GERALDO HASSE/ A imprensa e a medalha Alberto André

Assisti de casa, on line, à cerimônia de entrega da  medalha Alberto André, da Associação Riograndense de Imprensa (ARI) a  onze jornalistas gaúchos*.

Foi no final da tarde da segunda-feira, 7 de abril, no Palácio da Justiça em Porto Alegre. Eu deveria escrever um artiguete impessoal, conforme a velha regra da imprensa, que só aos cronistas permitia textos na primeira pessoa, mas deixei-me levar por uma reflexão talvez impertinente sobre as similitudes entre as atividades de jornalistas, juízes e policiais, três categorias que dependem de audiências, escutas, investigações, oitivas e da busca de provas para o sim e o não das coisas, dos fatos e das versões.

Sim, objetividade, impessoalidade e imparcialidade são as regras principais a serem observadas na prática do jornalismo, no exercício da magistratura e também nos mistéres da polícia.

Então, que este artigo se transmute em crônica e, como tal, prime pela leveza e deixe cair apenas um ou dois relhaços no lombo de quem se bandeou para “o outro lado” do balcão.

Numa solenidade como esta que envolveu a ARI e o Judiciário gaúcho, aceita-se como normal certo exagero na forma como se apresentam as pessoas agraciadas em nome de Alberto André, o jornalista que deu nome à medalha.

Enaltecidas em seu fazer profissional, as figuras escolhidas se põem nervosas e acabam não dizendo o que pensam ou esquecem o que pretendiam dizer.

Na sucessão de falas ocorrida no evento do Dia do Jornalista, o saldo foi bastante positivo: após duas horas de escuta, até um veterano no metiê pode se sentir estimulado a continuar nessa luta rica em perdas e danos para a maioria dos praticantes do jornalismo. Foi como se declarou Elmar Bones, 81 anos: e ele bem que poderia ter aproveitado o cenário para se queixar de ter sido vítima de decisões judiciais negativas em relação a reportagens impecáveis do jornal JÁ (caso Rigotto e caso Sanfelice, para citar os mais clamorosos).

Seriam queixas justas, ou até caberia um desabafo (“O quê estou a fazer neste palácio que ignora a imparcialidade com que trabalho?!”), pois um vez foi preso durante a ditadura por divulgar fatos históricos como editor do Coojornal, o mensário que marcou época pela combatividade ao lado da imprensa nanica.

No contexto de crescente atordoamento dos jornalistas e de degradação da imprensa perdida no nevoeiro imposto pela mídia eletrônica, parece que só se consideram vitoriosos e gratificados os que se desviaram da trilha principal e aderiram a práticas viciosas, esquecendo que o objetivo maior do jornalismo e dos meios de comunicação social é servir ao interesse público. Fora daí, não podemos esquecer que tudo o mais é falsificação, merchantagem, enganação, panaceia. “Sem anistia”, como encerrou sua fala o octogenário Antonio de Oliveira, com a medalha da ARI no peito. (GH)

*Foram homenageados: ;Alisson Coelho, Analice Bolzan, Ana Amélia Lemos, Antonio Oliveira, Elmar Bones, Fernando Zanuzo, Gabriela Mendonça, Mary Silva, Romar Beling, Tania Moreira e Ricardo Chaves (in memorian)

Ricardo Chaves, Kadão: anotações para um perfil

“Morreu o Kadão”!

Estava num bar no Bom Fim com Jorge Polydoro, quando ele recebeu a notícia no celular. Minha memória disparou, vi o menino,  filho do Hamilton Chaves, na sede da Ecad no centro de Porto Alegre, em 1967.

Hamilton, jornalista, compositor, vereador, cassado em 64, estava empenhado, junto com Lupicínio Rodrigues, na valorização do trabalho dos músicos locais.

Tentavam organizar a sociedade arrecadadora de direitos autorais, que não tinha representação no Rio Grande do Sul. Lupicínio, na verdade, só emprestava o nome e o prestígio. Dinâmico, bem relacionado, cheio de ideias, Hamilton Chaves é que dava vida àquela pequena sala, alugada num edifício na rua da Praia.

Kadão teria 13 anos, ia encontrar o pai no final do expediente. Fui revê-lo dez anos depois,  já como fotógrafo profissional, na Coojornal. Trabalhava na Veja, mas era sócio da cooperativa e colaborador ligado à equipe de Assis Hoffmann.

