ELMAR BONES/ Já está nos editoriais

O maior desafio do governo Lula é rever o modelo econômico implantado a partir de 2016. Que modelo é esse?

Neoliberalismo é o rótulo genérico, mas ele tem muitas nuances. Numa delas, poderia ser chamado de neocolonialismo.

Ele vem de antes e vem de longe. Teve suas bases lançadas no governo Collor, continuidade nas privatizações do governo FHC, aprofundamento desde 2016, depois de um hiato petista que não abalou sua base ideológica.

Privatizações, desregulamentação, estrito controle dos gastos do governo, redução do Estado e dos serviços públicos, para abrir espaço aos negócios privados, que seriam o motor da economia e do desenvolvimento social.

Pelo mundo inteiro, a começar pela Inglaterra de Tatcher, esse modelo teve suas bases teóricas destroçadas pela realidade que produziu:  concentração de renda, desigualdade, estagnação econômica.  Mas seus defensores no Brasil desenvolveram um discurso que, com o “auxilio luxuoso” da mídia,  se tornou dominante: a receita ainda não foi aplicada inteiramente e mesmo assim já tem resultados, portanto, o que precisa é aprofundá-la.

De fato,  em seis anos desse regime, com uma pandemia no caminho, é fácil embaralhar os dados e valer-se dos indicadores macro-econômicos, devidamente sob controle, para mostrar que a economia está no caminho certo e que, portanto, é preciso manter o rumo e aprofundar o projeto.

Esse discurso já está nos editoriais. Indício do que vem pela frente.

   

 

ELMAR BONES / As façanhas de Eduardo

O governador Eduardo Leite sofreu muitas críticas ao adotar para seu governo o lema “Novas Façanhas”, inspirado num verso do Hino Farroupilha, que é o hino oficial do Estado: “Sirvam nossas façanhas/ de modelo à toda Terra”.

Ele venceu. Difícil mensurar o tamanho da façanha de Eduardo Leite  neste 30 de outubro de 2022, ao quebrar um tabu político e um tabu social no Rio Grande do Sul: o homossexual declarado se reelege governador, num Estado machista que não dá segunda chance a seus governantes há quatro décadas.

E não foi uma vitória qualquer. Foi quase um milhão de votos de vantagem, numa eleição em que a  diferença na disputa nacional, entre Lula e Bolsonaro, foi pouco mais de dois milhões de votos

Eduardo Leite chegou a essa vitória por caminhos travessos. Já na primeira campanha disse que não seria candidato à reeleição.

Apresentou-se ao PSDB, seu partido, como candidato a candidato à Presidência da República. Perdeu a convenção, não aceitou a derrota.

Renunciou ao governo gaúcho para se dedicar inteiramente ao projeto presidencial e foi buscar abrigo para sua ambição em outras legendas.

Não deu certo, mas em função desse objetivo, Leite construiu uma aliança com o deputado Gabriel Souza, do PMDB, que seria candidato a governador, com seu apoio,  se o projeto da candidatura presidencial desse certo.

Deu errado, mas Eduardo Leite voltou sobre seus passos e conseguiu a façanha de manter a aliança com  Gabriel Souza, numa chapa em que ele Eduardo estaria na cabeça, com o aliado na vice. O arranjo dividiu o PSDB e o PMDB do Rio Grande do Sul, mas prosperou.

Na hora do voto, ele quase perdeu a vaga do segundo turno para Edegar Pretto, do PT. Ganhou por pouco mais de dois mil votos e, aí, mais uma façanha: ganhou com os votos de Porto Alegre, onde fez seis mil votos a mais do que Pretto.

Na disputa com Onyx Lorenzoni,  no segundo turno, encontrou a condição ideal: candidato a derrotar o bolsonarismo, sem rechaçar Bolsonaro*, tornou-se opção obrigatória para seus principais adversários. O resultado aí está.

O sonho presidencial está de pé como nunca, mas ainda depende de uma façanha, talvez a  maior de todas: desatar os nós em que o Rio Grande do Sul está amarrado – dívida impagável, serviço público em colapso, investimentos congelados,  a economia patinando,  e os partidos que o apoiam em crise. Haja façanha!

