PATRUS ANANIAS/ Em nome da vida

Patrus Ananias*

Celebramos neste 5 de junho último o Dia Mundial do Meio Ambiente. A humanidade enfrenta, além da tragédia humana e social do coronavírus, um desafio histórico: aproximadamente um bilhão de seres humanos não se alimenta de forma adequada; outros dois bilhões, se conseguem se alimentar, ainda que seja com alimentos contaminados pelo uso abusivo de agrotóxicos, não têm acesso a bens e serviços essenciais, a uma vida digna, como a moradia decente, transporte coletivo limpo e a tempo, atividades culturais, lazer criativo. Enquanto essas pessoas, famílias e comunidades lutam e sofrem, uma pequena minoria riquíssima consome e desperdiça desbragadamente. Os detentores do poder econômico e que se julgam donos do mundo só consideram os seus lucros. O planeta dá visíveis sinais de cansaço.

O Brasil vive intensa e dramaticamente esta encruzilhada histórica. Depois da destruição da Mata Atlântica, do Cerrado que é o cenário visível da obra transcendental de Guimarães Rosa, estamos assistindo à destruição da Amazônia, do Pantanal Mato-grossense, à escalada contra os nossos recursos hídricos e contra nossa biodiversidade. O ministro do Meio Ambiente quer aproveitar o sofrimento imposto pela Covid-19 para passar a boiada da destruição.

Precisamos dar um sentido mais amplo e integrado à palavra desenvolvimento. Além do desenvolvimento econômico e social impõe-se a construção de um modelo de desenvolvimento que integre e priorize o desafio ambiental, a preservação das fontes da vida. Há que ser, em nome da vida, uma postura propositiva, anunciadora. O desafio é mostrar a preservação das águas, da biodiversidade, dos ecossistemas como fatores de desenvolvimento.

Nessa perspectiva cito três exemplos nossos: as regiões que conformam as bacias do rio São Francisco, o esplêndido e machucado rio da unidade nacional; do Rio Doce, tragicamente comprometido pela tragédia criminosa em Mariana; do rio Jequitinhonha, que encantou Saint-Hilaire nas suas andanças por Minas Gerais e pelo Brasil há dois séculos. Essas regiões só realizarão as suas extraordinárias potencialidades de desenvolvimento integrado e sustentável com a plena recuperação dessas belíssimas e agredidas redes fluviais e do meio ambiente que lhes dá proteção.

Às pessoas, movimentos e entidades comprometidos com a soberania e o projeto nacional fundados no Estado Democrático de Direito e nos direitos fundamentais, precisamos incorporar às nossas reflexões e ações a questão ambiental, não como uma questão específica e marginal, mas como um desafio vivo que deve perpassar todas as políticas públicas, planos e obras governamentais e não governamentais. Ponto de convergência entre o Estado e a sociedade, compromisso com as nossas vidas e as vidas futuras.

*Patrus Ananias exerce o terceiro mandato como deputado federal, é secretário-geral da Frente Parlamentar Mista em Defesa da Soberania Nacional, foi ministro do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, no governo Lula, e do Desenvolvimento Agrário, no governo Dilma Roussef, prefeito e vereador de Belo Horizonte.

 

JOSÉ ANTONIO SEVERO/Passeatas e eleições

As duas grandes lideranças políticas do País estão boiando à deriva. Nem o presidente Jair Bolsonaro, nem seu antecessor Lula da Silva estão conseguindo posicionar seus seguidores para o desafio eleitoral deste ano.

A pouco mais de quatro meses do pleito, o presidente da República está sem partido para apresentar e registrar seus candidatos, e o fundador do PT não consegue unidade para colocar seu partido na competição.

Para um faltam estruturas legais para registrar chapas; para o outro há carência de líderes com apetite para enfrentar de novo a paçoca dos aguerridos direitistas.

Nessas condições, preferem botar a moçada na rua. Assim, as sucessões municipais, que são o obstáculo imediato, à frente, parecem pano de fundo lateral no cenário político destes dias. Um quadro estranho na paisagem.

Passeatas com protestos e vivas não falam de nomes nem de projetos para cidades, grandes ou pequenas.

Em vez de milhares de candidatos se apresentando nas redes, nas mídias e nas ruas pedindo votos, o que se vê são cartazes e palavras de ordem a favor e, mais recentemente, contra o presidente da República.

Ninguém fala de buraco de rua. Só agitam questões nacionais.

Do um lado e outro a mesma coisa. Uma parte da oposição, liderada pelo PT, também está concentrando a sua mobilização política nas ruas, pedindo a deposição do presidente Jair Bolsonaro, nos moldes de outras campanhas anteriores (Fora FHC) e condenação do impeachment da presidente Dilma Rousseff.

A eleição municipal, dizem, é menor, não tem importância, devendo concentrar-se na disputa nacional de 2022. É a primeira vez na história deste país que o partido com maior bancada nacional na Câmara dos Deputados despreza uma eleição. Novo normal?

Essa é uma situação singular, dizem analistas. O presidente Bolsonaro, já em campanha para reeleição em 2022, não pode deixar seu capital eleitoral nas grandes capitais escapulir como água por entre os dedos das mãos.

Seu desempenho deve confirmar as vitórias esmagadoras em algumas das principais cidades do País em 2018: 67,97% contra 32,03% de Fernando Haddad em São Paulo; 66, 35% contra 33, 65% no Rio; 65, 59% contra 34,41% em Belo Horizonte; 56,85% contra 43,15% em Porto Alegre.