Foi, quem sabe, o mais bem dotado herdeiro daquela tradição representada por Assis Hoffmann e que tinha raízes na Última Hora gaúcha, o mais original dos jornais da rede de Samuel Wainer.  O repórter e o fotógrafo formavam uma unidade empenhada em produzir uma reportagem.

O fotógrafo não era mais o retratista, que trazia uma imagem formal para “ilustrar” o texto do repórter. A fotografia tinha que trazer a informação complementar ou, às vezes, a mais importante, para passar ao leitor o que realmente havia acontecido.

O papel que, segundo Luiz Cláudio Cunha, Kadão teve no desvendamento do “sequestro dos uruguaios”, é exemplar desse novo papel dos fotógrafos na cobertura jornalística, naqueles anos remotos.

Na passagem pela Veja, em São Paulo, convivendo no dia-a-dia com os melhores fotojornalistas em atividade no país, Kadão consolidou sua vocação. Daí em diante, cresceu exponencialmente.

Outra característica daquele grupo, que em determinado momento se aglutinou na Coojornal, foi o espírito solidário, de generosidade, que o Kadão requintou.

Sempre lembro o caso do Arfio Mazzei, que morreu recentemente, fotógrafo respeitado. Estava perdido na vida, teve uma chance na fotografia do jornal A Platéia, de Livramento.  Não sabia nada, nem máquina tinha. Kadão recebeu-o, ministrou-lhe um treino intensivo e, se não me engano, ainda emprestou uma câmera.

Kadão morreu na sexta-feira, 4 de abril de 2025. Ainda está muito próximo para que possamos perceber toda a sua dimensão e seu devido lugar na história do fotojornalismo brasileiro. (Elmar Bones)

 

 

Por que o súbito interesse dos EUA na Groelândia?

Henrique Casanova

Donald Trump escandalizou o ambiente da geopolítica internacional quando declarou sua intenção de anexar a Groelândia. O Presidente norte-americano é conhecido como um excêntrico e a afirmação foi vista com certo humor por parte dos seus seguidores.

Analistas mais bem informados, porém, rapidamente ligaram a surpreendente fala com o fato de que a Groelândia tem solo rico em minérios relevantes na produção de energias alternativas.

A Groelândia, que é um território autônomo vinculado à Dinamarca, tem grandes reservas de minérios, alguns destes raros, necessários no desenvolvimento dos  carros elétricos. Importante lembrar que famosos bilionários do setor estão literalmente na cúpula do governo Trump. É esperado um boom de mineração naquele território para os próximos anos.

 

Tensões com China e Rússia

Com o progressivo recuo das geleiras, devido ao aquecimento global, as rotas marítimas do círculo polar ártico tornam-se cada vez mais navegáveis. O país com mais território nessa região é a Rússia, adversário histórico dos Estados Unidos, mas também a China (contra quem o Império norte-americano prevê uma guerra) tem o mar ártico como importante rota da sua pujante economia.

Restringir o acesso da China àquela região é a preocupação estratégico-militar dos Estados Unidos quando falam que anexar a Groelândia é uma questão de “segurança nacional”. A intenção é ampliar a presença militar naquele território (os EUA já possuem uma base militar ao Norte da ilha). Donald Trump, em reunião com o Secretário Geral da OTAN, Mark Rutte, semana passada, afirmou que controlar a Groelândia é do interesse da segurança de todo o bloco Ocidental.

O que pensa disso tudo o povo Groelandês?

Uma pesquisa realizada com a população nativa em janeiro deste ano mostra que 85% da população se opõe a fazer parte dos Estados Unidos. O grupo de pesquisa Verian, endossado por jornais locais e dinamarqueses, levantou ainda que foram apenas 6% os que responderam favoráveis, com 9% de indecisos.

Considerada a maior ilha do mundo, a Groelândia tem clima hostil, já que seu território está localizado nas altas e gélidas latitudes polares. Sua população concentra-se na costa Oeste e compõe cerca de 60 mil habitantes, a maioria da etnia esquimó “Inuíte”. Seu governo é autônomo, com parlamento próprio. O país tem sistema de saúde e ensino superior gratuitos.

Os Groelandeses cultivam distanciamento até mesmo com a Dinamarca, almejando sua completa independência enquanto país. Seu primeiro ministro, Mute Egede, é de etnia nativa e afirmou, neste 13 de março, que “é necessário endurecer a rejeição a Trump. As pessoas não podem continuar nos desrespeitando”.

 

 

 

 

 

 

Arfio Fontoura Mazzei: anotações para um perfil

1981. Precisávamos de um fotógrafo no jornal A Platéia, de Santana do Livramento.

Pedi uma indicação ao Danilo Ucha, meu sócio naquela empreitada insana.

