O Programa de Recuperação Fiscal defendido pelos dois candidatos ao governo do Estado como caminho certo para tirar o Rio Grande do Sul da crise revela uma visão de curto prazo dos dois concorrentes, que tanto falam em futuro.
Há 20 anos um plano muito semelhante e com as mesmas motivações deste foi apresentado como a solução para a grave crise financeira que o Estado então vivia, subjugado por uma dívida de R$ 9 bilhões.
Não só o governador da época, Antonio Britto, e os partidos aliados celebravam o acordo da dívida como a solução. Foi decisivo o apoio da mídia escrita falada e televisionada que era tudo naqueles tempos sem interntet, mas já com fake news. .
O jornal Zero Hora chegou a manchetear sobre a foto em quatro colunas de um sorridente Britto ao lado do ministro Malan, no dia em que foi assinado o acordo de renegociação da dívida com a União: “Rio Grande Liquida a Dívida” .
Não mereceu uma linha num canto de página o discurso naquele dia do líder da oposição, deputado Flávio Koutzii, denunciando que o acordo “atendia a interesses políticos imediatos, mas era lesivo aos interesses do Estado”.
Nestes 20 anos, o Estado já pagou R$ 25 bilhões e ainda deve R$ 53 bilhões.
O atual acordo, contido no Programa de Recuperação Fiscal, suspende a dívida com a União por três anos, deixando o Estado de pagar R$ 11,3 bilhões.
Segundo cálculo do CEAPE, quando retomar os pagamentos em 2022 estará devendo R$ 65 bilhões. E o desembolso anual pulará para mais de R$ 4 bilhões por ano.
Dizem que não há outro caminho, como se dizia há 20 anos.
Autor: Análise & Opinião
Catadores, cuidado
“Ei, Tio, tem um real aí?”
Para atender a pedidos como esse, há pessoas que carregam algumas moedas. A doação não é solução, mas ameniza a situação do infeliz e alivia a culpa do doador por viver alguns degraus acima do subemprego.
No entanto, como as coisas estão piorando, cabe perguntar quando chegará o dia em que não bastarão moedinhas ou notas de baixo valor para contentar os subtrabalhadores esfarrapados que nos estendem as mãos, sem esperança em promessas do Mercado de Trabalho ou de algum governo. É impossível não reconhecer o aumento do número de catadores que vão passando com seus carrinhos de compras.
Com base nos dados do Censo de 2010, havia então 398,3 mil catadores de lixo no país. Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), eles obtinham um ganho médio mensal 10% acima do salário mínimo – hoje seria um pouquinho acima de 1 mil reais. O problema é que hoje há mais catadores do que antes e, com a crise econômica, o volume do lixo diminuiu.
Em 1988, um catador precisava de 40 latinhas para reunir um quilo de metal. Hoje, vinte anos depois, para fazer o mesmo quilo do metal reciclável, é preciso juntar 70 latinhas, pois elas ficaram mais levianas, menos espessas.
Quanto ao valor recebido, as latinhas deixaram de ser o top de linha da reciclagem. Papelão está na frente, seguido pelos plásticos. Garrafa de vidro, junto com o papel jornal, não vale quase nada. Enfim, também no valor dos materiais recicláveis, quem manda é o Mercado.
Desanimado, o catador apela:
“Ei, Tio, tem um real aí?”
E aí desponta nítido o outro lado da moeda: o R$ que começou numa incrível paridade com o dólar (R$ 1,00 para US$ 0,86) nos idos de 1994, marco zero do Plano Real, está valendo menos de um terço do que valia há 24 anos.
Ou, seja, comparado com a moeda internacional mais cotada no mundo, o real perdeu mais de 200% do seu poder de compra original, coisa que se reflete nas trocas internacionais do Brasil, inclusive na cotação dos títulos que o governo brasileiro coloca no mercado de capitais para financiar a dívida pública, cujo montante se aproxima do total do Produto Interno Brasileiro.
O ex-governador cearense Ciro Gomes (PDT) bateu nessa tecla durante a campanha eleitoral do primeiro turno: metade do Orçamento federal está comprometido com o pagamento de juros e amortizações da dívida. Não é por acaso que investidores estrangeiros estão comprando empresas brasileiras ou ocupando espaços econômicos que poderiam ser preenchidos por capitais nativos.
O interesse público é um clichê jogado no lixo.
O resultado de toda essa brutal desigualdade é visível nas ruas, onde se amontoam os pobres diabos que tentam tirar o sustento do lixo descartado pela sociedade estabelecida.
LEMBRETE DE OCASIÃO
“Existe um povo que a bandeira empresta
P’ra cobrir tanta infâmia e cobardia!…
E deixa-a transformar-se nessa festa
Em manto impuro de bacante fria!…
Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta,
Que impudente na gávea tripudia?
Silêncio. Musa… chora, e chora tanto
Que o pavilhão se lave no teu pranto!
Auriverde pendão de minha terra,
Que a brisa do Brasil beija e balança,
Estandarte que a luz do sol encerra
E as promessas divinas da esperança…
Tu que, da liberdade após a guerra,
Foste hasteado dos heróis na lança
Antes te houvessem roto na batalha,
Que servires a um povo de mortalha!”
Trecho do poema Navio Negreiro, de Castro Alves (1847-1871).
