

Ele sobreviverá? Quem vai salvá-lo?

ELMAR BONES/ Renato Fonseca, o Divino (anotações para um perfil)

Divino Renato Fonseca. Na primeira vez que nos encontramos chamei-o de Renato. Era elegante, simpático, gentil, mas achei que Divino era demais.

Era 1965, cheiro de ditadura no ar, ele era presidente do Clube de Jornalismo, que congregava os alunos curso  de Jornalismo da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, meia centena de candidatos a uma profissão ainda dominada pelos chapas-brancas.

Nas primeiras conversas me dei conta: o nome Divino calhava naquele cara. Foi um dos meus primeiros amigos em Porto Alegre, um dos mais encantadores.

Certa vez, numa festa, um dos convidados bebeu demais e se exaltou, começou a gritar e a xingar todo mundo. Divino levantou da cadeira, contornou a mesa  e tentou acalmar o sujeito, que reagiu aos berros. Ele agarrou o cara pelo colarinho, deu-lhe uns três tapas e o jogou na cadeira. Deu as costas, saiu calmamente e veio sentar-se. O cara levantou e deu o fora.  “Que foi isso Divino?”.  “Ele estava abusando”.

Seu primeiro emprego, antes de sair da faculdade, foi como fiscal da Secretaria de Indústria e Comércio de Porto Alegre. Numa das primeiras operações de fiscalização encontrou irregularidades numa grande empresa, a multa era alta, o dono ofereceu propina, ele recusou,  foi ameaçado de morte se levasse adiante o processo. Levou o problema ao diretor e foi aconselhado a aceitar o suborno e evitar o pior. Registrou as notificações de multa e pediu demissão do emprego público.

Juca Kfouri lembrou o apelido que os colegas da Placar lhe deram: “O Dostoiéviski dos pampas”.  Seus textos eram lidos em voz alta na redação.

Na “História Ilustrada de Porto Alegre” ele foi o editor de texto. O projeto era uma série de fascículos, descrevendo a formação da cidade, desde a pré-história até o presente (1997).

Era uma operação complexa, com repórteres, pesquisadores, fotógrafos   Ele foi a indicação unânime para finalizar o texto, que precisava ser simples, claro e conciso. A redação vibrava com os títulos e as sacadas. O historiador Sérgio da Costa Franco, que era nosso consultor, devolvia os originais com elogios.  O Caco Schmitt, que chefiava a equipe até hoje se emociona. Sim, o nome Divino definia bem aquele cara.

NR: O jornalista Divino Renato Fonseca morreu no dia 10/12/2022, aos 80 anos.

Equipe que produziu a “História Ilustrada de Porto Alegre”, em 1997: da esquerda para a direita: Luiz Ávila, Divino Fonseca, Adelia Porto, Elmar Bones, Caco Shmitt, Sérgio da Costa Franco, José Antonio Czamanski, Rosana Carlessi, Ricardo Fonseca, Paulo Pingret e Clô Barcellos.

 

 

 

 

ELMAR BONES/ Prefeito brinca com fogo?

Tudo indica que o prefeito Sebastião Melo está brincando com fogo.

A audiência extraordinária na Câmara, na noite desta terça-feira, 23, não deixa dúvidas: a ideia de considerar o parque da Redenção como um ativo urbano e entregá-lo a uma gestão empresarial é explosiva.

Ainda mais com um projeto de estacionamento subterrâneo embutido. É um projeto tão inábil que não faz jus à inteligência do prefeito Melo.

Por isso, talvez, muitos militantes do movimento contra a concessão suspeitem que a Redenção é o “bode na sala” do pacote de parques a serem concedidos a investidores privados.  Nas negociações, o prefeito retira a Redenção e passa o resto da boiada.

A audiência extraordinária, porém, mostrou que a situação pode fugir ao controle.

A emocionante mobilização dos usuários do parque da Redenção pode contagiar e gerar um movimento contra qualquer concessão de parque público.