Teria que ser um principiante porque o salário era exíguo. Estávamos tentando reabilitar um jornal falido.

Ninguém queria ir para o interior ganhando pouco.

Ucha apresentou uma alternativa: o Arfio Fontoura Mazzei, seu enteado, estava interessado na vaga. Tinha 27 anos, não sabia nada de fotografia, mas estava disposto a aprender.

Ricardo Chaves, o Kadão,  cuja generosidade é inexcedível, era fotógrafo da Veja em Porto Alegre e aceitou  acolher o candidato a fotógrafo em seu laboratório e passou-lhe os fundamentos do ofício, sem qualquer ônus.  Aplicado e meticuloso, em pouco tempo era um craque.

Um dos orgulhos que guardo é ter acreditado no “Alemão”.  A fotografia era sua vocação e ele soube honrá-la.

Deixou sua pegada no JÁ, no Jornal da Noite e na Zero Hora, entre outros.

Não sei se  seu acervo está organizado, nem se está preservado. Sei que tem valor, principalmente  no que tem de sensível  ao registrar a vida no campo e a natureza do pampa, hoje ameaçada.

Arfio Mazzei tinha 71 anos e faleceu nesta  terça-feira 14 de janeiro de 2025.

https://www.jornaldocomercio.com/geral/2025/01/1187176-fotografo-gaucho-arfio-mazzei-morre-aos-71-anos-em-porto-alegre.html

(Elmar Bones)

ELMAR BONES: O papel do papel na era digital

O senso comum acredita que o jornal e a revista impressos morreram (ou vão morrer) por causa da internet e dos meios digitais.

Não se leva em conta que esse é (também e principalmente)  o discurso dos “donos da tecnologia digital”, com seu viés de dominação e colonização cultural.

Na história da evolução (ou involução?) humana, não há o caso de uma tecnologia que tenha eliminado a outra.

Assim como a sofisticada tecnologia do radar não extinguiu os balões de investigações atmosféricas e o telefone não extinguiu o telégrafo, é improvável que o digital extinga o impresso.

O uso do papel como plataforma para difusão de informações remonta a 1.500 anos, pelo menos 300 anos na forma de jornais e revistas.

O papel impresso chegou a ser o principal meio de difusão de informações,  as ideias veiculadas nas primitivas gazetas revolucionaram o mundo.

Foi superado pelos meios eletrônicos do Século XX, mas não perdeu sua relevância, básicamente por suas faculdades de síntese, de portabilidade, de documento.

Será totalmente descartado, agora, com a emergência das novas tecnologias digitais do século XXI,  que além de plataformas ilimitadas oferecem  a difusão instantânea, sem limites de informações?

“O novo transforma o antecessor em forma de arte, “, dizia Marshall Mcluhan, E exemplificava: “Quando escrever era novo, Platão transformou o velho diálogo oral em forma artística”.

O  impresso terá, portanto,  que se adaptar  à nova realidade e, quem sabe, tirar proveito dela.  O papel e o digital podem ser plataformas complementares, com alta sinergia.

Para ficar no local:

A Zero Hora “print’, como diz Nelson Sirotsky, tem 40 mil assinantes, contrariando até as expectativas da Casa. Não é indicativo que existe um mercado?

Considere-se que a ZH é um caso exemplar de uso inadequado do papel como plataforma para difusão de informações.

O papel não tem mais como dar conta do “noticiário”, os fatos estão na internet em tempo real, ao vivo, a cores e com imagens, assim como as opiniões e os pitacos dos “influencers”.

O impresso vai sobreviver na medida em que ganhar um novo conteúdo, capaz de identificar e fixar as conexões que são voláteis e dispersas na internet. Tem que tirar proveito de suas qualidades, da permanência e da prova.

Teremos nós,  jornalistas, que aprender a produzir esse novo conteúdo na prática, porque ainda não há uma teoria. Isso é o que intimida.

É mais fácil (ou cômodo) acreditar que o dono da tecnologia está certo.

 

GERALDO HASSE/A volta do glorioso escriba farroupilha

Dois séculos atrás, atraídos pelos ventos da independência política do Brasil, chegaram ao Rio de Janeiro alguns europeus engajados em aventuras artísticas, pesquisas científicas e lutas políticas.