O plano
Os dois candidatos que disputam o segundo turno na eleição para o governo do Rio Grande do Sul no dia 28 de outubro tem a mesma âncora para estabilizar as finanças do Estado: o Programa de Recuperação Fiscal.
Os dois fazem propaganda enganosa a respeito deste assunto.
Sartori dá a entender que o plano é seu (“Nós temos um plano”) e que já está aprovado.
Eduardo Leite diz que é favorável ao plano, “que é do governo Temer”, e que vai “sentar com o próximo presidente” e negociar condições mais favoráveis.
O Programa de Recuperação Fiscal resulta de um projeto do governo Temer, aprovado e transformado em lei pelo Congresso Nacional.
Na lei estão as regras e as condições para a adesão dos Estados, que pleiteiam a suspensão do pagamento das dívidas com a União por três anos, renováveis por mais três.
O Estado negocia há dois anos e meio e ainda não conseguiu cumprir as principais exigências do Programa, que é a privatização de estatais e o grau de comprometimento da receita líquida com pessoal.
Tanto Sartori quanto Leite apostam que, uma vez eleito, qualquer um deles terá respaldo para remover rapidamente os entraves e obter condições para assinar a adesão do programa.
Não levam em conta que a partir do dia 28 haverá um novo presidente eleito e que esse fato há de condicionar todos os atos do governo até o fim do ano.
A partir de janeiro haverá um novo governo se instalando e numa situação crítica. E há 16 estados querendo aderir ao Programa de Recuperação Fiscal.
Se for Haddad, uma de suas propostas é revogar as medidas de ajuste fiscal adotadas por Temer. Nada leva a crer que levaria adiante esse programa.
Se for Bolsonaro, as chances são melhores, mas nada garante que o socorro aos estados será uma prioridade. Sem falar que o governo vai começar com o presidente no hospital, passando por duas cirurgias…
Quanto à “sentar com o novo presidente para negociar melhores condições” é mero jogo de palavras. As regras estão na lei, não é o presidente que decide.
É preciso esvaziar os bolsões ignaros onde prosperam os ”sem noção”
Geraldo Hasse
Embora o eleitorado tenha se inclinado para o lado direito no primeiro turno das eleições de 2018, o Brasil possui um arcabouço democrático que, mesmo manipulado pelo poder econômico em conjunto com setores dos poderes judiciário e legislativo, deverá proteger os direitos elementares dos cidadãos até que passe o surto autoritário de tendência fascista, esse sim preocupante, porque resulta de uma combinação da ignorância política com diversas carências (afetivas, econômicas, sociais) exploradas por muitos detentores de mandatos eleitorais, por pregadores religiosos e, economicamente, pelos empreendedores privados e seus operadores no Mercado, tudo isso embalado maliciosamente pelos veículos de comunicação de massa, com honrosas exceções.
Brigar com a onda cansa, mas também não é recomendável ficar parado.
É preciso desarmar os gatilhos teóricos e automáticos que tangem as pessoas para um confronto em que a civilização tende a ser vítima de barbaridades encaminhadas pela intolerância.
Sem delongas, dado o adiantado da hora, eis alguns lembretes tão óbvios que não cabe sequer discuti-los:
- A reforma da Previdência é necessária mas não pode ser feita de afogadilho, como pretendeu fazer o atual governo presidido por Michel Temer, que superou Fernando Collor e Fernando Henrique Cardoso em submissão às demandas do poder econômico.
- A reforma trabalhista, fruto do imediatismo empresarial, precisa ser revista porque está lesando os direitos de milhões de pessoas, enquanto o aumento da informalidade no mercado de trabalho mina os alicerces da Previdência Social.
- Feita com cautela e grandeza federativa, uma reforma tributária faria bem a todos, mas precisa favorecer a base da pirâmide social.
- Uma reforma político-eleitoral deve necessariamente incorporar os instrumentos eletrônicos (internet) como mecanismo de consulta popular, pois não basta votar apenas de dois em dois anos.
- A economia não vai crescer com achatamento salarial e redução do poder de compra dos trabalhadores.
- Se os trabalhadores ganharem menos do que ganhavam, as consequências serão evidentemente cumulativas: queda geral do consumo, estagnação da economia, menos lazer, mais doenças e sobrecarga dos serviços públicos de saúde, onerando quem mais precisa de amparo do Estado.
- Não tem futuro uma economia em que as pessoas são obrigadas a trabalhar por salário vil, sem garantias e sem esperança de progredir na vida.
- Não haverá paz e harmonia numa sociedade rachada pela desigualdade social, cultural e econômica.
- O estado democrático de direito é o pressuposto básico do exercício da liberdade pessoal em busca da justiça social.
- Ultimamente disfarçado como neoliberalismo, o fascismo é uma doutrina excludente que se nutre do egocentrismo, da frustração, da inveja e da intolerância.
A comparação imposta pelo primeiro turno entre os dois candidatos presidenciais é absolutamente desigual. Pode-se argumentar que ambos são seres humanos sujeitos a equívocos, disparates e hesitações, mas o Brasil não merece ser governado por um destemperado que acredita no castigo, na violência e na ordem unida como método de gestão de pessoas, algo só admissível em comunidades sujeitas a regulamentos rígidos, como acontece em instituições militares ou religiosas, nas quais preponderam a disciplina e a hierarquia.
