PAULO BRACK / Quem ganha com a pressa na decisão sobre a mineração de areia no Guaíba?

A exploração de areia no rio Jacuí foi desastrosa e causou desbarrancamento e alterações na margem do rio, com prejuízos à vegetação ribeirinha. O IPH da UFRGS alerta para a necessidade de mais estudos para que este tipo de atividade, se possível, fique restrita a determinadas áreas. Mas estes estudos não foram realizados com o tempo e a profundidade necessários.

A pressa é inimiga da precaução. O lobby da mineração e da construção civil é pesado e esperava esta oportunidade. O  governo estadual tem que deixar de submeter a área técnica da Fepam e Sema para os negócios imediatistas de sempre. A SEMA perdeu e se desvirtuou quando foi incorporada, nos governos de Eduardo Leite, a área de Infraestrutura, como prioridade.

A linha neoliberal atual provoca descontrole de serviços públicos, o que já começou a ocorrer em 2017, com a extinção da FZB, FEE, CIENTEC, etc, e com as recentes privatizações de empresas públicas de água (Corsan) e energia (CEE).

Não é possível que se admita submeter ingerência política nos estudos técnicos do Zoneamento Ambiental do Litoral Norte, como ocorreu ha cerca de dois anos.

Não é possível que se admita o atual enfraquecimento dos Polígonos de Exclusão de Pulverização Aérea de Agrotóxicos, em Nova Santa Rita, deixando vulneráveis produção agroecológica em assentamentos e milhares de pessoas sujeitas a estes venenos.

Não é possível que se permita que o Setor da Celulose e Madeira elabore e conduza a aprovação, há poucos meses, de um novo Zoneamento Ambiental da Silvicultura, que recebeu severas críticas do corpo técnico da Fepam, do Ibama e de entidades ambientalistas, com risco de destruir ainda mais o que resta do Pampa.

Não é possível que se interrompa o necessário Zoneamento Ecológico-Econômico do RS, iniciado em 2017, congelado a partir de 2019, nos governos de Eduardo Leite, sem explicação que não seja, subliminarmente, não atrapalhar os negócios imediatistas da elite econômica do Estado, em especial a expansão das monoculturas de soja que já alcançam 6,7 milhões de hectares no RS.

Não é possível repetir a violência que ocorreu em 2020, na aprovação da flexibilização do novo Código Estadual de Meio Ambiente, submetido a regime de urgência em 2019, não permitindo sequer que o CONSEMA tivesse oportunidade de discuti-lo  à semelhança do que aconteceu com a mordaça imposta à área técnica da SEMA e FEPAM, resultando na perda de centenas de artigos e itens mais protetivos do Código anterior (Lei 11.520/2000).

Não é possível que o tema da mineração de areia, no curso d’água Guaíba, seja feito, mais uma vez, na pressa, tendo em conta, inclusive, a presença de metais pesados depositados em seu fundo. Vale a pena trazer metais pesados ao corpo d’água? Como ficarão a mata ciliar, os juncais, os sarandizais e a condição de pesca artesanal em suas margens?

Não é possível que se naturalize mais um processo apressado, como ocorreu nos regimes de urgência que resultaram na aprovação do PL dos venenos, do PL da irrigação, do PL da facilitação das podas de árvores para o cabeamento aéreo em prol das empresas de transmissão e distribuição de energia elétrica.

Não é possível admitir que setores econômicos possam seguir tendo supremacia sobre a área ambiental, contrariando a Constituição Federal, e submetam as políticas públicas a seu interesse imediatista, concentrador e destruidor do meio ambiente.

Este contexto de atropelos neoliberais, numa consulta de última hora, para um tema tão delicado da mineração de areia em um sistema profundamente complexo do curso de água Guaíba, poderá tornar-se em mais uma etapa para o desfazimento das políticas públicas ambientais ainda vigentes.

Um outro mundo é impossível quando a economia se desprende dos limites da natureza, como uma locomotiva sem freios, gerando destruição ecológica de grande dimensão e provavelmente sem volta para a qualidade socioambiental atual e futura do Estado do Rio Grande do Sul.

 

Paulo Brack
Professor, vereador de Porto Alegre

A solidão no poder: Lula contra todos os partidos

Paulo Baía *

O Brasil político de agora é uma máquina de fingimentos. Lula, no centro da engrenagem, governa com ministros que representam partidos que, na prática, não o apoiam. Ocupam espaços no Executivo, circulam com a liturgia do poder, mas no Congresso Nacional agem como sabotadores discretos. A base que o sustenta é a mesma que o solapa. A coalizão formal não passa de um corpo sem nervos, sem alma, sem fidelidade. É uma dança sem música entre o presidente e forças que não querem dançar, só arrancar concessões.

Essa encenação diz muito mais do que parece. Trata-se de uma forma de dominação que opera por dentro da institucionalidade, esvaziando-a de sentido. O presidencialismo de coalizão, antes pragmático, tornou-se um jogo de sequestro e resgate. O governante se vê obrigado a pagar resgates diários para manter o governo refém de pé. Ministérios são entregues como moeda de troca, mas não há entrega política em contrapartida. Há apenas o parasitismo elegante de quem finge governabilidade para manter as aparências enquanto o poder real escorre por entre os dedos.