*Nota da Redação: “…derrotar Bolsonao sem rechaçar o bolsonarismo”.

ELMAR BONES/ O voto em Lula

O voto em Lula neste 30 de outubro se impõe não apenas para remover Jair Bolsonaro.

Tirar Bolsonaro é condição sine qua non, como ter que arredar um tronco caído na estrada em que se quer passar. Mas não é tudo.

O voto em Lula se impõe também pela necessidade de mudar essa política econômica, que entrega ao mercado a solução das questões sociais, do desenvolvimento da ciência e da preservação ambiental.

Esse projeto começou com o golpe de 2016, no qual Bolsonaro pegou carona.

Bolsonaro não representa esse projeto. Caiu de paraquedas nele, graças àquela facada. Se segura na carona do Guedes, o fiador. Agora se tornou incõmodo por seu primarismo, por seu isolamento que prejudica os negócios.

É preciso ter clareza disso porque o governo Lula só vai adquirir sentido quando mexer nas pedras de toque desse capitalismo selvo/financeiro em andamento.

Só uma cidadania consciente vai sustentar o governo neste momento,  quando todos os mecanismos do projeto neoliberal vão se mover para atacá-lo.

Os manifestos divulgados nos últimos dias pela Federação das Indústrias do Rio Grande do Sul, seguida de outras em outros Estados, são explícitos num ponto:  a importância da continuidade da política econômica que, segundo eles, vem tirando o Brasil da crise provocada pelo coronavírus.

O sonho desses grupos é se livrar de Bolsonaro e manter o projeto. Então, é preciso ter clareza que o voto em Lula não é só um voto contra Bolsonaro. É também um voto contra um projeto de Brasil-colônia, uma economia predatória, em benefício de poucos e prejuízo de muitos.

 

ELMAR BONES / Rosvita Saueressig, anotações para um perfil

Em 1967, quando entrei como estagiário na Folha da Tarde, o “vespertino da cidade”, tinha uma única mulher na redação: Laila Pinheiro, se não me engano.

Sessenta homens ou mais, entre repórteres, editores, fotógrafos, estagiários, contínuos. Uma mulher.

No vetusto Correio do Povo, que tinha uma redação maior, também trabalhava uma única mulher cujo nome lembrarei daqui a pouco…Ligia, creio.

Quando fui para a Veja em São Paulo, dois anos depois, vi que não era muito diferente. Numa equipe de mais de cem, formada para “revolucionar o jornalismo brasileiro” não chegava a meia dúzia o número de mulheres. Dorrit Harazim, ainda em atividade, era uma delas.

Me acorrem estas memórias no momento em que fico sabendo da morte da jornalista Rosvita Saueressig, a Fita. Ela foi uma das líderes dessa geração de mulheres que invadiu e revitalizou as principais redações brasileiras, num momento em que o jornalismo pátrio estava no chão.

Conheci-a em 1972, quando o José Antônio Severo me levou para a Folha da Manhã em Porto Alegre. As mulheres já estavam se impondo na Universidade e isso se refletiu no chamamento que fizemos nas faculdades para renovar a redação. Metade dos candidatos eram mulheres, Rosvita era uma delas e logo se destacou como repórter e editora e, também, como líder do grupo das seis “meninas” contratadas, metade do corpo de novos repórteres. Ruy Carlos Ostermann confiou a ela a editoria de “Esporte Amador”, recém-criada, para resgatar uma tradição de Porto Alegre, de diversidade esportiva, sufocada pelo futebol.

Em pouco tempo era uma liderança na redação inteira, acatada inclusive pelos veteranos mais renitentes. Era “pé de boi” no trabalho mas fazia tudo com leveza, sempre sorridente, otimista e sempre disposta a ajudar. Maternal, não sonegava seus sábios conselhos.

