Manifesto Pelo Futuro do RS

Francisco Milanez*
O Rio Grande do Sul sempre foi expoente da luta ambientalista moderna, na qual, além da preservação, se discute a forma de desenvolvimento da sociedade. A Agapan lança este manifesto e convoca os gaúchos para garantir o futuro do Rio Grande.
A Agapan – Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural – foi criada em 1971, antes mesmo do próprio Greenpeace. A entidade é pioneira no Brasil e uma das primeiras do mundo na luta ambiental. A Agapan foi o berço da agroecologia, especialmente por seu primeiro presidente, José Lutzenberger, ter saído de uma multinacional de agrotóxicos para se alinhar na luta contra os venenos junto com os demais fundadores da Agapan.
Por influência dos ambientalistas, o RS acumula vários pioneirismo no Brasil, como a criação da primeira secretaria municipal de Meio Ambiente, primeiro órgão estadual de Meio Ambiente, um dos primeiros mestrados em Ecologia do país (na UFRGS), criação da lei de podas, lei dos agrotóxicos e a lei dos recursos hídricos, entre outras que serviram de referência para todo o país.
Esses movimentos históricos e de vanguarda demonstram uma sensibilidade cultural e de valores de nosso povo. Conseguimos chegar ao século 21 sem termos destruído nosso Estado de forma irreversível e, hoje, somos e podemos ser ainda mais atrativos para o desenvolvimento do futuro, com novos valores e nova qualidade de vida.
Somos o ambiente perfeito para empresas sustentáveis que querem qualidade ambiental e pagam bons salários. Está tudo pronto graças a 48 anos de lutas das entidades ambientalistas e simpatizantes. Temos o melhor futuro pela frente, devido ao nosso passado.
PROTEGER AS ÁGUAS
Os planejadores urbanos pelo mundo têm se dado conta de que uma das mais importantes necessidades de um município é água de boa qualidade. Boa parte das cidades é cercada por atividades industriais e agrícolas poluentes, cujos rejeitos contaminam a água de abastecimento.
Isto tem feito com que estes municípios invistam grandes somas em áreas de proteção e de produção agroecológica, que constituem formas de não poluir e de preservar/filtrar a água. Junto com isso, várias outras vantagens: ar puro, estabilidade térmica, beleza estética, e outros.
Porto Alegre tem de graça um cinturão verde agroecológico, que muitas cidades modernas da Europa e EUA estão investindo milhões para ter. Os assentamentos agroecológicos de trabalhadores rurais implantados na região da Grande Porto Alegre contribuem para que a cidade receba desta região o que de melhor um município pode ter: ar limpo, água filtrada, proteção climática/de flora/fauna/de ruídos e ainda excelentes alimentos orgânicos para sua população.
É justamente nesta região que uma empresa, por ambição desmesurada, tem um projeto para implantar a maior mina de carvão da América Latina, dentro da região metropolitana a 16 km do centro da capital do Estado. Como se não bastasse, a empresa quer retirar um assentamento de produtores agroecológicos campeões na produção de arroz e de hortifruticultura orgânicos.
ATIVIDADE POLUENTE
Uma iniciativa ilógica para tempos em que países da Europa e a China buscam fugir do uso de combustíveis fósseis, em especial do carvão, por ser esta a energia mais poluente. Atualmente, Inglaterra e Alemanha fecham suas minas de carvão e a China cria suas novas cidades verdes e com energia limpa.
No mundo inteiro milhões de jovens e adultos saem às ruas pedindo o fim dos combustíveis fósseis, como petróleo, gás e carvão mineral porque contribuem para as mudanças climáticas e comprometem o futuro do Planeta.
A produção de energia tem sido revolucionada no mundo. As formas limpas de produção como a solar e eólica se tornaram também as mais baratas. Além disto, a produção descentralizada de energia é uma conquista importante para a sociedade, já que barateia a transmissão e diminui perdas.
No mundo inteiro as regiões do carvão têm populações pobres e doentes. O carvão nunca melhorou a qualidade de vida de ninguém, exceto, talvez, dos donos das minas que vão morar e gastar seu dinheiro bem longe da poluição que produzem.
Vejamos algumas consequências que esta mina poderia trazer: destruição do maior manancial de água límpida para abastecer a zona metropolitana futuramente; destruição do cinturão agroecológico da capital, destruição da saúde metropolitana através de gases e particulados cancerígenos no ar; ruídos; destruição do Parque Delta do Jacuí, o maior parque próximo a uma capital; rebaixamento e contaminação do lençol subterrâneo e do Jacuí, destruição da atividade agrícola regional.
O argumento de que o empreendimento vai gerar empregos cai por terra quando se analisa o balanço total, que subtrai as vagas perdidas na agricultura já existente e em outras atividades que vão sucumbir.
A arrecadação de impostos com a mineração é mísera comparada aos danos causados à sociedade e não computa as despesas com os consequentes tratamentos de saúde da população..
A Mina Guaíba significa a destruição simbólica e prática do futuro do Estado do Rio Grande do Sul que, ao minerar a sua própria capital, passará a repelir qualquer tipo de investimento limpo e de futuro.
CONSULTA PÚBLICA
A população gaúcha tem o direito de exigir uma consulta pública para as 170 minerações aprovadas no Estado e que podem transformar o Rio Grande numa nova versão de Minas Gerais com Brumadinho.
O Rio Grande do Sul tem o direito de colher neste novo milênio os frutos de 48 anos de luta pela qualidade vida de todos. Temos hoje a maior rede de agroecologistas do país, temos o único bioma natural para produção de carne orgânica em pasto natural do Brasil, temos uma população que ama a natureza e uma excelente qualidade de vida.
Não queremos ser mineradores.
*Francisco Milanez é presidente da Agapan 

