MÁRCIA TURCATO/ Viva a polarização!

Márcia Turcato

Bater na polarização e defender uma opção com nomes já conhecidos significa uma forma disfarçada e covarde de defender o inominável, inelegível e apenado.

Polos opostos. Norte e Sul. Não é à toa que a geografia mostra o antagonismo natural do planeta Terra. Hemisfério Norte e Sul. Ocidente e Oriente. Porque na geopolítica seria diferente?

Alguns veículos de imprensa, e também jornalistas em seus blogs, têm usado a palavra “polarização” na política como se fosse um palavrão. Como uma coisa condenável. Mas os opostos facilitam nossa vida, mostram com qual polo nos identificamos.

Vejo no linkedin, e também em outras redes sociais, a polarização ser esmurrada até ser colocada em nocaute a favor de uma tal saída pelo meio. Essa saída se mostra liderada pelo deputado federal Aécio Neves, o mesmo que deu início ao golpe de estado legalista contra a presidenta Dilma Rousseff ao questionar no TSE o resultado das urnas, e também por Michel Temer, ex-vice presidente, que deu o empurrão para o golpe seguir em frente ao tornar pública uma carta em que se queixava do comportamento da presidenta.

Com sessões plenárias contínuas, seguindo a técnica do torturador de abalar a vítima com interrogatórios ininterruptos, o golpe contra a presidenta democraticamente eleita foi concretizado, abrindo as portas das instituições brasileiras a quatro anos de descalabros conduzidos pelo inominável, inelegível e agora apenado. Sob sua presidência, as instituições foram militarizadas, as vítimas da covid-19 foram ridicularizadas, medicamentos nocivos à saúde foram comprados e ministrados, a legislação foi mudada para facilitar a aquisição de armas de fogo, jornalistas foram perseguidos e agredidos, a ciência foi atacada, eleitores foram barrados na hora de votar e negociatas ainda sob investigação foram realizadas, algumas culminando na venda de presentes dados ao Estado. A lista é grande, acrescente aqui outras delinquências cometidas pelo apenado.

Como não louvar a polarização? Do outro lado, temos um presidente eleito pelo voto popular e que tirou novamente o país do mapa da fome, vai alterar o imposto de renda para livrar do pagamento quem ganha até R$ 5 mil, ampliou os atendimentos feitos pelo SUS, ampliou o número de pessoas empregadas, determinou a igualdade salarial para homens e mulheres na mesma função, fixou a meta de desmatamento zero para a Amazônia, elevou o PIB para 4,1%, criou vários programas para pessoas em situação de vulnerabilidade e incentiva a cultura e o esporte. Acrescente aqui outras excelentes ações do governo. A lista é grande.

É impossível admitir a crítica à polarização e a defesa de uma opção dita mais palatável. Não existe essa possibilidade no atual momento político que o Brasil vive. As tais possíveis opções mais palatáveis defendidas por parte da imprensa são Aécio Neves, Michel Temer, Eduardo Leite (governador do RS), Tarcísio de Freitas (governador de SP),  Romeu Zema (governador de MG) e Cláudio Castro (governador RJ), todos eles simpatizantes e/ou cabos eleitorais do inominável. E não sou que digo isso, são os próprios.

Bater na polarização e defender uma opção palatável com os nomes já conhecidos significa uma forma disfarçada e covarde de defender o inominável, inelegível e apenado.

Se fosse uma luta, Lula teria dado uma surra em Donald Trump

Os analistas da mídia ficaram cheios de dedos, mas os fatos são bastante claros.

O que aconteceu na Assembleia Geral da ONU foi o desdobramento  dessa guerra político-comercial entre Estados Unidos e Brasil, deflagrada com o tarifaço de Donald Trump, em agosto.

Pela primeira vez, ao invés de curvar-se às pressões de Tio Sam, o Brasil reagiu e, sem abrir mão das negociações, foi à luta e buscar alternativas para os produtos ameaçados, sem mudar o rumo das iniciativas que provocaram o ataque – o processo contra Bolsonaro e golpistas do 8 de janeiro, os acordos de cooperação comercial com a China e a regulação das big techs.

No primeiro mês, as tarifas de 50% impostas por Trump derrubaram em mais de 15% as exportações para os Estados Unidos.  Mas, no total, o pais conseguiu aumentar em 3% as suas vendas para o exterior.