O Calçadão do Lami, por exemplo, incluído à última hora no projeto, sem conhecimento dos moradores, já tinha vários representantes na audiência, que obtiveram da secretária Pellini a garantia de uma audiência lá no bairro, que não estava prevista.

Já dizia o velho Rosa: “Quando a esperteza é demais, engole o dono”

Por que não um teto de juros para a dívida pública?

Em 2021, o governo federal gastou R$ 1,96 trilhão (um trilhão e 960 bilhões) com juros e amortizações da dívida pública.

Representa um aumento de 42% em relação ao valor gasto em 2020, que por sua vez já tinha sido 33% superior a 2019.

Portanto, nos últimos dois anos, os gastos financeiros com a dívida federal quase dobraram. Apesar desses vultosos pagamentos, em 2021 a Dívida Pública Federal aumentou R$ 708 bilhões: de R$ 6,935 trilhões para R$ 7,643 trilhões.

Enquanto todos os outros investimentos necessários ao  desenvolvimento socioeconômico são deixados de lado, por falta de recursos, o Sistema da Dívida é intocável.

Recursos não faltam no Brasil.

Além de cerca de R$ 5 trilhões em caixa houve “Superávit Primário” em 2021, no valor de R$ 64 bilhões . Mas todo esse dinheiro está reservado para o rentismo!

O gráfico do Orçamento Federal Executado (pago) em 2021 evidencia o privilégio do Sistema da Dívida.

(Informações da Auditoria Cidadã da Dívida

ELMAR BONES/ Já está nos editoriais

O maior desafio do governo Lula é rever o modelo econômico implantado a partir de 2016. Que modelo é esse?

Neoliberalismo é o rótulo genérico, mas ele tem muitas nuances. Numa delas, poderia ser chamado de neocolonialismo.

Ele vem de antes e vem de longe. Teve suas bases lançadas no governo Collor, continuidade nas privatizações do governo FHC, aprofundamento desde 2016, depois de um hiato petista que não abalou sua base ideológica.

Privatizações, desregulamentação, estrito controle dos gastos do governo, redução do Estado e dos serviços públicos, para abrir espaço aos negócios privados, que seriam o motor da economia e do desenvolvimento social.

Pelo mundo inteiro, a começar pela Inglaterra de Tatcher, esse modelo teve suas bases teóricas destroçadas pela realidade que produziu:  concentração de renda, desigualdade, estagnação econômica.  Mas seus defensores no Brasil desenvolveram um discurso que, com o “auxilio luxuoso” da mídia,  se tornou dominante: a receita ainda não foi aplicada inteiramente e mesmo assim já tem resultados, portanto, o que precisa é aprofundá-la.

De fato,  em seis anos desse regime, com uma pandemia no caminho, é fácil embaralhar os dados e valer-se dos indicadores macro-econômicos, devidamente sob controle, para mostrar que a economia está no caminho certo e que, portanto, é preciso manter o rumo e aprofundar o projeto.

Esse discurso já está nos editoriais. Indício do que vem pela frente.

   

 

ELMAR BONES / As façanhas de Eduardo

O governador Eduardo Leite sofreu muitas críticas ao adotar para seu governo o lema “Novas Façanhas”, inspirado num verso do Hino Farroupilha, que é o hino oficial do Estado: “Sirvam nossas façanhas/ de modelo à toda Terra”.

Ele venceu. Difícil mensurar o tamanho da façanha de Eduardo Leite  neste 30 de outubro de 2022, ao quebrar um tabu político e um tabu social no Rio Grande do Sul: o homossexual declarado se reelege governador, num Estado machista que não dá segunda chance a seus governantes há quatro décadas.

E não foi uma vitória qualquer. Foi quase um milhão de votos de vantagem, numa eleição em que a  diferença na disputa nacional, entre Lula e Bolsonaro, foi pouco mais de dois milhões de votos

Eduardo Leite chegou a essa vitória por caminhos travessos. Já na primeira campanha disse que não seria candidato à reeleição.