Com esse desempenho, ele chega a julho, data de realização das convenções partidárias, sem saber que candidatos apoiar, pois não tendo partido próprio depende de acordos e coligações. Quais serão seus nomes? Em 2018 ele já provou que transfere votos. Isto vale muito neste momento.

O ex-presidente Lula da Silva, para manter o PT como primeira força partidária, precisa de resultados. Ele chamou atenção das direções petistas, nesta semana, para a necessidade de se posicionarem em campo o quanto antes.

Sem ânimo, os dirigentes do partido estão dizendo que devem se concentrar na sucessão presidencial, deixando para lá as eleições municipais. Lula discorda, lembrando que o partido tem prefeitos ou participação efetiva (com vice prefeitos ou acordos formais) em 220 municípios. São territórios a serem mantidos.

Na prática, Bolsonaro está numa situação embaraçosa, pois rompeu com seus antigos aliados nos grandes colégios eleitorais, como Wilson Witzel, no Rio, João Dória, em São Paulo. E não pode confiar na parceria com Romeu Zema, em Minas, nen em Eduardo leite, no Rio Grande do Sul.

Talvez um único acordo à vista seja com o prefeito do Rio, candidato à reeleição, bispo Marcelo Crivela, devido à afinidade pentecostal, e seu rompimento com o governador carioca.

Nos principais estados bolsonaristas espera-se a reeleição dos prefeitos: Bruno Covas, em São Paulo, Alexandre Kalil, em Belo Horizonte, Rafael Greca, em Curitiba, Gean Loureiro, em Florianópolis e, também possível, Nelson Marchezan, em Porto Alegre.

Ocorre que, embora aliados em 2018, nenhum deles atualmente está alinhando como presidente da República.

O mesmo acontece com o ex-presidente Lula. Os grandes nomes do PT, como o professor Haddad, de São Paulo, ou o senador Jacques Wagner, na Bahia, não se dispõem a concorrer.

No Rio a ex-governadora Benedita da Silva já foi lançada, protegida por um mandato de deputada federal que lhe garante continuidade parlamentar em caso de derrota.

Embora em Salvador, em 2018, tivesse vencido com 68,59% dos votos, contra 31,41% de Bolsonaro) e embora Haddad tenha ganho no Nordeste, o racha na oposição pode abalar a hegemonia petista nessa região.

 

 

ELMAR BONES/ O desafio americano

Os Estados Unidos se beneficiaram em larga escala com as duas calamidades que marcaram o século XX – as duas guerras mundiais num intervalo de 15 anos. Na primeira, os americanos se envolveram perifericamente, no final, e não foram contaminados pelas perdas da guerra.

Ao contrário, sua indústria supriu o mundo, principalmente a Europa combalida. Dez anos depois da pacificação, sua produção representava 40% do total mundial. Só interrompeu sua ascensão, por um período, na grande depressão dos anos 30.

Na segunda, os Estados Unidos tiveram importante protagonismo no periodo final, mas a guerra passou longe do seu território e seu parque produtivo, mais uma vez, se beneficiou da devastação geral na Europa.

Ao fim do conflito, firmou-se não só o maior produtor industrial, mas também como o maior credor do mundo, financiando as potências quebradas.

De outro lado, as duas guerras criaram o ambiente para as maiores transformações políticas já ocorridas: a revolução bolchevique que deu origem à União Soviética, no caldo da primeira guerra, e a revolução maoista na China consumada em 1949, cinco anos depois do final da guerra.

Eric Hobsawm, que reuniu e analisa exaustivamente esses fatos capitais em sua obra “Era dos Extremos”*, anota que as calamidades que abalam as estruturas econômicas abrem caminhos para as revoluções políticas impensáveis em condições normais.

No século XX, as revoluções se deram na periferia do  capitalismo – Russia e China embora gigantes em território e população eram nações periféricas ao sistema econômico dominante nos Estados Unidos e Europa central.

A Covid 19 é a primeira grande calamidade do século XXI e os prejuízos serão profundos nos países que são os sustentáculos da economia capitalista, a começar pelo seu motor, os Estados Unidos.

Atingidos duramente pela Covid 19, os EUA vivem um momento em que os fundamentos da sua economia  enfrentam  contradições ameaçadoras, a começar pela crescente desigualdade social, passando pelo racismo, ambos potencializados pela devastação da pandemia.

A extensão de cada uma dessas ameaças e o impacto delas  no conjunto ainda é imprevisível. O governo americano, ocupado por um líder controverso, errou no tratamento à Covid e tornou-se um epicentro da pandemia.

Corre o risco de errar no tratamento dos conflitos sociais recorrendo, como pretende Trump, a uma repressão  sem limites para contê-los. Pode ter o efeito de uma fogueira que se tenta debelar com gasolina.

Em todo caso, tem-se como  improvável uma revolução comunista nos Estados Unidos, até porque o comunismo não tem mais  o apelo que tinha como alternativa ao capitalismo nas primeiras décadas do século passado.

O que é previsível a estas alturas é que essa crise não será “apenas um solavanco no velho capitalismo” que vai retomar seu eterno vigor ali adiante.

ARNO KAYSER/ Roessler, um pioneiro

O homem moderno não tem mais tempo de meditar. Seu interesse máximo é enriquecer o mais rapidamente possível. Não tem mais tempo para procurar contato com a natureza que cura todos os males”.

Henrique Luiz Roessler 13/10/61.

