Uma ideia revitalizadora: criar o Museu do Cais Mauá

Geraldo Hasse
Enquanto o projeto de revitalização do Cais Mauá dá os primeiros passos concretos após superar uma série de embargos judiciais, começa a circular entre funcionários remanescentes da extinta Superintendência de Portos e Hidrovias (SPH) uma ideia capaz de dar nova vida à biblioteca instalada no primeiro andar do edifício-sede do antigo Departamento de Portos, Rios e Canais (DEPRC), na Avenida Mauá.
Guardiã da história das hidrovias gaúchas desde a época da construção do primeiro cais da capital em 1911, a biblioteca possui tantos documentos, estudos e projetos que poderia se tornar o núcleo central de um museu do porto. No momento, não há clima para discutir a ideia, pois a maioria dos servidores da ex-SPH está na luta para não perder seus cargos ou aguarda o tempo para se aposentar.
No entanto, se o conceito contar com vento favorável, será fácil conversar com o pessoal do consórcio revitalizador dos espaços deteriorados do mais antigo terminal portuário de Porto Alegre, já que o escritório do Cais Mauá Brasil ocupa um conjunto de salas na ala leste do primeiro andar do edifício-sede da extinta SPH, no mesmo piso da biblioteca.
A presença de funcionários privados num espaço ainda ocupado por servidores públicos gera um clima estranho que bem pode ser convertido em algo construtivo, de conteúdo histórico e alcance popular. Afinal, o objetivo é movimentar o cais.
A biblioteca está operando com restrições desde que a bibliotecária titular Maria da Graça Coimbra Pascual aposentou-se. O acervo ficou temporariamente aos cuidados do seu fiel ajudante Jorge, que também se retirou quando a direção da extinta SPH foi deslocada para Rio Grande, em 2017.
Limpa e bem cuidada, a biblioteca do Cais Mauá é uma das mais completas do Brasil em assuntos de navegação e transporte hidroviário. Ela é frequentada sobretudo por estudantes e técnicos, mas pode ser aberta ao público em geral, sobretudo se for enriquecida por peças históricas que abundam nos portos e hidrovias do Estado.
Por exemplo: na portaria do prédio central, na parede do térreo, está preservado o enorme logotipo em metal dourado do antigo Departamento Estadual de Portos, Rios e Canais/DEPRC (1951-1989) – peça digna de figurar num museu hidroviário.

Movimento está restrito nas áreas secas do Cais Mauá

Geraldo Hasse
Os mais de 100 funcionários remanescentes da extinta Superintendência de Portos e Hidrovias (SPH) em Porto Alegre foram notificados nesta quinta, 08/03), sobre as novas normas de circulação nas áreas secas do Cais Mauá, patrimônio público cedido à iniciativa privada por 25 anos.
As novas regras, visando à segurança das pessoas e à disciplina dos serviços, foram ditadas pelo consórcio Cais Mauá, responsável pelas obras de “revitalização” dos espaços (armazéns, galpões e pátios) situados ao longo da Avenida Mauá. É uma “linha dura” que conflita com o marasmo do lugar situado no centro histórico de Porto Alegre.
Foi anunciada a construção de um tapume que se unirá ao cinquentenário Muro de Contenção das Águas do Guaíba para restringir o movimento de pedestres na área seca do cais.

Circulação de visitantes está proibida / JÁ

A circulação de visitantes está proibida, conforme aviso afixado em placas no pórtico central. Em cada um dos portões da área privatizada foram colocados guardas de uma empresa de segurança.
Já o movimento de embarcações no lado das águas segue as regras da navegação, pois, como lembra o engenheiro Álvaro Melo, diretor de manutenção da hidrovia: “A verdadeira frente do porto não fica na Avenida Mauá, mas nas águas do Guaíba”.
Além dos catamarãs que transportam passageiros na linha Porto Alegre-Guaíba-Porto Alegre, o canal do Guaíba é usado por navios de carga que buscam os terminais Navegantes, de Gravataí e Triunfo.
São apenas três ou quatro barcos por dia, mas sua movimentação é uma prova viva de que, de acordo com Melo, “a hidrovia continua funcionando”.
Os serviços básicos de manutenção da hidrovia são garantidos atualmente por uma centena de funcionários concursados em 2010 e que permanecem em suas funções graças a uma liminar da Justiça do Trabalho.
Desde o ano passado, quando da extinção da SPH, aposentaram-se mais de 40 funcionários admitidos na época do antigo Departamento Estadual de Portos Rios e Canais (DEPRC), criado nos anos 1930 e extinto no final do século XX.
Os veteranos que sobraram foram anexados ao quadro de pessoal da Secretaria dos Transportes, mas respondem operacionalmente à Superintendência do Porto de Rio Grande.
A tarefa mais constante do pessoal mantido em Porto Alegre é a manutenção dos sinais náuticos, especialmente boias cegas e boias luminosas que orientam o tráfego noturno entre o Lago Guaíba e Itapuã, na entrada da Laguna dos Patos.
Cada boia de luz pesando quase duas toneladas custa R$ 50 mil. Não são incomuns os abalroamentos de boias por navegantes distraídos. Bem mais frequentes são os furtos das lanternas alimentadas por sensores de energia solar – cada uma custa R$ 13 mil.
A reposição dessas peças é obrigação prioritária do pessoal da ex-SPH.
A falta de recursos impede a implantação de uma rede completa de iluminação da hidrovia Guaíba-Itapuã.
O projeto está pronto mas, para implantar a rede de boias luminosas, é preciso fazer um levantamento por sonar multifeixe do leito do Guaíba exigido pela Marinha (para a navegação) e pela Secretaria Estadual do Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (para liberar a extração de areia do leito do Guaíba).
A SPH tem a embarcação apta a fazer o serviço, mas falta o equipamento multifeixe a ser providenciado pela SEMA.
Consórcio já pôs sua marca no Muro do Guaíba / JÁ

Clima de campanha eleitoral no ‘Caos Mauá’

Geraldo Hasse
Lembrando estar “no primeiro dia do terceiro mês do quarto ano do governo”, José Ivo Sartori assinou na manhã desta quinta-feira, 01/03, a ordem de início das obras de revitalização do Cais Mauá.
A cerimônia, mescla de evento empresarial e comício político, reuniu mais de 250 pessoas sob um toldo branco às margens do Guaíba, no Centro Histórico em Porto Alegre. “Este é um projeto de Estado, não de governo”, afirmou Sartori, após queixar-se de “alguns ranços” que, segundo ele, levam muitas pessoas a “puxar para trás”.
Por coincidência, no momento em que o governador falava, às 11h55m, um catamarã vindo de Guaíba saiu de sua rota habitual, no meio do canal de navegação, aproximou-se do cais e, em marcha lenta, soltou três prolongados buzinaços. Sorrindo diante da “surpresa”, Sartori abanou alegremente para o barco que, desde o final do governo Yeda Crusius (2007-2010), faz a linha Porto Alegre-Guaíba. Aparentemente casual, a cena foi aplaudida por parte do auditório, constituído por políticos, funcionários e empresários.
Antes de Sartori, que encerrou sua fala trocando sem querer a palavra “cais” por “caos”, parte do público também aplaudiu por duas vezes o discurso do prefeito Nelson Marchezan Júnior. Em tom veemente, ele verberou fortemente contra “os que travam a máquina pública por motivos ideológicos”, preferindo “focar nos seus eleitores e esquecendo a população em geral”.
Dirigindo-se aos investidores no projeto do Cais Mauá, Marchezan pediu desculpas “pela lerdeza da máquina pública” e lhes agradeceu “por não terem desistido”. E pediu que “não sejam lerdos como a máquina pública” – “pesada, atrasada, retrógrada”. Seu protesto era contra vereadores e deputados estaduais que lutam contra “as reformas necessárias”.
O deputado Pedro Westphalen, secretário dos Transportes, fez um pronunciamento extremamente ameno. “Este é um dia muito especial”, disse ele, lembrando que o atual governo “fez pouco” pela revitalização do “cartão-postal de Porto Alegre” porque está empenhado em outros projetos. Segundo Westphalen, a cerimônia no cais “encerra expectativas de 30 anos” e se configura como “uma obra coletiva” de diversas pessoas – foram citados os ex-prefeitos João Fogaça e José Fortunati e, especialmente, a equipe técnica liderada por Edemar Tutikian.
O empresário João Carlos Mansur, presidente do grupo Reag, que assumiu a gestão do projeto licitado em 2010 e desde então emperrado por demandas ambientais, problemas técnicos e questões políticas, usou várias vezes as palavras “orgulho” e “gratidão” para definir seu sentimento em relação ao que considera “um empreendimento nacional”.
A Reag, segundo Mansur, administra atualmente R$ 7 bilhões por meios de dezenas de fundos de investimentos. Em sua fala, Mansur deixou claro que o objetivo inicial é abrir o cais ao lazer da população. Após a ocupação pelo público, talvez já no Natal de 1919, serão iniciadas as grandes obras – um hotel e um centro comercial.