Encruzilhada

O SUL EM BUSCA DE UM NORTE
Não tenho dúvida de que o projeto de mineração do carvão em Charqueadas/Eldorado do Sul situa-se numa encruzilhada decisiva.
Não se trata simplesmente de aprovar ou vetar o projeto da Copelmi.
É muito mais do que uma questão local. A questão é global.
Além de uma avaliação econômica, cabe uma apreciação holística dos princípios ambientais e valores humanos embutidos nesse gigantesco empreendimento.
É hora de resolver de uma vez por todas o impasse entre o direito popular a um ambiente limpo e o direito empresarial de explorar recursos naturais para produzir eletricidade e outros insumos.
Não é achismo ou mero palpite. Desde criança, vivenciei tantas modalidades de geração de energia, primeiro como cidadão/consumidor e posteriormente como repórter/observador, que me considero razoavelmente qualificado para fazer algumas considerações. Vejamos alguns episódios.
Na casa de madeira em que fui criado, a água do banho era aquecida no fogão a lenha; para iluminar um ou outro cômodo, contávamos com velas de sebo ou lampião a querosene. Em certas épocas do ano, o máximo de conforto era oferecido por um motorzinho a óleo diesel que funcionava por duas horas após o entardecer. Cinco minutos antes do desligamento do serviço, a luz piscava três vezes e, pronto, logo depois aquela comunidade rural da várzea do médio Jacuí mergulhava na escuridão e no silêncio. Em algumas noites se ouvia o som de um violão ou uma gaita. Ou era o vento chacoalhando o arvoredo.
No final dos anos 1950, enquanto a Petrobras engatinhava, eu ajudava a alimentar com lenha de eucalipto a fornalha de uma locomóvel que puxava água para irrigar uma lavoura de arroz. Ainda dependíamos de formas primitivas de energia que, no entanto, ainda estão aí, fazendo parte da matriz energética brasileira.
Depois, morando na casa-sede de uma fazenda isolada no topo de uma coxilha na campanha, a novidade era a energia eólica. A 10 metros do chão, no alto de um poste, o cata-vento carregava uma bateria que acumulava energia suficiente para acender uma ou outra lâmpada e o aparelho de rádio – música e notícias. Mas o básico ainda era o duo lenha-querosene.
Na entrada dos anos 60, nossas tradicionais formas de transporte pessoal e de cargas – cavalo, carroças, charretes – passaram a ser substituídas por veículos a motor (gasolina, sobretudo); com as bicicletas correndo por fora, vimos como uma evolução sensacional as marias-fumaças tocadas a carvão mineral ou lenha saírem  dos  trilhos para a passagem das gigantescas locomotivas a óleo diesel. Até então, o barulho do trem, a fumaça e o cheiro do carvão de pedra queimado eram considerados sinais de progresso.
Mutatis mutandi, as chaves do progresso inverteram-se. As várias formas de poluição seriam objeto de alertas a partir de 1968, quando um grupo de sábios reunido no chamado Clube de Roma começou a preparar o documento Os Limites do Crescimento, lançado como livro em 1972. Foi a primeira vez que se falou objetivamente, com dados concretos, sobre o desajuste entre o crescimento econômico, a explosão populacional e a degradação ambiental.
Em cima do lance, em 1971 um grupo de cidadãos de Porto Alegre liderados por José Lutzenberger colocou a razão ecológica no ar ao criar a Associação Gaúcha de Proteção Natural, a famosa Agapan.
Na Conferência Mundial do Meio Ambiente, realizada em 1972 em Estocolmo, não prosperou a tese européia do crescimento zero, que condenaria os países pobres ao eterno subdesenvolvimento. “A pior forma de poluição é a pobreza”, clamou a  primeira-ministra Indira Gandhi, da India. Nasceu ali o conceito de ecodesenvolvimento, palavra que se desdobraria na expressão “desenvolvimento sustentável”, presente em todos os artigos e discursos sobre ecologia.  E foi criado o PNUMA – Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente.
Nos anos seguintes houve diversos episódios históricos que provocaram sucessivas conferências mundiais seguidas de acordos diplomáticos mais ou menos inconsequentes. Crise do petróleo provocada pela OPEP em 1973. Proálcool em 1975. Acidente na usina nuclear de Three Miles Islands em 1979 na Pensilvânia. Explosão da usina de Chernobyl na URSS em 1986. Eco-92 no Rio. Queda do Muro de Berlim em 1989. Gasoduto Brasil-Bolivia inaugurado em 2000 em Biguaçu, SC. Parque eólico de Osório (RS) iniciado em 2005. Descoberta do Pré-Sal em 2006. Protocolo de Kyoto assinado em 2007. Crise financeira global de 2008. Acordo de Paris em 2015 visando reduzir as emissões responsáveis pelo efeito-estufa.
E aqui estamos debatendo se o velho carvão de pedra é capaz de aliviar a situação energética do Rio Grande do Sul… Alivia, e até pode alavancar o crescimento da economia regional, mas a que custo ambiental?
Eis a questão: cavar ou não cavar?
“Cavem!”, diriam Borges de Medeiros, Getúlio Vargas e Leonel Brizola, os três maiores estadistas do Rio Grande, todos favoráveis à exploração do carvão de pedra nos seus tempos de governo, décadas atrás. Suas atitudes poderiam ser tomadas como parâmetros para os dias de hoje?
A verdade é que, a cada novo projeto, nos inclinamos a esquecer o impasse detectado há meio século pelo Clube de Roma. Pior, fazemos de conta que o aquecimento global não é uma ameaça concreta. E ainda minimizamos o fato de que a jazida de carvão da Copelmi fica a apenas 1,5 km do rio Jacuí, o maior manancial de água de Porto Alegre.
Não é preciso ser ambientalista para temer a concretização desse megaprojeto mas, na dúvida, consultei um amigo geólogo, professor na Universidade de São Paulo, sobre a viabilidade do carvão mineral como fonte de energia.
Sem entrar em detalhes técnicos, ele disse que sim, o carvão é uma rica forma de energia mas, “veja bem”, o custo de implantação e manutenção de mecanismos de controle ambiental, despoluição e limpeza é tão alto que torna o investimento desinteressante para a iniciativa privada, cujo objetivo primordial é a remuneração do capital, não a preservação do meio ambiente.
Ou, seja, para que o projeto dê lucro, será preciso fazer alguma sujeira. Para que dê muito lucro, foda-se o meio ambiente. Simples assim: that’s business. Tudo isso sem considerar a possibilidade de um acidente. Por exemplo, uma enchente do Jacuí e seus afluentes. A sede de Eldorado do Sul fica 19 metros acima do nível do mar.
Resta uma pergunta: sendo a mineração uma atividade altamente poluente, seria então o caso de pensar que a segurança energética proporcionada pelo carvão mineral deveria resultar de um criterioso investimento estatal capaz de promover o desenvolvimento econômico sem contaminar o meio ambiente?
Sim ou não, esse é um debate que vale tanto para o varjão úmido do baixo Jacuí quanto para o bioma amazônico – e, claro, interessa também a outras regiões com potencial mineral. No Jacuí como na Amazônia, além de minérios, existem agricultores, animais, indígenas, sitiantes, urbanóides e vegetais que merecem considerações ambientais, sociais, culturais e econômicas.
Além de audiências, estudos e relatórios, o sucesso do debate talvez exija a realização de um plebiscito que não se restrinja aos municípios carboníferos, mas envolva toda a região potencialmente impactada pelas consequência da extração do carvão e seu beneficiamento ou coisa que o valha.
Precisamos entender que assim são as encruzilhadas. Para sair delas, é preciso pesar bem os fatores em jogo, sem esquecer de minimizar os riscos da escolha do caminho que nos levará a um futuro melhor.