Lula, nesse cenário, emerge como uma figura trágica: o político mais experimentado do país, com um vínculo afetivo profundo com os setores mais pobres da população, mas isolado no comando de um governo que é dele e não é. Um presidente que fala para o povo, mas é silenciado por um Parlamento que fala apenas para si. Ele carrega um mandato que lhe foi dado pelo voto, mas está cercado por forças que desconfiam do voto como expressão legítima da soberania popular. O Congresso atual é um espelho invertido da vontade coletiva: projeta um país que não existe e combate o país que existe.

Essa forma de operar o poder é mais do que cálculo. É uma cultura, uma prática social arraigada, uma antropologia do cinismo. Os partidos se tornaram agremiações negociantes, onde o conteúdo ideológico foi dissolvido na ambição por espaços. Não há aliança possível com projetos que desejam o colapso silencioso do próprio governo que integram. A política virou um mercado onde se vende estabilidade a preços exorbitantes e se entrega sabotagem com recibo institucional. A traição é sistemática, mas cuidadosamente protocolada.

O que torna essa situação ainda mais brutal é o fato de que não há exceções. Nenhum partido com representação no Congresso Nacional atua hoje com coerência em defesa do governo que ajudou a compor. Os que indicaram ministros estão mais interessados em benefícios orçamentários do que em apoiar efetivamente um programa de governo. Os que se dizem de centro apenas calculam seus ganhos em silêncio. E os que integram o Executivo se tornaram operadores do seu próprio projeto, divorciado da Presidência. Nenhum partido, de fato, se compromete com a travessia política de Lula. Todos, de maneira direta ou omissa, colaboram para a erosão de sua autoridade.

A resposta possível a esse estado de coisas seria a ruptura com o pacto podre. Não no sentido antidemocrático da ruptura institucional, mas na dimensão simbólica de abandonar a hipocrisia. Convocar o povo, não para protestos desesperados, mas para a construção de uma nova linguagem política. Uma linguagem que não aceite mais a conciliação como destino, mas que reivindique o conflito como terreno legítimo da transformação. Isso exigiria um gesto raro: renunciar à zona de conforto do governismo e encarar de frente a realidade brutal do país que se nega a mudar.

Há um poder novo que só emerge quando tudo parece perdido: o poder de quem não deve nada ao cinismo. Um presidente cercado por inimigos elegantes, que vestem a institucionalidade como disfarce, pode descobrir nesse cerco uma liberdade radical. A liberdade de nomear as coisas como são. A coragem de dizer ao povo que o governo está cercado por aqueles que se beneficiam do fracasso do país. Não se trata de heroísmo, mas de lucidez. A lucidez de quem compreende que a governabilidade que hoje se oferece ao Brasil é um pacto de mediocridade.

A corrosão da democracia brasileira não se dá apenas pelo autoritarismo explícito, mas pela captura do processo democrático por interesses privados. O Congresso se converteu numa federação de negócios, impermeável à dor social, alheio ao povo e devotado apenas à manutenção de seus próprios privilégios. Suas decisões raramente ecoam as urgências do país. É um poder que fala uma língua que ninguém mais entende, porque já não fala com ninguém.

Romper esse ciclo exige mais que força. Exige beleza, forma, narrativa. É preciso reencantar a política com um discurso que não tema a frontalidade. O Brasil precisa ouvir, com clareza, que está sendo governado contra si. E que há, sim, uma saída: não pelos atalhos do autoritarismo, mas pela reinvenção do poder como espaço de verdade. A verdade, nesse caso, é cruel, mas libertadora: o presidente está só. E justamente por isso pode ser mais livre do que nunca. Porque nada mais o prende aos ritos de uma aliança que nunca existiu.

O país está diante de um espelho. De um lado, a imagem oficial da institucionalidade, feita de siglas ocas e discursos calculados. Do outro, o reflexo cruel de um governo que tenta sobreviver num ambiente que o quer sangrar até o fim. Lula ainda é o único elo entre o povo real e a política possível. Mas esse elo está sendo testado, esticado até o limite. A história não perdoa aqueles que fingem que tudo está bem quando o mundo desmorona. Talvez tenha chegado a hora de não fingir mais. A solidão do poder pode ser, também, o início de sua purificação. E essa solidão, hoje, é absoluta: Lula está só diante de todos os partidos. E diante da história.

* Sociólogo, cientista político e professor da UFRJ

Armazenagem: um gargalo que ameaça o futuro do agro

Paulo Bertolini*

O agronegócio brasileiro vem crescendo a cada safra, ampliando constantemente sua capacidade de produção. De acordo com as informações divulgadas pela Companhia Nacional de Abastecimento, a safra de grãos 2024/2025 está estimada em 330,3 milhões de toneladas. Se confirmado, será o maior volume já registrado na série histórica da companhia. Isso representa um aumento de 32,6 milhões de toneladas na comparação com o ciclo 2023/2024.

No entanto, por trás desses expressivos números esconde-se um gargalo estrutural crônico e perigoso: a incapacidade do país de armazenar adequadamente o que é produzido.

Com uma capacidade estática de armazenagem de só 210 milhões de toneladas, considerando toda a infraestrutura construída até hoje, o Brasil enfrenta um déficit alarmante de 120 milhões de toneladas.