Apresentou-se ao PSDB, seu partido, como candidato a candidato à Presidência da República. Perdeu a convenção, não aceitou a derrota.

Renunciou ao governo gaúcho para se dedicar inteiramente ao projeto presidencial e foi buscar abrigo para sua ambição em outras legendas.

Não deu certo, mas em função desse objetivo, Leite construiu uma aliança com o deputado Gabriel Souza, do PMDB, que seria candidato a governador, com seu apoio,  se o projeto da candidatura presidencial desse certo.

Deu errado, mas Eduardo Leite voltou sobre seus passos e conseguiu a façanha de manter a aliança com  Gabriel Souza, numa chapa em que ele Eduardo estaria na cabeça, com o aliado na vice. O arranjo dividiu o PSDB e o PMDB do Rio Grande do Sul, mas prosperou.

Na hora do voto, ele quase perdeu a vaga do segundo turno para Edegar Pretto, do PT. Ganhou por pouco mais de dois mil votos e, aí, mais uma façanha: ganhou com os votos de Porto Alegre, onde fez seis mil votos a mais do que Pretto.

Na disputa com Onyx Lorenzoni,  no segundo turno, encontrou a condição ideal: candidato a derrotar o bolsonarismo, sem rechaçar Bolsonaro*, tornou-se opção obrigatória para seus principais adversários. O resultado aí está.

O sonho presidencial está de pé como nunca, mas ainda depende de uma façanha, talvez a  maior de todas: desatar os nós em que o Rio Grande do Sul está amarrado – dívida impagável, serviço público em colapso, investimentos congelados,  a economia patinando,  e os partidos que o apoiam em crise. Haja façanha!

*Nota da Redação: “…derrotar Bolsonao sem rechaçar o bolsonarismo”.

ELMAR BONES/ O voto em Lula

O voto em Lula neste 30 de outubro se impõe não apenas para remover Jair Bolsonaro.

Tirar Bolsonaro é condição sine qua non, como ter que arredar um tronco caído na estrada em que se quer passar. Mas não é tudo.

O voto em Lula se impõe também pela necessidade de mudar essa política econômica, que entrega ao mercado a solução das questões sociais, do desenvolvimento da ciência e da preservação ambiental.

Esse projeto começou com o golpe de 2016, no qual Bolsonaro pegou carona.

Bolsonaro não representa esse projeto. Caiu de paraquedas nele, graças àquela facada. Se segura na carona do Guedes, o fiador. Agora se tornou incõmodo por seu primarismo, por seu isolamento que prejudica os negócios.

É preciso ter clareza disso porque o governo Lula só vai adquirir sentido quando mexer nas pedras de toque desse capitalismo selvo/financeiro em andamento.

Só uma cidadania consciente vai sustentar o governo neste momento,  quando todos os mecanismos do projeto neoliberal vão se mover para atacá-lo.

Os manifestos divulgados nos últimos dias pela Federação das Indústrias do Rio Grande do Sul, seguida de outras em outros Estados, são explícitos num ponto:  a importância da continuidade da política econômica que, segundo eles, vem tirando o Brasil da crise provocada pelo coronavírus.

O sonho desses grupos é se livrar de Bolsonaro e manter o projeto. Então, é preciso ter clareza que o voto em Lula não é só um voto contra Bolsonaro. É também um voto contra um projeto de Brasil-colônia, uma economia predatória, em benefício de poucos e prejuízo de muitos.

 

ELMAR BONES / Rosvita Saueressig, anotações para um perfil

Em 1967, quando entrei como estagiário na Folha da Tarde, o “vespertino da cidade”, tinha uma única mulher na redação: Laila Pinheiro, se não me engano.

Sessenta homens ou mais, entre repórteres, editores, fotógrafos, estagiários, contínuos. Uma mulher.

No vetusto Correio do Povo, que tinha uma redação maior, também trabalhava uma única mulher cujo nome lembrarei daqui a pouco…Ligia, creio.