Era o tempo da ditadura, acenava-se com abertura, os militares indicariam mais um general para a Presidência da  República. Os jornais especulavam, vários nomes eram cogitados, grande a expectativa, escassas informações. Às nove horas da manhã chegou à redação um informe colhido (sim, tinha um repórter que passava lá) no QG do então III Exército: o novo presidente seria o  Ernesto Geisel, ninguém sabia quem era. Era gaúcho, de Estrela, só o que se sabia. Rosvita saiu da reunião de pauta, ligou para parentes em Novo Hamburgo e descobriu que a família Geisel eram numerosa em Estrela, cidade de colonização alemã, a cento e poucos quilômetros de Porto Alegre. Ao meio dia estava na casa dos parentes, que já tinham confirmação. Dona Lucy, a mulher do general, tinha telefonado, a família estava em alvoroço. No dia seguinte, quando todos os jornais ainda especulavam, a manchete da Folha da Manhã era a seguinte: “Geisel é o homem” e quatro páginas com o material recolhido na família.

Quando houve a “debandada da Folha da Manhã”, Rosvita foi  para a Coojornal, a cooperativa, ainda incipiente, desorganizada. Assumiu as tarefas essenciais e contraditórias de agregar e disciplinar um grupo de jornalistas jovens e voluntariosos. Criar rotinas, cumprir prazos e estabelecer metas, numa empresa que era de todos. “Sargento Saueressig!”, brincavam os irreverentes, batendo continência. Ela ria, mas não cedia. Em pouco tempo a Coojornal produzia mais de 30 publicações para terceiros e um jornal próprio que tinha leitores no país inteiro.  Ela era uma figura central na cooperativa, coordenando meia centena de jornalistas, e se fosse preciso ia ela mesma ao aeroporto encontrar um certo passageiro que traria os originais de uma reportagem especial, enviada de São Paulo.

Quando a repressão se abateu sobre a Coojornal e fomos presos, o caso dela era o mais absurdo: Osmar Trindade e eu assinávamos o texto que resultou na condenação pela Lei de Segurança Nacional. O Rafael Guimarães participara de toda a operação para a entrega dos documentos militares.  Mas a Rosvita… ela, na sua diligência, simplesmente pegara os papéis e levara a uma gráfica para fazer cópias.

Ela não invocou nada disso, assumiu solidária toda a bronca. Na prisão, só fui vê-la no dia em que íamos sair. Ela estava sorridente, com um vaso de flor na mão.

Depois disso acompanhei de longe sua carreira, principalmente na Gazeta Mercantil e no Valor Econômico, sempre com a mesma performance. Não por acaso, ela foi uma das primeiras pessoas que o Celso Pinto convidou, quando foi montar a equipe para fazer o Valor.

As mulheres conquistaram as redações e todas as atividades atinentes ao jornalismo, grande avanço. Mas a profissão está mais uma vez no chão, esgoelada por um modelo superado. Terá que se reconstruir a partir da base e, nessa busca, referências inspiradoras como Rosvita serão fundamentais.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

LOURENÇO CAZARRÉ: Pesadelo de pedra e areia movediça

Lourenço Cazarré

A obra foi tão gigantesca que o título do livro em que sua saga foi narrada exigiu dois subtítulos: “Sonhos de pedra – a história da construção dos molhes – uma das maiores obras da engenharia marítima”.

Desde seu começo, no início do século 19, o porto do Rio Grande, no extremo Sul do país, foi um pesadelo para os navegantes. Para chegar até ele, as embarcações precisavam atravessar um traiçoeiro canal, de profundidades variáveis, visto que a areia fina do fundo era deslocada o tempo todo pelas fortes correntes marítimas.

Surgem logo os práticos – conhecedores dos volúveis bancos de areias e das correntes traiçoeiras – que conduzem os navios ao porto em segurança. Mas adiante, para esta mesma missão, é fundada uma companhia de rebocadores, de propriedade do múltiplo Irineu Evangelista de Souza, o visconde de Mauá, o megaempresário do Império.

Lá pelos anos 1870 começam os estudos que acabariam levando à construção de dois grandes braços de pedregulhos que avançariam por milhares de metros para dentro das águas furiosas, geladas e cinzentas do Atlântico Sul.