Como me tornei uma zebra gorda

Márcio Markendorf*
Como me tornei uma zebra gorda? Bem, não é uma trajetória muito fácil.
Ser um professor universitário do tipo zebra gorda leva algum tempo.
Em média, um animal desta fauna estuda cerca de 4 anos em um curso de graduação, mais 6 anos em cursos de pós-graduação.
Nesse meio tempo, as zebras, para engordarem, pastam pelos campos de luta da subsistência da pesquisa. Elas escrevem artigos, elaboram resenhas, apresentam comunicações, dão palestras, ministram minicursos/oficinas. Muitas vezes de graça, a convite de outros amigos, também zebras, ainda magras, em busca de melhorar o currículo e as listras.
E depois, para alcançar o status de gorda, primeiro a zebra precisa ser aprovada em um concurso, o que não é muito fácil. Pode levar 4 a 5 concursos para isso acontecer. E, ora, verdade seja dita, não tem concurso todo ano, não é o tipo de concurso de beleza. E dentre as escolhas possíveis, a zebra às vezes precisa ir tentar a vida lá no interior (onde só os médicos cubanos foram).
E, depois que a zebra entra em uma universidade pública, tem avaliação contínua de rendimento. Uma zebra gorda, só é gorda, porque precisa assumir “40 horas” de dedicação exclusiva à pesquisa, ao ensino, à extensão, à administração. E vamos colocar entre muitas aspas 40 horas porque toda zebra sabe que isso é conversa para boi dormir: toda zebra, para dar conta de tudo que lhe dão, trabalha muito mais do que 40 horas, sacrificando muitas das vezes seus momentos de lazer, finais de semana, feriados, férias, família. Afinal, a zebra precisa produzir, produzir, produzir… só assim pode, porventura, ganhar uma promoção ou progressão…e ficar “gorda” (o que é um termo bem contraditório para tudo o que uma zebra faz na vida e o que ela sacrifica para ser zebra).
Talvez muitos não saibam, mas para uma zebra apresentar um trabalho em um evento de referência, tipo ABRAZEBRA, é preciso desembolsar um valor relativamente alto. Contando com anuidade, taxa de inscrição, transporte, hospedagem e alimentação….dá um valor bastante expressivo.
Ah, sim, as universidades até podem dar um auxílio financeiro. Uma vez por ano. E veja bem: auxílio (não dos numerosos, vultosos e extravagantes auxílios de políticos, esses sim bem gordos, muito desproporcionais em relação às zebras, razão para que eu afirme que as zebras, perto dos políticos, são tão mirradas que dá até uma dó profunda).
Vamos lembrar que as agências de fomento que avaliam a gordura das zebras exigem padrões muito altos, o que leva até a estafa mental dos animaizinhos.
E por falar em dó e saúde, não exatamente nesta ordem, é digno de nota o sentimento com  o qual as zebras são agraciadas na sociedade.
Dia desses estava no médico veterinário e fui questionado se, por eu ser uma zebra, eu gostava de sofrer. Vejam só: a condição de zebra é vista sob a ótica do sofrimento existencial, algo que serve de gracejo até para os médicos (cujas profissões se devem… às zebras).
Obviamente que não é somente assim que os outros vêem as zebras. Muitas vezes é com hostilidade, como se esses pobres equídeos fossem inimigos terríveis, doutrinadores e comunistas.
Bem, não quero puxar o pasto para meu lado, mas ter um pensamento de esquerda não me torna comunista nem petista (esse é o julgamento de outros equídeos, como os jumentos, animais que, infelizmente, até chegam a presidir um país). Pelo contrário, me torna mais zebrino (ou humano, como queiram).
E, falando nisso, nem todas as zebras são iguais, mas procuramos manter o respeito e a dignidade. Ao menos não ficamos escrevendo merdas ou dando declarações idem como outros equídeos, os asnos. Alguns desses, tristemente, chegam a ser ministros.
*Professor de cinema da UFSC

Carvão

Filho e neto de ferroviários, vivi minha infância à beira dos trilhos, no tempo em que os trens eram puxados por locomotivas a carvão.
Antes eram movidas a lenha e cheguei a ver: tinha um vagão só para levar a carga de lenha, duas vezes maior do que a parte da fornalha e da caldeira, o motor da locomotiva.
Dois homens se revezavam jogando constantemente achas na fornalha. Imensas pilhas de lenha ocupavam quase todo o recinto da estação ferroviária.
O carvão foi um salto tecnológico: sumiram as pilhas de lenha, aumentou a velocidade, a locomotiva ficou mais potente, puxava o dobro de vagões, o tempo das viagens encurtou, um homem com uma pá abastecia a fornalha.
Certa época fomos morar num local, junto a um enorme reservatório onde as locomotiva “bebiam água” para encher a caldeira e, nos trens de passageiros, abastecer as torneiras e banheiros.
Depois, mudamos para perto da carvoeira, onde as locomotivas manobravam para se abastecer de carvão. Um cone, como um funil, sobre os trilhos era carregado de carvão por um guindaste.
A locomotiva estacionava embaixo e recebia sua carga, num “tender”, três vezes menor do que no tempo da lenha.
Quando adolescente, aquela locomotiva que entrava em curva na estação ferroviária de Santana do Livramento às sete da noite, soltando faíscas e vapores, puxando o trem de passageiros que saíra de Porto Alegre 24 horas antes… era a materialização do progresso, do mundo civilizado de que carecíamos naquela pasmaceira fronteiriça.
Faço essas reminiscências para não deixar dúvidas de que sou suspeito nessa discussão tão acirrada que se trava em torno do projeto de uma nova mina de carvão na região do Jacuí. Mas não posso deixar de entrar nela.
Não consigo ver o carvão como um vilão, algo a ser criminalizado, banido. Vejo uma insensatez nesse radicalismo.
O carvão é um mineral complexo, resultado de 260 milhões de anos de transformações na crosta terrestre. Queima, produz calor, gera energia.
O professor Rualdo Menegat diz que o carvão é um “lixão químico”, tal a quantidade de substâncias e metais pesados que contém.
Pesquisas futuras podem revelar que o carvão é um “manancial químico” tal a quantidade de substâncias e metais que ele contém.
Não desconheço os riscos e o impacto da queima e da mineração do carvão, nem a gravidade e a urgência da questão climática.
Mas não consigo achar sensato abrir mão do carvão que temos. Primeiro que na conjuntura atual é uma fonte de energia inevitável – no setor elétrico, não  há ninguém que descarte o carvão da matriz energética.
Uma base térmica é imprescindível, é o que dizem todos, inclusive históricos defensores da energia renovável.
Segundo: negar definitivamente o carvão, é abrir mão de melhorar o conhecimento sobre ele.
Já se sabe que é possível até extrair gás do carvão subterrâneo sem nem tirá-lo de lá.
Já tivemos pesquisas muito avançadas sobre uso mais sustentável do carvão, que deram para trás, exatamente pela falta de visão, pelo preconceito. Eminentes pesquisadores tiveram seus trabalhos de muitos anos, truncados abruptamente.
Questionar uma nova mina, exigir avaliação de todos os riscos e as mitigações e contrapartidas possíveis, antes de qualquer decisão, vetá-la se for o caso, está certo.
Mas extrapolar para uma condenação absoluta e total da maior riqueza mineral que o Estado tem, maior em potencial energético que as reservas do pré-sal, me parece no mínimo arrogância.
Lembra um amigo meu que fazia questão de pagar a conta sempre, mesmo quando seu cheque não tinha fundos.
 