Esse número não é só uma estatística, é um freio ao nosso potencial e um risco à segurança alimentar e econômica do Brasil.

A matemática é clara e preocupante. Para evitar que o déficit aumente, o Brasil precisaria investir cerca de R$ 15 bilhões por ano em novas estruturas de armazenagem. Contudo, estamos longe de alcançar essa meta.

A cada colheita recorde, o problema se agrava e ignorar essa necessidade compromete a rentabilidade do produtor e a estabilidade de preços para o consumidor. A capacidade de formar estoques reguladores é uma ferramenta vital para controlar a inflação de alimentos e garantir o abastecimento, especialmente em tempos de instabilidade climática e geopolítica.

O PCA (Programa de Construção e Ampliação de Armazéns) foi criado para mitigar esse problema, oferecendo linhas de crédito como o “PCA Grãos”, com juros de 7% ao ano e prazos estendidos para estruturas de até 6.000 toneladas. Na prática, porém, o acesso a esses recursos é um desafio, principalmente para os pequenos e médios produtores.

A falta de recursos suficientes alocados ao programa e a excessiva burocracia dificultam o acesso ao financiamento por quem mais precisa. O custo elevado da implantação, cerca de R$ 1.500 por tonelada de capacidade, considerando equipamentos, montagem, energia e obras civis, contribui para a perpetuação do déficit.

Outro agravante é a má distribuição geográfica das estruturas de armazenagem. Só 15% dos silos estão dentro das fazendas, onde seriam mais eficazes. Os 85% restantes concentram-se em áreas urbanas, complexos industriais e portos. Essa distância entre a colheita e o armazenamento causa perdas significativas de grãos, eleva substancialmente os custos logísticos com frete e cria um fluxo ineficiente em toda a cadeia produtiva.

O produtor, sem a possibilidade de estocar a safra na origem, fica pressionado a vender rapidamente durante o pico da colheita, muitas vezes a preços inferiores, sobrecarregando o sistema de transporte e perdendo poder de negociação.

O contraste com outros grandes produtores agrícolas, como os Estados Unidos, é enorme. Lá, a capacidade estática de armazenagem supera a produção de uma safra inteira, com mais da metade dos silos localizados dentro das propriedades rurais. Esse modelo confere maior eficiência e controle ao produtor, beneficiando o país como um todo.

É preciso encarar com seriedade o fato de que o deficit de armazenagem é um dos maiores entraves ao desenvolvimento sustentável do agronegócio brasileiro. Não basta produzir em volumes recordes se não formos capazes de administrar essa produção de forma eficiente, estratégica e inteligente.

A expansão da capacidade de armazenagem, especialmente nas propriedades rurais, deve ser tratada como uma prioridade nacional. Isso exige mais recursos para programas como o PCA, desburocratização do acesso ao crédito e novos modelos de incentivo e investimento público-privado.

Superar o gargalo dos silos é fundamental para destravar o pleno potencial do agro, garantir a segurança alimentar e fortalecer a economia brasileira. Manter o cenário atual é aceitar um futuro de ineficiência, perdas e vulnerabilidade.

*Paulo Antonio Pusch Bertolini, 57 anos, é empresário, presidente da Abramilho (Associação Brasileira dos Produtores de Milho e Sorgo).

GERALDO HASSE/ A imprensa e a medalha Alberto André

Assisti de casa, on line, à cerimônia de entrega da  medalha Alberto André, da Associação Riograndense de Imprensa (ARI) a  onze jornalistas gaúchos*.

Foi no final da tarde da segunda-feira, 7 de abril, no Palácio da Justiça em Porto Alegre. Eu deveria escrever um artiguete impessoal, conforme a velha regra da imprensa, que só aos cronistas permitia textos na primeira pessoa, mas deixei-me levar por uma reflexão talvez impertinente sobre as similitudes entre as atividades de jornalistas, juízes e policiais, três categorias que dependem de audiências, escutas, investigações, oitivas e da busca de provas para o sim e o não das coisas, dos fatos e das versões.

Sim, objetividade, impessoalidade e imparcialidade são as regras principais a serem observadas na prática do jornalismo, no exercício da magistratura e também nos mistéres da polícia.

Então, que este artigo se transmute em crônica e, como tal, prime pela leveza e deixe cair apenas um ou dois relhaços no lombo de quem se bandeou para “o outro lado” do balcão.

Numa solenidade como esta que envolveu a ARI e o Judiciário gaúcho, aceita-se como normal certo exagero na forma como se apresentam as pessoas agraciadas em nome de Alberto André, o jornalista que deu nome à medalha.

Enaltecidas em seu fazer profissional, as figuras escolhidas se põem nervosas e acabam não dizendo o que pensam ou esquecem o que pretendiam dizer.

Na sucessão de falas ocorrida no evento do Dia do Jornalista, o saldo foi bastante positivo: após duas horas de escuta, até um veterano no metiê pode se sentir estimulado a continuar nessa luta rica em perdas e danos para a maioria dos praticantes do jornalismo. Foi como se declarou Elmar Bones, 81 anos: e ele bem que poderia ter aproveitado o cenário para se queixar de ter sido vítima de decisões judiciais negativas em relação a reportagens impecáveis do jornal JÁ (caso Rigotto e caso Sanfelice, para citar os mais clamorosos).