Um deles partiria da maior praia do mundo, a do Cassino, que vai de Rio Grande até a barra do Chuí, na fronteira com o Uruguai, num rali de 230 quilômetros sobre um areião fino permanentemente batido por ventos implacáveis que fazem voar latas de cerveja, cheias, nos dias de verão. O outro braço partiria de São José do Norte, uma pequena cidade perdida por trás de dunas ao final de uma árida e quase sempre deserta rodoviazinha que corre junto ao mar, mais conhecida como a Estrada do Inferno.

Essa obra ciclópica ocorre, paralelamente, a construção das duas mais importantes rotas marítimas do universo: os canais de Suez e do Panamá. Alguns protagonistas da construção brasileira, em um ou em outro momento, trabalharam nas outras duas. Afinal, naquela época, como hoje, os homens que sabiam amansar oceanos não eram tão numerosos assim.

A obra se estendeu por uns trinta anos. Só foi concluída em 1915, quando adentrou o canal de Rio Grande o navio-escola Benjamim Constant.

Hoje deslizam em direção do super porto de Rio Grande navios de 15 metros de calado. Mas, nas medições iniciais, há dois séculos, a fundura das águas chegava em alguns pontos a pouco mais de dois metros. Por décadas, às vezes os navios precisavam esperar semanas ou meses, fundeados em mar aberto, as condições propícias para ingressar no estreito e tempestuoso caminho até o ancoradouro sulista.

Grosseiramente, o que se fez foi o seguinte. Ao longo de mais de uma década, incessantemente, homens e máquinas portentosas – entre as quais dois gigantescos guindastes – despejaram grandes blocos de pedra em duas linhas retas oceano a fora.

Mas onde foram os construtores encontrar tantas pedras assim? Na vizinha cidade de Pelotas. Lá em dois distritos, Capão do Leão e Monte Bonito, foram destruídos à dinamite e picareta grandes maciços graníticos. Em cenas que relembravam o erguimento das pirâmides, milhares de homens – muitos deles imigrantes europeus: franceses e espanhóis na maioria – trabalharam por muitos anos, em precárias condições de segurança, nessas pedreiras. Os mortos por explosões e deslizamentos não foram poucos. A pedra retalhada era depois levada de trem até dois finais de linha: um em São José do Norte e outro no Cassino, onde surgira em 1890 o primeiro balneário do Estado. A Biarritz gaúcha.

Paralelamente, o tempo todo, dragas arrancavam a areia fina que dançava no fundo do canal. Esse era e é ainda um trabalho hercúleo. Desde cedo se descobriu que as areias submersas eram movediças porque elas acabavam engolindo a maioria dos incontáveis barcos que por ali soçobravam. Em média foram registrados dois naufrágios por ano na segunda metade do Século 19.

Hoje ou no passado, uma obra de construção brasileira é sempre uma obra bem brasileira. Aqui e ali pipocam suspeitas. Quem está ganhando? Quanto? Como? Por quê? Sempre há os que se dizem nacionalistas e que defendem – garantem eles – os mais legítimos interesses da sua mãe, a Pátria amada. E sempre há também aqueles que os nacionalistas costumam chamar entreguistas, que seriam em teses operadores de interesses escusos, geralmente de países mais ricos ou de capitalistas mais espertos.

A construção dos molhes da barra do porto do Rio Grande, empreendimento caríssimo, não teve roteiro muito diferente. Houve muitas brigas entre os envolvidos na tarefa: administradores públicos, empresários e investidores estrangeiros.

O autor do livro, o jornalista Klécio Santos – que há muito navega de escafandro nas águas turvas da política brasiliense – conta alguns episódios que nos remetem ao jornalismo político dos dias atuais, em geral divulgado quase todo nas páginas policiais.

Trecho que trata da possibilidade da construção de um porto alternativo – na cidade de Torres, no Norte do Estado – ao de Rio Grande:

“Ainda na República, o marechal Deodoro da Fonseca retornou a ideia, mas esbarrou na resistência de seu ministério em destinar a concessão do porto em Torres ao amigo pessoal Trajano Viriato de Medeiros”.