Por isso crescem as manifestações de medo de um retrocesso político partindo do lado direito do espectro político.
Em termos nacionais, se vencer, o temperamental de Bolsonaro tende a precipitar um governo militarizado em que os “sem noção” se sentirão no direito de praticar a violência contra os adversários políticos e até, gratuitamente, contra alvos habituais como os gays, os índios, as mulheres, os negros e os quilombolas. A eleição do radical de direita poderá ser bom para minorias privilegiadas, não para a maioria.
Em contrapartida, se ele perder, seu inconformismo, “revolta” ou o que seja podem desencadear uma onda de atos de “vingança” para “descarregar” a frustração pela derrota. Por isso é preciso atentar para o ditado segundo o qual “cautela e caldo de galinha não fazem mal pra ninguém”.
Já o estilo Haddad, para se impor, precisa passar um mataborrão sobre os erros praticados por seu partido no exercício do poder. De forma sutil, alguma autocrítica já está rolando. Até que ponto irá, não se sabe.
Tampouco é possível imaginar o resultado desse jogo sutil em que se defrontam, grosso modo, um membro da caserna e um representante da academia. Infelizmente, as duas campanhas se tornaram um tiroteio municiado por marqueteiros.
Olhando para cada um dos candidatos, porém, não resta dúvida de que o centramento do professor Haddad inspira mais confiança do que os rompantes do capitão Bolsonaro.
O resultado final só veremos na prática, tal é o risco da democracia.
LEMBRETE DE OCASIÃO
“O renascimento militar, inequivocamente inspirador da candidatura (do marechal) Hermes da Fonseca, adquiriu maior consciência com a campanha civilista, que negava ao homem de farda a presença na política, em manifesta contradição com o quadro republicano”.
Raymundo Faoro em Os Donos do Poder, vol 2, pag 600 (Editora Globo, 3ª edição, 1976), referindo-se aos confrontos políticos de 110 anos atrás, em plena República Velha.
Facadas
O assassinato do mestre de capoeira Moa do Katendê pode ter, no segundo turno, efeito semelhante, mas inverso, ao da facada que feriu Bolsonaro no início da campanha.
O atentado ao candidato foi um fator decisivo para a escalada final que quase o elegeu no primeiro turno. Inclusive por lhe dar uma justificativa plausível para sua ausência nos debates, onde seria difícil esconder o seu despreparo.
As 12 facadas que abateram mestre Moa foram dadas pelas costas, depois de uma discussão banal com um eleitor de Bolsonaro, quando o resultado do primeiro turno já era conhecido.
O candidato diz que não pode ser culpado por um ato, que ele considera “um excesso”, praticado por um eleitor seu no calor de uma rixa política.
Não há, porém, como dissociar os dois crimes do discurso de intolerância, da violência dos gestos e da linguagem do candidato que fala em “metralhar a petralhada” ou armar a população para enfrentar a bandidagem.
A médica Tereza Dantas, de Natal, que rasgou a receita de um paciente quando descobriu que ele havia votado em Haddad expressa o mesmo comportamento, que não reconhece o outro e só sabe lidar com ele quando o transforma em inimigo.
Quando rechaça a proposta de Haddad para um acordo contra as fake news na campanha, numa reação grosseira, chamando-o de “pau mandado” e de “canalha”, Jair Bolsonaro não está fazendo outra coisa senão semear a violência como tática de campanha.
É daí que vem o que ele considera apenas “excessos”, embora sejam práticas fascistas, intoleráveis.
A morte de Mestre Moa, figura querida e respeitada na Bahia, com discípulos em todo o país, chocou e provocou pronunciamentos candentes de figuras notáveis como Caetano Velos e Gilberto Gil.
O fato brutal ainda está repercutindo e terá novos desdobramentos, podendo ter efeitos nesta campanha, contribuindo para que os brasileiros acordem e percebam aonde leva esse caminho da militarização da política.
Coriscos no céu da pátria
GERALDO HASSE
Seja lá como vai terminar esta estranhíssima campanha eleitoral, a liderança do deputado carioca Jair Bolsonaro nas pesquisas de intenção de voto nos faz lembrar de coriscos políticos que riscaram o céu da pátria em momentos críticos de nossa história.
Primeiro foi o histriônico Janio Quadros, eleito em 1960 e renunciante após sete meses em Brasília, onde colocou de lado a vassourinha anticorrupção e passou a buscar a saída dentro de uma garrafa.
Depois foi Fernando Collor, que renunciou para não ser demitido pelo Congresso após dois anos e meio (1990-1992) de um governo fissurado por medidas radicais como o confisco das contas de poupança popular, a abertura às importações e o fechamento de empresas estatais.
Dois anos atrás, a primeira mulher a presidir o Brasil foi tirada do cargo por um movimento político inspirado numa campanha de moralização da administração pública, cuja cúpula foi oportunisticamente acusada de se deixar contaminar pelo vírus da corrupção empresarial-privada. Nada de novo no tric tric do poder.
O nome oficial dessa campanha é Operação Lava Jato, liderada pelo Ministério Público, com apoio da Polícia Federal e o respaldo do Poder Judiciário e da Mídia.