Criscio, diz que serão aplicados R$ 140 milhões na primeira fase / GH / JÁ

Como executivo do projeto, foi apresentado o consultor Vicente Criscio, que já trabalhou em contratos de reestruturação empresarial em Caxias do Sul e Porto Alegre. Numa tumultuada entrevista coletiva à imprensa, Criscio disse que a prioridade nos próximos dois anos é colocar em condições de frequência pública os armazéns A e B, situados ao lado do pórtico do Cais Mauá. Nesses primeiros movimentos, devem ser aplicados, segundo ele, R$ 140 milhões, incluindo desembolsos obrigatórios aos governos estadual e municipal. O investimento total é estimado em R$ 500 milhões.
Tanto Criscio como Mansur foram muito cumprimentados por empresários e políticos presentes ao evento no cais. “Eu quero assinar o primeiro alvará do primeiro concessionário do Cais Mauá”, disse o secretário do Planejamento de Porto Alegre, entregando um cartão de visita ao gestor do projeto de revitalização. Por esse gesto, entre outros, ficou claro que a administração municipal encara o Cais Mauá como um marco da iniciativa privada.

Obras
As obras começam no dia 5 de março. O projeto, sem investimento público, prevê 3,2 mil metros de orla com ciclovia, dez praças de lazer e mais de 11 mil metros quadrados de área verde, num espaço total de 181 mil metros quadrados de área revitalizada. Estima-se que gere 28,8 mil novos empregos diretos e indiretos.
O projeto terá três etapas. A primeira é a restauração de 11 armazéns do Cais (do A6, no extremo da Usina do Gasômetro, até o B3, próximo à rodoviária). Deve custar R$ 140 milhões.
A segunda fase, no setor Docas, prevê torres comerciais com serviço de hotelaria, centro de convenções e estacionamento e a recuperação da Praça Edgar Schneider. A última fase é a área do Gasômetro: um centro comercial.

Mudanças acionárias movimentam milhões

Naira Hofmeister
Cinco anos após a licitação do Cais Mauá e sem que a aguardada revitalização tenha saído do papel, o negócio já movimentou milhões de reais.
Isso acontece principalmente através de sucessivos aumentos de capital social do consórcio, da captação financeira e da venda de cotas de ações.
Neste período, a detentora da concessão do antigo porto da Capital, a Cais Mauá do Brasil. S.A., viu seu capital social passar de R$ 1 mil – conforme a ata da assembleia de constituição da sociedade anônima, em dezembro de 2010 – para R$ 13,8 milhões, segundo dados atualizados da Receita Federal.
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A valorização da sociedade anônima, criada sob o modelo de “propósito específico”, ou seja, exclusivamente para a execução do empreendimento, se deu em meio a mudanças na composição de acionistas.
Hoje, apenas duas das cinco empresas que integravam o consórcio vencedor da concorrência pública de 2010 permanecem no negócio.
Quando foi criada, a Cais Mauá do Brasil tinha seus R$ 1 mil de capital social divididos entre uma empresa brasileira e quatro espanholas:
– Contern (BRA): 10%
– Iberosport Asesores de Inversiones (Iberosport – ESP): 10%
– Gestio I Serveis Trade Center (GIS – ESP): 40%
– Strategy Planning Implementation Manegement (Spim – ESP): 26%
– Solo Real State (Solo – ESP): 14%
Destas, apenas a Contern e a Solo seguem no negócio. A primeira mantém a participação de 10% inalterada e a Solo deixou de ser acionista independente para compor uma holding, a GSS, que hoje detém 51% das cotas da Cais Mauá do Brasil.
Além da Contern e da GSS, o terceiro e último sócio, com 39% das ações, é um fundo de investimento chamado Fundo de Investimento em Participações Porto Cais Mauá (FIP).
Essa mudança não ocorreu de uma só vez. Embora o Governo do Estado reconheça a comunicação formal de duas alterações societárias – obrigação que consta do contrato e é um dos apontamentos de irregularidades feitos pelo Tribunal de Contas do Estado – a transformação da Cais Mauá do Brasil S.A. foi sendo operada vagarosamente ao longo do período.
Se deu não apenas com a entrada e saída de novos sócios mas também com a mudança no controle da empresa através da passagem de ações de um componente para o outro.
GSS é uma holding criada em novembro de 2011 para unificar a participação de três espanholas (GIS, Spim e Solo) cujas iniciais deram nome à nova empresa.
Porém, ela própria alterou sua composição ao longo do período, de tal forma que o quadro de atual de sócios registrado na Receita Federal é composto pela Solo (a única remanescente), Bluelog S.A. e por um cidadão espanhol chamado Jose Munne Costa.
Fundos de investimento capitalizaram o negócio
O maior aumento de capital social da Cais Mauá do Brasil S.A. se concentrou em um período de um ano: entre outubro de 2012 – quando passou dos R$ 1 mil para R$ 2,2 milhões – até novembro de 2013, quando alcançou R$ 11,5 milhões.
Coincide com o ingresso no negócio de uma gestora de ativos do Rio de Janeiro, a NSG Capital. Aconteceu no segundo semestre de 2012, após a homologação do acordo entre o Governo do Estado e a Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq), que pôs fim a um litígio judicial e permitiu o desenrolar do contrato normalmente.
A chegada da NSG se deu em um momento em que havia descrédito sobre o futuro do empreendimento; circulavam informações sobre a descapitalização dos espanhóis, fruto da grave crise econômica que se abateu sobre o país a partir de 2008.
Sobre a nova sócia, um dos então diretores do consórcio, o espanhol Francisco Javier Arán, declarou ao jornal Zero Hora: “Estamos envolvidos nesse projeto há cinco anos. Cinco longos anos em que enfrentamos dificuldades. Estávamos um pouco sozinhos, mas agora temos um parceiro forte”.
Na verdade, a NSG nunca foi sócia efetiva do Cais Mauá, mas participa do consórcio através de fundos criados para capitalizar o negócio: primeiro o Fundo de Investimento Imobiliário RSB1, depois com o Fundo de Investimentos em Participações Porto Cais Mauá (FIP).
Em dezembro de 2014, a NSG trocou de nome, passando a chamar-se ICLA Trust, mas mantendo o controle sobre a participação societária dos fundos na Cais Mauá do Brasil S.A.
É pouco antes da formalização do ingresso da NSG que ocorre o primeiro salto no valor do capital social da Cais Mauá do Brasil S.A., que passa de R$ 1 mil para R$ 2,2 milhões.
O aumento está registrado na ata da assembleia geral extraordinária da empresa, ocorrida em 18 de outubro de 2012, assinada pelos dois únicos sócios daquele momento: Contern e GSS.
Duas semanas depois, entretanto, em 1º de novembro, a Cais Mauá do Brasil S.A. informava através de carta para a Superintendência de Portos e Hidrovias (SPH) que havia um novo integrante em seu quadro acionário: o Fundo de Investimento Imobiliário RSB1, “representado por seu gestor NSG Capital”, que controlava 2,22% da companhia.
A gestora de ativos carioca aumentou rapidamente seu percentual de participação, de modo que em 40 dias foi oficialmente anunciada como nova sócia do negócio “detendo 39% das ações do grupo” segundo noticiou o Governo do Estado.
A injeção de recursos seguiu em escalada. No final de janeiro de 2013, o capital social da Cais Mauá do Brasil S.A. foi elevado a R$ 10 milhões e nos últimos dias do ano, novo aporte financeiro registrou o valor de R$ 11,5 milhões.
Desde então, houve pelo menos um novo acréscimo, até atingir os R$ 13,8 milhões atuais.