Esta frase, que poderia ter sido escrita neste exato instante, é uma das muitas do pioneiro dos pioneiros da ecologia brasileira e patrono da Fepam.

Nos anos 30, graças à pressão da Sociedade de Amigos das Árvores, o presidente Getúlio Vargas sancionou o primeiro conjunto de leis que formataram a legislação de proteção da natureza no século 20.

Essa legislação previa um cargo de delegado voluntário de caça e pesca a ser exercido por servidor público. Para esse cargo um gaúcho, nascido em 1896, em Porto Alegre, mas criado na Rua da Margem em São Leopoldo, junto ao Rio dos Sinos, se apresentou de forma corajosa e generosa.

Foi assim, em 1939, que Roessler iniciou sua trajetória pública em defesa da natureza. Investido na função ele passou a fazer fiscalizações, emitir documentos educativos e organizar uma rede de colaboradores em todo o sul do Brasil. Com o fim de formalizar o compromisso de adesão dos colaboradores a causa Roessler criou, em 1953, o juramento de proteção natureza. Documento célebre de referência para todos que militam na causa da defesa do meio ambiente.

Com base nesse grupo de apoio, tornou-se uma figura quase mítica e onipresente aparecendo onde menos era esperado para surpreender depredadores da natureza.

Seu trabalho foi tão eficiente que passou a ser uma figura polêmica, com defensores e detratores, na opinião pública, imprensa e até mesmo na Assembleia do RS.

Nas ruas de sua terra natal era comum gritarem ”olha que o Roessler te pega” quando alguém era flagrado maltratando algum animal ou planta.

Ao fim de 1954 ele foi demitido do cargo por conta de pressões políticas que chegaram ao Rio de Janeiro.

Como resposta ele cria, no dia 01 de janeiro de 1955, a União Protetora da Natureza (UPN), provavelmente a primeira entidade com esse carácter no país.

Com o apoio de seus simpatizantes ele começa uma nova fase de atuação, agora muito mais centrada na conscientização, pois lhe foi vedado o poder de multar e apreender.

Passou a fazer palestras em escolas, pois devotava grande esperança na educação dos jovens. Também passou a produzir cartazes com belos bicos de pena de usa própria lavra com mensagens em prol da defesa da natureza e atacando os seus inimigos.

Mas o que realmente o projetou em larga escala foi o trabalho como cronista de jornal. A partir de 1957 passa a publicar artigos no Correio do Povo. Foram mais de 300 artigos que contribuíram muito para formar a consciência ecológica do povo gaúcho.

Abrangendo diversos temas eles alternavam denúncias, reflexões filosóficas e descrições da beleza da nossa natureza.

Esses artigos foram reunidos em duas publicações. Uma pela Editora Martins Livreiro em 1986 e outra em 2005 pela Fepam

Esse trabalho prosseguiu até o dia de sua morte, em 14 de novembro de 1963, pouco antes de completar 66 anos.

Sua obra foi tão marcante que, além de deixar uma massa crítica que gerou toda uma geração de militantes ecologistas, seu nome passou a ser indicado para nominar ruas, praças, pontes e parques em diversas cidades do país.

Por conta de seu pioneirismo em defesa da proteção ambiental seu nome foi também dado à Fepam, cujo nome oficial é Fundação Estadual de Proteção Ambiental Henrique Luiz Roessler.

Uma justa homenagem e uma fonte de inspiração para todos os seus servidores.

Arno Kayser

Agrônomo ,Ecologista e Escritor

Leituras para conhecer mais sobre Roessler:

Centeno, Airton, Roessler, o primeiro ecopolítico, Porto Alegre, JA Editores, 2006;

Malta Pereira, Elenita, Roessler o homem que amava a natureza, São Leopoldo, Oikos, 2013

Roessler, Maria Luiza, O homem do rio – biografia íntima de Henrique Luiz Roessler, Porto Alegre, AGE Editora,1999.

Roessler, Henrique Luiz, O Rio Grande do Sul e a Ecologia, Porto Alegre, Martins Livreiro, 1986

Roessler, Henrique Luiz, O Rio Grande do Sul e a Ecologia, Porto Alegre, Fepam, 2005

 

ALDO REBELO/ A morte do mestiço

Uma onda de indignação percorre os Estados Unidos e espalhou-se pelo Brasil em protesto pelo assassínio de um homem negro, George Floyd, em uma abordagem policial no estado de Minnesota.

Floyd foi brutalmente morto por policiais diante de várias testemunhas, e é natural a indignação do mundo contra mais um crime no seio de uma sociedade marcada historicamente pelo racismo.

Nos Estados Unidos o abismo que separa as raças não excluiu sequer o humanista Abraham Lincoln, presidente que conduziu o país na Guerra Civil que aboliu a escravidão, mas que achava que os negros não tinham lugar na América branca, e que teriam que aproveitar a liberdade e empreender a jornada de retorno à África.

Aqui no Brasil a morte de Floyd alcançou ampla repercussão na mídia tradicional e entre os chamados movimentos sociais.

O que espanta é que tal indignação não ocorra quando milhares de jovens mestiços brasileiros são vítimas da escalada da violência diante do silêncio constrangedor e cúmplice da mesma mídia e dos movimentos sociais tidos como progressistas.

Uma ligeira busca na internet é suficiente para comprovar que antes de ser morto nas ruas do País, o mestiço brasileiro já está morto nas estatísticas, nas notícias da imprensa e nas manifestações das redes sociais das correntes identificadas com as lutas libertárias.