Seus alvos principais são os governos do PT e seus aliados políticos (PMDB, PP e siglas menores) e parceiros empresariais, especialmente empreiteiras de obras públicas encomendadas por estatais.
Desde o início, a Operação Lava Jato foi comparada à Operação Mãos Limpas, realizada na Itália há cerca de 30 anos com o objetivo explícito de extirpar a influência da Máfia sobre a administração pública.
Muita gente boa (“tutti buonna gente”) foi presa na Itália mas, alguns anos depois, ascendeu ao poder a figura do empresário da mídia e cartola do futebol Luigi Berlusconi, ainda por cima envolvido em escândalos sexuais.
Segundo algumas interpretações veiculadas pela mídia, Berlusconi seria a ressaca após o porre moralista da Mãos Limpas.
Um risco semelhante ronda o Brasil na figura do deputado carioca Bolsonaro que, desde os ataques verbais à deputada gaúcha Maria do Rosário (“Não te estupro porque Você é feia”), passou a encarnar a figura emblemática do tosco, irado, primário, desequilibrado, machista, atrasado, racista etc.
Sua candidatura à Presidência parecia uma simples bravata de alguém buscando “aparecer”. Meses depois, ei-lo liderando as pesquisas de intenção de voto, ungido recentemente por um atentado que o manteve fora dos debates de TV.
Em resumo, o Brasil está na iminência de colocar no Planalto um corisco visivelmente despreparado para o cargo.
O fato emergente é que, agora começa a ficar claro, ele não está sozinho nessa parada. Por trás de sua campanha há um estado maior que pouco aparece enquanto seu candidato a vice, o general Mourão, solta faíscas em palestras pelo Brasil e o seu assessor econômico, Paulo Guedes, ameaça vender o que resta das estatais brasileiras.
A situação é tão paradoxal que, paralelamente à ascensão do ex-militar carioca, vem crescendo outra figura emblemática, o “promoter” paulista João Dória, que se elegeu prefeito de São Paulo e quer ser governador para, então, se lançar à Presidência — tudo isso em vôo solo, à revelia dos colegas de partido.
Alguém poderá argumentar que tais aberrações políticas são próprias do subdesenvolvimento cultural que caracteriza o Brasil, mas cabe perguntar se não está na hora de excluir do cenário essas figuras que, frequentemente ancoradas em alguma religião ou rede de TV, ocupam cargos públicos para alavancar posições no mundo dos negócios.
Afinal, a política é a convergência das melhores ideias em favor do bem comum. Pregar retrocessos, desprezando direitos elementares das pessoas, é o fim da picada.
LEMBRETE DE OCASIÃO
“Estamos vivendo um momento muito rico no Brasil: em pleno exercício da democracia, corremos o risco de cair no totalitarismo”
Donaldo Schüler, 86 anos, professor aposentado de literatura na UFRGS e autor de vários livros sobre as irradiações da cultura grega sobre o mundo moderno
O tempo não é linear – ou a política que dá voltas
MARÍLIA VERONESE
Fecho os olhos e de repente sou de novo uma estudante de 21 anos e não mais esta professora de 50, que hoje escreve para não enlouquecer. Estou num comício do Lula em Porto Alegre, o ano é 1989, acho que o mês é setembro, mas pode me falhar a memória nesse devaneio… Olívio tem cabelo e bigode pretos, Tarso é um galã intelectual de baixa estatura, tem pouca mulher no palanque (tinha alguma? Já não lembro bem), todos cantavam “Lula lá” (o jingle da campanha), empolgados. A sombra do candidato da Globo, o “caçador de Marajás”, dissipava-se naquela empolgação. Iríamos eleger o primeiro presidente operário da história da nação. Viva! Que entusiasmo! CORTA.
Outra cena no mesmo ano, novembro; estudantes da PUC caminham em direção ao estacionamento daquela universidade. Classe média umas, média alta outras. Iam de carro pra faculdade (eu dividia carro com irmão e ia quando dava). “-Não estou gostando do rumo dessa eleição”, diz uma eleitora do Brizola. “-Eu devia ter votado no Brizola…” responde a outra que caminhava ao lado dela. “-Em quem tu votou?” pergunto eu, eleitora do Lula. “No Maluf”, responde a outra. Penso cá comigo, “Mas quem raios vota no Maluf e poderia votar assim, de sopetão, no Brizola?!” sem entender nada. Me calo. Ao final daquele dia, confirma-se: Lula e Collor estavam no segundo turno. Apertado. Brizola em terceiro, quase foi ele a duelar com Collor (AH! SE LULA E BRIZOLA TIVESSEM SE UNIDO, BATÍAMOS O COLLORIDO NO PRIMEIRO TURNO![1]) grito eu desatinada. [Mas cada um tinha seu próprio projeto de ser presidente e não abriria mão, não é mesmo?!] Bom, logo Brizola avisa que precisará engolir o sapo barbudo e declara seu apoio a Lula no segundo turno. Nova esperança. Vamos lá. Comício com multidão e cantoria. Muita gente esperançosa, ou seria iludida…? CORTA.
Na manhã da confirmação da eleição do Collor, saio de casa com a cara fechada. Amarro uma fita preta no braço, pra simbolizar o luto. Perdemos, não adianta, o Brasil nunca será justo. As elites e a classe média inculta e vil não deixam. Vou pro estágio de psicologia clínica comunitária no Campus Aproximado da PUC na Vila Fátima. Lá pelo menos posso fazer alguma coisa pelo povo da periferia. CORTA.