Eram Debret, Martius, Saint-Hilaire, Spix e outros, entre os quais até italianos fugitivos de monarcas raivosos. O mais famoso desses tipos extraviados nos trópicos foi Giuseppe Garibaldi, que guerreou no Rio Grande do Sul antes de se consagrar na terra natal, onde foi festejado como “o herói de dois mundos”.

Outro, muito amigo de Garibaldi, foi Luigi Rossetti, cuja trajetória como editor de O Povo, o bisemanário da
República Rio-Grandense do Sul, só recentemente veio à tona, graças sobretudo à pertinácia do jornalista-historiógrafo Elmar Bones, autor do livro “O Editor Sem Rosto” (JÁ Editores, 2024, 3ª ed), que está sendo
relançado neste sábado, 28, em Viamão, e deve ser vendido na Feira do Livro de Porto Alegre de 2024.
O título do livro se refere ao fato de que não há uma foto ou desenho de Rossetti.

Dele se perdeu até o túmulo. Morto em combate em Viamão em novembro de 1840, esse voluntário da revolução de 1835 toureou o conservadorismo dos chefes farroupilhas e saiu perdendo.

Entretanto, além de artigos no jornal oficial, deixou uma série de cartas reveladoras de seus ideais republicanos, motivo de suas diatribes com seu chefe direto, o charqueador Domingos José de Almeida, ministro que
cuidava das finanças da República Rio-Grandense.
Foi um editor sem rosto sim, mas com caráter, na luta inglória em defesa de princípios desprezados pelos detentores do poder.

Como tantos jornalistas ao longo da História, Rossetti engoliu sapos no esforço para colocar seu pensamento nos textos que escrevia no jornal que não lhe pertencia – pertencia, supostamente ao povo, que no frigir dos povos não vale um ovo.

Por aí se compreende como e porque Bones, editor do jornal Já há três décadas, se empenha na história do personagem esquecido nos mais de 500 livros escritos sobre a Grande Revolução do Sul.
É surpreendente como Rossetti foi encarregado de montar não só o jornal mas tocar a gráfica comprada em Montevideo.

Sua contratação mostra que os farrapos não tinham quadros para cargos importantes como o diretor do
seu jornal. Confiaram num aventureiro dedicado ao combate político.

Sem dúvida, ele tinha carisma e verve, tanto que trocava ideias com o coronel Corte Real e outros chefes. Depois de um tempo, no entanto, o escriba incômodo foi encarado como estrangeiro sem voz numa terra controlada por caudilhos prontos a negacear a promessa de
libertar os escravos.
Pouco se conhece da história pessoal de Rossetti. Nasceu em 1800 em Genova, onde frequentou a faculdade de Direito. Para não ser preso por fazer parte dos Carbonários antimonarquistas, fugiu da Itália, perambulou pela Europa e chegou ao Rio em 1827.

Não se sabe quais suas atividades antes de se associar a Garibaldi e outros italianos, em 1836, para explorar a navegação na costa fluminense.

Por boicotes e calotes, não lograram sucesso nessa empreitada mas tiveram a sorte de conhecer o
presidente Bento Gonçalves, a quem visitaram na cadeia da Fortaleza da Laje, no Rio – o general fora feito prisioneiro na batalha da ilha do Fanfa, no rio Jacuí, entre Porto Alegre e Triunfo, no primeiro ano da revolta.
Por incrível que possa parecer, em sua conversa no cárcere, os desventurados marinheiros italianos conseguiram do chefe farrapo uma carta de corso que os autorizava a pilhar embarcações no Atlântico em
benefício da República Rio-Grandense.

Deram-se bem nessa guerrilha naval até chegar ao Uruguai e à Argentina, onde Garibaldi foi encarcerado e
maltratado até conseguir ajuda da maçonaria para recuperar a liberdade e, daí em diante, engajar-se na revolução gaúcha (sua maior proeza foi
convencer Bento Gonçalves a organizar uma flotilha para embaraçar a marinha imperial na Lagoa dos Patos e chegar até o litoral catarinense, na louca manobra da tomada de Laguna em 1839).
Em Montevideo, onde tinha muitos correligionários italianos, especialmente o amigo Giovanni Cuneo, Rossetti trocou a vida de corsário pela de assessor do ministro Almeida.

Conseguiu o cargo por sua habilidade na articulação de negócios entre o governo farroupilha e os
amigos maçons de Montevideo. Carretas de couro e tropas de gado em pé eram os principais produtos exportados para o Uruguai pela república gaúcha, que recebia em troca armas, munições, uniformes para seus
soldados e sabe-se lá mais o quê.