Outro trecho se refere a Ramiro Barcellos, político e escritor gaúcho, que era genro de um grande capitalista de Rio Grande:

“Uma discussão com o deputado Ildefonso Simões Lopes a bordo do paquete Orion, durante uma viagem ao Rio de Janeiro, quando Barcellos tentaria mudar cláusulas do contrato, acabou nas páginas do Echo do Sul. A resistência foi geral, mas a questão da desapropriação das terras de Otero se prolongou com denúncias de extorsão, mencionadas até mesmo na biografia do investidor Percival Farquhar, escrita por Charles Gauld: ´Os políticos gaúchos e o inspetor federal das obras – possivelmente um homem de Pinheiro Machado – criaram confusão`. As terras onde seria construído o novo porto haviam sido adquiridas e teriam sido ofertadas como preços superfaturado”.

Parodiando certo livro da Bíblia, talvez se possa dizer: nada de novo sob o sol brasileiro.

Mas a grande obra lá está. Uma construção daquelas que não interessam muito aos políticos.  Porque é submersa. Tão pouco visível quanto uma rede de esgotos. Uma obra, que, enfim, não rende votos. Mas a verdade é que os tais braços de pedra salvaram e enriqueceram uma cidade.

 

Resenha do livro Sonhos de pedra – a história da construção dos molhes – uma das maiores obras da engenharia marítima, de Klécio Santos, editora Cabrion, 235 páginas.

ELMAR BONES/ Jogo bruto

A situação agônica em que se encontram os pequenos jornais do interior reflete o abandono a que estão entregues as comunidades por esse Brasil a fora.

Nesse Brasil profundo, a falta de informações é uma pandemia que pode ser tão letal quanto a covid.

Como reconstruir nessa terra arrasada do pós pandemia sem informações próximas, da realidade local?

O que se tem é um noticiário da corte, devidamente manipulado, servido em três refeições diárias.

O jogo bruto que o andar de baixo enfrenta para sobreviver no dia a dia ganha pinceladas impressionistas num noticiário pintado pela macro-economia.

 

 

ELMAR BONES / O sangue de Vargas

24 de agosto de 1954

A aula mal havia iniciado, a professora foi chamada à sala da diretora e voltou chorando. Não haveria aula naquele dia, todos pra casa.

No corredor ouvi: “Getúlio se matou”. “Mataram ele, com certeza”, disse uma velha professora.

Em casa, encontrei minha mãe na cozinha, chorando. Me abraçou, soluçava: “Morreu o pai da gente”.

Getúlio Vargas era o ‘pai dos pobres’ e a comoção que tomou conta do pobrerio naquele subúrbio de Santana do Livramento foi como se de fato tivessem perdido o pai.

Homens choravam nos botecos, indignação gritada nas ruas, alguns saiam para juntar-se aos grupos que se formavam na estação ferroviária, dispostos a embarcar para o Rio de Janeiro.

A Rádio Cultura intercalava “músicas fúnebres” com as notícias do quebra-quebra em Porto Alegre, da multidão que tomava conta das ruas do Rio de Janeiro. Parecia que o mundo vinha abaixo.

(Nas aulas de música que tive com Enio Squeff  descobri que aquela melodia que soava  aterradora  entre as notícias era o réquiem que Johannes Brahms compôs quando morreu sua mãe).

No fim o terremoto popular que parecia brotar do fundo da terra dissipou-se  e o que Getúlio conseguiu à custa da própria vida foi protelar o golpe por dez anos.

Brizola com a Legalidade, em 1961, foi o último bastião da resistência getulista, que seria aniquilada com o golpe 1964.

Um golpe contra  um projeto nacionalista populista, de conciliação e inclusão social que, na ótica da guerra fria, estava abrindo caminho para o comunismo.

Seria uma intervenção transitória dos militares para extirpar a corrupção, conjurar a ameaça comunista e, em seguida, restabelecer o poder pelo voto.

Resultou num regime militar que durou 21 anos, sem encontrar o rumo certo.

Foi derrubado não só pela política dos porões que adotou, mas principalmente pelo modelo econômico de viés getulista que o general Ernesto Geisel tentou implantar.