O morticínio dos mestiços não desperta uma nota de pé de página da nossa mídia tradicional e nem uma singela manifestação de pesar ou um lamento dos grupos sociais progressistas.

Aliás, a palavra mestiço foi banida da narrativa dos meios de comunicação e das organizações pretensamente avançadas da sociedade.

Precocemente, o mestiço tornou-se arcaísmo banido do discurso contemporâneo e legado à literatura de um Guimarães Rosa com seus jagunços, de um Graciliano Ramos com seus sertanejos, ou à pintura de Portinari, com seus trabalhadores do café e Di Cavalcanti com suas mulatas.

Esquecemos a mestiçagem de nossa psicologia herdada de nossas avós remotas, índias e negras, da nossa música, culinária, e do nosso português moldado no sotaque negro e no vocabulário pleno de expressões do Tupi para nossa fauna, flora e geografia.

Abandonamos tudo isso para importar o modelo de sociedade bi-racial dos Estados Unidos. Não temos mais mestiços. Somos pretos ou brancos.

Adotamos a regra de uma gota de sangue (One-drop-rule), base da classificação racial dos Estados Unidos, pela qual bastava um único ancestral de ascendência africana, ou uma gota de sangue para alguém ser considerado negro.

Era o princípio que, segundo os supremacistas brancos, garantiria a “pureza” da raça branca.

A questão é que no Brasil a negação da mestiçagem fere mortalmente a identidade nacional brasileira e a imagem que projetamos das nossas origens, obrigando-nos a reinventar uma interpretação para nosso processo civilizatório que não existe fora do encontro do europeu, do índio e do negro desde o nascimento dos primeiros mamelucos.

Gilberto Freyre, Darcy Ribeiro e Euclides da Cunha viram no mestiço a essência da brasilidade, sem exclusão das minorias brancas e negras na formação da nacionalidade.

Ao cunhar a expressão mestiço é que é bom, Darcy Ribeiro não menosprezava as qualidades de outros formadores étnicos da população nacional, mas, ao contrário, exaltava as virtudes de todos eles concentradas no mestiço.

O genocídio sociológico, estatístico, jornalístico e político do mestiço brasileiro não pode ser o preço a ser pago para o justo e necessário protesto pela morte brutal de negros brasileiros ou norte-americanos.

*Aldo Rebelo é jornalista, foi presidente da Câmara dos Deputados; ministro da Coordenação Política e Relações Institucionais; do Esporte; da Ciência e Tecnologia e Inovação e da Defesa nos governos Lula e Dilma.
 

LUIZ-OLYNTHO TELLES DA SILVA/ Uma parábola para os dias de hoje

Luiz-Olyntho Telles da Silva

Terminava o ano de 1348 e com ele a devastadora peste negra. A Europa estava um caos. Aos sobreviventes tocava elaborar o luto. Muitos perderam seus pais, avós, amigos e irmãos, sem falar nas famílias das quais não sobrou ninguém. Boccaccio foi um desses que sofreu todas essas perdas e encontrou na escrita um meio de trabalhar sua dor. Daí saiu seu Decameron, organizado em torno de dez jornadas nas quais se contam, a cada dia, dez novelas. Santo Ambrósio já havia louvado os seis dias da criação, intitulados com uma expressão grega, o Hexameron, e Boccaccio achou por bem repetir a ideia para os seus dez conjuntos de dez, por vezes luxuriosos, ora melancólicos, ingênuos, ora espirituosos, etc., etc.

A história que escolhi para hoje, está na base da formação dessas locuções que os franceses chamam de mot d’esprit, um dito espirituoso, um dito que requer inteligência para ser compreendido.

Estamos já quase ao final da sexta jornada, o dia se prepara para começar a perder suas cores, acendem-se os candelabros e a rainha Elissa começa a nona história, anunciando que sua conclusão será com uma sentença tão brilhante que talvez ainda não se tenha narrado nenhuma com tanta sabedoria.