Também não surtiram efeito as sanções a ministros e altos funcionários brasileiros: Bolsonaro e seus golpistas foram condenados e estão presos.  As pesquisas mostram que a opinião pública apoia a punição e é contra qualquer  anistia.

A regulação das big techs e redes sociais que operam no país, obstruida no Congresso, avançou pelo STF. E as relações comerciais com a China seguem florescentes, com acordos bilionários para investimento em infraestrutura e outras áreas. O comércio entre os dois países bate recordes.

Em síntese,  se é possível comparar esse embate com uma luta, o Brasil venceu sem dificuldade maior o primeiro round.

O segundo round, foi o que ocorreu na 80a. Assembleia Geral da ONU, nesta terça-feira, 23 de setembro de 2025.  E aí, se é válida a metáfora do pugilato, pode-se dizer que o Brasil deu uma surra.

Lula disse o que precisava ser dito. Não citou os Estados Unidos, nem Trump, mas  o recado foi claro, contra os autocratas, que tomam medidas unilaterais, os que querem interferir na soberania de outros países, os que apoiam as guerras e o genocídio…

Trump em seu discurso foi patético, falseando fatos, atacando a ciência, s. Foi duro com o Brasil, mas no trecho  mais agressivo interrompeu a leitura,  para dizer que não se sentia muito confortável em falar aquilo porque havia cruzado com o líder do Brasil nos corredores e havia gostado dele. “Nos abraçamos”.  E anunciou que combinaram uma reunião na próxima semana.

Dizer que “jogou a toalha” é exagero. Esse embate se dá num cenário internacional de alta instabilidade e muitos pontos de extrema tensão, impossível imaginar sequer quantos rounds terá a luta. Certo é que os dois primeiros, ganhou o Brasil.  O terceiro será a reunião de Lula com Trump, ainda não marcada.

 

PAULO KLIASS/Juros do trilhão

Por Paulo Kliass*

Longe de aparentar uma contradição, esta imagem evidencia a tragédia de um patamar de SELIC em 15%, provocando a morte de empresas, pessoas e projetos de mudança. E, por outro lado, ela também nos apresenta um projeto de política econômica em que o governo segue cavando lentamente a sua própria cova.

Já Fernando Haddad, no Ministério da Fazenda, mantém a ferro e fogo o garrote da austeridade fiscal a qualquer custo. Em sua verdadeira obsessão por limitar severamente a capacidade de gasto e investimento do Estado, o Professor do INSPER traça uma estratégia de imposição de limites, tetos, bloqueios e contingenciamentos que fazem corar os mais ortodoxos e monetaristas dos velhos (e nem tão velhos assim) tempos.

Suas adesões – tão inflexíveis quanto incompreensíveis – aos cânones do Novo Arcabouço Fiscal (NAF) têm impedido Lula de cumprir com suas promessas de campanha. Já estamos entrando em seu 33° mês do terceiro mandato, de modo que faltam menos de 14 meses para que ele consiga realizar “mais e melhor do que fez entre 2003 e 2010 e também tomar providências para fazer 40 anos em 4.

Ocorre que todo o esforço por ele desenvolvido para limitar as despesas orçamentárias se restringe à esfera das chamadas “contas primárias”. Pela metodologia do financês, isso significa que as contenções se limitam às contas não-financeiras.

Ou seja, as despesas financeiras, aquelas que se relacionam ao pagamento de juros da dívida pública, estas seguem livres e soltas para cresceram o que for do desejo dos responsáveis pela condução da política econômica do governo. Uma loucura!

É mais uma prova cabal de que os responsáveis pela administração pública seguem operando, de forma explícita e descarada, a favor dos interesses do topo de nossa pirâmide da desigualdade. As rubricas com políticas sociais vão sendo cada vez mais contidas e esmagadas pela lógica da chamada “responsabilidade fiscal”, ao passo que os dispêndios com o serviço dos títulos do endividamento público crescem a olhos vistos e sem nenhum instrumento de controle.

Juros seguem no comando

O BC divulgou há poucos dias seu Relatório da Política Fiscal relativo ao mês de julho. De acordo com a publicação, durante o sétimo mês do atual exercício foram dispendidos R$ 109 bilhões a título do pagamento de juros da dívida pública. Trata-se do segundo maior valor mensal desde que a série foi iniciada.