“Deus não me traria de tão longe para ser o síndico da catástrofe”, disse José Sarney ao assumir a Presidência da República como o primeiro civil, desde o golpe de 64.

Sarney era da “ala jovem” da UDN, o partido que comandou a derrubada de Vargas, quando os militares tomaram o poder. Foi aliado do regime desde o primeiro instante.

Pode-se dizer que aí, em 1985, quando Sarney se tornou presidente pelo voto indireto (e não quando os milicos derrubaram Jango) se deu a derrota definitiva de Getúlio Vargas.

Na primeira eleição direta, em 1989, Fernando Collor, também da vertente udenista/arenista, sucedeu Sarney, derrotando Lula e Brizola, dois herdeiros da herança trabalhista de Vargas, que se dividiram.

Era mais uma pá de terra em cima  daquele cadáver.

Para completar, o sucessor de Collor, Fernando Henrique Cardoso, assumiu declarando que seu propósito era “sepultar a era Vargas”, negando suas raízes social-nacionalistas. (Seu pai defendeu “O Petróleo é Nosso”).

Mas eis que de repente, quando parecia  coberta por várias camadas de terra, a utopia de Vargas renasceu com a eleição de Lula em 2002.

E, por década e meia, pareceu que a nação havia se reencontrado com o seu velho projeto nacional desenvolvimentista, de conciliação de classes e inclusão social.

O que veio depois de 2015 está na memória de todos. Mas parece que a hidra tem sete cabeças e aí está Lula, liderando todas as pesquisas, com a bandeira do projeto  nacional desenvolvimentista, de conciliação e inclusão social.

A  difusa utopia pela qual Vargas deu um tiro no peito em 24 de agosto de 1954.

 

 

 

 

 

 

Joice, Queiroz e Borba Gato: o que há em comum

A história, que a deputada Joice Hasselman conta, não pára em pé.

Não lembra o que aconteceu até acordar em seu apartamento, numa poça de sangue, com fraturas e um dente quebrado. Teria ficado sete horas desacordada.

Na primeira versão, teria levado uma pancada na cabeça e desmaiado. Depois, disse que poderia ter sido dopada. O certo é que não se lembrava de nada.

O marido dormia em outro quarto do apartamento funcional que a deputada ocupa em Brasilia, Não ouviu nada.

Quando ela pediu socorro pelo celular, ele a encontrou caída e cogitou que poderia ser um acidente doméstico, a deputada teria caído e na queda sofrido todas as lesões apresentadas no rosto, no braços e na coluna.

A deputada esperou dois dias para dar queixa à polícia legislativa.

Isso levou à hipótese de que o agressor tenha sido marido, o neurocirurgião  Daniel França, hipótese implicitamente encampada pelo noticiário.

No domingo,  a deputada e o marido, apareceram de mãos dadas em uma entrevista ao Fantástico. Ele disse que nunca deu um tapa em ninguém.

Ela contou que entregou à polícia os nomes de dois suspeitos: um desafeto político que tem acesso ao prédio e outro “que tem acesso aonde ele quiser”.

Mostrou-se mais preocupada em processar as pessoas que apontam o marido como agressor (“Vou processar todas”)  do que em esclarecer quem a agrediu.

Já o ex-assessor do deputado Flávio Bolsonaro e intimo da familia, Fabricio Queiroz, recorreu ao face-book para reclamar do isolamento, postando uma foto em que aparece com  Bolsonaro e amigos.

Na resposta a um comentário, Queiroz disse que “está com a metralhadora cheia”.  Metralhadora de palavras, entenda-se.

Quanto ao Borba Gato, pelo que diz a imprensa, foi alvo de um grupo de jovens da periferia movidos pela idéia de que a mudança tem que começar pela destruíção dos símbolos do sistema opressor.

O que esses três fatos tem em comum:  são muito mais do que parecem, cada um deles extremamente revelador, mas que vão  submergir na voragem das notícias, sem que se fique sabendo o que realmente aconteceu.

 

 

ELMAR BONES/ Eleições 2022: o fator Eduardo Leite

A pré-candidatura de Eduardo Leite à presidência da República pelo PSDB foi lançada há  quatro meses por 12 deputados aecistas. Eles vieram a Porto Alegre para formalizar o apoio ao governador gaúcho.