Seriam queixas justas, ou até caberia um desabafo (“O quê estou a fazer neste palácio que ignora a imparcialidade com que trabalho?!”), pois uma vez foi preso durante a ditadura por divulgar fatos históricos como editor do Coojornal, o mensário que marcou época pela combatividade ao lado da imprensa nanica.

No contexto de crescente atordoamento dos jornalistas e de degradação da imprensa perdida no nevoeiro imposto pela mídia eletrônica, parece que só se consideram vitoriosos e gratificados os que se desviaram da trilha principal e aderiram a práticas viciosas, esquecendo que o objetivo maior do jornalismo e dos meios de comunicação social é servir ao interesse público. Fora daí, não podemos esquecer que tudo o mais é falsificação, merchantagem, enganação, panaceia. “Sem anistia”, como encerrou sua fala o octogenário Antonio de Oliveira, com a medalha da ARI no peito. (GH)

*Foram homenageados: Alisson Coelho, Analice Bolzan, Ana Amélia Lemos, Antonio Oliveira, Elmar Bones, Fernando Zanuzo, Gabriela Mendonça, Mary Silva, Romar Beling, Tania Moreira e Ricardo Chaves (in memorian)

Ricardo Chaves, Kadão: anotações para um perfil

“Morreu o Kadão”!

Estava num bar no Bom Fim com Jorge Polydoro, quando ele recebeu a notícia no celular. Minha memória disparou, vi o menino,  filho do Hamilton Chaves, na sede da Ecad no centro de Porto Alegre, em 1967.

Hamilton, jornalista, compositor, vereador, cassado em 64, estava empenhado, junto com Lupicínio Rodrigues, na valorização do trabalho dos músicos locais.

Tentavam organizar a sociedade arrecadadora de direitos autorais, que não tinha representação no Rio Grande do Sul. Lupicínio, na verdade, só emprestava o nome e o prestígio. Dinâmico, bem relacionado, cheio de ideias, Hamilton Chaves é que dava vida àquela pequena sala, alugada num edifício na rua da Praia.

Kadão teria 13 anos, ia encontrar o pai no final do expediente. Fui revê-lo dez anos depois,  já como fotógrafo profissional, na Coojornal. Trabalhava na Veja, mas era sócio da cooperativa e colaborador ligado à equipe de Assis Hoffmann.

Foi, quem sabe, o mais bem dotado herdeiro daquela tradição representada por Assis Hoffmann e que tinha raízes na Última Hora gaúcha, o mais original dos jornais da rede de Samuel Wainer.  O repórter e o fotógrafo formavam uma unidade empenhada em produzir uma reportagem.

O fotógrafo não era mais o retratista, que trazia uma imagem formal para “ilustrar” o texto do repórter. A fotografia tinha que trazer a informação complementar ou, às vezes, a mais importante, para passar ao leitor o que realmente havia acontecido.

O papel que, segundo Luiz Cláudio Cunha, Kadão teve no desvendamento do “sequestro dos uruguaios”, é exemplar desse novo papel dos fotógrafos na cobertura jornalística, naqueles anos remotos.

Na passagem pela Veja, em São Paulo, convivendo no dia-a-dia com os melhores fotojornalistas em atividade no país, Kadão consolidou sua vocação. Daí em diante, cresceu exponencialmente.

Outra característica daquele grupo, que em determinado momento se aglutinou na Coojornal, foi o espírito solidário, de generosidade, que o Kadão requintou.

Sempre lembro o caso do Arfio Mazzei, que morreu recentemente, fotógrafo respeitado. Estava perdido na vida, teve uma chance na fotografia do jornal A Platéia, de Livramento.  Não sabia nada, nem máquina tinha. Kadão recebeu-o, ministrou-lhe um treino intensivo e, se não me engano, ainda emprestou uma câmera.

Kadão morreu na sexta-feira, 4 de abril de 2025. Ainda está muito próximo para que possamos perceber toda a sua dimensão e seu devido lugar na história do fotojornalismo brasileiro. (Elmar Bones)

 

 

Por que o súbito interesse dos EUA na Groelândia?

Henrique Casanova

Donald Trump escandalizou o ambiente da geopolítica internacional quando declarou sua intenção de anexar a Groelândia. O Presidente norte-americano é conhecido como um excêntrico e a afirmação foi vista com certo humor por parte dos seus seguidores.

Analistas mais bem informados, porém, rapidamente ligaram a surpreendente fala com o fato de que a Groelândia tem solo rico em minérios relevantes na produção de energias alternativas.

A Groelândia, que é um território autônomo vinculado à Dinamarca, tem grandes reservas de minérios, alguns destes raros, necessários no desenvolvimento dos  carros elétricos. Importante lembrar que famosos bilionários do setor estão literalmente na cúpula do governo Trump. É esperado um boom de mineração naquele território para os próximos anos.

 

Tensões com China e Rússia

Com o progressivo recuo das geleiras, devido ao aquecimento global, as rotas marítimas do círculo polar ártico tornam-se cada vez mais navegáveis. O país com mais território nessa região é a Rússia, adversário histórico dos Estados Unidos, mas também a China (contra quem o Império norte-americano prevê uma guerra) tem o mar ártico como importante rota da sua pujante economia.