Em tempos passados, continuou ela, houve em Florença costumes muito galantes, agora perdidos pela avareza que junto com a riqueza prosperou. Entre os hábitos banidos estava o de cavalheiros de diferentes bairros da cidade reunirem-se a cada tanto para jantar, convidando, quando era o caso, algum estrangeiro, ou mesmo algum expoente conterrâneo para homenagear e, a cada vez, era um que pagava a conta. Formavam assim diferentes brigadas que cavalgavam juntos e exibiam-se em justas nos dias de festa. Entre elas, estava a brigada de Messer Betto Brunelleschi, antepassado do famoso arquiteto Filipo Brunelleschi – construtor da cúpula do Duomo, da igreja de São Lourenço, do palácio Riccardi e do palácio Pitti –, e que muito se esforçou, junto de seus companheiros, para incorporar Guido Cavalcanti às suas fileiras. Filho de Messer Cavalcante dei Cavalcanti, Guido era um importante poeta, amigo de Dante Alighieri, homem educado, bem falante, de boa aparência e muito rico; sempre voltado às suas meditações, alheava-se de outros homens e, dedicado ao epicurismo, diziam que buscava demonstrar a inexistência de Deus. Então, certa manhã, quando Guido fazia seu trajeto habitual, ao passar pelo cemitério San Giovanni, onde havia grandes sarcófagos de mármore (hoje em Santa Reparata), além de muitos outros, e estando ele entre aquelas colunas de pórfiro, daquelas rochas vermelhas contemporâneas do período pré-cambriano – um presente dos pisanos para Florença, em retribuição à guarda que lhes fizeram quando foram conquistar a ilha de Maiorca –, avistou-o Messer Betto que vinha com sua brigada, a cavalo, pela praça de Santa Reparata, e logo teve uma ideia: – Andiamo a dargli briga. Vamos incomodá-lo um pouco, traduziu Maurício Santana Dias para a Ed. Cosac Naify, em 2013, enquanto Urbano Tavares Rodrigues, em 1976, ao fazer a tradução para a Ed. Formar, em coedição com a Libraria Bertrand, de Portugal, preferiu Vamos disfrutá-lo um pouco (escrito assim, com i mesmo). Enfim, tratava-se de implicar um tanto com Guido, de fazer bullying, como se diria hoje, e, decididos, esporearam seus cavalos. Antes que Guido se desse conta, o cercaram fazendo-lhe a seguinte pergunta: Guido, você se recusa a entrar em nossa brigada; mas, quando descobrir afinal que Deus não existe, o que fará? Sem dar-se por achado, Guido logo respondeu: Senhores, estais em vossa casa, podeis dizer-me o que quiserdes. A seguir, ágil que era, saltou por sobre uma alta tumba e sumiu-se por entre os sarcófagos. Os brigadianos, pasmos, ficaram a olhar entre si. Aquele homem era um smemorato – inconsciente, traduziu Maurício Santana Dias; louco, preferiu Urbano Tavares Rodrigues –, sua resposta não fazia sentido. Foi então que Messer Betto, voltando-se para os companheiros, falou: – Os smemorati são vocês que não entenderam nada: com poucas palavras e na maior elegância, ele nos disse a pior das vilanias. Vejam, esses túmulos são as casas dos mortos, aí estão os defuntos; mas ele diz que são nossas casas para nos mostrar que nós e os ignorantes como nós, em comparação a ele e aos filósofos, somos piores que os mortos. Logo, se estamos aqui, estamos em nossa casa. Assim foi construída a brilhante sentença anunciada pela rainha Elissa e, tendo todos entendido a tirada espirituosa de Guido Cavalcanti, nunca mais o incomodaram e Messer Betto passou a ser considerado um cavalheiro sutil e inteligente.

 

IVANIR BORTOT/Queda de juros é insuficiente para evitar a recessão

Uma provável nova redução da Taxa Selic deixará o Banco Central com uma arma a menos contra a crise econômica gerada pelo novo coronavírus.

Entre os remédios estudados está a utilização das reservas internacionais, uma montanha de dinheiro de cerca de U$ 360 bilhões

Por
 Ivanir José Bortot

O BC (Banco Central) deverá promover uma nova  queda das taxas de juros para se ajustar a uma inflação menor, fruto de uma estimativa de  encolhimento no Produto Interno Bruto (PIB), mesmo sabendo que a medida é insuficiente para evitar a recessão que vem pela frente.

O mercado já trabalha com a estimando uma queda de 5,8 % no do PIB  para 2020.

Já de algum tempo, o atual presidente do BC, Roberto Campos Neto, manifestou uma opinião divergente do ex-presidente da instituição, Henrique Meirelles, sobre a intensidade da queda da taxa selic.

De fato, uma nova queda mais acentuada de juros deixará a taxa selic praticamente equivalente à inflação e, neste caso, seus efeitos monetários para estimular o crescimento serão praticamente nulos, como definiu o economista John Maynard Keynes no seu estudo sobre a “armadilha da liquidez”.

Com indicadores de aumento de desemprego, perda de renda dos brasileiros em isolamento social pelo coronavírus e queda da atividade econômica, haverá redução dos preços.

O enfraquecimento da economia e a queda do poder de compra apontam para uma inflação menor.

Um cenário futuro com as atuais taxas nominais de juros de 3,0% e inflação menor implicaria juros reais maiores, desestimulando ainda mais o consumo e a atividade produtiva.

É dado como certo que os juros nominais vão cair este ano para cerca de 2%.

A autoridade monetária está seguindo as normas e protocolos dos Bancos Centrais do resto do mundo para enfrentar a crise de liquidez no sistema financeiro, com injeção de recursos e redução dos juros básicos.

A eficácia da queda das taxas de juros utilizada antes da crise do coronavírus teve pouco impacto sobre a retomada do crescimento, como foi observado ao longo do ano de 2019, em função da perda de emprego, renda e investimentos públicos e privados.

Diante da magnitude da atual crise de liquidez uma queda da taxa selic daria pouca contribuição para a expansão da demanda agregada da economia.

O maior beneficiado, na verdade, seria o Tesouro Nacional, que teria uma redução de custos de emissão ou rolagem da sua dívida pública.

Com as medidas de injeção de dinheiro na economia com pagamento do auxílio de R$ 600 para cerca de 30 milhões de brasileiros, sem falar na liberação dos recursos do FGTS e linhas de crédito, haverá uma expansão dos meios de pagamentos, especial o M1, papel moeda em poder do público, e depósitos a vista.

No entanto,ainda não há dados sobre o impacto destes recursos sobre o consumo das famílias.

O certo é que uma maior oferta de moeda em uma situação em que os juros nominais estão muito próximos aos números de inflação contribuem muito pouco, como já previa Keynes, para estimular a atividade econômica.

O economista John Maynard Keynes é autor do estudo sobre a “armadilha da liquidez”.

Diz Keynes: “A medida que a taxa de juros cai para zero, a demanda torna-se horizontal. Isso implica que quando a taxa de juros é igual a zero, aumentos adicionais de oferta de moeda não produzem efeito sobre a taxa nominal de juros”.