A princípio, o lançamento foi entendido como uma manobra dos caciques tucanos para acuar João Dória, auto-candidato à presidência desde que assumiu o Palácio dos Bandeirantes em janeiro de 2019.

Para se livrar de constrangimentos na campanha,  Dória quis expulsar Aécio Neves, um dos fundadores do Partido, e, no embalo,  tentou tomar o controle do diretório nacional, numa manobra desastrada. Caiu em desgraça.

Para defenestrá-lo, os caciques do partido cortejaram Luciano Huck e com a desistência dele, voltaram-se para a alternativa do jovem governador do Rio Grande do Sul.

Com Isso, a decisão sobre o candidato tucano para 2022  foi remetida para uma eleição prévia, situação não prevista por Dória.

Na sequência, um dos caciques tucanos, Tasso Gereissati, também se lançou como pré-candidato, talvez como manobra dispersiva. Assim como  Artur Virgílio, também sem chances.

Eduardo Leite já recebeu a avaliação de sua performance num encontro com dez dos maiores empresários do país, em São Paulo, que o ouviram como pré candidato do PSDB.

Um dos presentes, de larga experiência e conhecedor do meio político, relatou que a conclusão é: o discurso é articulado, o diagnóstico é certo, os números estão no lugar, o governador sabe o que diz e sabe com quem fala,  mas não empolga. O tom é burocrático, de um tecnocrata,  “não encanta”.

O potencial que viram, no entanto,  motivou o relatório crítico que remeteram ao governador, com o reconhecimento de que são  falhas que o candidato pode facilmente superar.

A frase do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso neste fim de semana arrancou urras dos mais empolgados no núcleo que trabalha a campanha do governador.

FHC disse que Lula “é uma pessoa inteligente, intuitiva. Mas, para ser franco, nós precisamos de gente jovem, que tenha energia”.

Todos entenderam a referência  direta a Eduardo Leite.

Se vencer as prévias,  Leite será um fortíssimo candidato à terceira via e, na pior das hipóteses, pode ser um vice decisivo no segundo turno.

 

 

 

 

 

ELMAR BONES/ Um factóide por dia

A imprensa pode se queixar de Jair Bolsonaro em relação a tudo, menos que ele não lhe forneça manchetes.

É um ataque homofóbico, é um relatório falso do TCU, é uma acusação à China,  é a defesa da cloroquina,  A cada dia um factóide que, na boca do presidente da República, acaba nas manchetes.

Nesta quinta-feira (10), por exemplo,  anunciou que quer desobrigar o uso de máscara por pessoas que já estejam vacinadas ou que tiveram a covid-19.

“Acabei de conversar com um tal de Queiroga, não sei se vocês sabem quem é. Nosso ministro da Saúde. Ele vai ultimar um parecer visando a desobrigar o uso de máscara por parte daqueles que estejam vacinados ou que já foram contaminados para tirar este símbolo que, obviamente, tem a sua utilidade para quem está infectado”, afirmou o presidente durante solenidade para anúncio de medidas do Ministério do Turismo.

A própria agência oficial do governo, a Agência Brasil fez uma ressalva na notícia:

“A obrigação do uso de máscara em espaços e ambientes públicos, entre outras medidas sanitárias, é definida em decretos estaduais e municipais, por iniciativa de prefeitos e governadores, conforme decisão vigente do Supremo Tribunal Federal (STF)”.

“De acordo com epidemiologistas, a população vacinada ou que já teve a doença deve continuar usando máscaras porque, mesmo imunizada, ainda pode transmitir o vírus para outras pessoas. Segundo especialistas, a desobrigação do uso de máscara só seria recomendável quando o país alcançar um número expressivo de pessoas completamente vacinadas”.

Um presidente normal pediria o parecer ao Ministério da Saúde e aguardaria o resultado para anunciar. Mas Jair Bolsonaro não se preocupa com os fatos. Ele quer estar nas manchetes, na vã tentativa de encobrir com factóides os descaminhos de seu governo.