Restringir o acesso da China àquela região é a preocupação estratégico-militar dos Estados Unidos quando falam que anexar a Groelândia é uma questão de “segurança nacional”. A intenção é ampliar a presença militar naquele território (os EUA já possuem uma base militar ao Norte da ilha). Donald Trump, em reunião com o Secretário Geral da OTAN, Mark Rutte, semana passada, afirmou que controlar a Groelândia é do interesse da segurança de todo o bloco Ocidental.

O que pensa disso tudo o povo Groelandês?

Uma pesquisa realizada com a população nativa em janeiro deste ano mostra que 85% da população se opõe a fazer parte dos Estados Unidos. O grupo de pesquisa Verian, endossado por jornais locais e dinamarqueses, levantou ainda que foram apenas 6% os que responderam favoráveis, com 9% de indecisos.

Considerada a maior ilha do mundo, a Groelândia tem clima hostil, já que seu território está localizado nas altas e gélidas latitudes polares. Sua população concentra-se na costa Oeste e compõe cerca de 60 mil habitantes, a maioria da etnia esquimó “Inuíte”. Seu governo é autônomo, com parlamento próprio. O país tem sistema de saúde e ensino superior gratuitos.

Os Groelandeses cultivam distanciamento até mesmo com a Dinamarca, almejando sua completa independência enquanto país. Seu primeiro ministro, Mute Egede, é de etnia nativa e afirmou, neste 13 de março, que “é necessário endurecer a rejeição a Trump. As pessoas não podem continuar nos desrespeitando”.

 

 

 

 

 

 

Arfio Fontoura Mazzei: anotações para um perfil

1981. Precisávamos de um fotógrafo no jornal A Platéia, de Santana do Livramento.

Pedi uma indicação ao Danilo Ucha, meu sócio naquela empreitada insana.

Teria que ser um principiante porque o salário era exíguo. Estávamos tentando reabilitar um jornal falido.

Ninguém queria ir para o interior ganhando pouco.

Ucha apresentou uma alternativa: o Arfio Fontoura Mazzei, seu enteado, estava interessado na vaga. Tinha 27 anos, não sabia nada de fotografia, mas estava disposto a aprender.

Ricardo Chaves, o Kadão,  cuja generosidade é inexcedível, era fotógrafo da Veja em Porto Alegre e aceitou  acolher o candidato a fotógrafo em seu laboratório e passou-lhe os fundamentos do ofício, sem qualquer ônus.  Aplicado e meticuloso, em pouco tempo era um craque.

Um dos orgulhos que guardo é ter acreditado no “Alemão”.  A fotografia era sua vocação e ele soube honrá-la.

Deixou sua pegada no JÁ, no Jornal da Noite e na Zero Hora, entre outros.

Não sei se  seu acervo está organizado, nem se está preservado. Sei que tem valor, principalmente  no que tem de sensível  ao registrar a vida no campo e a natureza do pampa, hoje ameaçada.

Arfio Mazzei tinha 71 anos e faleceu nesta  terça-feira 14 de janeiro de 2025.

https://www.jornaldocomercio.com/geral/2025/01/1187176-fotografo-gaucho-arfio-mazzei-morre-aos-71-anos-em-porto-alegre.html

(Elmar Bones)

ELMAR BONES: O papel do papel na era digital

O senso comum acredita que o jornal e a revista impressos morreram (ou vão morrer) por causa da internet e dos meios digitais.

Não se leva em conta que esse é (também e principalmente)  o discurso dos “donos da tecnologia digital”, com seu viés de dominação e colonização cultural.

Na história da evolução (ou involução?) humana, não há o caso de uma tecnologia que tenha eliminado a outra.

Assim como a sofisticada tecnologia do radar não extinguiu os balões de investigações atmosféricas e o telefone não extinguiu o telégrafo, é improvável que o digital extinga o impresso.

O uso do papel como plataforma para difusão de informações remonta a 1.500 anos, pelo menos 300 anos na forma de jornais e revistas.

O papel impresso chegou a ser o principal meio de difusão de informações,  as ideias veiculadas nas primitivas gazetas revolucionaram o mundo.

Foi superado pelos meios eletrônicos do Século XX, mas não perdeu sua relevância, básicamente por suas faculdades de síntese, de portabilidade, de documento.

Será totalmente descartado, agora, com a emergência das novas tecnologias digitais do século XXI,  que além de plataformas ilimitadas oferecem  a difusão instantânea, sem limites de informações?

“O novo transforma o antecessor em forma de arte, “, dizia Marshall Mcluhan, E exemplificava: “Quando escrever era novo, Platão transformou o velho diálogo oral em forma artística”.

O  impresso terá, portanto,  que se adaptar  à nova realidade e, quem sabe, tirar proveito dela.  O papel e o digital podem ser plataformas complementares, com alta sinergia.

Para ficar no local:

A Zero Hora “print’, como diz Nelson Sirotsky, tem 40 mil assinantes, contrariando até as expectativas da Casa. Não é indicativo que existe um mercado?

Considere-se que a ZH é um caso exemplar de uso inadequado do papel como plataforma para difusão de informações.

O papel não tem mais como dar conta do “noticiário”, os fatos estão na internet em tempo real, ao vivo, a cores e com imagens, assim como as opiniões e os pitacos dos “influencers”.