Esse montante só é um pouco mais reduzido do que os R$ 112 bi que foram gastos a este mesmo título em outubro do ano passado. Para se ter uma ideia da dimensão comparativa deste valor, basta relacioná-lo ao total que será executado com as emendas parlamentares o longo de todo o ano de 2025. De acordo com o estabelecido pelo Decreto 12.566, o total inicial previsto para os gastos a serem realizados pelo legislativo foram reduzidos de R$ 81 bi pra R$ 46 bi.

Assim, o que se depreende dos números é que, em apenas um único mês, o Estado brasileiro gastou com juros da dívida pública mais do que o dobro do que vai ser aplicado nas emendas parlamentares durante os 12 meses do presente ano. Aquilo que se considera como uma alocação equivocada e escandalosa de recursos públicos se revela como muito menos relevante do que os gastos realizados com os valores que são religiosamente pagos aos detentores dos títulos emitidos pelo Tesouro Nacional.

Considerando-se que julho contou com 23 dias úteis em seu calendário, o que se pode calcular é que foram pagos R$ 4,7 bi de juros em cada um deles. Ou seja, em apenas 10 dias de julho foram gastos valores que se equivalem ao total das emendas atribuídas aos 513 deputados e 81 senadores ao longo de todo o ano de 2025.

Ao mesmo tempo em que o governo corre feito maluco e se desgasta politicamente cortando recursos da saúde, da educação, da previdência social, da segurança pública, do reajuste do salário-mínimo, da assistência social e outros, o orçamento sem controle das despesas financeiras bate recorde atrás de recorde.

Ora, já se falou que governar é estabelecer prioridades. Neste caso, o mais relevante para o governo parece ser o atendimento dos interesses da Faria Lima, da Febraban e das elites de forma generalizada.

A rota vergonhosa

Computados os valores de julho, o total acumulado com o pagamento de juros em 12 meses segue se aproximando perigosamente da marca trágica de R$ 1 trilhão.

Entre agosto de 2024 e julho de 2025 esse valor somou R$ 941 bi. Se considerarmos apenas o período ao longo dos primeiros sete meses deste ano, o total com juros alcançou R$ 526 bi.

Esse valor é um pouco mais baixo do que o gasto com essa rubrica em igual período do ano passado – R$ 535 bi. Ocorre que a tendência é que as despesas nos próximos meses sejam mais elevadas do que o ocorrido nos últimos 5 meses de 2024. Afinal, naquele período a taxa oficial de juros esteve entre 10,75% e 12,25%, enquanto atualmente está em 15% ao ano. Como a SELIC é a principal remuneração de base para os títulos da dívida púbica, o mais provável é que o montante de juros seja ainda maior até o final do presente ano. Esta é a principal razão para que analistas considerem a possibilidade de que o total atinja marca trilionária em breve.

Ao longo deste terceiro mandato, o governo Lula já destinou ao pagamento de juros da dívida pública o equivalente a R$ 2,1 tri em 31 meses (janeiro de 2023 a julho 2025).

De acordo com dados da Secretaria do Tesouro Nacional (STN), o total destinado a esta mesma rubrica durante os 96 meses de seus dois primeiros mandatos (2003 a 2010) a valores presentes foi de R$ 2,6 tri.

É bem verdade que os números podem esconder a realidade de um estoque de dívida pública que cresceu entre os dois períodos comparados e também podem ocultar as variações distintas na taxa SELIC ocorridas ao longo dos anos.

Assim podemos utilizar o conceito do impacto do fluxo de juros pagos em relação ao PIB de cada ano. Neste caso, veremos que essa proporção alcançou uma média de 4,5% durante os oito anos dos mandatos iniciais. E que essa média anual sobe para 6,4% para o biênio 2023/24.

Ou seja, não apenas o volume de juros pagos cresceu em termos reais (descontada a inflação) na comparação tão proclamada por Lula durante a campanha eleitoral, mas também esse índice se elevou em mais de 42% em termos do impacto de juros sobre o Produto Interno.

Fonte: STN

A insistência em operar a política econômica mirando apenas no resultado primário tem provocado há mais de 3 décadas um enorme prejuízo na capacidade de o Estado brasileiro cumprir com suas obrigações constitucionais e oferecer serviços públicos de qualidade à maioria da população.

Além disso, ao priorizar o foco na busca de superávit nas rubricas não-financeiras, o setor público termina por promover uma auto redução na capacidade de investimento governamental, contribuindo para tornar impossível a promessa de Lula de realizar quatro décadas em apenas um mandato.