Tomo um susto, abro os olhos. Volto à minha pele atual e já tenho meio século de existência, que baque. Eleição presidencial novamente. O fascismo ronda, é ainda pior que em 89. Collor era um canalha, mas fingia discurso democrático, apesar de conservador e moralizante. Hoje – e me certifico de estar em 2018, olhando no espelho -, perdemos aquele mínimo pacto social de democracia, mesmo que fingido. Nem as aparências se salvam mais, ou tentam enganar. As pessoas deliram abertamente nas redes sociais, acham lindo ser violento e estúpido, acreditam em mentiras absurdas, acham que todo maluco por aí ter uma arma na mão vai solucionar a violência (mesmo que seja óbvio que vai agravá-la e muito). Candidatos a presidente exaltam o nome de torturadores que levavam crianças para ver a mãe ser brutalmente torturada. Seres ignóbeis dizem que é mentira. Onde estou? Será na mesma Porto Alegre que elegeu Olívio em 89, iniciando um ciclo de democracia participativa que nos botou no mapa do mundo com o Fórum Social Mundial, no início dos anos 2000? Fico tonta e tudo se confunde com David Gilmour cantando Wish You Were Here[2] ao fundo. Começo a cantar também. CORTA.
Acordo e aceito. Não, não é a mesma Porto Alegre. É uma cidade triste, emburrecida, esburacada. Não se abre mais para receber Noam Chomsky ou Vandana Shiva ou Boaventura de Sousa Santos. Tá mais pra convidar o Alexandre Frota (dou uma escapada de volta a 89 pra lembrar da Claudia Raia dizendo que o Collor era bem nascido e não iria roubar, ela que foi casada com o Frota) ou o Olavo de Carvalho. Tá mais pras madames cheias de botox que tomam Rivotril com Veuve Clicquot para espairecer, nos seus condomínios fechados, as bandeiras do Brasil penduradas nas sacadas (e fotos delas em Miami e Orlando em cima da bancada de mármore).
Essa é a nova estética. E toda a estética tem uma ética, como dizia Paulo Freire… ou era o contrário? A toda ética acompanha uma estética? Enfim. A estética atual é grotesca, agressiva, quer exterminar aquilo que não se acomoda bem em seu mundo de plástico e mármore, cheio de preconceitos e ódios. De gente que adora postar fotos em lugares lindos e de manter “boa aparência” na vitrine social dos “bem-nascidos”. Aliás, lembram quando se pedia “boa aparência” nos classificados de emprego?! Depois, graças ao pacto democrático mínimo que conseguimos estabelecer, isso ficou parecendo discriminatório. Todos têm direito a um emprego, a trabalhar e receber salário digno, mesmo quem não tiver a “apresentação ideal”. Discriminação é anticonstitucional… Gentes! Isso tá acabando, viram? Os anúncios de emprego voltarão a exigir “boa aparência”. E talvez peçam também por “mulheres de direita”, que seriam mais limpas, higiênicas e belas. E quem diz essas estultices está com boas chances de ser eleito pelo voto popular.
Quem são os culpados da hecatombe ético-estético-política por que passa o Brasil? Muitos acusam o PT, porque dizer “a culpa é do petê” virou o maior lugar comum nacional. Mas eu vejo essa culpa bastante diluída (e o petê tem parte dela, sim). Prefiro falar em responsabilidades a falar em culpa, e quando se pensa no que o maior partido do país virou, em nível nacional, é realmente preocupante. Como essa estratégia para as eleições presidenciais de 2018 foi traçada? Em plenárias democráticas com amplos debates e votações? Pelo que soube, foi por decisão pessoal de Lula. O dono do partido é um líder carismático adorado e inquestionável, aquele da tipologia weberiana. Instituições democráticas não podem funcionar assim.
Não nego que o cara é um fenômeno, realmente. De boia-fria a operário sindicalista a deputado constituinte e a presidente da república! Que pegou uma onda favorável na economia e fez programas sociais louváveis – embora dentro dos preceitos de uma economia neoliberal de mercado -, tirando milhões da miséria, levando água a regiões secas (o programa das cisternas é uma lindeza), abrindo a universidade para os pobres. Quem mais tem essa trajetória no Brasil? A da Marina é bonita também, mas como chegou a presidente, o Lula é o próprio self-made-man. Com ele, os pobres começaram a acreditar que era possível, que podiam ser o que quisessem, que podiam sonhar alto. Lideranças populares entre os catadores de material reciclável eram apontadas como possíveis futuros presidentes do Brasil e, obviamente, foi a figura do Lula que os inspirou a aspirar.
E foi aí que as elites do atraso, para citar Jessé de Souza, da rapina eterna desse país, acharam que bastava. Era preciso manter o esquema escravagista que os sustenta no topo da pirâmide social e podendo explorar os pobres à vontade, sem serem incomodados. A primeira coisa era destruir Lula como fonte de inspiração; demonizá-lo, destruí-lo moralmente. E começaram a campanha. Como a política no Brasil desde sempre se fez com conchavos, não demoraram a achar algum (quando seus políticos amigos participam, escondem-nos cuidadosamente). E foram pra cima, com tudo. Escarafuncharam toda a vida de Lula e nesse meio tempo criaram-se fakes a vontade, tendo o “Lulinha” sido apontado como dono de metade do Brasil, da Friboi etc. E as madames acreditaram em tudo porque convinha ao seu modo de vida, e botaram a bandeira do Brasil na janela, porque eram limpas, de direita e estavam longe da corrupção.