 
 
 

Por que jovens na política incomodam tanto?

Essa semana fomos surpreendidos pelas declarações do apresentador do programa de rádio “96 Minutos” Gustavo Negreiros, da 96 FM, uma emissora  de Natal (RN). Ele afirmou que uma menina de 16 anos é histérica, que “está precisando de um homem, de um macho ou de uma fêmea, pois ela precisa de sexo porque é uma mal amada”. Na ocasião também acusou a jovem de fumar maconha. Ainda sobrou para jornalistas  que, segundo Negreiros, gostam de porcaria.
Tudo isso, porque Greta Thunberg, 16 anos, ativista, fez um discurso duro em defesa do meio ambiente e criticou os dirigentes das principais nações do mundo, em evento paralelo à Conferência da ONU.  Greta Thunberg foi Indicada ao Prêmio Nobel da Paz e já discursou em eventos internacionais como a COP24, a Conferência do Clima da ONU e no Fórum Econômico Mundial. É vegana e portadora de Sindrome de Asperg, um tipo de autismo. Foi a criadora do Fridays for Future, um movimento global de estudantes em prol do meio ambiente que já contou com a participação de mais  de 1,5 milhão de jovens em mais de 100 países.
O que está por trás desse discurso machista, misógino, raivoso e cheio de ódio do apresentador Gustavo Negreiros?
Pode-se discordar do discurso de Greta, pode-se argumentar que há patrocinadores com interesses inconfessos apoiando a menina, pode-se discordar que existam eventos paralelos à Conferência da ONU. Mas não é possível ficar calado diante de um ataque como o feito por Negreiros. Porque ele não atacou apenas Greta. Ele atacou todas as mulheres e meninas que lutam por seus ideais. Ele atacou a juventude porque acha que ela não tem o direito à palavra, não tem direito a opinar. Onde o discurso de Greta tem a ver com a sua vida sexual? O machista não se contrapôs, não contra-argumentou ao que ela disse. Não. Ele tentou desqualifica-la da pior maneira possível. Não buscou argumentos para debater meio ambiente com ela. Falou sobre seu corpo, sua sexualidade. Para essa criatura, jovens e mulheres não têm o direito de opinar e de ocupar o espaço público.
Nós, que representamos os estudantes brasileiros, repudiamos de forma veemente essas declarações, esse comportamento desrespeitoso e nos sentimos como Greta se sentiria se ficasse sabendo que, no Brasil, em pleno século 21, um radialista usa uma concessão pública para atacar com seu ódio misógino quem defende um mundo mais justo. Nos sentimos atingidos e no direito de reafirmar que esse tipo de declaração não nos calará nem nos colocará na defensiva. Vamos continuar denunciando as injustiças, lutando pelo meio ambiente, pela educação de qualidade e pelos direitos da juventude e das mulheres.
Felizmente, a reação da sociedade às infelizes declarações foi forte e rápida. As empresas retiraram o patrocínio ao programa, o apresentador foi demitido e temos a opinião de que deveria ser processado, porque foi muito além do direito à liberdade de expressão.
A Associação de Juristas Potiguares pelo Democracia e Cidadania (AJPDC) veio a público por meio de uma nota, repudiar a fala de Negreiros, que também é advogado. Diz a nota que “a fala misógina disfarçada de opinião evidencia a necessária e urgente desconstrução dos estereótipos machistas e o debate  sobre a discriminação da mulher na sociedade, especialmente, no nosso país”.
Esse episódio de preconceito geracional e misoginia tem que ser pedagógico e ensinar pra Natal e pro Brasil que o povo não aceita mais essas atitudes. Sabemos que esse não foi o primeiro caso de machismo na mídia, mas nossa batalha e pressão é pra que seja o último.
*Pedro Gorki é presidente da União Brasileira de Estudantes Secundaristas

Milton Nascimento falou errado

RAUL ELLWANGER
O grande compositor mineiro disse que a MPB “está uma merda”. Discordo.
Cancionistas, chorões, arranjadores, cantoras se mantém e surgem às centenas, com alta qualidade. Citemos Simone Guimarães, Pablo Lanzoni, Pedro Franco, Claudia Amorim, Oscar dos Reis, Camila Lopes, Everson Vargas, Monica Salmaso, Luis Claudio Ramos.
O que, sim, tornou-se uma imensa cloaca é a mídia pública. Na grande midia aberta, há dois monopólios.
O primeiro é comercial, que impõe desde 1985 o repertório medíocre que será escutado e vendido no país, parindo o êxito das Misiboras e dos Minitelos. Aqui falamos de dinheiro.
O segundo monopólio é de conteúdo da musica difundida no país, que silencia os temas de politica, de região, sociais, filosóficos, de protestos, de amores verdadeiros, de gênero.
Trata-se de uma política cultural autoritária, que priva os brasileiros de conhecer sua riqueza musical (em especial a regional). Trata-se de uma ditadura deseducadora planejada e executada para encher nossos ouvidos de bobagens.
Trata-se de matar uma cultura, um entretenimento, um saber. Nos querem burros, desinformados, vulgares.
Há quantos anos não surgem como fenômeno de massa interpretes e compositor@s de boa e normal MPB? Será acaso? Terá sido o Djavan o último, na década de ’80?
Nos 7 anos em que “sumiu”, Cartola seguiu fazendo suas canções, mesmo que não aparecessem. As obras de Charles Ives foram conhecidas após sua morte.
Nossa gloriosa MPB pulsa firme por detrás da cortina de ocultamento que os poderosos tecem, como o sangue vital e invisível que anima cada fração de nossos viveres.