Esta impressionante distorção fica mais bem compreendida com a informação oferecida pela STN de que foram transferidos do Orçamento da União exatamente R$ 11,3 trilhões a título de pagamento de juros da dívida pública desde o início da série estatística em janeiro de 1997 até julho de 2025. Uma total insanidade!

Lula: assuma o comando da política econômica

Apesar do pouco tempo que ainda resta para as eleições e para a necessária reeleição, é essencial que Lula promova uma mudança de orientação em termos da essência e dos rumos de sua política econômica. Isso passa por definir uma meta de inflação mais realista (por exemplo 4,5% ao ano), com a retirada de argumentos do COPOM para manter a SELIC na estratosfera.

Além disso, é necessário romper com o dogmatismo ortodoxo e monetarista do NAF, liberando recursos do Estado para recompor as políticas públicas e para retomar a capacidade de investimento governamental em um Plano Nacional de Desenvolvimento (PND).

Isso significa redefinir o volume e a orientação das despesas financeiras, de modo a impedir que tal carga de juros de natureza parasitária e improdutiva impeça a realização das necessárias e urgentes despesas no setor real da economia e da sociedade.

*Paulo Kliass é doutor em economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal.

 

MARCIA TURCATO/Em Fux eu não confio

O Ministro Luiz Fux é um divergente. Um estranho no ninho. O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) é um alinhado golpista, ou um alinhado antidemocrático. Para usar um termo do próprio durante o julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro e sua quadrilha, “a mão precisa encaixar na luva” para que se caracterize um fato, a mão de Fux coube muito bem na luva de apoio a todos àqueles que atacaram a democracia, às instituições e depredaram patrimônio público tombado.

Apesar de todas as provas exaustivamente documentadas e expostas ao longo do processo, além de um vídeo exibido no dia do julgamento, o ministro negou todas as evidências para admitir responsabilidade penal somente para o general Braga Netto e o ajudante de ordens tenente coronel Mauro Cid. Aqui o ministro Fux admitiu o crime e pediu a condenação de ambos. Mas ele não admitiu a existência do crime para os demais réus, que agora podemos chamar de apenados.

Os ataques de Bolsonaro e sua equipe são anteriores a sua posse como presidente da República. Durante a campanha eleitoral, em 2018, ele já ameaçava fechar o STF e intimidava adversários políticos. Ao assumir a presidência, as ameaças eram quase diárias e passaram a ser também contra outras instituições públicas, além da imprensa. Seu governo foi totalmente militarizado, todos os órgãos passaram a ser dirigidos por militares, incluindo o Ministério da Saúde, nas mãos do general Passuelo.

Ou seja, ele colocou um militar em todos os postos estratégicos. Isso já era o início do golpe. Que só não se concretizou porque ele perdeu as eleições seguintes no voto. Mas não aceitou, insuflou seus seguidores para tentar explodir o aeroporto de Brasília e depredar o centro da capital da República no dia 12 de dezembro de 2022, dia da diplomação do presidente eleito Lula da Silva.

O apoio às manifestações violentas prosseguiram e culminaram com a depredação de órgãos públicos, incluindo o Palácio do Planalto e o STF, no dia 08 de janeiro de 2023. Tudo documentado, tudo filmado. As Forças Armadas recuaram e o golpe não se concretizou. E o ministro Luiz Fux não reconheceu os fatos e passou 12 horas lendo um arrazoado de falácias para fazer a defesa da turba. Não é à toa que o então aliado de Bolsonaro, Sérgio Moro, cunhou a frase “in Fux we trust” (em Fux nós confiamos).

O ministro deve explicações à sociedade. Um dia, espero, as motivações que o fizeram ser um divergente virão à tona em detalhes. E, talvez, seja a vez dele sentar no banco dos réus.

ELMAR BONES / Mino Carta, mestre de todos nós

Mino Carta não gostava de ser chamado de mestre, mas ele não foi outra coisa senão o grande mestre de duas gerações de jornalistas brasileiros, entre os quais orgulhosamente me incluo.

Tinha 24 anos, era um “foca” provinciano quando o conheci, em São Paulo, no curso da Editora Abril, em 1968. Ele formava a equipe que ia fazer a Veja.