Arte: Andres Vince
Arte: Andres Vince

Participação de investidores  deverá crescer
O curioso é que a participação efetivamente registrada dos fundos na Cais Mauá do Brasil S.A. em alguns momentos é menor do que a informada pelo Estado.
Por exemplo, em que pese o anúncio de inclusão da então nova acionista no grupo, em 11 de novembro de 2012, informar que a NSG detinha 39% das ações do empreendimento, em 10 de junho de 2013 o TCE registra que o Fundo RSB1 possui ainda apenas 3,5% das cotas.
O FIP só passou a ter uma participação importante no negócio em novembro de 2013, quando passa a constar nas atas de subscrição de capital como detentor de 35,5% das ações.
Complementavam a cota da NSG 3,5% do fundo RSB1, que estava sendo incorporado pelo FIP, conforme informa a Receita Federal.
Neste período, os aportes financeiros para complementação do capital social foram majoritariamente feitos através da GSS Holding.
Mas como explicar que, estando em dificuldades como admitia ao Jornal do Comércio o diretor Francisco Javier Aran – “a crise na Europa frustrou a garantia de aportes por potenciais investidores entre ingleses e espanhóis” – a empresa pudesse subscrever valores tão elevados?
Uma possibilidade é um financiamento indireto visando uma remuneração futura: ou seja, um adiantamento para compra de ações que ocorreria posteriormente.
O mais recente demonstrativo financeiro do FIP – de 30 de junho de 2015 – registra que nos 18 meses anteriores foram feitas nove operações de “adiantamento para futuro aumento de capital” que totalizam R$ 18,8 milhões.
Nas demonstrações contábeis do fundo disponíveis no site da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), o investimento na Cais Mauá do Brasil S.A. aparece avaliado em R$ 58,6 milhões.
E há ainda o registro de uma opção de compra preferencial de ações na companhia no montante de R$ 61,8 milhões.
A intenção de ampliar a fatia na empresa fica explícita nas notas explicativas “Opções são instrumentos financeiros que se caracterizam como título patrimonial, exclusivamente para aumento da participação societária na Cais Mauá do Brasil S.A.”.
Ativos são insuficientes para bancar investimentos

Embora a Cais Mauá do Brasil S.A. seja composta por três sócios, os empreendedores sempre deixaram claro que o investimento para a construção do complexo turístico à beira do Guaíba seria feita com recursos captados pelos fundos.
À SPH, em junho de 2013, o consórcio “comunicou que um dos acionistas era o FIP, faria dois aportes de recursos na empresa: i) através da aquisição de participação societária da GSS, via mercado secundário, e ii) através de aportes financeiros na empresa Cais Mauá S.A, capitalizando-a”.
Ambas promessas se concretizaram. Entretanto, por maior que tenha sido o rendimento do fundo FIP, ele não seria, hoje, suficiente para alcançar o aporte mínimo exigido pelo contrato de arrendamento (R$ 350 milhões).
O mais recente relatório aos investidores do fundo FIP, datado de 29 de janeiro de 2016, revela um patrimônio líquido de R$ 161,7 milhões.
Ou seja, não chega a 50% do valor mínimo pactuado entre o Estado e o empreendedor.
A considerar o estudo da Faculdade de Administração da PUC-RS feito em 2015, que sugere que o investimento necessário para colocar em pé o empreendimento já estaria em R$ 675 milhões, o fundo ainda não subsidiaria nem 25% do necessário.
Usualmente, o valor empregado para calcular o valor do empreendimento gira entre R$ 400 e R$ 500 milhões – este último dado era a meta de captação do FIP quando foi lançado.
Aí reside a importância do debate travado entre o Governo do Estado e o Tribunal de Contas sobre a obrigatoriedade da apresentação de “carta de estruturação financeira” pelo consórcio.
Esse documento garantiria o investimento através de um contrato com instituição financeira com patrimônio líquido de R$ 400 milhões “ou arranjo equivalente”, segundo o relatório do TCE.
Trocando em miúdos, o órgão de controle quer que fique comprovada a disponibilidade do recurso a ser aplicado na obra.
O empreendedor nunca cumpriu o que está no contrato, porém entregou documentos “com a intenção de atender à cláusula”, uma delas taxada pelo TCE de “carta de intenções” porque fazia um exercício hipotético sobre o funcionamento do negócio.
Na segunda tentativa, o consórcio bateu na trave. Remeteu à comissão de fiscalização da SPH os regulamentos dos fundos, demonstrando que tinha uma estratégia de investimento com recursos próprios, captados no mercado.
Os auditores do TCE se convenceram que aquela era “uma estruturação financeira que pode assim ser denominada”, entretanto, “uma vez que os aportes dependem da captação de recursos no mercado por meio de fundos não há qualquer garantia de sucesso”.
Naquela oportunidade, o TCE já havia constatado que o volume de recursos captados pelos dois fundos, que na época coexistiam, era de R$ 180 milhões.
O Governo do Estado, entretanto, sustenta que a cláusula é facultativa porque determina a apresentação da carta “quando for firmado, pela arrendatária, contrato de financiamento”.
Assim, a garantia do investimento, na visão do Estado, é dada através dos cálculos de patrimônio líquido, solvência e liquidez de cada um dos participantes do consórcio, o que a CAGE atesta estarem de acordo com o exigido no edital mesmo após as mudanças acionárias.
Espanhóis estariam deixando o empreendimento
JÁ obteve documentos confidenciais que revelam vendas de ações | Tânia Meinerz
JÁ obteve documentos confidenciais que revelam vendas de ações | Tânia Meinerz

O Jornal JÁ teve acesso a um documento confidencial assinado em 20 de dezembro de 2013, no qual os sócios da GSS Holding passam o controle acionário a outra empresa. Ou seja, os espanhóis estariam deixando o negócio.
A negociação totaliza R$ 25,5 milhões, que seriam pagos em quatro parcelas entre dezembro de 2014 e dezembro de 2015. O contrato assinado não deixa dúvidas sobre o objeto do negócio:
“Motiva a presente promessa de compra e venda a existência, dentre os ativos da sociedade, as ações correspondentes a 51% do capital social da companhia denominada Cais Mauá do Brasil S.A., sociedade anônima com sede na cidade de Porto Alegre, Estado do Rio Grande do Sul, na Avenida Mauá nº 1.050/4º andar”.
O comprador é também uma “sociedade de propósito específico” chamada Cine Empreendimentos Imobiliários aberta em 2012 e sediada no bairro Bela Vista, em Porto Alegre.
Uma conta de cinco milhões a pagar
UFRGS chegou a fazer estudos arquitetônicos para se instalar no Cais | Reprodução
UFRGS chegou a fazer estudos arquitetônicos para se instalar no Cais | Reprodução

Não foi possível comprovar se a negociação se efetivou entre os espanhóis e a Cine Empreendimentos, porém em dezembro de 2014 o juiz Eduardo Kothe Werlang determinou o arresto das cotas societárias da GSS na Cais Mauá do Brasil S.A. em razão do contrato entre as partes.
É que a GSS precisava pagar um débito de R$ 5,8 milhões a um antigo parceiro da revitalização do cais do porto, coisa que não fez.
O credor dos espanhóis é um nome fundamental no empreendimento, que idealizou, estruturou e chegou a gerenciar até a chegada da NSG: Maurênio Stortti.
Stortti é um bem-sucedido empresário com atuação em distintos ramos – da petroquímica à hotelaria ou agribusiness.
O escritório do grupo que comanda ocupa mais de um andar de um prédio comercial no bairro Mont’ Serrat, onde exibe reportagens de jornais sobre seus negócios enquadradas e penduradas nas paredes.
A relação de Stortti com a revitalização do Cais Mauá data de 2007, quando ele recebeu uma ligação de Edemar Tutikian – então coordenador da Comissão Técnica de Avaliação e Seleção das Propostas de Manifestação de Interesse nomeada pela governadora à época Yeda Crusius (PSDB, 2007-2010).
Tutikian sabia da larga experiência do empresário na construção de bem-sucedidos planos de negócios para empreitadas ao estilo PPP – Parceria Público Privada – que era o formato que mais seduzia o Estado até aquele momento e decidiu convidá-lo para participar da concorrência.
Foi Stortti quem trouxe os espanhóis para o negócio, ainda nessa primeira fase do projeto, através de um amigo catalão, Luis Felipe Manchón Contreras.
Contreras que era sócio da GIS e administrador do World Trade Center Barcelona (WTCB) – um complexo empresarial de 130 mil m² à beira do Mediterrâneo, construído sobre um braço do revitalizado Port Vell, que avança mar adentro a partir da confluência de três conhecidíssimas avenidas da capital catalã: Avenida Paralell e La Rambla, o passeio mais famoso entre turistas e locais.
Stortti organizou o grupo que venceria a concorrência de modelagem do negócio com outros espanhóis indicados por Contreras – incluindo o arquiteto Fermín Vazquez, que entre outras obras em seu país foi um dos responsáveis pela ampliação do Museu Nacional Reina Sofía, onde está exposta Guernica, de Pablo Picasso.
Do plantel nacional de experts, Stortti trouxe a Camargo Corrêa, que até hoje é um dos principais parceiros da M.Stortti na área de infraestrutura e construção civil.
Foram os construtores brasileiros que sugeriram o nome do urbanista Jaime Lerner para fechar a nominata.
Mix previa bares e restaurantes conhecidos
Marcas tradicionais fecharam acordos para operar nos armazéns | Reprodução
Marcas tradicionais fecharam acordos para operar nos armazéns | Reprodução