Quando fui para a Veja em São Paulo, dois anos depois, vi que não era muito diferente. Numa equipe de mais de cem, formada para “revolucionar o jornalismo brasileiro” não chegava a meia dúzia o número de mulheres. Dorrit Harazim, ainda em atividade, era uma delas.

Me acorrem estas memórias no momento em que fico sabendo da morte da jornalista Rosvita Saueressig, a Fita. Ela foi uma das líderes dessa geração de mulheres que invadiu e revitalizou as principais redações brasileiras, num momento em que o jornalismo pátrio estava no chão.

Conheci-a em 1972, quando o José Antônio Severo me levou para a Folha da Manhã em Porto Alegre. As mulheres já estavam se impondo na Universidade e isso se refletiu no chamamento que fizemos nas faculdades para renovar a redação. Metade dos candidatos eram mulheres, Rosvita era uma delas e logo se destacou como repórter e editora e, também, como líder do grupo das seis “meninas” contratadas, metade do corpo de novos repórteres. Ruy Carlos Ostermann confiou a ela a editoria de “Esporte Amador”, recém-criada, para resgatar uma tradição de Porto Alegre, de diversidade esportiva, sufocada pelo futebol.

Em pouco tempo era uma liderança na redação inteira, acatada inclusive pelos veteranos mais renitentes. Era “pé de boi” no trabalho mas fazia tudo com leveza, sempre sorridente, otimista e sempre disposta a ajudar. Maternal, não sonegava seus sábios conselhos.

Era o tempo da ditadura, acenava-se com abertura, os militares indicariam mais um general para a Presidência da  República. Os jornais especulavam, vários nomes eram cogitados, grande a expectativa, escassas informações. Às nove horas da manhã chegou à redação um informe colhido (sim, tinha um repórter que passava lá) no QG do então III Exército: o novo presidente seria o  Ernesto Geisel, ninguém sabia quem era. Era gaúcho, de Estrela, só o que se sabia. Rosvita saiu da reunião de pauta, ligou para parentes em Novo Hamburgo e descobriu que a família Geisel eram numerosa em Estrela, cidade de colonização alemã, a cento e poucos quilômetros de Porto Alegre. Ao meio dia estava na casa dos parentes, que já tinham confirmação. Dona Lucy, a mulher do general, tinha telefonado, a família estava em alvoroço. No dia seguinte, quando todos os jornais ainda especulavam, a manchete da Folha da Manhã era a seguinte: “Geisel é o homem” e quatro páginas com o material recolhido na família.

Quando houve a “debandada da Folha da Manhã”, Rosvita foi  para a Coojornal, a cooperativa, ainda incipiente, desorganizada. Assumiu as tarefas essenciais e contraditórias de agregar e disciplinar um grupo de jornalistas jovens e voluntariosos. Criar rotinas, cumprir prazos e estabelecer metas, numa empresa que era de todos. “Sargento Saueressig!”, brincavam os irreverentes, batendo continência. Ela ria, mas não cedia. Em pouco tempo a Coojornal produzia mais de 30 publicações para terceiros e um jornal próprio que tinha leitores no país inteiro.  Ela era uma figura central na cooperativa, coordenando meia centena de jornalistas, e se fosse preciso ia ela mesma ao aeroporto encontrar um certo passageiro que traria os originais de uma reportagem especial, enviada de São Paulo.

Quando a repressão se abateu sobre a Coojornal e fomos presos, o caso dela era o mais absurdo: Osmar Trindade e eu assinávamos o texto que resultou na condenação pela Lei de Segurança Nacional. O Rafael Guimarães participara de toda a operação para a entrega dos documentos militares.  Mas a Rosvita… ela, na sua diligência, simplesmente pegara os papéis e levara a uma gráfica para fazer cópias.

Ela não invocou nada disso, assumiu solidária toda a bronca. Na prisão, só fui vê-la no dia em que íamos sair. Ela estava sorridente, com um vaso de flor na mão.