Lembro de sua figura elegante, um Mastroiani, rumo à sua sala no fundo da redação, no sexto andar da Abril, onde ele reuniu uma seleção de editores de primeira linha: Sérgio Pompeu, Luís Garcia, Renato Pompeu, Raimundo Pereira, Sebastião Gomes Pinto, Leo Gilson Ribeiro, José Ramos Tinhorão, Carmo Chagas, Geraldo Mayrink, Ulisses Alves de Souza, Bernardo Kuscinsky, Roberto Muggiatti, Henrique Caban… Mino Carta regia aquele grupo, brilhante e heterogêneo, com  maestria.

Não era diretor de ficar no gabinete dando ordens. De portas abertas, discutia em voz alta, às vezes italianamente aos gritos, raramente perdendo o humor. Acompanhava todo o processo, da reunião de pauta ao fechamento. Em cima de sua mesa tinha sempre os diagramas, onde ia desenhando página a página da revista.

Fiquei quatro anos na Veja e posso dizer que ali me formei. Com Mino e aquele grupo, percebi o jornalismo, com suas responsabilidades, seus riscos e suas ilusões.

Não tínhamos proximidade e, nos últimos anos, nos encontramos esporadicamente. A última vez que fui a São Paulo, em julho, ele já não recebia visitas.

Como profissional, porém, acompanhei-o sempre, como uma referência segura e inspiradora, que ele foi e será sempre para todos os que exercem esse difícil e espinhoso ofício de “informar o que acontece”.

(Texto que escrevi a pedido do meu amigo Luís Augusto Fischer para a revista Parêntese)

Ruy, Jaguar, Verissimo, Mino Carta… logo agora?

Sempre achei que certas pessoas alcançam uma condição que se tornam arquétipos e não deveriam morrer ou, pelo menos, deveriam ter um prolongado tempo para servir de referência a muitas gerações, para que a evolução fosse mais rápida.

Claro, não é assim e cá estamos nós, no espaço de um mês,  diante da morte do Ruy Ostermann,  do Jaguar,  Luis Fernando Verissimo, Mino Carta…

A morte não os aniquila, ainda bem. Restam suas obras, seus ensinamentos, sua inspiração.  Mas logo agora?

Neste momento em que o Brasil vive o maior desafio de sua história perder alguns de seus melhores intérpretes! É sacanagem! (E.B)

Risco de guerra aberta na América Latina

HENRIQUE CASANOVA*

Sob o pretexto de combater o narcotráfico, os Estados Unidos decidem aumentar sua presença militar na América Latina.

A manobra visa reforçar sua dominância e influência em territórios tradicionalmente vassalos. O movimento
ocorre, porém, com políticas extremadas com as quais precisamos tomar muito cuidado.

Caça a Nicolas Maduro
Trump coloca a cabeça de Nicolas Maduro literalmente a prêmio, num episódio de relações internacionais que beira o absurdo para as tradições latinoamericanas.

As razões dessa tensão são, porém, há muito conhecidas. A Venezuela reúne dois fatores que a colocam em irremediável rota de colisão com os Estados Unidos: primeiro, ela possui as maiores reservas de petróleo
do mundo, mais até que a Arábia Saudita ou o Iran; segundo, o setor foi estatizado por Hugo Chaves em 2009 e até hoje as empresas norteamericanas não puderam se apropriar do importante recurso venezuelano.

É famoso o discurso de Trump, em 2023, num comício do partido Republicano na Carolina do Norte, onde ele diz que durante seu primeiro governo a Venezuela estava a ponto de colapsar e ele poderia ter se apropriado do petróleo, criticando o governo Democrata que ainda precisava comprá-lo.

Terrorismo na América Latina
Por outro lado, os EUA pressionam as legislações do continente, inclusive as do Brasil, a classificar as facções do crime organizado como “Terrorismo”.

Isso não é mero debate técnico. Segundo a lei dos Estados Unidos eles podem “legalmente” fazer intervenções militares em qualquer outra nação se a causa for o “combate ao terrorismo”.

Importante lembrar que mesmo em meio às turbulências do tarifaço ao Brasil, existe um exercício militar do exército norteamericano marcado para novembro na caatinga brasileira.

Por que agora?

É interessante pontuar os contextos dessa investida norte-americana contra nosso continente. Lembremos primeiro da retumbante derrota da Otan na Guerra da Ucrânia e de como os EUA parecem finalmente dispostos a cessar o
conflito sem que a Rússia tenha sido fragilizada economicamente.