A civilização ocidental, o liberalismo e a ameaça do rentismo

Aldo Rebelo
Em artigo recente publicado no diário  londrino Financial Times, e reproduzido no Brasil pelo jornal Valor Econômico, seu principal colunista, Martin Wolf, adverte que o capitalismo e a democracia estão ameaçados pelo capitalismo rentista e os privilégios por ele criados em prejuízo da maioria das pessoas e da sociedade.
O jornal de Wolf é o principal porta-voz do mundo das finanças, e não está sozinho na severa advertência que faz dos riscos para a própria democracia ocidental, derivados da desenfreada ganância e dos exagerados ganhos financeiros produzidos pelo sistema.
Mas o Financial Times não é voz solitária na grave denúncia que faz do abismo que separa as expectativas da sociedade da realidade criada pelo capitalismo dos nossos dias.
Em setembro de 2018, a revista The Economist publicou um longo manifesto para celebrar os 175 anos de sua fundação. O texto intitulado “Reinventando o liberalismo para o século XXI” é um precioso balanço das ideias que promoveram o liberalismo econômico, do qual a revista inglesa foi e continua sendo o mais respeitável e entusiasta porta-voz.
O manifesto reafirma a defesa do livre comércio, do livre mercado, e das liberdades individuais como postulados centrais para a humanidade alcançar o bem-estar material e espiritual.
Chama atenção, porém, a autocrítica dos erros cometidos pela revista ao longo de sua já longeva existência, entre eles, em período mais remoto, o apoio ao colonialismo e ao imperialismo e contra o sufrágio universal, as leis de proteção da pobreza e das vítimas da fome na Irlanda.
No período mais recente, The Economist se penitencia do aval à desastrada invasão do Iraque pelos Estados Unidos, apoiada pela Grã-Bretanha.
O manifesto conclui com uma dura sentença: ou o liberalismo se reinventa, voltando a significar progresso para as pessoas e esperança em um mundo mais justo, ou pagará um alto preço por se confundir com a elite financeira, vista pela população como responsáveis por suas dificuldades e seus infortúnios.
A verdade é que a ameaça ao sistema capitalista, à chamada civilização ocidental e à democracia liberal não nasce de um movimento socialista poderoso, ou de “hordas” de bárbaros atravessando o Danúbio, mas das próprias contradições criadas pelo rentismo ao agravar o fosso social entre ricos e pobres, ao pauperizar as classes médias e inviabilizar o capitalismo concorrencial.
Embora o diário e a revista deixem fora de sua agenda a questão nacional, é importante destacar que o capital financeiro engendrou também o colonialismo cambial, determinando perdas irreparáveis às nações cujas moedas não dispõem de defesa contra os ataques especulativos e demais mecanismos de submissão impostos pelos monopólios internacionais das finanças.
Financial Times e a revista The Economist abordam suas preocupações a partir da realidade das nações centrais do capitalismo.
Não estão focados no desdobramento dos efeitos nefastos do rentismo na periferia do sistema. Mas é evidente que os efeitos são muito mais graves e nefastos para as nações desprovidas dos meios capazes de se proteger dos prejuízos de sua ação deletéria.
É preciso lembrar que as crenças no rentismo estão plenamente instaladas na direção da economia do Brasil.
A ação demolidora contra o Estado Nacional e suas responsabilidades deixa o País ainda mais exposto aos danos que o rentismo provoca contra o interesse social e o interesse nacional.
 

O golpe

Michel Temer está pensando na sua biografia quando reconhece que houve um golpe em 2016. Ele se dá fumos de estadista e não quer passar para a História como o reles golpista, que realmente é. Com Temer tudo é assim, farsesco.
O irônico é que justamente ele, o farsante, reconheça aquilo que eminentes analistas e comentaristas políticos negaram e ainda não se retrataram.
O golpe, não só, foi escancarado como era previsível muito antes, como mostra esse editorial de julho de 2015, do jornal Já Bom Fim:

Um golpe no ar

Um noticiário superficial e mal intencionado  segue disseminando o sentimento de que a solução para a crise política seria a queda da presidente Dilma Rousseff.
Segundo essa interpretação primária e perigosa, a presidente poderia ser enquadrada em crime de responsabilidade pelo judiciário e, em seguida, cassada pelo congresso, num processo de impeachment.
Que a oposição faça esse discurso, principalmente a parte menos responsável e mais eleitoreira da oposição, faz parte do jogo.
Mas ver os grandes veículos de mídia encamparem uma tese dessas é extremamente preocupante.
Dilma não é Jango, nem Collor. Jango por suas vacilações perdera a confiança até de aliado mais próximos. Collor, eleito por uma frente oportunista turbinada pela mídia, não tinha base política para resistir.
Não é o caso de Dilma. Embora ela esteja fragilizada, com a popularidade em baixa, com seu partido acuado por acusações de corrupção, ela ainda é a expressão eleitoral de forças sociais amplas e organizadas e não consta que tenha, até o momento, sido abandonada por elas.
Em vez de tranquilidade, a derrubada da presidente, poderá resultar numa instabilidade sem precedentes e pode desencadear uma sucessão de crises, que ninguém pode prever onde vai acabar.
O país tem problemas, a crise é real e crescente e a presidente parece perdida diante do quadro de instabilidades. Mas forçar sua saída agora é golpe e golpe a gente já viu: sabe-se como começa, não se sabe como termina. (Já Bom Fim/Julho 2015)