Roberto Campos Neto chegou a dizer que não é com emissão de papel moeda que a economia vai se recuperar. Ele sabe que juros nulos ou até negativos tem baixa potencialidade na política monetária.

A recuperação da economia vai depender da conquista de um equilíbrio fiscal e de investimentos públicos e privados em infraestrutura e setor produtivo. O reequilíbrio fiscal deverá ser buscado pelo governo com corte de gastos obrigatórios, receitas de privatizações e aumento de impostos sobre patrimônio.

O ministro da Economia, Paulo Guedes, verbalizou a alguns senadores a possibilidade de usar parte das reservas internacionais, que hoje estão na casa dos US$ 360 bilhões, para cobrir as despesas que está fazendo para enfrentar o coronavírus.

A ideia de reservas não é nova. Há um ano em um seminário da Instituição Fiscal Independente (IFI), ligado ao Senado Federal, a economista Monica de Bolle, defendeu a utilização de um terço das reservas do Brasil para que seus recursos em reais fossem investidos em obras públicas.

Monica de Bolle informou na época que o montante de reservas que poderiam ser utilizadas, sem que isso criasse algum risco soberano ao Brasil, foi definido em estudo por técnicos do Fundo Monetário Internacional.

De fato, se Paulo Guedes levar adiante sua intenção, utilizando por hipótese cerca de U$ 100 bilhões da reservas do Brasil, poderia cobrir a maior parte das despesas projetadas pelo governo, pois estes valores serão da ordem de R$ 550 bilhões.

O Brasil continuaria com mais de US$ 200 bilhões de reservas para fazer frente a seus compromissos externos e enfrentar os ataques especulativos de câmbio.

Alguns economistas têm criticado a manutenção das reservas ao longo das últimas décadas com custos elevados ao Tesouro Nacional.

A realidade é que estas reservas foram constituídas para o Brasil enfrentar momentos de crise financeiras internacionais como esta em estamos vivendo.

Se não forem utilizados neste momentos, o Tesouro Nacional ficará apenas com o ônus de seus custos sem qualquer benefício no atual momento.

Um dos benefícios seria trocar estes dólares no mercado neste momento a um preço que em muitos casos deve ser o dobro de quando foram comprados.

A operação de venda dos dólares faria com que um valor equivalente em reais deixaria de circular na economia, tendo em vista que iria para o governo.

A autoridade monetária ficaria com as mãos livres para administrar com maior eficiência a quantidade de dinheiro em circulação na economia.

Com a utilização destes recursos de reservas para cobrir as despesas com o coronavírus, grande parte do déficit primário das contas públicas estimado em R$ 1,3 trilhões até o final do ano, seriam resolvidos.

O reequilíbrio fiscal abriria espaços para novos programas de investimentos públicos, sem falar nos benefícios na condução da sua política monetária.

A queda na taxa de juros tem pouca influência na decisão das pessoas de consumir ou dos empresários investirem neste momento.

É que os bancos para conceder crédito estão avaliando os riscos que terão em função das incertezas no longo prazo. Suas taxas de juros continuam nas alturas em função dos spreads bancários.

Ainda ninguém sabe quando a pandemia vai passar e o  como será a volta da normalidade.

Nenhum empresários fará investimento sem a segurança de demanda para seus produtos. As pessoas, por sua vez, sem emprego e renda tendem a reduzir cada vez mais o consumo.

 

 

ALDO REBELO/ Guerra civil

A nota do ministro Augusto Heleno, aquela das “consequências imprevisíveis”, desencadeou uma outra, de seus colegas de escolas militares, na qual a expressão “desfecho imprevisível” é seguida de outra mais inusitada: a hipótese de guerra civil, para resolver a disputa institucional entre o Poder Executivo e o Supremo Tribunal Federal.

A memória me aponta algumas das terríveis guerras civis que ensanguentaram o solo pátrio: durante a Regência tivemos quatro, simultâneas, no Rio Grande do Sul, a Farroupilha; na Bahia, a Sabinada; no Maranhão, a Balaiada e no Pará a Cabanagem, que geraram massacres, ameaçaram a unidade do Brasil e a integridade do território e criaram sequelas indesejáveis na vida nacional.

Depois da República vivemos a Revolta Federalista, com suas degolas de lado a lado, e no ocaso do século XIX a tragédia de Canudos com todos os seus horrores.

No início do século XX o País conheceu uma guerra civil entre militares rebeldes e legalistas, o tenentismo, guerreando ao longo de dois anos por todo o território nacional.

Todas estas lutas fratricidas deixaram marcas indesejáveis na alma e no corpo da Pátria.

Cogitar reproduzi-las para resolver uma disputa entre poderes e corporações não passa de inconsequência inaceitável e testemunho da imaturidade e alienação daqueles que assim raciocinam.

Os que reclamam do enfraquecimento do Poder Executivo, vis a vis os demais poderes, estão cobertos de razão, mas cometem desatino quando imaginam, em delírio anacrônico, que podem resolver o conflito via a ameaça, como fez o ministro Heleno ou a guerra civil como fazem seus amigos de escola.

Aliás, a agenda motivo de queixas do presidente da República e de seus aliados, e que resultou na fragmentação do Orçamento da União em emendas paroquiais e interesses corporativos, foi um dos instrumentos usados para enfraquecer a presidente Dilma Rousseff e o seu governo, tudo conduzido pelo então presidente da Câmara Eduardo Cunha, com a celebração e os votos dos atuais detentores do poder.