Já no Oriente Médio, o Imperialismo norte-americano parece ter ficado surpreso com a capacidade destrutiva dos contra-ataques iranianos a Israel, de modo que o cessar fogo não deverá ser quebrado naquele conflito nos
próximos meses e quem sabe anos.
A questão do Taiwan, onde os EUA esperavam poder iniciar uma guerra por procuração contra a China, semelhante ao que fazem na Ucrânia contra a
Rússia, perdeu força em função do Genocídio em Gaza e a ideia de guerra aberta contra a China parece ter sido temporariamente abandonada pela Casa Branca.
É nesse contexto que os EUA voltam-se ao seu quintal, tentando garantir seus interesses na América Latina e, com presença militar, atrapalhar os negócios da China no continente além de, quem sabe, finalmente emplacar as desejadas trocas de regime nos países que tem mostrado maior resistência aos seus interesses (a Venezuela com seu petróleo, principalmente).

*Jornalista e Geógrafo

GERALDO HASSE / JÁ 40 ANOS

Algumas vezes brinquei com Elmar Bones quando ele voltava animado de um almoço com alguma figura importante do Rio Grande do Sul. Após ouvi-lo comentar a perspectiva de fazer uma grande matéria que talvez abrisse as portas para uma série histórica de reportagem ou até um livro, como tantos feitos por JÁ Editores no século XXI, eu lhe perguntava se, findo o papo, não houve clima para colocar na mesa o tema crucial da sobrevivência da imprensa alternativa. “Pra tratar disso seria necessário um segundo encontro… e depois outro”, ele dizia, certo de que um jornalista de verdade não pode carregar também, além do caderninho de anotações ou do gravador, um talão de nota fiscal. Era uma brincadeira com certo fundo de verdade.

A imagem do dublê de repórter/corretor de reclames é exagerada, especialmente na imprensa alternativa, mas vale aqui como ilustração do dilema do jornalista autônomo ou independente que precisa fazer das tripas coração para sobreviver ou, na velha metáfora futebolística, bater o escanteio e correr pra cabecear. É impossível fazer as duas coisas ao mesmo tempo, pois sabemos que boas ideias não remuneram o capital. Prevalece a picaretagem.

Todos nós estamos cansados de saber que não é fácil arranjar aliados e que poucos, muito poucos se dispõem a apoiar projetos editoriais de longo prazo. Sem parceiros, la nave no va. E aqui estamos vendo o JÁ peludiando pra se manter vivo.  E lá se foram 40 anos.

Façamos um exercício rápido de memória: quantas organizações genuinamente jornalísticas se mantêm vivas no Brasil? A maior parte sucumbiu ou está acuada economicamente nesse momento de transição tecnológica.

O JÁ faz parte de um grupo de blogues e sites nanicos que sobrevivem basicamente graças ao apoio de leitores, mas cabe lembrar que resta outro caminho possível para sustentar o jornalismo tal como foi ensinado nas faculdades e praticado em boas casas do ramo: é o cooperativismo, o único capaz de unir jornalistas, artistas, publicitários, acadêmicos, anunciantes e leitores na busca democrática de um mundo mais igualitário, sustentável e feliz.

Neste momento em que o fascismo bate nas portas ameaçando banir os direitos fundamentais, me apraz lembrar a experiência da Coojornal, fundada em agosto de 1974 por algumas dezenas de jornalistas e logo incorporando centenas de associados dentro e fora do Rio Grande.

Sim, nossa cooperativa teve dissenções internas mas faliu mesmo por ação da ditadura militar, que coagiu o mercado a deixar de apoiar aquele modelo singular de negócio. Agora que estamos sob o jugo das grandes plataformas tecnológicas inspiradas pelo ideário neoliberal, creio portanto que faz sentido pensar em formas cooperativas de criação e debate de informações e ideias.

PAULO BRACK / Quem ganha com a pressa na decisão sobre a mineração de areia no Guaíba?

A exploração de areia no rio Jacuí foi desastrosa e causou desbarrancamento e alterações na margem do rio, com prejuízos à vegetação ribeirinha. O IPH da UFRGS alerta para a necessidade de mais estudos para que este tipo de atividade, se possível, fique restrita a determinadas áreas. Mas estes estudos não foram realizados com o tempo e a profundidade necessários.

A pressa é inimiga da precaução. O lobby da mineração e da construção civil é pesado e esperava esta oportunidade. O  governo estadual tem que deixar de submeter a área técnica da Fepam e Sema para os negócios imediatistas de sempre. A SEMA perdeu e se desvirtuou quando foi incorporada, nos governos de Eduardo Leite, a área de Infraestrutura, como prioridade.