Depois disso acompanhei de longe sua carreira, principalmente na Gazeta Mercantil e no Valor Econômico, sempre com a mesma performance. Não por acaso, ela foi uma das primeiras pessoas que o Celso Pinto convidou, quando foi montar a equipe para fazer o Valor.

As mulheres conquistaram as redações e todas as atividades atinentes ao jornalismo, grande avanço. Mas a profissão está mais uma vez no chão, esgoelada por um modelo superado. Terá que se reconstruir a partir da base e, nessa busca, referências inspiradoras como Rosvita serão fundamentais.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

LOURENÇO CAZARRÉ: Pesadelo de pedra e areia movediça

Lourenço Cazarré

A obra foi tão gigantesca que o título do livro em que sua saga foi narrada exigiu dois subtítulos: “Sonhos de pedra – a história da construção dos molhes – uma das maiores obras da engenharia marítima”.

Desde seu começo, no início do século 19, o porto do Rio Grande, no extremo Sul do país, foi um pesadelo para os navegantes. Para chegar até ele, as embarcações precisavam atravessar um traiçoeiro canal, de profundidades variáveis, visto que a areia fina do fundo era deslocada o tempo todo pelas fortes correntes marítimas.

Surgem logo os práticos – conhecedores dos volúveis bancos de areias e das correntes traiçoeiras – que conduzem os navios ao porto em segurança. Mas adiante, para esta mesma missão, é fundada uma companhia de rebocadores, de propriedade do múltiplo Irineu Evangelista de Souza, o visconde de Mauá, o megaempresário do Império.

Lá pelos anos 1870 começam os estudos que acabariam levando à construção de dois grandes braços de pedregulhos que avançariam por milhares de metros para dentro das águas furiosas, geladas e cinzentas do Atlântico Sul.

Um deles partiria da maior praia do mundo, a do Cassino, que vai de Rio Grande até a barra do Chuí, na fronteira com o Uruguai, num rali de 230 quilômetros sobre um areião fino permanentemente batido por ventos implacáveis que fazem voar latas de cerveja, cheias, nos dias de verão. O outro braço partiria de São José do Norte, uma pequena cidade perdida por trás de dunas ao final de uma árida e quase sempre deserta rodoviazinha que corre junto ao mar, mais conhecida como a Estrada do Inferno.

Essa obra ciclópica ocorre, paralelamente, a construção das duas mais importantes rotas marítimas do universo: os canais de Suez e do Panamá. Alguns protagonistas da construção brasileira, em um ou em outro momento, trabalharam nas outras duas. Afinal, naquela época, como hoje, os homens que sabiam amansar oceanos não eram tão numerosos assim.

A obra se estendeu por uns trinta anos. Só foi concluída em 1915, quando adentrou o canal de Rio Grande o navio-escola Benjamim Constant.

Hoje deslizam em direção do super porto de Rio Grande navios de 15 metros de calado. Mas, nas medições iniciais, há dois séculos, a fundura das águas chegava em alguns pontos a pouco mais de dois metros. Por décadas, às vezes os navios precisavam esperar semanas ou meses, fundeados em mar aberto, as condições propícias para ingressar no estreito e tempestuoso caminho até o ancoradouro sulista.

Grosseiramente, o que se fez foi o seguinte. Ao longo de mais de uma década, incessantemente, homens e máquinas portentosas – entre as quais dois gigantescos guindastes – despejaram grandes blocos de pedra em duas linhas retas oceano a fora.

Mas onde foram os construtores encontrar tantas pedras assim? Na vizinha cidade de Pelotas. Lá em dois distritos, Capão do Leão e Monte Bonito, foram destruídos à dinamite e picareta grandes maciços graníticos. Em cenas que relembravam o erguimento das pirâmides, milhares de homens – muitos deles imigrantes europeus: franceses e espanhóis na maioria – trabalharam por muitos anos, em precárias condições de segurança, nessas pedreiras. Os mortos por explosões e deslizamentos não foram poucos. A pedra retalhada era depois levada de trem até dois finais de linha: um em São José do Norte e outro no Cassino, onde surgira em 1890 o primeiro balneário do Estado. A Biarritz gaúcha.