E se a presidente Dilma tivesse dado posse a Lula como seu ministro da Casa Civil à revelia do Supremo Tribunal Federal?

E se a mesma presidente mandasse prender na época o juiz de primeiro grau que cometeu crime contra a Lei de Segurança Nacional, ao violar o sigilo telefônico da Presidência da República em matéria que já estava fora de sua alçada?

E se o presidente Michel Temer tivesse desconhecido a ordem do Supremo bloqueando a nomeação de sua ministra do Trabalho?

Provavelmente, aos olhos dos atuais defensores da separação de poderes, teríamos motivo para uma guerra civil pelas razões contrárias às que enxergam hoje como suficientes para ameaçar o País com os ventos da violência.

Em meio a uma profunda crise social, ao desemprego e ao sofrimento da pandemia, quem levaria a notícia da guerra civil aos milhões de jovens que vivem afundados na pobreza e na desesperança na periferia das grandes cidades brasileiras?

Qual seria o papel desses jovens no curso de uma guerra civil?

As guerras civis do passado foram desencadeadas por ódio e violência incontroláveis, mas apresentaram pretextos políticos e plataformas legitimadoras.

Haveria uma plataforma para os que cogitam uma guerra civil contemporânea?

Quando norte-americanos e norte-vietnamitas iniciaram as negociações para encerrar a carnificina da Guerra do Vietnã, a esquerda francesa censurou os vietnamitas por aceitar negociar com os agressores.

Dizia-se na época que nas mesas dos cafés do Quartier Latin a esquerda francesa defendia que o Vietnã resistisse até o último vietnamita.

É de se perguntar aos corifeus da nova guerra civil brasileira até quantos brasileiros precisariam ser sacrificados para que a Presidência da República tivesse suas prerrogativas respeitadas pelo Poder Judiciário, e se eles também estariam dispostos a oferecer sua cota de sangue para que o nobre objetivo fosse alcançado.

Não. As mazelas e deformidades institucionais do Brasil exigem, é verdade, o confronto, a coragem, a determinação e a clareza nas ideias e na ação política.

O resto é bravata inconsequente, que cobre o horizonte com a poeira da desorientação e não da luz que deve iluminar os caminhos do Brasil e do seu povo.

ANTÔNIO BRITTO: Seremos penetras onde poderiamos estar como anfitriões

Não é nada fácil responder qual o maior dos erros cometidos pelo governo Bolsonaro na condução de políticas e providências relacionadas com a pandemia.

Um forte candidato está lentamente aparecendo no noticiário: a participação pífia do Brasil na pesquisa, produção e recebimento da vacina que, espera-se em tempo recorde, venha oferecer prevenção contra o vírus.

Conquistamos, com um esforço de décadas, uma importante posição mundial em vacinas, em um nível muito superior ao nosso papel no desenvolvimento de medicamentos.

Até pouco tempo atrás, o programa brasileiro de imunização podia ser considerado exemplar em termos globais com a presença de  excelentes centros de pesquisa e produção como FioCruz e Butantan;  algumas boas iniciativas  para parcerias entre eles e grandes laboratórios mundiais de modo a simultaneamente aproximar nossos cientistas dos melhores projetos de inovação e, em contrapartida, garantir acesso ao amplo mercado brasileiro.

O cenário da imunização no país tornou-se menos exemplar com os erros cometidos nos últimos anos, responsáveis por vexames como a volta do sarampo e uma brusca e perigosa redução nos níveis de cobertura, com a ajuda de fanáticos que colocam em dúvida a necessidade de imunizar pessoas. (Terão mudado de opinião?)

Ainda assim, o Brasil podia e merecia estar ao menos participando ativamente do que é hoje a principal urgência mundial –chegar a uma vacina contra o covid-19. No front científico, aliando-se a algumas das mais de cem pesquisas em andamento.

No ambiente diplomático,  sendo ouvido na queda de braço que se aproxima envolvendo como e onde produzir, como e para quem distribuir a futura vacina. Uma corrida contra a morte movida pela geopolítica.

Salvo iniciativas isoladas de alguns dos nossos centros, estamos simplesmente fora de tudo.

A participação na pesquisa e desenvolvimento da vacina exigiria que houvesse por parte do governo compreensão da importância do assunto; competência e capacidade de iniciativa para liderar a busca de parcerias entre nossos institutos e governos e laboratórios farmacêuticos mundiais, tendo como trunfos a capacidade de produção aqui instalada e especialmente a dimensão do mercado brasileiro.

Óbvio que nada consequente e estratégico foi feito. Em consequência, amanhã quando a vacina estiver viabilizada seremos penetras em um evento onde poderíamos ter a condição de anfitriões, minoritários, mas anfitriões.

Pior ainda: o desenvolvimento da vacina parece, hoje, a parte mais fácil do que vem por ai. Imagine-se: anunciada a vacina, haverá sete bilhões de interessados nela.

Onde produzir? A quem entregar inicialmente? Em que quantidades? Como conciliar a necessidade de declará-la um bem comum da humanidade com o respeito aos acordos mundiais sobre propriedade intelectual?

Os absurdos cometidos em política externa, especialmente em saúde,  deixam-nos em que condição para discutir e negociar no âmbito da OMS, depois do tanto que a desrespeitamos e afrontamos? Como defender nossos interesses se a vacina vier da China? E se ela for obtida  primeiro nos laboratórios ingleses?