A linha neoliberal atual provoca descontrole de serviços públicos, o que já começou a ocorrer em 2017, com a extinção da FZB, FEE, CIENTEC, etc, e com as recentes privatizações de empresas públicas de água (Corsan) e energia (CEE).

Não é possível que se admita submeter ingerência política nos estudos técnicos do Zoneamento Ambiental do Litoral Norte, como ocorreu ha cerca de dois anos.

Não é possível que se admita o atual enfraquecimento dos Polígonos de Exclusão de Pulverização Aérea de Agrotóxicos, em Nova Santa Rita, deixando vulneráveis produção agroecológica em assentamentos e milhares de pessoas sujeitas a estes venenos.

Não é possível que se permita que o Setor da Celulose e Madeira elabore e conduza a aprovação, há poucos meses, de um novo Zoneamento Ambiental da Silvicultura, que recebeu severas críticas do corpo técnico da Fepam, do Ibama e de entidades ambientalistas, com risco de destruir ainda mais o que resta do Pampa.

Não é possível que se interrompa o necessário Zoneamento Ecológico-Econômico do RS, iniciado em 2017, congelado a partir de 2019, nos governos de Eduardo Leite, sem explicação que não seja, subliminarmente, não atrapalhar os negócios imediatistas da elite econômica do Estado, em especial a expansão das monoculturas de soja que já alcançam 6,7 milhões de hectares no RS.

Não é possível repetir a violência que ocorreu em 2020, na aprovação da flexibilização do novo Código Estadual de Meio Ambiente, submetido a regime de urgência em 2019, não permitindo sequer que o CONSEMA tivesse oportunidade de discuti-lo  à semelhança do que aconteceu com a mordaça imposta à área técnica da SEMA e FEPAM, resultando na perda de centenas de artigos e itens mais protetivos do Código anterior (Lei 11.520/2000).

Não é possível que o tema da mineração de areia, no curso d’água Guaíba, seja feito, mais uma vez, na pressa, tendo em conta, inclusive, a presença de metais pesados depositados em seu fundo. Vale a pena trazer metais pesados ao corpo d’água? Como ficarão a mata ciliar, os juncais, os sarandizais e a condição de pesca artesanal em suas margens?

Não é possível que se naturalize mais um processo apressado, como ocorreu nos regimes de urgência que resultaram na aprovação do PL dos venenos, do PL da irrigação, do PL da facilitação das podas de árvores para o cabeamento aéreo em prol das empresas de transmissão e distribuição de energia elétrica.

Não é possível admitir que setores econômicos possam seguir tendo supremacia sobre a área ambiental, contrariando a Constituição Federal, e submetam as políticas públicas a seu interesse imediatista, concentrador e destruidor do meio ambiente.

Este contexto de atropelos neoliberais, numa consulta de última hora, para um tema tão delicado da mineração de areia em um sistema profundamente complexo do curso de água Guaíba, poderá tornar-se em mais uma etapa para o desfazimento das políticas públicas ambientais ainda vigentes.

Um outro mundo é impossível quando a economia se desprende dos limites da natureza, como uma locomotiva sem freios, gerando destruição ecológica de grande dimensão e provavelmente sem volta para a qualidade socioambiental atual e futura do Estado do Rio Grande do Sul.

 

Paulo Brack
Professor, vereador de Porto Alegre

A solidão no poder: Lula contra todos os partidos

Paulo Baía *

O Brasil político de agora é uma máquina de fingimentos. Lula, no centro da engrenagem, governa com ministros que representam partidos que, na prática, não o apoiam. Ocupam espaços no Executivo, circulam com a liturgia do poder, mas no Congresso Nacional agem como sabotadores discretos. A base que o sustenta é a mesma que o solapa. A coalizão formal não passa de um corpo sem nervos, sem alma, sem fidelidade. É uma dança sem música entre o presidente e forças que não querem dançar, só arrancar concessões.

Essa encenação diz muito mais do que parece. Trata-se de uma forma de dominação que opera por dentro da institucionalidade, esvaziando-a de sentido. O presidencialismo de coalizão, antes pragmático, tornou-se um jogo de sequestro e resgate. O governante se vê obrigado a pagar resgates diários para manter o governo refém de pé. Ministérios são entregues como moeda de troca, mas não há entrega política em contrapartida. Há apenas o parasitismo elegante de quem finge governabilidade para manter as aparências enquanto o poder real escorre por entre os dedos.