O impresso vai sobreviver na medida em que ganhar um novo conteúdo, capaz de identificar e fixar as conexões que são voláteis e dispersas na internet. Tem que tirar proveito de suas qualidades, da permanência e da prova.

Teremos nós,  jornalistas, que aprender a produzir esse novo conteúdo na prática, porque ainda não há uma teoria. Isso é o que intimida.

É mais fácil (ou cômodo) acreditar que o dono da tecnologia está certo.

 

GERALDO HASSE/A volta do glorioso escriba farroupilha

Dois séculos atrás, atraídos pelos ventos da independência política do Brasil, chegaram ao Rio de Janeiro alguns europeus engajados em aventuras artísticas, pesquisas científicas e lutas políticas.

Eram Debret, Martius, Saint-Hilaire, Spix e outros, entre os quais até italianos fugitivos de monarcas raivosos. O mais famoso desses tipos extraviados nos trópicos foi Giuseppe Garibaldi, que guerreou no Rio Grande do Sul antes de se consagrar na terra natal, onde foi festejado como “o herói de dois mundos”.

Outro, muito amigo de Garibaldi, foi Luigi Rossetti, cuja trajetória como editor de O Povo, o bisemanário da
República Rio-Grandense do Sul, só recentemente veio à tona, graças sobretudo à pertinácia do jornalista-historiógrafo Elmar Bones, autor do livro “O Editor Sem Rosto” (JÁ Editores, 2024, 3ª ed), que está sendo
relançado neste sábado, 28, em Viamão, e deve ser vendido na Feira do Livro de Porto Alegre de 2024.
O título do livro se refere ao fato de que não há uma foto ou desenho de Rossetti.

Dele se perdeu até o túmulo. Morto em combate em Viamão em novembro de 1840, esse voluntário da revolução de 1835 toureou o conservadorismo dos chefes farroupilhas e saiu perdendo.

Entretanto, além de artigos no jornal oficial, deixou uma série de cartas reveladoras de seus ideais republicanos, motivo de suas diatribes com seu chefe direto, o charqueador Domingos José de Almeida, ministro que
cuidava das finanças da República Rio-Grandense.
Foi um editor sem rosto sim, mas com caráter, na luta inglória em defesa de princípios desprezados pelos detentores do poder.

Como tantos jornalistas ao longo da História, Rossetti engoliu sapos no esforço para colocar seu pensamento nos textos que escrevia no jornal que não lhe pertencia – pertencia, supostamente ao povo, que no frigir dos povos não vale um ovo.

Por aí se compreende como e porque Bones, editor do jornal Já há três décadas, se empenha na história do personagem esquecido nos mais de 500 livros escritos sobre a Grande Revolução do Sul.
É surpreendente como Rossetti foi encarregado de montar não só o jornal mas tocar a gráfica comprada em Montevideo.

Sua contratação mostra que os farrapos não tinham quadros para cargos importantes como o diretor do
seu jornal. Confiaram num aventureiro dedicado ao combate político.

Sem dúvida, ele tinha carisma e verve, tanto que trocava ideias com o coronel Corte Real e outros chefes. Depois de um tempo, no entanto, o escriba incômodo foi encarado como estrangeiro sem voz numa terra controlada por caudilhos prontos a negacear a promessa de
libertar os escravos.
Pouco se conhece da história pessoal de Rossetti. Nasceu em 1800 em Genova, onde frequentou a faculdade de Direito. Para não ser preso por fazer parte dos Carbonários antimonarquistas, fugiu da Itália, perambulou pela Europa e chegou ao Rio em 1827.

Não se sabe quais suas atividades antes de se associar a Garibaldi e outros italianos, em 1836, para explorar a navegação na costa fluminense.

Por boicotes e calotes, não lograram sucesso nessa empreitada mas tiveram a sorte de conhecer o
presidente Bento Gonçalves, a quem visitaram na cadeia da Fortaleza da Laje, no Rio – o general fora feito prisioneiro na batalha da ilha do Fanfa, no rio Jacuí, entre Porto Alegre e Triunfo, no primeiro ano da revolta.
Por incrível que possa parecer, em sua conversa no cárcere, os desventurados marinheiros italianos conseguiram do chefe farrapo uma carta de corso que os autorizava a pilhar embarcações no Atlântico em
benefício da República Rio-Grandense.

Deram-se bem nessa guerrilha naval até chegar ao Uruguai e à Argentina, onde Garibaldi foi encarcerado e
maltratado até conseguir ajuda da maçonaria para recuperar a liberdade e, daí em diante, engajar-se na revolução gaúcha (sua maior proeza foi
convencer Bento Gonçalves a organizar uma flotilha para embaraçar a marinha imperial na Lagoa dos Patos e chegar até o litoral catarinense, na louca manobra da tomada de Laguna em 1839).
Em Montevideo, onde tinha muitos correligionários italianos, especialmente o amigo Giovanni Cuneo, Rossetti trocou a vida de corsário pela de assessor do ministro Almeida.

Conseguiu o cargo por sua habilidade na articulação de negócios entre o governo farroupilha e os
amigos maçons de Montevideo. Carretas de couro e tropas de gado em pé eram os principais produtos exportados para o Uruguai pela república gaúcha, que recebia em troca armas, munições, uniformes para seus
soldados e sabe-se lá mais o quê.