Vencida a primeira etapa, parte do grupo concorreu à licitação, organizados sob o consórcio Cais Mauá do Brasil S.A.
Stortti não estava entre eles, porém, em junho de 2011, quando o litígio entre a Antaq e o Estado do Rio Grande do Sul ainda não estava solucionado, ele assinou um contrato de terceirização da gestão e vendas do Cais Mauá.
Esteve perto de fechar negócio para instalar a Faculdade de Administração da UFRGS na área próxima ao prédio do antigo frigorífico, e fez um completo plano de negócios em conjunto com a Ambev para ocupação de parte dos armazéns com operações de gastronomia conhecidas dos gaúchos.
Eram dadas como certas as participações do Bar do Beto, Churrascaria Barranco, Bazkaria, Z Café, Tirol e Peppo Cuccina, por exemplo.
Havia plantas baixas com as adaptações de cada espaço, projeções em 3D e contratos de confidencialidade com os interessados.
Stortti também amarrou um diversificado mix, que contava com revenda de automóveis (Sulbra), laboratórios para exames clínicos (Weinmann), rede de farmácias (Panvel) e atrações culturais como a Livraria Cultura e o Museu do Extremo Sul.
Ainda na área de entretenimento, fechou com os produtores do Planeta Atlântida a utilização do antigo frigorífico como um grande espaço para festas e eventos.
Só que esses negócios todos foram bloqueados – segundo alega Stortti em sua demanda judicial – com a entrada da NSG no grupo que, “ao que tudo indica, impôs que as atividades de gestão dos operadores, que são a alma do negócio, passassem então a ser pela ré (NSG) exclusivamente”, como explica uma das peças produzidas por seus advogados.
Não se sabe se os atuais sócios da Cais Mauá S.A. levaram adiante algum dos pré-contratos firmados por Stortti ou se substituíram os interessados por outras empresas de sua preferência.
A demanda judicial ainda está correndo e foi através dela que o juiz determinou o arresto de cotas da GSS no empreendimento.

Licitação teve um único concorrente

Naira Hofmeister
O Cais Mauá é um lugar singular em Porto Alegre, cujas características atrairiam facilmente investidores. São 3.240 metros de extensão à beira do Guaíba, uma paisagem deslumbrante com o famoso pôr-do-sol da cidade e em pleno Centro Histórico, onde ainda sobrevivem casarões antigos, cinemas, os melhores teatros e museus.
Seu perfil visto do rio é um emblema da cidade, com a chaminé da Usina do Gasômetro e as torres da Igreja das Dores a se destacarem em meio à repetição geométrica dos telhados dos armazéns, tombados pelo patrimônio histórico.
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Tem mais: para o Centro Histórico de Porto Alegre convergem diariamente 840 linhas de ônibus, 52 de lotação (é até um exagero, segundo a própria Prefeitura que estuda meios de reduzir esse fluxo), e ainda o Trensurb que percorre seis municípios em viagens regulares em menos de uma hora.
Há ciclovias para cinco bairros vizinhos e novos viadutos feitos para a Copa do Mundo.
Para a construção civil é um prato cheio porque a lei aprovada na Câmara Municipal em 2009 permite edifícios com 100 metros, o dobro da altura máxima em vigor na cidade – e justo em um bairro com escassez de terrenos.
A expectativa do poder público antes do lançamento do edital era que a revitalização seria capaz de fazer Porto Alegre abocanhar uma quarta parte do mercado de turismo de negócios nacional.
Mas apesar dos atrativos, apenas um concorrente apareceu no dia marcado para a entrega de envelopes da licitação. Estando devidamente habilitado, venceu o certame sem disputá-lo com mais ninguém.
Cláusulas descumpridas afastaram interessados
Houve pelo menos um segundo grupo de arquitetos interessado em participar do certame, radicado em Miami, nos Estados Unidos, mas comandado por uma engenheira civil que viveu durante anos na Capital, Adriana Schönhofen Garcia.
A possibilidade de negócio empolgou um dos nomes mais reconhecidos da arquitetura norte-americana, Bernard Zyscovisch, que se aliou à brasileira e conquistou ainda o apoio de empresas da construção civil e de gerenciamento de imóveis. Entretanto, o grupo desistiu na última hora porque não conseguiria cumprir todas as exigências do contrato.
Algumas dessas regras que assustaram os norte-americanos foram postas sob suspeita também pelo ex-prefeito de Porto Alegre e então deputado estadual Raul Pont (PT), que achou que a licitação estaria direcionada e protocolou um pedido de investigação no Ministério Público de Contas (MPC).
Os dois fatos se encontram em 2013, quando o Tribunal de Contas do Estado (TCE) concluiu o relatório de uma inspeção especial. Era uma consequência do pedido de Raul Pont que, se não havia tido sucesso na interrupção do processo licitatório, foi decisivo para que os órgãos de controle determinassem o acompanhamento constante do negócio.
No relatório, os auditores do TCE apontavam irregularidades e o não cumprimento de cláusulas importantes do acordo – algumas, inclusive, que pesaram na decisão da equipe de Adriana de desistir da competição, caso da necessidade de comprovar liquidez de R$ 400 milhões e a apresentação do projeto executivo da obra em até 120 dias.
Como o prazo para a entrega de tais documentos já havia se esgotado, a avaliação do TCE era de que o Estado poderia romper o contrato unilateralmente. A interpretação se secundava em pareceres semelhantes provenientes da Contadoria e Auditoria Geral do Estado (Cage) e da comissão de fiscalização da própria Superintendência de Portos e Hidrovias (SPH).
O governo da época, comandado por Tarso Genro (PT, 2011-2014), não acatou a determinação, decisão que foi reiterada recentemente pela gestão de José Ivo Sartori (PMDB), após um exame do contrato e das denúncias que durou nove meses.
“Encontramos muitas falhas de comunicação e interpretações equivocadas, mas revisando os procedimentos e procurando respostas técnicas, concluímos que não há irregularidades”, pondera o diretor-geral da Secretaria dos Transportes, Vanderlan Frank Carvalho, que coordenou o Grupo de Trabalho responsável pela avaliação.
A questão, entretanto, ainda não está encerrada e segue tramitando no TCE, que, em 2015, acolheu sugestão do MPC e determinou à SPH a abertura de um processo administrativo para avaliar a possibilidade de romper o contrato com a empresa.
Vencedores participaram de desenvolvimento do edital

Desde Yeda, revitalização já atravessou outros três governos | Ivan Adrade/Piratini
Desde Yeda, tentativa de revitalização já atravessou três governos | Ivan Adrade/Piratini