A menos que nossos fundamentalistas contem com a generosidade norte-americana e infantilmente pensem que Washington (se vencer a corrida cientifica) colocará o Brasil como destino prioritário em parcerias, produção e recebimento da vacina.

Nossos graves erros em inovação e no campo diplomático, fazem mais do que nos fragilizar na guerra das vacinas. Passam um atestado de como o Brasil, rapidamente, pôde colocar fora toda a presença que construíra, em décadas, na definição de políticas mundiais de saúde.

E nos condena hoje a uma sequência de fatos constrangedores (lembremos apenas os desta semana): a participação envergonhada de um militar especialista em logística falando pelo Ministério da Saúde na Assembléia Geral da OMS;  o ministro astronauta arriscando-se ao ridículo na tentativa de considerar seria uma pesquisa sem crédito. Ou ainda a inexplicável criação pelo presidente da República da categoria de “remédio ideológico”, logicamente de direita, contra todas as evidências e recomendações dos médicos.

A vacina chegará. E com ela, pelos dados atuais, uma grande derrota para a saúde no Brasil. E um dos maiores e mais prejudicais erros cometidos pelo governo.

Não serão os milhares de mortos as únicas vitimas da epidemia no Brasil. A ciência, o bom senso e nosso prestigio internacional, também.

(Publicado originalmente no Poder 360)

A TORRE EIFFEL/ Luiz Olyntho Telles da Silva

“A grandeza da oração reside, em primeiro lugar, em não ser respondida, e em não entrar nessa troca a feiura de um comércio”.

SAINT-EXUPÉRY, Cidadela.

***

Conheci a Torre Eiffel no princípio dos anos 80 e fiquei tão impressionado que ao longo dos anos voltei a visitá-la algumas vezes. O amplo jardim circundante, as fontes, os museus próximos, tudo dizia de seu valor.

Lembro-me ainda, na primeira vez, de ter tirado uma foto, apoiado em uma de suas bases, buscando seguir suas linhas em direção aos céus. Outra vez, foi em uma ensolarada manhã de um domingo outonal.

Tinha terminado de dar um passeio pelos jardins do Trocadero e começava a descer a Avenue du Président Wilson, quando fui abordado por uma jovem; queria saber se podia indicar-lhe a direção para chegar à Torre.

Imaginem, era francesa e nunca a vira de perto; morava no interior e, há seis meses, viajava semanalmente a Paris para estudar balé. Naquela manhã, roubava-se um tempo para conhecer o grande monumento.

É preciso dizer que voltei dez passos para apresentar-lhe, pessoalmente, o símbolo maior da cidade luz? Ah!

E o entardecer no último domingo de verão que aí estive?! Eu sentara em um bar da Avenue Desaix com a Avenue de Suffren, o Firmine, com uma ampla visão do Champ de Mars, para aguardar o pôr-do-sol, degustando uma pression bem fria.

Seria próximo das dezoito horas. Às vinte horas o dia continuava claro e, às vinte e uma, com a sensação de que esse dia não terminaria nunca, encomendei uma porção de carpaccio e preparei-me para jantar.

Estava informado de que a noite, nesta época do ano, e nessa região, custava a cair, mas nunca imaginara tardasse tanto.

Foi exatamente às vinte e três horas quando, num repente, como se as luzes do dia tivessem sido desligadas no interruptor, que a noite entrou e, ato contínuo, num átimo, acenderam-se as luzes da Torre Eiffel, por inteiro. Um espetáculo deslumbrante!

As obras de Eiffel, desde que o conheci, constituíram-se em um marco para mim. Nem falo da impressão que me causou o Elevador de Santa Justa, em Lisboa, do qual, embora conste, hoje se duvida de sua efetiva participação no projeto, mas suas pontes, como a Dona Maria Pia, unindo a cidade do Porto à Vila Nova de Gaia, por sobre o rio Douro, e os seus monumentos, como a estrutura da Estátua da Liberdade, em Nova Iorque, sempre me pareceram notáveis.

Pois outro dia, lendo um pequeno livro de Ferenc Molnár, O Poste de Vapor, quando contava que a primeira ponte, ligando Buda a Peste, por sobre o Danúbio, a Ponte Margarida, fora também um projeto dele, bem antes de ser famoso, um pequeno comentário chamou-me a atenção.

Verdade que ele diz muitas coisas interessantes aí. Ele menciona, por exemplo, para mostrar como vão se processando sua associação de ideias, Jean Giraudoux.

Seus pensamentos percorrem o fio das estruturas e Molnár lembra-se da Oração sobre a Torre Eiffel, um dos capítulos do livro Julieta no país dos homens, desse autor, onde conta que, tendo subido um dia na Torre, enquanto observava Paris, ocorreu-lhe pensar que confiança teve na lei das massas o engenheiro que construiu esta torre de ferro!

Mas o ponto que mais me tocou foi a comparação da ponte com a torre: a ponte tinha a vantagem de estar deitada! Pois foi neste momento que se formou, para mim, como uma Gestalt, a imagem que quero contar-lhes.

Precisei relatar os antecedentes para verem como sou lento, ou como pode ser lenta a formulação de certas ideias.

Pois o que percebi, naquele momento, foi que a Torre Eiffel pode ser vista assim: suas quatro grandes bases representam os quatro cantos do mundo com as mãos postas, noite e dia, em oração, voltadas aos céus.

E então compreendi que assim deveriam ser todas as orações, obras para o usufruto e deleite de todos.