Rossetti era portanto um agente duplo: trabalhava junto ao ministro farrapo como “procurador” dos amigos
contrabandistas sediados em Montevideo.

Nas horas vagas, cuidava do jornal farroupilha, que acabou se tornando seu xodó, depois de ficar
várias semanas na capital uruguaia para conseguir autorização oficial para tirar do país os equipamentos gráficos montados em Piratini, onde o jornal O Povo começou a ser feito.
Embora tivesse um perfil de jornalista combativo, panfletário até, a correspondência de Rossetti (sobretudo com o amigo Cuneo) não menciona nenhum jornalista ou intelectual com quem poderia ter tido contato no Brasil.

Até agora não se descobriu se teve algum interlocutor carioca com quem possa ter recebido noções sobre a língua portuguesa, que manejava satisfatoriamente. O que se sabe é que participou de um jornal dirigido à colônia italiana da capital, onde havia vários comerciantes
de origem peninsular.

Na época em que viveu no Rio (1827-36), Rossetti
foi qualificado como “vagabundo” num relatório diplomático preparado por um emissário do Vaticano. A expressão era naturalmente preconceituosa por ser Rossetti um agitador político que não respeitava o clero, embora fosse temente a Deus.
Também não se sabe se fez contatos com jornalistas ou políticos na capital brasileira. Na imprensa carioca era muito ativo e influente nos anos 30 do século XIX o político Evaristo da Veiga (1799-1837), que publicava a Aurora Fluminense, jornal contra a escravidão dos negros.
Terá Rossetti trabalhado nesse veículo politizado? Em São Paulo se destacou Libero Badaró, nascido em 1798 em Genova e chegado a São Paulo em 1828.

Médico e liberal, Badaró editava O Observador Constitucional, no qual costumava atacar o imperador Pedro I, autor da primeira Constituição do Brasil, de 1823. Foi morto em 1830 numa tocaia a mando de um desafeto do seu periódico.
Rossetti era um republicano sincero que provavelmente se criou lendo e ouvindo sobre as teses iluministas que levaram à Revolução Francesa (1789) depois de ajudar a levantar a bandeira da independência dos EUA em 1776. Veio depois de filósofos franceses como Rousseau e Voltaire, e precedeu o alemão Marx, que inspirou o russo Lenin – todos europeus revolucionários.

Foi contemporâneo dos americanos Lincoln e Simon
Bolívar, mas seu guru era Mazzini, o revolucionário italiano. Também não há notícia de que tenha se sensibilizado com o trabalho do maçom Hipólito José da Costa, que publicou em Londres de 1808 a 1822 o jornal
Correio Brasiliense.
O que mais impressiona na leitura de O Editor Sem Rosto é o fato de que, há quase 200 anos, trabalhou anonimamente em Piratini um escriba que incorporou as vissicitudes dos fazedores de jornal diante dos interesses dos mandantes da hora, no caso, o ministro Domingos de
Almeida, Bento Gonçalves e outros chefes farroupilhas. Nada de novo no front farroupilha: aparentemente sem noção de hierarquia, o editor genovês se revoltou quando o todo-poderoso Almeida deu razão a um cadete
que cortara um texto seu.

Um cadete com a metade de sua idade! Rossetti pediu para sair, mas teve a petulância de indicar o amigo italiano Cuneo para o cargo que acaba de largar.

O indicado chegou a viajar de Montevideo para a província rio-grandense, mas nem chegou a pegar na
pena porque o jornal estava parado e a tipografia, desmontada por contingências da guerra.

A partir de 1840, com o governo farroupilha
obrigado a deslocar-se em carretas pelo pampa, sob perseguição do exército imperial, o jornal não circulou mais.

Depois de deixar o jornal, Rossetti não foi pedir emprego em outra gráfica ou redação; partiu Camaquã, onde passou a trabalhar com Garibaldi no estaleiro em que se construíam os lanchões da marinha farroupilha.

E continuou escrevendo para o ministro Almeida, de quem se declarava amigo. Cheio de opiniões, era um tipo inquieto e se reconhecia “fogoso”, o que remete ao exaltado Tiradentes enforcado em 1792 em Ouro
Preto e outros revolucionários brasileiros como Domingos Martins, fuzilado aos 37 anos em Pernambuco por se envolver em conspirações contra o jugo português (1816).

Enfim, Rossetti foi um lutador que pouco deixou para ser lembrado, ao contrário do amigo Garibaldi que, além da
lagunense Anita, levou do Sul como paga por seus serviços uma boiada de 900 cabeças vendida no Uruguai.