Os que fuçavam a vida financeira do Lula não achavam muita coisa, então um apartamento meio fuleiro no Guarujá-SP teria de servir, pronto (ué, mas ele não era o gênio do crime?!). Até barco de lata serviu. Criaram a onda, a mídia insuflou o ódio e pimba! Estava aberto o baú dos horrores e seus shows diuturnos.
E cá estamos, em outubro de 2018. Falta só um ano pra completar três décadas que me separam daquela menina que estudava psicologia e queria um mundo mais justo, porque tinha aprendido que era o certo, que a justiça para todos seria o ápice da humanidade. Justiça sempre foi a palavra que mais me encantou, tenho-a até tatuada na pele. Mas como foi que chegamos até aqui, mesmo?
Empresas de mídia de massa, com seus jornalistas coniventes, pusilânimes e puxa-sacos (“podemos tirar, se achar melhor”)[3]; partes do poder judiciário e legislativo, igualmente pusilânimes, desonestos e que impediram uma presidenta honesta, mas acusada de estelionato eleitoral, porque tinha de “servir a dois senhores”: o “mercado” que lhe exigiu Levy e o povo que lhe exigia seus direitos. O dinheiro acabou, ela tentou manter os direitos do povo, fez manobras fiscais e… sofreu deposição. Foi um golpe, porque não havia razões para isso. O que houve foi uma manobra de gente muito rica e poderosa usando palhaços e palhaças plastificados e com cabelo acaju, no congresso nacional e no senado federal, gente da pior qualidade cuja feiura e falta de ética foi descoberta no dia 17 de abril de 2016. Usaram ainda uma figura patética que volta e meia era possuída pelo demônio e girava camisetas no ar, e que na absoluta crise ético-estética do país foi alçada ao papel de “advogada brilhante”. Isso sem falar em juízes de piso medíocres e obcecadamente partidários. Como essa gente horrenda tomou conta? O que os artífices de um país mais justo e decente fizeram de tão errado? Como chegamos ao ponto crítico em que estamos?
Muito já se escreveu tentando responder; eu inclusive, aqui nesta coluna. Cursos foram ministrados em aulas na pós-graduação, Brasil afora. Teve racismo, teve machismo, teve classismo e demais preconceitos, de vários tipos. Mas teve também falta de visão para usar estratégias e ferramentas de comunicação com mais sabedoria, nomear um STF mais digno e competente (fico pensando no meu colega de Unisinos, o grande jurista Lênio Streck, sonho com ele entrando lá e chutando uma daquelas porcarias pra fora), dialogar muito mais com as bases e saber fazer mea culpa pública quando necessário, sensibilizando o povo e não permitindo que a pecha de “corrupto” colasse, ou seja, estratégia. CORTA.
Eu e muitos companheiros e companheiras que foram às ruas em 2016 e voltaram agora em 2018 pedíamos, desde a farsa do impedimento-golpe, que se formasse uma frente ampla democrática, do centro à esquerda do espectro político (podendo incluir uma eventual direita democrática, que eu estou achando que nem existe no Brasil), para salvar um projeto de Estado democrático de direito. Uma sociedade alinhada com os valores dos objetivos de desenvolvimento sustentável, que sucederam os objetivos do milênio da Organização das Nações Unidas. São dezessete e podem servir de horizonte normativo para sociedades democráticas, para orientar sua norma jurídica. Coisas como “acabar com a fome, alcançar a segurança alimentar e melhoria da nutrição e promover a agricultura sustentável; acabar com a pobreza em todas as suas formas, em todos os lugares; tornar as cidades e os assentamentos humanos inclusivos, seguros, resilientes e sustentáveis; alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas”… e por aí afora. Conheça os demais no site abaixo, nesta nota rodapé[4]. Se o coiso ganhar, nos afastaremos cada vez mais de todos eles.
Mas não foi possível fazer a frente democrática (afinal, como em 89, cada qual tinha seu projeto de poder ou presidência, não é?) e os que não quiseram compô-la têm responsabilidade nessa tragédia que vivemos. E ainda pode piorar muito. Querem nomes? Só alguns, completem a lista: Lula tem culpa, Ciro tem culpa, Marina tem culpa, FHC tem culpa. Esperávamos mais de todos eles. Esperávamos a frente democrática capaz de criar um novo pacto social para substituir o da Nova República, depois de 30 anos. Não sou mais aquela menina de 20 anos. Não tenho mais aquela sensação de ter toda a vida pela frente. Militei pelas Diretas Já aos 16 anos, estreando naquela ocasião em passeatas, quase sempre violentamente reprimidas pelas cacetadas e bombas da BM, mesmo quando pacíficas (aliás, quando a recomendação da ONU vai ser seguida e as polícias desmilitarizadas e democratizadas?).