Rossetti era portanto um agente duplo: trabalhava junto ao ministro farrapo como “procurador” dos amigos
contrabandistas sediados em Montevideo.

Nas horas vagas, cuidava do jornal farroupilha, que acabou se tornando seu xodó, depois de ficar
várias semanas na capital uruguaia para conseguir autorização oficial para tirar do país os equipamentos gráficos montados em Piratini, onde o jornal O Povo começou a ser feito.
Embora tivesse um perfil de jornalista combativo, panfletário até, a correspondência de Rossetti (sobretudo com o amigo Cuneo) não menciona nenhum jornalista ou intelectual com quem poderia ter tido contato no Brasil.

Até agora não se descobriu se teve algum interlocutor carioca com quem possa ter recebido noções sobre a língua portuguesa, que manejava satisfatoriamente. O que se sabe é que participou de um jornal dirigido à colônia italiana da capital, onde havia vários comerciantes
de origem peninsular.

Na época em que viveu no Rio (1827-36), Rossetti
foi qualificado como “vagabundo” num relatório diplomático preparado por um emissário do Vaticano. A expressão era naturalmente preconceituosa por ser Rossetti um agitador político que não respeitava o clero, embora fosse temente a Deus.
Também não se sabe se fez contatos com jornalistas ou políticos na capital brasileira. Na imprensa carioca era muito ativo e influente nos anos 30 do século XIX o político Evaristo da Veiga (1799-1837), que publicava a Aurora Fluminense, jornal contra a escravidão dos negros.
Terá Rossetti trabalhado nesse veículo politizado? Em São Paulo se destacou Libero Badaró, nascido em 1798 em Genova e chegado a São Paulo em 1828.

Médico e liberal, Badaró editava O Observador Constitucional, no qual costumava atacar o imperador Pedro I, autor da primeira Constituição do Brasil, de 1823. Foi morto em 1830 numa tocaia a mando de um desafeto do seu periódico.
Rossetti era um republicano sincero que provavelmente se criou lendo e ouvindo sobre as teses iluministas que levaram à Revolução Francesa (1789) depois de ajudar a levantar a bandeira da independência dos EUA em 1776. Veio depois de filósofos franceses como Rousseau e Voltaire, e precedeu o alemão Marx, que inspirou o russo Lenin – todos europeus revolucionários.

Foi contemporâneo dos americanos Lincoln e Simon
Bolívar, mas seu guru era Mazzini, o revolucionário italiano. Também não há notícia de que tenha se sensibilizado com o trabalho do maçom Hipólito José da Costa, que publicou em Londres de 1808 a 1822 o jornal
Correio Brasiliense.
O que mais impressiona na leitura de O Editor Sem Rosto é o fato de que, há quase 200 anos, trabalhou anonimamente em Piratini um escriba que incorporou as vissicitudes dos fazedores de jornal diante dos interesses dos mandantes da hora, no caso, o ministro Domingos de
Almeida, Bento Gonçalves e outros chefes farroupilhas. Nada de novo no front farroupilha: aparentemente sem noção de hierarquia, o editor genovês se revoltou quando o todo-poderoso Almeida deu razão a um cadete
que cortara um texto seu.

Um cadete com a metade de sua idade! Rossetti pediu para sair, mas teve a petulância de indicar o amigo italiano Cuneo para o cargo que acaba de largar.

O indicado chegou a viajar de Montevideo para a província rio-grandense, mas nem chegou a pegar na
pena porque o jornal estava parado e a tipografia, desmontada por contingências da guerra.

A partir de 1840, com o governo farroupilha
obrigado a deslocar-se em carretas pelo pampa, sob perseguição do exército imperial, o jornal não circulou mais.

Depois de deixar o jornal, Rossetti não foi pedir emprego em outra gráfica ou redação; partiu Camaquã, onde passou a trabalhar com Garibaldi no estaleiro em que se construíam os lanchões da marinha farroupilha.

E continuou escrevendo para o ministro Almeida, de quem se declarava amigo. Cheio de opiniões, era um tipo inquieto e se reconhecia “fogoso”, o que remete ao exaltado Tiradentes enforcado em 1792 em Ouro
Preto e outros revolucionários brasileiros como Domingos Martins, fuzilado aos 37 anos em Pernambuco por se envolver em conspirações contra o jugo português (1816).

Enfim, Rossetti foi um lutador que pouco deixou para ser lembrado, ao contrário do amigo Garibaldi que, além da
lagunense Anita, levou do Sul como paga por seus serviços uma boiada de 900 cabeças vendida no Uruguai.

Enquanto há centenas de livros e vários filmes sobre Garibaldi e sua lenda, Rossetti inspirou três teses acadêmicas sobre como a revolução farroupilha foi vista por outros países.

Lembra o editor Bones: “Os escritos de Rossetti — cartas, artigo, proclamações — são a fonte principal para se estudar as relações dos farrapos com o exterior e
também para as divergências entre os chefes farroupilhas”.

Recorde-se que, após dez anos de luta, os chefes farrapos estavam divididos e não obtiveram o reconhecimento de nenhum país — nem do amigo Uruguai.