Embora em um primeiro momento o TCE tenha concluído que não havia razões para suspeitar do direcionamento do edital, já que as exigências técnicas procuravam proteger o Estado de propostas aventureiras, o fato é que o vencedor da licitação – e único concorrente – foi um grupo integrado por empresas que haviam participado também dos estudos que criaram as diretrizes para o concurso, iniciados em 2007.
“Foi no mínimo injusto”, condena a engenheira Adriana.
“Os vencedores não apenas tiveram mais tempo para detalhar o projeto executivo, como puderam sair em busca de parceiros com toda essa antecedência”, aponta.
Quando a governadora Yeda Crusius (PSDB, 2007-2010) convocou a iniciativa privada a entregar “Propostas de Manifestação de Interesse” pela obra de revitalização do Cais Mauá, em julho de 2007, três equipes entraram na disputa.
Um ano depois, o governo anunciava os integrantes do grupo escolhido para desenvolver estudos que subsidiariam o edital de licitação, entre os quais estavam duas firmas espanholas: Gestio Serveis Trade Center (GIS) e Strategy Planning Implementation Manegenent (Spim), que depois apareceriam na composição do consórcio Cais Mauá do Brasil S.A em 2010. Também já é dessa época a participação dos arquitetos Jaime Lerner e Fermín Vázquez, que seguiram trabalhando para o grupo após a realização da licitação, em 2010.
Para os integrantes do coletivo Cais Mauá de Todos, que se contrapõe ao modelo de revitalização proposto (baseado na exploração comercial e imobiliária da área), a participação das mesmas empresas que formularam as bases do edital na própria licitação é uma irregularidade.
De fato, a Lei de Licitações veda a participação do “autor do projeto, básico ou executivo, pessoa física ou jurídica” na licitação, porém, em 2007 o Governo do Estado parecia contar com essa possibilidade: “As despesas realizadas pelo autor ou responsável pela proposta serão ressarcidas pelo vencedor de posterior licitação, desde que os estudos sejam efetivamente nela utilizados e o autor ou responsável não participe ou, caso participe, não se sagre vencedor do certame”, determinava o decreto que criou a Comissão Técnica de Avaliação do Projeto de Revitalização do Cais Mauá.
Mas contra o prognóstico da engenheira Adriana, e apesar da cobrança reiterada da SPH, Tribunal de Contas e Cage, até hoje o empreendedor não apresentou o detalhamento da obra conforme exigido no edital. Sequer a Secretaria de Urbanismo de Porto Alegre conhece com profundidade o que está previsto e cobra, por exemplo, um “3D” do shopping, para avaliar sua estética e o impacto na paisagem do entorno.
O Governo do Estado, por sua vez, não culpa o empreendedor pela ausência das plantas detalhadas porque entende que houve uma “confusão” na hora de redigir o texto. “Possivelmente onde deveriam ter escrito projetos básicos, escreveram projetos executivos”, alega o diretor-geral da Secretaria dos Transportes, Vanderlan Frank Carvalho.
Uma hipótese para tal equívoco é a utilização dos textos que normatizaram o concurso arquitetônico dos anos 90 como base para o edital mais recente, porque há 20 anos se exigiu dos vencedores a entrega do projeto executivo em até 120 dias do contrato firmado.
Uma vírgula aparece no contrato
Assim como no caso da apresentação dos projetos executivos, o Governo do Estado tem uma visão diferente da expressa pelo Tribunal de Contas do Estado sobre as garantias do investimento de R$ 400 milhões.
Para os órgãos de controle, o consórcio Cais Mauá do Brasil S.A descumpre o acordo ao não apresentar documentos que comprovem a estruturação financeira do grupo e a capacidade de bancar a obra de revitalização.
Já o GT da Secretaria de Transportes entende que este é mais um caso de problema de redação e confere à cláusula um caráter facultativo, entendimento oposto ao do TCE.
O texto no contrato diz o seguinte: “Quando pactuado, pela arrendatária, financiamento para construção, implantação, manutenção, conservação, melhoria, gestão, exploração e operação do Complexo Cais Mauá, a arrendatária deverá apresentar ao arrendante, no prazo máximo de até 180 dias após a celebração do contrato de arrendamento, os contratos firmados com instituições financeiras com patrimônio líquido mínimo de R$ 400 milhões”.
É esse “quando pactuado, pela arrendatária” que dá margem, segundo Carvalho, a entender que o financiamento via instituição financeira é uma opção dada ao empreendedor, não uma obrigação. “E eles pretendem fazer a obra com recursos próprios”, completa o diretor da pasta de Transportes.
O secretário de Urbanismo de Porto Alegre, Valter Nagelstein, que participou da idealização da licitação quando era vereador, lembra que a cláusula originalmente formulada era diferente: “a pré-condição era que o vencedor caucionasse em uma conta R$ 500 milhões. Essa era a garantia de que quem vencesse teria bala na agulha para tocar o projeto”, revela.
A flexibilização da garantia não parece ter sido suficiente para os formuladores do contrato, pois a redação da norma foi sutilmente modificada nesse documento. O original, publicado no edital, dizia assim: “Quando pactuado financiamento para construção, implantação, manutenção, conservação, melhoria, gestão, exploração e operação do Complexo Cais Mauá, a arrendatária deverá apresentar ao arrendante, no prazo máximo de até 180 dias após a celebração do contrato de arrendamento, os contratos firmados com instituições financeiras com patrimônio líquido mínimo de R$ 400 milhões”.
“Alguém pousou uma vírgula nesse edital” e alterou a condição das garantias, sugere Nagelstein.
Secretário enfrenta pressões para agilizar licenças
Brinde entre Tutikian (e) e Nagelstein (c) celebrou aprovação índices | CMPA
Brinde entre Tutikian (e) e Nagelstein (c) celebrou aprovação dos índices construtivos | CMPA

Nagelstein é um antigo entusiasta da revitalização do Cais Mauá. “Na gestão de Germano Rigotto (PMDB 2003-2006), eu era diretor da antiga Caixa RS (atual Badesul), junto com o (Edemar) Tutikian, a quem o governador encarregou de fazer um inventário de todas as questões do porto”, recorda.
Defendeu o projeto durante seu mandato como vereador e, em 2009, participou da aprovação da lei que alteraria os índices construtivos do terreno, permitindo espigões de 100 metros de altura e shopping.
Uma fotografia registra o momento em que prepara um brinde com espumante para celebrar a aprovação da lei junto com Tutikian, que hoje é seu colega de secretariado, comandando o Gabinete de Desenvolvimento e Assuntos Especiais (Gades).
A relação dos dois, entretanto, azedou depois que Nagelstein fez cobranças sobre o teor do projeto, pedindo alterações ou explicações que há tempos são pauta do movimento comunitário que critica a revitalização.
“A revitalização do Cais Mauá tem que servir ao Centro Histórico como um todo. Não tem sentido fazermos uma obra deste porte se as áreas da rodoviária, da Voluntários da Pátria, continuarem degradadas”, alega.
É que a Secretaria do Urbanismo (Smurb) está sob forte pressão para entregar o licenciamento urbanístico do empreendimento o quanto antes. A tramitação das licenças já soma três anos, mas até agora só foi vencida a etapa ambiental. “Ninguém quer mais do que eu que esse projeto saia. Estamos esperando há seis anos e agora temos que fazer a toque de caixa, dispensando obrigações que são de lei e sobre as quais depois terei que responder?”, compara, para logo concluir: “Em última análise, o monopólio da licença é nosso”.
Tensionamento expõe distorções na tramitação
Por trás das críticas de Nagelstein se entrevê uma inusitada situação segundo a qual, sendo a Secretaria do Urbanismo responsável pelo planejamento da cidade (este, aliás, era o nome da pasta até poucos anos atrás), está relegada a segundo plano do debate.
Um exemplo é a definição de que a contrapartida viária à revitalização será o prolongamento da rua Ramiro Barcelos entre a Voluntários da Pátria e o Cais Mauá. “Não há no projeto qualquer conexão com a área da rodoviária, com o Quarto Distrito. E aí vem a EPTC e pede uma obra lá na Ramiro?”, ironiza.
Nagelstein se ressente do mero papel coadjuvante que foi designado para sua pasta, que sequer consegue se reunir com os arquitetos do empreendimento para debater pontos como este. “Estamos forçando para que a interlocução seja direta. Não precisamos da mediação de outra secretaria”, defende.
É uma referência a Edemar Tutikian, o homem forte do projeto que conduz o debate sobre a revitalização desde os anos 2000. Primeiro no Estado, como diretor da Caixa RS no governo Germano Rigotto ou coordenador da Comissão de Revitalização na gestão Yeda. Com a eleição de Tarso Genro, passou a coordenar o trabalho através da prefeitura.
Toda a articulação do projeto passa por Tutikian que, mesmo trabalhando na esfera municipal não se furta a responder questionamentos – inclusive oficiais – feitos à órgãos do Estado, por exemplo.
Distorção semelhante foi protagonizada pela Superintendência de Portos e Hidrovias (SPH) e a Casa Civil durante o governo Tarso Genro.
O Tribunal de Contas do Estado (TCE) documentou que mesmo sendo a primeira a responsável oficialmente pela fiscalização do contrato e interlocução com o empreendedor, houve uma determinação de que a Casa Civil se ocupasse do tema, o que prejudicou “o andamento da execução do contrato”, nas palavras dos auditores.
“Verificaram-se deficiências na fiscalização decorrentes da falta de autonomia da autarquia (SPH) para deliberar sobre ações inerentes à função”, revela o relatório do TCE.
Eles enumeram problemas, desde o fato de o expediente administrativo sobre o projeto ficar armazenado no Piratini até a negativa do governo em atender a recomendação de multar o empreendedor pelo atraso na entrega de documentos.
“Contrariando as informações, o governador do Estado, Tarso Genro, juntamente com o diretor superintendente da SPH e do diretor-presidente da PCMB, anunciou a Emissão de Ordem de Início das Obras da Fase I, em ato público”, lamentam os auditores no texto.
Lei do silêncio impera entre envolvidos
O discurso da gestão atual é que as coisas mudaram e que a Superintendência de Portos e Hidrovias (SPH) passou a contar com o assessoramento do Grupo de Trabalho organizado no âmbito da Secretaria dos Transportes. “Os grandes temas têm sido tratados através do GT, que orienta; porém quem realmente toma as decisões é a SPH”, garante o diretor geral da pasta, Vanderlan Frank Carvalho.
Apesar disso, há uma norma “vinda de cima” segundo a assessoria de imprensa da SPH, para que nenhum funcionário conceda entrevistas ou repasse informações sobre o assunto. “A gente estabeleceu (que fosse assim) para não haver muitos interlocutores, para dar uma unidade às informações, para falar a mesma linguagem”, reconhece Carvalho.
Na Prefeitura, o secretário Edemar Tutikian, que carrega toda a memória do processo de revitalização do Cais Mauá nos últimos 15 anos, também se recusa a falar sob a justificativa de “aguardar os desdobramentos da audiência pública do dia 16/03 antes de dar entrevista”.
Na Agência Nacional dos Transportes Terrestres (Antaq), do Governo Federal, foi preciso aguardar 20 dias para receber respostas a perguntas enviadas por e-mail, porque a diretoria não autorizou o chefe da unidade regional da agência, Fábio Cadore Flores, a falar pessoalmente com a reportagem.
O consórcio Cais Mauá do Brasil é mais radical e sequer recebeu os questionamentos da reportagem.
Parecer sobre índices é mantido em sigilo
Informação consta no relatório de esclarecimentos sobre audiência pública de 2015 | Reprodução
Informação consta no relatório de esclarecimentos sobre audiência pública de 2015 | Reprodução