Enquanto há centenas de livros e vários filmes sobre Garibaldi e sua lenda, Rossetti inspirou três teses acadêmicas sobre como a revolução farroupilha foi vista por outros países.

Lembra o editor Bones: “Os escritos de Rossetti — cartas, artigo, proclamações — são a fonte principal para se estudar as relações dos farrapos com o exterior e
também para as divergências entre os chefes farroupilhas”.

Recorde-se que, após dez anos de luta, os chefes farrapos estavam divididos e não obtiveram o reconhecimento de nenhum país — nem do amigo Uruguai.

Com exceção de uma irmã deixada na Itália, não há referências familiares na história de Rossetti. Cabe pesquisar em busca de novidades, mas ele parece ter negligenciado a vida afetiva para se dedicar integralmente à causa política e aos ideais democráticos.

Foi umautêntico republicano entre caudilhos ciosos do mando.

 

Semana Farroupilha: quando o marketing se apropria da História

A chamada “Revolução Farroupilha” tornou-se um caso exemplar de apropriação da história por interesses do presente, com graves prejuízos para o entendimento dos fatos históricos.

Foram quase dez anos de guerra – do dia 20 de setembro de 1835, com a tomada de Porto Alegre, até fevereiro de 1845, quando a paz foi assinada em Ponche Verde, no acampamento das tropas rebeldes, reduzidas a algumas centenas de homens, mal armados, já sem roupas para aguentar o inverno que se avizinhava.

Houve feitos heroicos e eventos memoráveis, sem dúvida.

No conjunto, foi uma aventura política mal sucedida. Começou como uma rebelião, desandou numa sedição, proclamando uma república, que nunca se instituiu, e terminou de forma melancólica, com acusações, brigas entre os líderes, e até assassinatos.

Em todo caso, foi a primeira experiência republicana no Brasil e, meio século depois, quando a luta pela República tornou-se um movimento nacional, foi inevitável o resgate dos farroupilhas, “heróis que se levantaram contra a opressão do regime imperial”.

Construiu-se, então, a lenda do “decênio heroico” e uma corrente de historiadores se dedicou a desentranhar as ações e as ideias “dos homens de 1835”.

Essa apropriação da história farroupilha para fins políticos e ideológicos, com graves prejuízos para a verdade histórica, se estendeu por todo o século XX, embora várias tentativas de revisão tenham sido feitas.

Sérgio da Costa Franco, que muito pesquisou e escreveu sobre os farrapos, disse numa entrevista*: “Toda a historiografia do ciclo farroupilha é marcada pela devoção reverencial, senão por sua apaixonada mitificação. Dessa fatal parcialidade provavelmente nunca se livrará a bibliografia histórica rio-grandense por mais revisões que se faça”.

Neste início de século 21, uma outra forma de apropriação se superpôs, no bojo de um modelo econômico que busca oportunidade de lucros no real e no imaginário. O apelo popular do “decênio heroico” despertou interesses comerciais e mercadológicos e o marketing identificou no gauchismo um “nicho de mercado”.

A apropriação da história para fins políticos já foi bem dissecada  por Yeda Guttfreind e outros historiadores. A leitura dos principais autores desse período levou o então sociólogo  Fernando Henrique Cardoso a concluir que “o gaúcho tinha uma autoimagem deformada”.

Sobre essa atual apropriação da história pelo marketing, pouco ou nada se estudou, ainda.  Mereceria porque, sem dúvida, é exemplar, embora não seja original.

De um lado tem-se o MTG, movimento tradicionalista com seus dois mil centros de tradições gaúchas no Estado, no Brasil e no exterior. O circuito de bailes e eventos se desenvolveu em torno dos CTGs, criando um mercado para músicos, produtores e outros profissionais, sustentado por um público urbano, nostálgico de suas raízes rurais, às vezes imaginárias.

O movimento tradicionalista nasceu em 1948, numa reação, de um lado, ao sufocamento das identidades regionais, promovido pela ditadura do Estado Novo e, de outro, à invasão cultural americana.

Paixão Cortes e Barbosa Lessa foram às fontes populares resgatar os cantos, as danças, a indumentária e as manifestações da cultura regional nas diversas comunidades do Rio Grande do Sul. Eles descobriram um rico e diversificado acervo, que por razões a serem buscadas, acabou reduzido ao “gaitaço galponeiro”, o “gritedo”, de que reclamava Luiz Carlos Borges, hoje elevado à expressão principal da dita “cultura gaúcha”.