Com exceção de uma irmã deixada na Itália, não há referências familiares na história de Rossetti. Cabe pesquisar em busca de novidades, mas ele parece ter negligenciado a vida afetiva para se dedicar integralmente à causa política e aos ideais democráticos.

Foi umautêntico republicano entre caudilhos ciosos do mando.

 

Semana Farroupilha: quando o marketing se apropria da História

A chamada “Revolução Farroupilha” tornou-se um caso exemplar de apropriação da história por interesses do presente, com graves prejuízos para o entendimento dos fatos históricos.

Foram quase dez anos de guerra – do dia 20 de setembro de 1835, com a tomada de Porto Alegre, até fevereiro de 1845, quando a paz foi assinada em Ponche Verde, no acampamento das tropas rebeldes, reduzidas a algumas centenas de homens, mal armados, já sem roupas para aguentar o inverno que se avizinhava.

Houve feitos heroicos e eventos memoráveis, sem dúvida.

No conjunto, foi uma aventura política mal sucedida. Começou como uma rebelião, desandou numa sedição, proclamando uma república, que nunca se instituiu, e terminou de forma melancólica, com acusações, brigas entre os líderes, e até assassinatos.

Em todo caso, foi a primeira experiência republicana no Brasil e, meio século depois, quando a luta pela República tornou-se um movimento nacional, foi inevitável o resgate dos farroupilhas, “heróis que se levantaram contra a opressão do regime imperial”.

Construiu-se, então, a lenda do “decênio heroico” e uma corrente de historiadores se dedicou a desentranhar as ações e as ideias “dos homens de 1835”.

Essa apropriação da história farroupilha para fins políticos e ideológicos, com graves prejuízos para a verdade histórica, se estendeu por todo o século XX, embora várias tentativas de revisão tenham sido feitas.

Sérgio da Costa Franco, que muito pesquisou e escreveu sobre os farrapos, disse numa entrevista*: “Toda a historiografia do ciclo farroupilha é marcada pela devoção reverencial, senão por sua apaixonada mitificação. Dessa fatal parcialidade provavelmente nunca se livrará a bibliografia histórica rio-grandense por mais revisões que se faça”.

Neste início de século 21, uma outra forma de apropriação se superpôs, no bojo de um modelo econômico que busca oportunidade de lucros no real e no imaginário. O apelo popular do “decênio heroico” despertou interesses comerciais e mercadológicos e o marketing identificou no gauchismo um “nicho de mercado”.

A apropriação da história para fins políticos já foi bem dissecada  por Yeda Guttfreind e outros historiadores. A leitura dos principais autores desse período levou o então sociólogo  Fernando Henrique Cardoso a concluir que “o gaúcho tinha uma autoimagem deformada”.

Sobre essa atual apropriação da história pelo marketing, pouco ou nada se estudou, ainda.  Mereceria porque, sem dúvida, é exemplar, embora não seja original.

De um lado tem-se o MTG, movimento tradicionalista com seus dois mil centros de tradições gaúchas no Estado, no Brasil e no exterior. O circuito de bailes e eventos se desenvolveu em torno dos CTGs, criando um mercado para músicos, produtores e outros profissionais, sustentado por um público urbano, nostálgico de suas raízes rurais, às vezes imaginárias.

O movimento tradicionalista nasceu em 1948, numa reação, de um lado, ao sufocamento das identidades regionais, promovido pela ditadura do Estado Novo e, de outro, à invasão cultural americana.

Paixão Cortes e Barbosa Lessa foram às fontes populares resgatar os cantos, as danças, a indumentária e as manifestações da cultura regional nas diversas comunidades do Rio Grande do Sul. Eles descobriram um rico e diversificado acervo, que por razões a serem buscadas, acabou reduzido ao “gaitaço galponeiro”, o “gritedo”, de que reclamava Luiz Carlos Borges, hoje elevado à expressão principal da dita “cultura gaúcha”.

Outro vetor desse processo é a televisão, especialmente o programa “Galpão Gaúcho”, da RBS TV, lançado em 1982, não por acaso um ano depois do primeiro Acampamento Farroupilha, em Porto Alegre, a cidade que na história real sempre rechaçou os farrapos.

Mesmo oscilando ao sabor da grade de programação da Rede Globo, o Galpão Crioulo, pelo grande alcance da RBS através de suas retransmissoras no interior, deu tração ao movimento tradicionalista, dele se alimentou e se alimenta.

Com o novo viés da RBS, de potencializar negócios, esse tradicionalismo, que é “uma doença infantil do gauchismo”,  se apresentou como um nicho perfeito: sela  a aliança com o “público gaúcho” e mobiliza os grandes anunciantes nacionais que querem falar  a esse “público gaúcho”.

O problema é que essa apropriação da história pelo marketing  não se faz sem danos. O marketing tende a simplificar para produzir mensagens sucintas e convincentes, mesmo a custa dos fatos.

É o que está acontecendo, em dose cavalar (sem trocadilho).

Basta dizer que fizeram do 20 de setembro o “Dia do Gaúcho”, em reverência aos heróis de 1835, homens de uma época em que chamar alguém de “gaúcho” era uma ofensa. (Elmar Bones)

 *República Riograndense”, Revista JÁ, 2016