O acesso a documentos também é difícil. Um parecer da Procuradoria Geral do Município (PGM), mencionado em um documento que compila esclarecimentos aos cidadãos presentes na audiência pública de setembro de 2015 é mantido sob sigilo pela Prefeitura.
Desde janeiro o JÁ solicitou a três secretarias o envio do texto que validaria os índices construtivos determinados pela LC 638/2010, sem sucesso.
Ocorre que essa lei assegurava os índices construtivos “aos investidores que licenciassem e iniciassem suas obras até 31 de dezembro de 2012” – o que não ocorreu efetivamente. Os agentes da prefeitura argumentam que como o atraso não se deve a falhas do empreendedor, ele não pode ser penalizado com a perda dos índices.
A resposta que consta dos esclarecimentos à audiência pública, entretanto, não é objetiva. Vem assinada pelo Gabinete de Desenvolvimento e Assuntos Especiais e informa que “segundo um parecer da PGM, emitido em 27/07/2013, não há necessidade de revogação do artigo 17 por meio de Lei Complementar, pois o mesmo não prejudica a futura aplicação na medida em que assegura aos empreendedores a possibilidade disposta expressamente em lei”.
Na Procuradoria, a informação é que o documento foi assinado por um servidor do jurídico do próprio Gades e não da PGM, que, portanto, não poderia disponibilizá-lo. Já a pasta comandada por Tutikian passou a bola para a Secretaria de Comunicação Social depois de um mês analisando o pedido do JÁ, que segue aguardando um retorno.

Revitalização desafia governos há três décadas

Naira Hofmeister
Desenvolver um projeto que reaproxime a população de Porto Alegre da área mais emblemática da Capital do Rio Grande do Sul, o Cais Mauá – região onde a cidade nasceu e que foi o seu motor de desenvolvimento durante anos –, é um desafio que mobilizou prefeitos e governadores nos últimos 30 anos.
Até os anos 60, não havia motivo para pensar em alternativas de uso para o Cais Mauá que – junto com o Cais Navegantes – dava ao porto de Porto Alegre o título de mais rico e movimentado do Rio Grande do Sul.
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Mas a decisão de priorizar o transporte rodoviário – tomada ainda nos anos 50 – aliada à deficiência de calado do Guaíba reduziram as atividades e criaram as condições necessárias para o debate sobre a transformação da área, que é tombada pelo patrimônio histórico e cultural nacional e municipal, em um grande complexo turístico.
Desde os anos 80 foram várias tentativas, mas todas ficaram pelo caminho.
Sucumbiram diante de entraves técnicos, financeiros e até mesmo por disputas político-partidárias – maximizadas pelo fato de a área sofrer interferência das três esferas governamentais: está em solo porto-alegrense, portanto, deve seguir o regime urbanístico determinado pela Prefeitura; foi construída pelo Governo do Estado, que regula a operação da atividade portuária através da Superintendência de Portos e Hidrovias (SPH); mas é zona de interesse nacional e área de Marinha, portanto, responde também à Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq) e à Secretaria de Portos da Presidência da República.
A mais recente iniciativa para dar um novo uso ao Cais Mauá começou em 2007, com um chamamento do governo do Estado – então sob a batuta de Yeda Crusius (PSDB) – para que a iniciativa privada apresentasse propostas de “manifestação de interesse” com projeto de uso e ocupação.
No final de 2010, poucos dias antes de encerrar sua gestão, Yeda assinou o contrato com o único concorrente que apareceu na licitação, aberta poucos meses antes, apesar de haver uma tentativa do Governo Federal de impugnar judicialmente a concessão.
Do projeto previsto para o Cais Mauá pouco se conhece além do esboço feito a partir dos limites construtivos previstos na Lei Complementar 638/2010 – texto, aliás, que tem sua validade questionada por trazer em si uma cláusula condicionante: “Os regimes urbanísticos (…) vigorarão até o dia 31 de dezembro de 2012, sendo assegurados aos investidores que licenciarem e iniciarem suas obras”.
Mais de cinco anos se passaram desde a assinatura do contrato e entre processos judiciais, investigações do Ministério Público e questionamentos da população que cobra transparência no processo, as poucas manifestações do consórcio Cais Mauá do Brasil S.A. são referentes ao adiamento do início das atividades.
O empreendedor não concede entrevistas. O poder público dificulta o quanto pode o trabalho de reportagem, há uma espécie de lei do silêncio sobre o caso.
Com todos os prazos previstos no contrato inicial vencidos, o Cais Mauá é atualmente uma área cercada e vigiada por um grupo de seguranças privados. Entradas e saídas são regradas e limitadas à área onde opera a linha do catamarã.
Este trabalho é uma tentativa de jogar luzes sobre as várias perguntas formuladas pela cidadania ao longo dos últimos anos sobre uma obra prevista para um dos espaços mais queridos e valorizados de Porto Alegre, à beira do Guaíba e de frente para o famoso pôr-do-sol.
Foi financiado graças às doações de cerca de 200 leitores através de uma campanha de financiamento coletivo realizada em novembro de 2015.
Projeto atual aumentou área e reduziu  arrendamento
Quem esteve mais próximo de concretizar um projeto na área foi o ex-governador Antonio Britto (na época PMDB 1995-1998), que lançou o concurso público Porto dos Casais com projeto arquitetônico e plano de negócios, deu início aos estudos de impacto ambiental e chegou a formular um texto para licitar a área à iniciativa privada.
Britto não foi adiante porque não conseguiu licenciar a obra na prefeitura – os técnicos da administração municipal reprovaram a intenção de ampliar o aterro na área próxima ao Gasômetro, pois comprometeria a navegação do Guaíba.
Mas para Felipe Pacheco, um dos integrantes da equipe vencedora do concurso (que era composta pelo veterano Alberto Adomilli e quatro recém-formados: Daniela Corbellini, Eduardo Neves e Patricia Moura, além de Pacheco), o que barrou o projeto foi a rusga política entre Britto, que concorreria à reeleição em 1998, e o PT que comandava Porto Alegre (e assumiria, em 1999, também o Governo do Estado com Olívio Dutra). “Foi ideológico”, lamenta o arquiteto.
Explicações à parte, tanto o processo como o próprio projeto arquitetônico previsto nos anos 90 guardam semelhanças e permitem comparações com a atualidade, capazes de explicar muitos pontos ainda pouco claros da revitalização pretendida.
A mais evidente delas envolve o valor e o tamanho da área arrendada. Enquanto o custo da revitalização nos anos 90 foi calculado em R$ 104 milhões – incluindo a construção de shopping, torres e hotel – o arrendamento da área à iniciativa privada estava avaliado em mais de R$ 6 milhões ao ano.
Tomando como base esses valores, porém atualizados segundo o IPCA para julho de 2010, quando foi lançada a licitação de revitalização do Cais Mauá, o investimento estaria calculado em R$ 260 milhões e o arrendamento em R$ 15 milhões.