Outro vetor desse processo é a televisão, especialmente o programa “Galpão Gaúcho”, da RBS TV, lançado em 1982, não por acaso um ano depois do primeiro Acampamento Farroupilha, em Porto Alegre, a cidade que na história real sempre rechaçou os farrapos.

Mesmo oscilando ao sabor da grade de programação da Rede Globo, o Galpão Crioulo, pelo grande alcance da RBS através de suas retransmissoras no interior, deu tração ao movimento tradicionalista, dele se alimentou e se alimenta.

Com o novo viés da RBS, de potencializar negócios, esse tradicionalismo, que é “uma doença infantil do gauchismo”,  se apresentou como um nicho perfeito: sela  a aliança com o “público gaúcho” e mobiliza os grandes anunciantes nacionais que querem falar  a esse “público gaúcho”.

O problema é que essa apropriação da história pelo marketing  não se faz sem danos. O marketing tende a simplificar para produzir mensagens sucintas e convincentes, mesmo a custa dos fatos.

É o que está acontecendo, em dose cavalar (sem trocadilho).

Basta dizer que fizeram do 20 de setembro o “Dia do Gaúcho”, em reverência aos heróis de 1835, homens de uma época em que chamar alguém de “gaúcho” era uma ofensa. (Elmar Bones)

 *República Riograndense”, Revista JÁ, 2016

 

A última trincheira de Leonel Brizola

A grande imprensa nunca confiou em Leonel Brizola.

– Se reconhecesse nele, enquanto vivo, metade do que lhe atribuiu enquanto morto…presidente da República é o mínimo que ele teria sido, escreveu PC de Lester após a morte do líder trabalhista.

Na verdade, enquanto ele viveu, e mesmo nos últimos anos quando já era uma figura histórica, recebeu um tratamento hostil, quase sempre.

Brizola foi eleito prefeito de Porto Alegre e governador do Estado enfrentando cerrada oposição da imprensa conservadora, tendo à frente o poderoso Correio do Povo, de Breno Caldas.

Sua política pioneira de reforma agrária foi torpedeada por furiosos editoriais, as encampações de telefonia e energia idem.

Mesmo em 1961, na Legalidade, tão decantada, ele teve que tomar à força com a Brigada Militar os transmissores da Rádio Guaíba para organizar a rede com que resistiu ao golpe.

Em 1964, quando era deputado federal e não tinha, portanto, a polícia militar às suas ordens, ele nada conseguiu fazer. Os meios de comunicação faziam parte do golpe.

Nos anos em que Brizola viveu no exílio, a imprensa zelosamente o esqueceu. Luis Fernando Veríssimo é testemunha do zelo dos editores em não deixar o nome de Brizola ser nem citado de passagem em crônica.

Quando ele retornou do exílio, decretou-se que ele era caudilho, dinossauro, apegado a ideias do passado. Foi ridicularizado quando perdeu a sigla do PTB para Ivete Vargas numa manobra do governo, hoje revelada.

No Rio de Janeiro, teve a oposição sistemática da Rede Globo, antes e depois de eleito, duas vezes. Na campanha presidencial de 1989, então, nem se fala. Mesmo assim, ele perdeu para Lula por 0,04% dos votos. Hoje, todos sabemos que ele teria vencido o Collor.

Vinte anos depois da morte de Brizola, Juliana, sua neta, ex-deputada estadual e candidata a prefeita de Porto Alegre pelo PDT, tenta minar a polarização entre as candidaturas de Sebastião Melo (MDB/PL) e Maria do Rosário (PT/PSol).

As eleições no Rio Grande do Sul, às vezes, surpreendem. Houve casos em que os candidatos que ocupavam a terceira posição em todas as pesquisas foram eleitos.

Pedetistas históricos reconhecem que é uma tarefa difícil. Juliana não reuniu forças com os partidos de esquerda e buscou coligação com o União Brasil, antigo DEM e PSL, portanto, de direita. Pegou mal.

Alguns torceram o nariz também com a mudança das cores do partido nesta campanha eleitoral – do vermelho, azul e branco para o amarelo e azul -, e com o sumiço da rosa vermelha sustentada pela mão esquerda de um trabalhista.

– Deve ser coisa de marqueteiro, sugeriu um brizolista ferrenho.

A rosa vermelha era símbolo do PDT desde sua fundação, marca da social-democracia pelo mundo e da Internacional Socialista, criado pelo francês Didier Motchane, e da qual Brizola foi seu presidente.