Paralelamente, o tempo todo, dragas arrancavam a areia fina que dançava no fundo do canal. Esse era e é ainda um trabalho hercúleo. Desde cedo se descobriu que as areias submersas eram movediças porque elas acabavam engolindo a maioria dos incontáveis barcos que por ali soçobravam. Em média foram registrados dois naufrágios por ano na segunda metade do Século 19.

Hoje ou no passado, uma obra de construção brasileira é sempre uma obra bem brasileira. Aqui e ali pipocam suspeitas. Quem está ganhando? Quanto? Como? Por quê? Sempre há os que se dizem nacionalistas e que defendem – garantem eles – os mais legítimos interesses da sua mãe, a Pátria amada. E sempre há também aqueles que os nacionalistas costumam chamar entreguistas, que seriam em teses operadores de interesses escusos, geralmente de países mais ricos ou de capitalistas mais espertos.

A construção dos molhes da barra do porto do Rio Grande, empreendimento caríssimo, não teve roteiro muito diferente. Houve muitas brigas entre os envolvidos na tarefa: administradores públicos, empresários e investidores estrangeiros.

O autor do livro, o jornalista Klécio Santos – que há muito navega de escafandro nas águas turvas da política brasiliense – conta alguns episódios que nos remetem ao jornalismo político dos dias atuais, em geral divulgado quase todo nas páginas policiais.

Trecho que trata da possibilidade da construção de um porto alternativo – na cidade de Torres, no Norte do Estado – ao de Rio Grande:

“Ainda na República, o marechal Deodoro da Fonseca retornou a ideia, mas esbarrou na resistência de seu ministério em destinar a concessão do porto em Torres ao amigo pessoal Trajano Viriato de Medeiros”.

Outro trecho se refere a Ramiro Barcellos, político e escritor gaúcho, que era genro de um grande capitalista de Rio Grande:

“Uma discussão com o deputado Ildefonso Simões Lopes a bordo do paquete Orion, durante uma viagem ao Rio de Janeiro, quando Barcellos tentaria mudar cláusulas do contrato, acabou nas páginas do Echo do Sul. A resistência foi geral, mas a questão da desapropriação das terras de Otero se prolongou com denúncias de extorsão, mencionadas até mesmo na biografia do investidor Percival Farquhar, escrita por Charles Gauld: ´Os políticos gaúchos e o inspetor federal das obras – possivelmente um homem de Pinheiro Machado – criaram confusão`. As terras onde seria construído o novo porto haviam sido adquiridas e teriam sido ofertadas como preços superfaturado”.

Parodiando certo livro da Bíblia, talvez se possa dizer: nada de novo sob o sol brasileiro.

Mas a grande obra lá está. Uma construção daquelas que não interessam muito aos políticos.  Porque é submersa. Tão pouco visível quanto uma rede de esgotos. Uma obra, que, enfim, não rende votos. Mas a verdade é que os tais braços de pedra salvaram e enriqueceram uma cidade.

 

Resenha do livro Sonhos de pedra – a história da construção dos molhes – uma das maiores obras da engenharia marítima, de Klécio Santos, editora Cabrion, 235 páginas.

ELMAR BONES/ Jogo bruto

A situação agônica em que se encontram os pequenos jornais do interior reflete o abandono a que estão entregues as comunidades por esse Brasil a fora.

Nesse Brasil profundo, a falta de informações é uma pandemia que pode ser tão letal quanto a covid.

Como reconstruir nessa terra arrasada do pós pandemia sem informações próximas, da realidade local?

O que se tem é um noticiário da corte, devidamente manipulado, servido em três refeições diárias.

O jogo bruto que o andar de baixo enfrenta para sobreviver no dia a dia ganha pinceladas impressionistas num noticiário pintado pela macro-economia.