Arte: Andres Vince
Arte: Andres Vince

Porém, o edital de 2010 previa investimento mínimo de R$ 350 milhões – mais do que a inflação do período –, enquanto o arrendamento estava avaliado em R$ 2,5 milhões – esse pagamento foi recalculado em 2011 para R$ 3 milhões ao ano, ainda assim, corresponde à quinta parte do valor de 1996 corrigido pela inflação.
Na contramão do preço pago, a área concedida para a iniciativa privada aumentou. Há 20 anos, eram aproximadamente 140 mil m², enquanto hoje, o consórcio tem nas mãos 181 mil m², quase um terço a mais.
Cada metro quadrado do Cais Mauá custará ao empreendedor menos de R$ 1,40 por mês enquanto o valor médio de aluguel na região, segundo os Dados do Mercado Imobiliário proporcionados pela corretora de imóveis virtual Viva Real, é de R$ 24,00.
Se o valor pago pelo arrendamento é menor, também é verdade que o custo da obra segue aumentando. Um estudo da Faculdade de Administração da PUC-RS do ano passado, encomendado pelo Cais Mauá, previu que seriam necessários R$ 675 milhões em investimentos para colocar o projeto em pé – o empreendedor não confirma os valores porque se recusou a conceder entrevistas para esta reportagem.
“Nossa proposta era menos privatista”
O concurso público organizado pelo Governo do Estado em 1996, com a chancela do Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB-RS), teve 137 equipes inscritas. Alguns arquitetos previram parques públicos para o local, mas os vencedores tinham uma proposta bastante semelhante à atual, com caráter comercial.
“Nosso projeto era o mais qualificado em termos urbanísticos e arquitetônicos e tinha comprovada viabilidade financeira, por isso vencemos”, afirma Felipe Pacheco, que bolou o plano de acordo com o que o Estado havia sugerido: o empreendimento não poderia depender de verbas públicas para se manter.
Nos desenhos que Pacheco ainda guarda em um canudo no seu escritório no bairro Petrópolis, aparece um shopping com dois pavimentos ao lado da Usina do Gasômetro – local onde também seriam construídos um hotel 5 estrelas, um centro empresarial de alta tecnologia (o grande chamariz era oferecer conexão de internet já instalada) e um teatro para a Orquestra Sinfônica de Porto Alegre (Ospa), que seria o único investimento feito pelo poder público.
Assim como a atual proposta, o edifício sede do Deprc (hoje SPH) seria transformado em um hotel e os armazéns estariam divididos entre aqueles que seriam ocupados por atividades culturais (pórtico e A e B), shopping de design e um parque dedicado ao Mercosul. O B3 abrigaria um terminal hidro-ferroviário.
Proposta de 1996 tinha muitas semelhanças com a atual, prevendo shopping, torres comerciais e centro de eventos | Reproducao
Proposta de 1996 tinha muitas semelhanças com a atual, como shopping e torres comerciais | Reprodução

“Na época fomos acusados de privatistas, mas o projeto atual aparentemente restringe bem mais o espaço público que o nosso”, compara o arquiteto.
Os estacionamentos eram subterrâneos e a área onde seriam construídos os prédios novos, entre o Gasômetro e o armazém A7, era toda permeável, com praças e passeios públicos entre uma edificação e outra. Hoje, a proposta é de um shopping ocupando todo o terreno e as vagas para automóveis não serão no subsolo.
Em 1996, a intenção era ainda transformar a Mauá em uma avenida-parque plantando 5 mil árvores. Haveria quatro pistas para automóveis, duas rápidas, no centro, e duas lentas, nas laterais.
A grande diferença em relação ao projeto atual era a solução dada ao muro da Mauá, que seria derrubado. Para substituí-lo, Adomilli projetou um muro móvel na beira do Guaíba. Era a contrapartida principal do projeto, ao custo de R$ 2 milhões – menos de 2% do total do investimento previsto.
Utilizando os cálculos de recursos necessários ao empreendimento feitos pela PUC-RS, os 2% em valores atuais seriam o equivalente a R$ 13 milhões. O consórcio protocolou em abril de 2015 uma proposta de compensações para a cidade que soma R$ 36 milhões.
Modelo shopping-espigões se repete
O projeto de Collares, no final da década de 80, não foi bem recebido
O projeto de Collares, no final da década de 80, foi condenado por atender interesses imobiliários | Reprodução

A opção dos sucessivos gestores públicos de revitalizar o Cais Mauá investindo o mínimo possível serviu de justificativa para diferentes empreendedores repetirem o modelo shopping-espigões nas últimas três décadas.
Em 1988, embalado na onda do projeto Praia do Guaíba – tentativa de urbanizar com edifícios a orla entre a Usina do Gasômetro e o Parque Marinha do Brasil – o então prefeito Alceu Collares (PDT, 1986-1988) criou o projeto “Cais do Porto: Centro de Comércio, Lazer e Turismo”, que abrangia a área compreendida entre a Ponta da Cadeia, com os prédios da “antiga usina”, do Deprc e os sete últimos blocos de armazéns do Cais Mauá.
Previa o aproveitamento de 1.400 metros de cais, os armazéns seriam transformados em lojas e empreendimentos turísticos, com a construção de um Centro de Convenções e um hotel de luxo. Tinha também a sua contrapartida cultural, com “corredores temáticos” que se conectavam com ruas adjacentes e equipamentos públicos fora do porto.
Sem meias palavras, os engenheiros Hermes Vargas dos Santos e O’Neill de Lima Paz, do Gabinete de Planejamento e Coordenação do Deprc, condenaram a proposta em um parecer: o projeto atendia exclusivamente a “interesses do comércio e dos empreendimentos imobiliários” e era “destituído de valor social”.
Isso porque a justificativa de “devolver o rio à cidade” parecia absurda em um momento em que os parques Marinha do Brasil e da Harmonia (hoje Maurício Sirotsky Sobrinho) não haviam completado dez anos ainda.
“Nos países desenvolvidos, dificilmente a administração pública abriria mão de tal parcela afeta aos recursos hídricos e aos interesses dos transportes em favor de um centro de comércio, lazer e turismo (shopping center) de valor cultural discutível (pressão imobiliária), considerando as diversas necessidades da população da Capital relativas a saúde, segurança, saneamento básico, habitação, transportes, educação e outros”, apontaram.
As gestões petistas na prefeitura tentaram emplacar ideias diferentes: Olívio Dutra (1989-1992) pensou em instalar um restaurante popular e uma escola de alfabetização de jovens e adultos no Cais Mauá, que também poderia receber shows e apresentações teatrais. Dez anos mais tarde, já governador, Olívio quis desenvolver no local um complexo cinematográfico, que tampouco foi adiante.
Em sua gestão municipal (1997-2000), Raul Pont chegou a formalizar no Ministério dos Transportes um pedido para que a gestão do porto passasse a ser municipal – a intenção era revigorar a atividade portuária e estimular a navegação. “Trouxemos especialistas de Barcelona e fizemos um plano diretor para a área, mas não houve interesse do mercado”, lamenta o ex-prefeito.
Falida a tentativa de resgatar o porto, o plano B era cultural-gastronômico: conceder um antigo galpão histórico ao lado do Gasômetro – chamado “Pavilhão das Tesouras” – para o empresário Dado Bier, e dois armazéns para o Banco do Brasil instalar o seu centro cultural.
As tratativas chegaram a avançar, mas houve um incêndio nunca esclarecido que destruiu o Pavilhão das Tesouras – “Ninguém me convence que não foi atentado, sacanagem”, admite Pont – e o negócio com o CCBB também foi abandonado.
Negócio visava financiamento do porto
Arrendamento rendeu R$ 900 mil até hoje e porto ainda é deficitário | Tânia Meinerz
Arrendamento do Cais rendeu R$ 900 mil até hoje; enquanto isso o porto segue deficitário | Tânia Meinerz