Lula, nesse cenário, emerge como uma figura trágica: o político mais experimentado do país, com um vínculo afetivo profundo com os setores mais pobres da população, mas isolado no comando de um governo que é dele e não é. Um presidente que fala para o povo, mas é silenciado por um Parlamento que fala apenas para si. Ele carrega um mandato que lhe foi dado pelo voto, mas está cercado por forças que desconfiam do voto como expressão legítima da soberania popular. O Congresso atual é um espelho invertido da vontade coletiva: projeta um país que não existe e combate o país que existe.

Essa forma de operar o poder é mais do que cálculo. É uma cultura, uma prática social arraigada, uma antropologia do cinismo. Os partidos se tornaram agremiações negociantes, onde o conteúdo ideológico foi dissolvido na ambição por espaços. Não há aliança possível com projetos que desejam o colapso silencioso do próprio governo que integram. A política virou um mercado onde se vende estabilidade a preços exorbitantes e se entrega sabotagem com recibo institucional. A traição é sistemática, mas cuidadosamente protocolada.

O que torna essa situação ainda mais brutal é o fato de que não há exceções. Nenhum partido com representação no Congresso Nacional atua hoje com coerência em defesa do governo que ajudou a compor. Os que indicaram ministros estão mais interessados em benefícios orçamentários do que em apoiar efetivamente um programa de governo. Os que se dizem de centro apenas calculam seus ganhos em silêncio. E os que integram o Executivo se tornaram operadores do seu próprio projeto, divorciado da Presidência. Nenhum partido, de fato, se compromete com a travessia política de Lula. Todos, de maneira direta ou omissa, colaboram para a erosão de sua autoridade.

A resposta possível a esse estado de coisas seria a ruptura com o pacto podre. Não no sentido antidemocrático da ruptura institucional, mas na dimensão simbólica de abandonar a hipocrisia. Convocar o povo, não para protestos desesperados, mas para a construção de uma nova linguagem política. Uma linguagem que não aceite mais a conciliação como destino, mas que reivindique o conflito como terreno legítimo da transformação. Isso exigiria um gesto raro: renunciar à zona de conforto do governismo e encarar de frente a realidade brutal do país que se nega a mudar.

Há um poder novo que só emerge quando tudo parece perdido: o poder de quem não deve nada ao cinismo. Um presidente cercado por inimigos elegantes, que vestem a institucionalidade como disfarce, pode descobrir nesse cerco uma liberdade radical. A liberdade de nomear as coisas como são. A coragem de dizer ao povo que o governo está cercado por aqueles que se beneficiam do fracasso do país. Não se trata de heroísmo, mas de lucidez. A lucidez de quem compreende que a governabilidade que hoje se oferece ao Brasil é um pacto de mediocridade.

A corrosão da democracia brasileira não se dá apenas pelo autoritarismo explícito, mas pela captura do processo democrático por interesses privados. O Congresso se converteu numa federação de negócios, impermeável à dor social, alheio ao povo e devotado apenas à manutenção de seus próprios privilégios. Suas decisões raramente ecoam as urgências do país. É um poder que fala uma língua que ninguém mais entende, porque já não fala com ninguém.

Romper esse ciclo exige mais que força. Exige beleza, forma, narrativa. É preciso reencantar a política com um discurso que não tema a frontalidade. O Brasil precisa ouvir, com clareza, que está sendo governado contra si. E que há, sim, uma saída: não pelos atalhos do autoritarismo, mas pela reinvenção do poder como espaço de verdade. A verdade, nesse caso, é cruel, mas libertadora: o presidente está só. E justamente por isso pode ser mais livre do que nunca. Porque nada mais o prende aos ritos de uma aliança que nunca existiu.

O país está diante de um espelho. De um lado, a imagem oficial da institucionalidade, feita de siglas ocas e discursos calculados. Do outro, o reflexo cruel de um governo que tenta sobreviver num ambiente que o quer sangrar até o fim. Lula ainda é o único elo entre o povo real e a política possível. Mas esse elo está sendo testado, esticado até o limite. A história não perdoa aqueles que fingem que tudo está bem quando o mundo desmorona. Talvez tenha chegado a hora de não fingir mais. A solidão do poder pode ser, também, o início de sua purificação. E essa solidão, hoje, é absoluta: Lula está só diante de todos os partidos. E diante da história.

* Sociólogo, cientista político e professor da UFRJ