Brasil deve ampliar presença militar e cooperação internacional na Amazônia

Aldo Rebelo
O mal-estar diplomático em torno da Amazônia envolvendo o Brasil, a França, a Alemanha, a Noruega e outros países europeus não surpreende quem conhece um pouco da história do nosso País e das ambições coloniais europeias.
A Amazônia brasileira foi colhida no epicentro da sensível agenda mundial do aquecimento global e da questão climática. O problema é que legítimas preocupações ambientais estão entrelaçadas com ambições geopolíticas, interesses comerciais e graves deficiências do Estado brasileiro em administrar o desafio diplomático, ambiental, econômico e social da Amazônia.
Rigorosamente, a disputa pela Amazônia antecede o próprio conhecimento de sua existência. Quando em 1494 Portugal e Espanha celebraram o Tratado de Tordesilhas, dividindo o mundo conhecido e ainda a conhecer em áreas de influência das duas potências coloniais, deram início à corrida pelo domínio da grande bacia hidrográfica.
Portugal empenhou-se em jornada penosa e heroica para conquistar território que seria naturalmente espanhol. Sucessivas epopeias de notáveis varões lusitanos consolidaram o domínio Português.
Pedro Teixeira, em 1637, liderou a expedição de 70 soldados portugueses e 1200 índios flecheiros a bordo de uma verdadeira esquadra de canoas, que saindo de Gurupá, próximo a Belém, varou as águas do Amazonas e chegou a Quito, para espanto dos governantes espanhóis. Aí Pedro Teixeira estabeleceu os marcos da presença portuguesa ao longo da calha do grande rio.
Pouco depois, entre 1648 e 1651, provavelmente cumprindo missão em caráter secreto de Portugal, Antônio Raposo Tavares liderou a chamada Bandeira dos Limites, que saindo de São Paulo desbravou os sertões desconhecidos do Mato Grosso até o Peru, descendo pelo rio Amazonas até Manaus e Belém, de onde retornou a São Paulo. Em sua celebre biografia do grande bandeirante, o historiador português Jaime Cortesão qualifica a bandeira de Raposo Tavares como o maior feito na construção do Brasil.
Quem contempla antigo mapa pátrio e se depara com a presença das três guianas na nossa fronteira setentrional, defronta ali a memória da cobiça de três grandes impérios coloniais sobre a bacia amazônica.
As pretensões territoriais arrastaram-se até o Século XX. Em 1907, na questão do Pirara, o Brasil perdeu 20 mil quilômetros quadrados para a Inglaterra no que hoje é o estado de Roraima. Um pouco antes, em 1903, o Tratado de Petrópolis encerrava a questão do Acre com a aquisição desse antigo território boliviano, que passou perto de tornar-se um enclave norte-americano em pleno coração da Amazônia.
A questão é que o Brasil precisa ir além de confrontar interferências e ameaças como a do presidente francês Emmanuel Macron. O desafio é combinar ações de desenvolvimento econômico e social da Amazônia e de sua população, com iniciativas militares de dissuasão, ao lado de medidas de proteção do vasto patrimônio natural da região.
O Estado brasileiro e a sociedade não podem simplesmente condenar a economia existente na Amazônia como predatória sem oferecer alternativa de vida aos milhões de brasileiros que ali vivem, muitos dos quais ali chegaram incentivados pelo próprio Estado, quando o lema era “integrar para não entregar” ou “terra sem homens para homens sem-terra”. A questão é que governos nacionais e estrangeiros e ONGs resolveram tornar absoluta a proteção ambiental e criminalizar a população da Amazônia. Sem alternativa de sobrevivência para os habitantes locais as políticas ambientais têm gerado ilegalidades e conflitos.
Observando o conselho latino si vis pacem, parabélum, o Brasil deveria iniciar imediatamente a construção da base naval para a Segunda Esquadra no norte do Brasil. O lugar já foi escolhido pelo Comando da Marinha e visitado por mim e pelos comandantes da Marinha e do Exército na época em que fui ministro da Defesa.
O terreno junto ao porto de Itaqui, no Maranhão, seria transferido pelo Exército para a Marinha que ali localizaria a sua Segunda Esquadra, antiga aspiração da Força Naval.
O almirante Leal Ferreira e o general Eduardo Villas Boas concertaram durante a visita promover a transferência da titularidade da área. O então governador do Maranhão, Flávio Dino, acompanhou a visita e pôs o estado do Maranhão à disposição do Ministério da Defesa e do Comando da Marinha para apoiar o empreendimento.
Outra iniciativa seria transformar a Base Aérea de Boa Vista na principal Base Aeroespacial do País. Além de acompanhar a tendência mundial de conversão das forças aéreas em forças aeroespaciais, a mudança de status da Base de Roraima sinalizaria a reafirmação da centralidade da Amazônia na política de defesa do Brasil.
O Exército deveria ampliar a oferta de vagas para militares no Centro de Instrução de Guerra na Selva (CIGS) e estender a voluntários civis da Amazônia e de outras regiões do Brasil a possibilidade de frequentar os cursos de formação.
Para as populações indígenas da Amazônia, o Exército deveria ampliar a oferta de vagas para conscritos e engajados e criar em áreas de densidade populacional indígena acentuada Núcleos de Preparação de Oficiais da Reserva (NPORs) voltados para a guerra na selva e dirigido para formar oficiais de origem indígena.
Combinando a ampliação da presença econômica, social e militar na região, o Estado brasileiro teria condições de abrir a possibilidade de cooperação com o mundo no provimento de meios para a pesquisa da rica biodiversidade local em benefício do Brasil e da humanidade.
Poderíamos integrar centros de pesquisa e universidades do Brasil e do mundo com os centros de pesquisa e as universidades da Amazônia e dos países vizinhos, deixando claro que a indiscutível soberania do Brasil sobre o território não exclui a cooperação internacional em torno de objetivos comuns.
Aldo Rebelo é jornalista, foi ministro da Coordenação Política e Relações Institucionais; do Esporte; da Ciência e Tecnologia e Inovação e da Defesa nos governos Lula e Dilma.