Domingo passado (29/09/18) fomos às ruas bradar por decência, justiça, dignidade, por mais amor e menos ódio, por direitos iguais para todos, por liberdade, que são alguns dos sentidos do #elenão. Estávamos alegres e esperançosas. As pesquisas da semana, manipuladas ou não (e não o podem ser em demasia, ou os institutos perdem a credibilidade), foram balde de água fria. Parece que o Brasil das horrorosidades, das aberrações ético-estético-políticas está na frente. E podem eleger a vilania e a barbárie, enterrando pactos democráticos, ou prendendo-os em masmorras com Brilhante Ustra montando guarda. CORTA.
Respiro profundamente. Se eles têm espíritos sinistros e sombrios, nós temos os espíritos da luz nos guardando. Marielle encarnará em cada jovem mulher que no dia 29 de setembro foi às ruas, e com ela mais e mais flores brotarão do asfalto. Os netos de Chico Buarque também são compositores…, porque apesar daqueles todos, amanhã vai ser outro dia. A vida se reproduzirá e trará novas perspectivas de ação. Novas gerações de amantes da justiça crescerão e a buscarão incansavelmente; e a potência disso tudo haverá de trazer melhores dias de novo. O pacto será resgatado da masmorra. CORTA PRO FUTURO.
Nos aguardem. A gente já chega já!
Referências
[1] No primeiro turno, Fernando Collor teve 20,6 milhões de votos (o equivalente a 28% do total). Lula teve 11,6 milhões de votos (16,08% do total), conquistando a vaga do segundo turno numa disputa apertada com Leonel Brizola, que obteve 11,1 milhões de votos, apenas 454.445 a menos (cerca de 0,5% do total de votos). Fonte: http://memoriaglobo.globo.com/programas/jornalismo/coberturas/eleicoes-presidenciais-1989/o-primeiro-turno.htm
[2] http://www.youtube.com/watch?v=IXdNnw99-Ic
[3] http://www.cartacapital.com.br/blogs/midiatico/podemos-tirar-se-achar-melhor-podemos-2154.html
[4] http://nacoesunidas.org/conheca-os-novos-17-objetivos-de-desenvolvimento-sustentavel-da-onu/
Espectro verde-amarelo
No início do ano, a lógica política indicava dialeticamente que a tendência conservadora do eleitorado brasileiro se fixaria na figura do candidato católico que governou São Paulo nos últimos anos.
Surpreendentemente, o tal Chuchu não decola. A dez dias das eleições, não foi além de 8% das intenções de votos declaradas em pesquisas.
Abaixo dele estão Marina Silva, Alvaro Dias, Amoedo e Meirelles. Juntos, os quatro não somam 12%.
O jurista Miguel Reale Junior, profeta do último impeachment presidencial, fez as contas e tentou criar uma candidatura única em lugar das cinco acima. Era uma jogada pró-Chuchu, mas deu em nada.
Sem conseguir um aliado civil para o cargo de vice, agregou à sua chapa um general da reserva que, subversivamente, prega a intervenção militar no governo.
Estariam os brasileiros com saudade da ditadura militar? Pode ser, mas com que base? Já se passou tanto tempo que a maioria da população não possui uma avaliação correta daquele período encerrado em 1985/88.
Tampouco se tem noção de onde pode parar um governo inspirado na doutrina militar, que se fundamenta no uso da força para eliminar os inimigos.
A pergunta que fica no ar é: se no mundo o Brasil vive uma situação de paz, quem dentro do país seriam os inimigos dos militares? Os artistas, para começar? Mais importante ainda, quem seriam seus amigos de verdade? Os banqueiros, talvez. Os fabricantes de armas, com certeza. E qual seria o partido político do fundo do coração dos militares, se a eles fosse permitido filiar-se? Direita, esquerda ou centro? Ora, ou são de direita ou de centro; não se conhece um militar que se declare de esquerda.
Como lembrou o jornalista Antonio Martins no site GGN, vivemos uma situação paradoxal: a maioria da população desaprova as principais medidas do governo Temer, que arde no inferno da mais profunda impopularidade, mas está prestigiando os candidatos que apoiaram o impeachment da presidenta Dilma e se dispõem a levar adiante reformas antidemocráticas.
É verdade que as coisas ainda estão confusas. A uma semana da eleição, nenhum candidato chegou a 30% das intenções de voto. Porém, somando as tendências das correntes de direita e de esquerda, a vantagem é da primeira, com mais de 40% dos votos. Mesmo que a chapa militar caia por sua absurda incivilidade, a tendência majoritária é que seus eleitores migrem para algum candidato de pendor autoritário.
A menos que ocorra uma reviravolta inesperada, temos então em perspectiva a continuidade e o aprofundamento do golpe político que há dois anos e meio afastou a presidenta eleita em 2014. Isso, focalizando apenas a Presidência da República.
Uma análise completa dos desdobramentos do atual quadro político precisa considerar o resultado das eleições para os governos estaduais e a nova composição da Câmara e do Senado, onde, aparentemente, haverá pouca renovação dos mandatos.
Há portanto dois perigos visíveis no horizonte político brasileiro. O primeiro é que o extremista militarista vença as eleições presidenciais e passe a praticar suas ameaças, bravatas e promessas. Como ele não tem equilíbrio para governar, a tendência é que transfira as responsabilidades para terceiros, seu vice em primeiro lugar.