A marca do PDT já havia sido repaginada em 2022, durante a campanha eleitoral de Ciro Gomes, quando acrescentaram o verde e o amarelo nas folhas da flor, uma referência à bandeira do Brasil. E agora, sumiu.

Mas, quis o destino que o trabalhismo raiz despertasse na cidade em que Brizola passou a infância e começo da juventude: Passo Fundo. O ex-prefeito Aírton Dipp – trabalhista histórico, como foi seu pai, Daniel Dipp, também ex-prefeito na década de 1950 – quer voltar a administrar aquela cidade do norte gaúcho de 215 mil habitantes.

Pesquisas internas das legendas indicam que, neste momento, há uma ligeira vantagem do atual prefeito, Pedro Almeida, do PSD. Estariam tecnicamente empatados.

Jornalistas locais não arriscam um vencedor e concordam que a disputa é acirrada. O prefeito tem uma coligação com vários partidos e a máquina pública a seu favor, porque a legislação eleitoral não obriga deixar o cargo para concorrer à reeleição municipal. Dipp tem a memória de quem aprovou suas gestões e realizações e o apoio da maioria dos servidores públicos municipais, segundo alguns comunicadores.

A coligação “Sim, Passo Fundo pode mais” tem vinte dias para convencer os eleitores de que o administrador Almeida não merece um novo mandato. Nada impossível para quem venceu três eleições que disputou para prefeito.

Por ironia, o candidato do PL de Bolsonaro, o advogado Marcio Patussi, pode acabar ajudando os trabalhistas caso “roube” eleitores do prefeito.

Engenheiro civil como o ex-governador, prestes a completar 74 anos, Aírton Dipp é a última trincheira de Leonel Brizola.

(Cleber Dioni Tentardini)

 

Trabalhistas falam em reconstrução na Inglaterra

A vitória da esquerda na França e a volta do Partido Trabalhistas na Inglaterra são sinais de algo maior do que meros movimentos de opinião traduzidos em disputas partidárias.

Há um movimento profundo em toda a Europa de reação às políticas neo-liberais que com pequenos hiatos há meio século se impõe a todos os países e não só lá.

A Inglaterra, com Margareth Tatcher, foi um marco inicial desse processo, foi referência para sua difusão pelo mundo inteiro.

Hoje os ingleses conhecem a face cruel desse modelo.

Agora, os trabalhistas voltam ao poder com uma acachapante maioria (412 contra 121 dos conservadores) sob a liderança de Keir Starmer, de 52 anos.

Ele será primeiro ministro e sinaliza  uma mudança de rumo. Os analistas dizem que ele surpreendeu os céticos e reconstruiu o Partido Trabalhista “Agora ele deve fazer o mesmo pela Grã Bretanha”, disse um deles.

Andrew Rawnsley, do Observer, escreveu que “Sue Gray, chefe de gabinete de Keir, tem uma “lista de merda” que são as emergências que podem surgir já no inicio do governo, variando da falência de universidades  a uma crise total nas prisões”.

“A dívida do governo em relação à produção está no seu maior nível em 60 anos”.

“Os impostos como proporção do PIB estão caminhando para o nível mais alto desde 1948”.

“Ao mesmo tempo, serviços públicos críticos estão de joelhos ou no chão”.

Reconstruir é a palavra que os jornais já estão usando.

(Elmar Bones )

Roberto Müller: anotações para um perfil

Fiquei uma manhã em choque com a notícia da morte do Roberto Müller.

Sim, a morte dos velhos amigos é quase uma rotina para um octogenário, mas o Roberto Müller no meu imaginário era daquelas figuras arquetípicas que deviam ficar como referência para muitas gerações – no caso dele, para muitas gerações de profissionais que se dediquem a esse ofício de  “informar o que acontece”.

Levei um segundo choque ao ver que a dita imprensa, os veículos tradicionais do jornalismo, praticamente ignorou a morte de um profissional como ele,  que foi um baluarte dessa profissão, no que ela tem de melhor.

No que li nas redes sociais, faltaram dois momentos fundamentais que dão a dimensão da importância do jornalista Roberto Müller:

1) o papel de catalisador que a Gazeta Mercantil teve na articulação que levou a elite empresarial do país a desembarcar da ditadura, com os dois manifestos, de 1978 e 1983;

2) o afastamento dele da direção do jornal que resistia ao processo da financeirização da economia, que acabou se consumando, com a falência da Gazeta e o surgimento do Valor.

Duas histórias a ser contadas, dois pontos cruciais da história brasileira recente em que Roberto Müller foi protagonista. (Elmar Bones)