Soberania Nacional é parte da soberania popular

PATRUS ANANIAS 
O conceito de soberania dos povos politicamente organizados e assentados em territórios próprios está vinculado à emergência do Estado nacional no início da era moderna, quando se apagavam as luzes seculares da era medieval.
A soberania do Estado absolutista vinculava-se diretamente à pessoa do soberano, detentor de todos os poderes.
O conceito e a prática da soberania vão se ampliando paralelos às ideias e às práticas democráticas que vão, aos trancos e barrancos para lembrar o nosso saudoso Darcy Ribeiro, emergindo e se afirmando a partir do final do século XVII.
À medida em que o povo vai conquistando a duras penas os seus direitos, a soberania nacional vai se tornando também, e, sobretudo, soberania popular. O pressuposto da soberania passa a ser o exercício dos direitos e deveres de cidadania, vale dizer, dos direitos e deveres que alicerçam a soberania popular
Estado soberano é o que afirma sua independência no concerto internacional das nações e simultaneamente assegura as condições internas para que o seu povo possa afirmar a sua identidade, a sua memória, a sua cultura, as suas realizações. A plena realização desse processo identitário nacional pressupõe assegurar às pessoas, famílias e comunidades, acesso aos bens e serviços básicos, essenciais à vida e ao exercício da cidadania e da soberania popular.
Um país soberano preserva com determinação o seu território, as benesses do seu solo, as suas riquezas hidrominerais, a sua biodiversidade; favorece as condições para que todas as pessoas que formam a comunhão nacional possam liberar e alargar as suas vocações e potencialidades. Um país soberano relaciona com outros países de forma dialogante e cooperativa, sempre na busca da paz e dos avanços culturais e civilizatórios, mas sem perder, sempre que necessário, a sua força e altivez na defesa dos interesses da sua terra e da sua gente.
Sabemos que habitamos um mesmo planeta e que partilhamos responsabilidades com ele e com o misterioso e fascinante universo em que estamos modestamente situados. Respiramos o mesmo ar. Carecemos todos dos mesmos mares, dos mesmos espaços; temos necessidades comuns, sonhamos sonhos compartilhados, partilhamos desejos; as criações artísticas e culturais, a busca de formas convivenciais mais solidárias, os trabalhos de construção da paz transcendem povos e nações. Integramos e partilhamos a mesma humanidade.
A aventura humana na face da terra se faz também nas diferenças culturais, consuetudinárias, linguísticas; nas diferenças das tradições e dos procedimentos. Diferenças que enriquecem a espécie humana e abrem novas porteiras e possibilidades ao conhecimento e às manifestações de solidariedade e amor ao próximo e aos diferentes. Vale entre os povos, o ensinamento de Tolstói; “fale sobre sua aldeia para falar ao mundo”.
Um país com o território, os recursos naturais, as condições climáticas, as potencialidades humanas, comunitárias e convivenciais da nossa boa gente, um país como o Brasil que tem tudo isso, deve aportar a sua contribuição própria, única, brasileira ao desenvolvimento da humanidade. Se não o fizermos, ninguém o fará por nós e ficará um vazio tremendo na História.
Para que o Brasil aporte esta contribuição insubstituível é necessário que afirmemos nossas diferenças, a nossa identidade nacional, que não sejamos meros consumidores e repetidores da produção de outros povos. A nossa identidade nacional, condição primeira de nossa soberania, deve ser aprofundada e realçada para que possamos aportar ao mundo a nossa contribuição única, esplendida, intransferível. Se não o fizermos ou o fizermos aquém das nossas potencialidades, o planeta fica cultural e espiritualmente menor.
Para realizarmos a nossa vocação nacional e darmos esse aporte ao planeta e ao próprio cosmos temos o desafio maior de promovermos o encontro do Brasil consigo mesmo – superando os dualismos, injustiças e exclusões que marcam a nossa História – e liberarmos as nossas melhores, mais fortes e generosas energias. Essa contribuição nacional brasileira ao processo civilizatório da humanidade não é tarefa para pessoas, grupos, corporações, muito menos tarefa das classes dominantes que sempre colocam os seus interesses econômicos acima dos interesses da pátria. É tarefa de todos nós. Tarefa do povo brasileiro onde se fazem presentes as melhores qualidades da nacionalidade brasileira.
Fundamental à soberania e ao projeto nacional brasileiro que aprendamos cada vez mais a respeitar as diferenças. Somos um país multirracial, multiétnico, multicultural. O encontro e a integração de etnias e culturas não nos dispensa de respeitar, como parte integrante de nossa soberania popular, os povos e comunidades – os povos indígenas, quilombolas, comunidades tradicionais – que, partilhando a comunhão nacional, querem preservar as suas tradições, culturas, costumes, línguas, territórios, valores e procedimentos comunitários, relações com a natureza. Essa diversidade cultural nos constitui e constitui a essência da nossa soberania que se manifestou no alvorecer da nossa nacionalidade na expulsão dos holandeses em meados do século XVII.
Um século antes, no século XVI, o notável pensador francês Montaigne, nos seus Ensaios, nos ensinava que não há culturas superiores ou inferiores, há culturas diferentes. E as diferenças, preservadas e respeitadas, nos enriquecem, do ponto de vista humano e social, e ampliam, no caso brasileiro, os horizontes e as potencialidades nacionais.
A Constituição Cidadã de 5 de outubro de 1988 acolheu bem essa compreensão mais abrangente da soberania fundada na cidadania e nos direitos fundamentais. Os artigos 1º e 3º afirmam com notável clareza os princípios fundamentais de nossa Lei Maior. Partem estes princípios, nos dois primeiros incisos, da soberania e da cidadania. Ao tratar dos direitos políticos no artigo 14, em sintonia com o parágrafo único do artigo 1º, a Constituição fala expressamente da soberania popular.
Atenta à necessidade de assegurar as condições materiais básicas para o exercício da soberania e da cidadania através de políticas , a nossa Carta Magna integra os direitos sociais por meio do artigo 6º e dos artigos 193 a 232.
Vejo, em sintonia com o olhar de milhões de brasileiras e brasileiros que amam profundamente o nosso país, um inquietante processo de desmonte das conquistas sociais, culturais e ambientais que, a partir da Constituição Cidadã, tivemos no Brasil. Vejo, sempre respeitando os olhares diferentes, um processo de desmonte desses direitos essenciais ao exercício da cidadania e da soberania popular. Processo este deflagrado com a Emenda Constitucional 95, prossegue com as chamadas reformas trabalhista e previdenciária – prefiro chamá-las de deforma – além de outras leis e iniciativas sempre voltadas para a redução dos espaços já tão reduzidos dos pobres, das classes trabalhadoras; processos que atingem e penalizam também a classe média assalariada, pequenos e médios empreendedores, o cooperativismo, a economia solidária, a agricultura familiar; através de cerceamentos a programas e políticas públicas como o Bolsa Família, o Benefício de Prestação Continuada – BPC -, o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar – PRONAF, Programa de Aquisição de Alimento da Agricultura Familiar – PAA, os Centros de Referência da Assistência Social – CRAS, os restaurantes populares.