Um governo de extrema direita é algo sinistro em todos os sentidos. “Na dúvida, lembre-se de que um governo autoritário serve mais às elites do que ao conjunto da sociedade”, escreveu a economista Laura Carvalho, professora da Universidade de São Paulo, em artigo em que sintetiza o governo Pinochet, que ficou no poder por 16 anos no Chile.
O segundo perigo é que o candidato da Esquerda seja eleito e, sem maioria no Congresso, logo comece a escorregar nas cascas de banana jogadas pela mídia branca a serviço do famigerado Mercado, que é elitista, globalizado e essencialmente antidemocrático. Ou, seja, a mecânica do golpe pode se manter ativa operante, contra a vontade majoritária do eleitorado.
LEMBRETE DE OCASIÃO
“Estávamos numa caminhonete robusta, na companhia daqueles homens a quem nunca tínhamos visto e cujas maneiras e aparência eu nunca imaginara que viesse um dia a ver de perto. Nenhum deles usava farda ou qualquer signo exterior que revelasse sua função. Tampouco a caminhonete era uma viatura de polícia que pudesse ser reconhecida como tal. Isso emprestava aos seus modos decididos mas vulgares um ar sinistro. Depois de rodarmos por muito tempo por ruas de São Paulo, vimo-nos pegando uma grande estrada. Quando pedimos explicação para esse fato, eles nos disseram com rudeza que não tínhamos o direito de fazer perguntas. Mas conversavam entre eles sem procurar esconder que rumávamos para o Rio.”
Caetano Veloso na página 351 do livro Verdade Tropical(Companhia das Letras, 1997), contando o dia de sua prisão, com Gilberto Gil, em 27/12/1968, duas semanas após o AI-5.
O voto anti-PT vai para Ciro Gomes
Haddad e Ciro disputarão o segundo turno. Bolsonaro alimentou o ódio ao petismo. Não avança mais simplesmente porque ninguém confia nele, nem no vice, sedento pra acabar com a democracia. Aliás, um não confia no outro. General Mourão foi desautorizado a participar de debates entre os vices. Patacoada sem fim.
Além do mais, os empresários não confiam em Bolsonaro, nem os banqueiros, tampouco a imprensa, as Forças Armadas, ninguém confia. Acham que ele é o Jânio Quadros piorado, o Collor em P&B. Quem tem muita grana guardada não quer mais saber de medidas tresloucadas.
Alguns notáveis anti-petistas já declararam que não votam em Bolsonaro – Arnaldo Jabor, Claudia Raia, Reinaldo Azevedo, Fernando Henrique Cardoso. A pá de cal foi a manifestação da jornalista radical anti-petista Rachel Sheherazade. Disse que, “como mãe, não poderia apoiar o ódio”.
Podem não admitir publicamente, mas os anti-petistas apostarão todas as fichas em Ciro Gomes, o único capaz de fazer frente a Haddad. Os conservadores irão optar pelo voto útil, naquele que tem mais condições de vencer o PT.
E Alckmin? Está inerte, quase morto, atropelado por inúmeras acusações de desvio de dinheiro públicos que pesam contra suas administrações e contra os caciques do PSDB. O velho Meirelles tira onda com ele, sugeriu que Alckimin desistisse da candidatura e o apoiasse. Os ‘mui’ amigos do tucano já avisaram que a debandada é certa.
Bolsonaro tem apoio daqueles pastores vidrados nos “bezerros de ouro”, como alertava Brizola; sustenta abertamente o ódio a tudo que é diferente e a todos que discordam dele; é um crítico do bolsa família mas não vê problema no uso do auxílio moradia pra pagar prostituta; brada contra a corrupção mas aceita 200 mil em propina de empreiteira através do partido; acha que mulher, negro e índio são inferiores aos homens “bem-nascidos” – seja lá o que isso quer dizer – e que o sangue dele é melhor do que o de um gay – defendeu isso na tevê, acredite -; acha que mulher tem que ganhar menos porque engravida; o cara é a favor da tortura e lamenta que a ditadura militar não matou mais!
Os eleitores convictos do Bolsonaro provavelmente aprovam tudo isso. E ninguém vai mudar esse conceito deles. Mas não são maioria. Aliás, fazem parte da minoria da população que o seu candidato tanto despreza.
Cobertura
A eleição mais eletrizante desde a redemocratização merece pífia e burocrática cobertura jornalística.
O noticiário limita-se a um registro insosso do que dizem os candidatos e de suas andanças, o que é uma repetição do que está no horário eleitoral no rádio e na tv.
As entrevistas, mesmo aquelas pomposas com dez perguntadores, ficam ao nível do noticiário superficial, de onde os repórteres tiram suas perguntas. A falta de informação é encoberta pela agressividade, quando se trata de certos candidatos.
Os debates, com sorteio de questões e de quem pergunta para quem, lembram os primórdios dos programas do Silvio Santos, sem a animação do auditório.
As restrições impostas pela Justiça Eleitoral, que a imprensa aceitou passivamente, contribuem, certamente. Mas longe de justificar a falta de jornalismo num momento em que a democracia mais precisa de informações confiáveis.
Fica evidente a falta independência para abordar certas questões. Não falta inteligência, falta liberdade. Exceções confirmam a regra.
É por isso que a melhor cobertura da eleição está sendo feita pelo espanhol El Pais, em sua edição para o Brasil.