Acrescem as propostas legislativas que visam reduzir, se não eliminar, as reservas indígenas, os territórios quilombolas e as comunidades e populações tradicionais; a determinação em quebrar as universidades federais e os institutos federais de educação, ciência e tecnologia, no limite a determinação de quebrar a escola pública; mais do que o descaso, a hostilidade com a nossa cultura e as nossas artes que constituem um grande patrimônio nacional e bem traduzem a nossa criatividade.
Ao desmonte dos direitos sociais acrescem as reduções dos espaços democráticos e de participação da sociedade que se manifestam na determinação em extinguir conferências e os conselhos setoriais.
O combate à corrupção, presente no ideário e nos compromissos desta Frente que defende a sacralidade de cada centavo público e de todos os bens que estejam a serviço do povo brasileiro e a serviço da nossa soberania, o combate à corrupção vai cada vez mais se conspurcando com a publicização de gravações que deixam claro as opções políticas e persecutórias de operações como a Lava Jato. Emergem dessas gravações, além de outros fatos e questionáveis procedimentos processuais, as razões que levaram ao julgamento e condenação política do Presidente Lula.
Na mesma linha, casos dramáticos de perseguições e assassinatos políticos como da vereadora Marielle Franco, e de seu motorista Anderson Pedro Gomes, não são devidamente investigados. Outros casos graves de violência e de desvio de recursos públicos não são devidamente processados e apurados.
São procedimentos e omissões que ameaçam a nossa maior conquista, O Estado Democrático de Direito, essencial ao exercício da soberania.
Daí a consequência inevitável: a soberania do Brasil, na mesma linha dos direitos fundamentais, está sendo dura e rapidamente corroída. Aprendemos com o melhor da tradição cristã que a fé sem obras, que a traduzam na vida e nas relações humanas, é vã, assim como se perdem as palavras que não incidem na realidade através de atos.
Falar da pátria brasileira, usar os seus símbolos, cantar o nosso belíssimo Hino Nacional só ganham significado quando se manifestam na concretude das decisões políticas e ações que afirmem a nossa soberania. Não é o que estamos assistindo. Somos testemunhas do contrário: a entrega das riquezas, do patrimônio nacional. Voltamos aos tempos sombrios da guerra fria quando o Brasil, em nome de combater o comunismo, submetia-se totalmente aos interesses dos Estados Unidos.
Estamos entregando o patrimônio nacional em nome das privatizações e do estado mínimo. Estado mínimo não garante a soberania nacional, não promove o desenvolvimento e o bem comum, não protege e preserva a vida como o valor maior e coesionador da sociedade, não viabiliza o projeto nacional brasileiro. A soberania nacional acolhe a propriedade privada, a livre iniciativa, a economia de mercado. A soberania nacional e popular se opõe ao capitalismo selvagem. Defende que a propriedade privada, a livre iniciativa, o empreendedorismo, a economia de mercado e a liberdade contratual estejam subordinadas às exigências superiores do Estado Democrático de Direito, do direito à vida, da justiça social, do bem comum, do projeto nacional, da soberania nacional e popular. Lembrando sempre que o dever primeiro de um Estado Soberano é defender o seu patrimônio e cuidar do seu povo.
A rigor, não existe estado mínimo. O Estado está sempre a serviço de interesses. O Estado neoliberal privatizado coloca-se a serviço das classes sociais mais ricas e dos grandes interesses econômicos, internacionais sobretudo, que dele, do Estado se apropriam. Temos sobre tudo e sobre todos, uma nova divindade, o bezerro de ouro dos nossos tempos; o deus mercado que sente, reage, fica nervoso, se acalma quando é feita a sua santa vontade, impõe seus desejos. Entendemos que o mercado, levado ao seu devido lugar, deve subordinar-se também aos superiores interesses do país, vale dizer, à soberania nacional e popular.
Assistimos no Brasil, entre tantos retrocessos, à privatização de empresas estratégicas à soberania e ao projeto emancipatório nacional: a PETROBRAS fatiada e privatizada justo quando chegamos ao pré-sal. Mais do que privatizada: entregue aos interesses de países economicamente mais poderosos. Estamos entregando a Embraer que tanto orgulho nos causa. Penso no legado notável do marechal-do-ar Casemiro Montenegro. E privatizar, entregar a Eletrobrás, não é também privatizar e entregar as nossas águas? Privatizam os Correios que tanto contribuiu e contribui para a integração nacional. Querem privatizar o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal que tanto fizeram e fazem, respectivamente, pela nossa agricultura e pelo direito à moradia, à casa própria. O que querem com os acordos de Alcântara, com a Amazônia Brasileira? Uma submissão crescente aos interesses dos EUA? Se, de um lado, devemos buscar sempre a cooperação e as trocas justas com outros países, cabe lembrar a advertência do Presidente Charles de Gaulle, que os franceses elegeram como o maior estadista de sua história, insuspeito de qualquer tendência esquerdista ou socialista, mas sempre atento aos interesses de seu país e aos sinais dos tempos. Disse De Gaulle, em dura advertência ao seu ministro das Relações Exteriores: “as nações não têm amigos, têm interesses”.
O primeiro dever de cada Estado, sem perder de vista os horizontes das relações internacionais e a busca permanente da paz, é defender os interesses do seu povo. Os donos do dinheiro não descansam. Querem sempre mais negócios e mais lucros. Crescem, é inegável, em setores empresariais sentimentos humanitários, de respeito ao meio ambiente, respeito ao trabalho e às trabalhadoras e trabalhadores, compromissos com o bem comum. Mas aprendemos com as lições da História e com as realidades presentes que o capital para adequar os seus objetivos econômicos ao desenvolvimento social deve ser democraticamente disciplinado pelo Estado, em nome da sociedade, e submetido aos superiores interesses do projeto nacional; o que queremos para o nosso país, pensando em nós e nas gerações futuras – vale dizer todas as ambições e interesses, em princípio legítimos, devem estar subordinados à soberania nacional, à soberania do povo.
Patrus Ananias é deputado federal (PT/Minas Gerais), foi ministro de Desenvolvimento Social e Combate à Fome no governo Lula e Ministro do Desenvolvimento Agrário da presidente Dilma Rousseff. Ex-prefeito de Belo Horizonte e professor da Faculdade de Direito da PUCMG.
 
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