O caso é que em 1999, quando o Porto dos Casais foi engavetado pelo sucessor de Britto, Olívio Dutra, o Cais Mauá ainda operava com cargas, o que só começou a ser modificado no início dos anos 2000.
Esse movimento é importante para entender o projeto atual, porque a decisão de conceder o Cais Mauá à iniciativa privada foi tomada pelo Conselho da Autoridade Portuária (CAP) como forma de sustentar o restante da área de embarque e desembarque, que estava deficitária.
“As receitas auferidas em negócios de revitalização de portos não operacionais tem se mostrado muito interessantes para as autoridades portuárias”, esclarece o diretor da Antaq Fernando Fonseca.
Em busca de recursos para financiar a própria atividade portuária, os integrantes do CAP julgaram que poderia ser um bom negócio entregar o Cais Mauá para a iniciativa privada. Assim, “o porto teria uma fonte de receita para investir em seus equipamentos, dragagens, e uma série de questões operacionais”, conforme registra uma das atas das reuniões do CAP no ano 2000.
Entretanto, cinco anos depois, o arrendamento da área feito no final de 2010 ainda não beneficiou o porto de Porto Alegre, que segue sendo deficitário segundo a Antaq. Durante os três primeiros anos de contrato – que por força de um aditivo posterior à assinatura é considerado em vigor a partir de março de 2012 – o consórcio só precisaria pagar 10% do valor total do arrendamento, ou seja, R$ 300 mil por ano.
Era um estímulo às obras que seriam feitas.
Passado esse período – portanto, a partir de março de 2015 – o empreendedor deveria passar a pagar a totalidade do valor do arrendamento, R$ 3 milhões por ano ou 1,95% do faturamento bruto, que seriam reinvestidos na atividade portuária.
“Adimpliram os 10% até finalizar o terceiro ano. Quando passaria para um valor considerável, fizeram um requerimento e foi concedida a suspensão do pagamento até que saiam as licenças para o empreendimento”, explica o diretor-geral da Secretaria de Estado dos Transportes, Vanderlan Frank Carvalho.
Ou seja, a soma dos pagamentos do Cais Mauá pela concessão da área até hoje ainda não chegou a R$ 1 milhão – foram três parcelas de R$ 300 mil em três anos.
Os conselheiros do CAP bem que avisaram que era importante garantir o pagamento previsto no contrato, caso contrário, o negócio perderia o sentido.
“Se não houvesse essa motivação, a área continuaria a ser operacional, como de fato era”, manifestou o então presidente do CAP em 5 de outubro de 2010, engenheiro Ricardo de Almeida Maia.
“Não era um descarte de uma área que não interessasse mais, pelo contrário, ainda é uma área nobre”, complementou, na ocasião.
É verdade que o Cais Mauá não comportaria atividades portuárias modernas por não possuir a chamada retroárea – onde usualmente são colocados contêineres, que é o que move o mundo do transporte de cargas por hidrovias.
Porém a pedra do Cais Mauá é bastante mais resistente que as dos outros cais porto-alegrenses (Navegantes e Marcílio Dias). Aguenta 40 toneladas e por isso, só no Mauá é possível operar guindastes de solo – navios que atracam em outras partes na Capital precisam ter guindastes embarcados para poder descarregar.
Esse, aliás, foi um dos motivos para os técnicos terem embargado a iniciativa do prefeito Collares, lá nos anos 80. Segundo um parecer anexo ao processo, “dos três cais de Porto Alegre, apenas o Mauá pode operar grandes cargas devido a sua constituição de cais de gravidade”.
Neste texto, o Cais Navegantes é categorizado como “de saneamento” por ser constituído em estruturas leves (estacas), e o Marcílio Dias é destinado a clubes náuticos também por ter estruturas leves (tubulões).
Docas foram anexadas para garantir edifícios
Mesmo no Conselho da Autoridade Portuária (CAP), o projeto de dar outra destinação ao Cais Mauá foi polêmico. A proposta originalmente aprovada pelo órgão permitia o uso para outras finalidades apenas na área compreendida entre a Usina do Gasômetro e o armazém B3, mas foi considerada insuficiente pelo Governo do Estado.
Por isso, em 17 de agosto de 2006, o governo do Estado mandou à reunião do CAP “o homem do Cais Mauá”, Edemar Tutikian, para convencer o conselho a ampliar a área para o empreendimento, abocanhando também as docas.
Na época, Tutikian já era o coordenador da Comissão de Revitalização do Cais Mauá. Ele vinha se dedicando ao projeto desde o início do governo Germano Rigotto (PMDB, 2003-2006), quando foi encarregado de “fazer um inventário de todas as questões do porto” – conforme o secretário municipal de Urbanismo, Valter Nagelstein – embora sua função no governo fosse de diretor do banco de fomento do Estado, a Caixa RS (hoje chamado Badesul).
Tutikian é o homem do Cais porque desde então ele carrega consigo o projeto de revitalização, apesar das mudanças políticas. Quando Yeda foi substituída por Tarso Genro (PT) no Piratini, ele migrou – e com ele o projeto do Cais – para a gestão municipal de José Fortunati (PDT), onde se tornou porta-voz da revitalização.
Naquele agosto de 2006, Tutikian compareceu ao CAP secundado pela secretária de Transportes, Gertrudes Pelissaro dos Santos. Estavam lá para fazer um apelo aos conselheiros para que ampliassem a área que seria concedida à iniciativa privada.
“O projeto que inicia na ponta do Gasômetro e vai até o armazém B3 tem limitações, uma vez que há o tombamento de determinados armazéns”, explicou, introduzindo o assunto.
“Em face às limitações técnicas, pretende-se viabilizar o interesse de empreendedores privados com a disponibilização de novas áreas”: eram as docas 1 a 4, até então utilizadas para atividades de apoio portuário.
A necessidade de deixar disponível a nova área para o futuro projeto do Cais Mauá é evidente: nos anos 90, diante da falta de espaço entre o armazém A6 e a Usina do Gasômetro (onde estavam previstas todas as construções), mesmo com a prevista derrubada do A7, Adomilli e sua equipe precisaram projetar um aterro de 100 mil m³, que interferiria no canal de navegação e traria impactos ambientais.
Na tentativa de aprovar o desenho, os arquitetos chegaram a mexer na altura dos edifícios, reduzindo o número de andares originalmente previstos para não comprometer a volumetria, mas o problema do aterro persistiu.
Logo, era necessário corrigir esse ponto para que o projeto não acabasse tendo o mesmo destino do anterior. A licitação de 2010, portanto, englobaria toda a área desde o Gasômetro até a doca 4. “A área que será agregada viabilizará a exploração econômica do futuro empreendimento atraindo investidores e possibilitando novas fontes para a Administração Portuária”, registra a ata do CAP.
A manobra de inclusão de novas áreas também acabou destinando ao empreendimento a bonita praça Edgar Schneider e o prédio do antigo frigorífico, uma região para a qual os empreendedores previam a instalação de uma unidade educacional de Ensino Superior.
Fogaça barrou prédios altos no Gasômetro
Apesar da inclusão das docas à área do projeto de revitalização, que permitiria construir torres comerciais de 100 metros de altura próximas da rodoviária de Porto Alegre, o primeiro desenho do Plano Diretor para a área previa também prédios ao lado da Usina do Gasômetro.
Foi o ex-prefeito José Fogaça (PPS, depois PMDB, 2005-2010) que vetou qualquer volume que competisse com o patrimônio histórico. Escaldado pelo questionamento da população sobre a mudança dos índices construtivos permitidos para o terreno do antigo Estaleiro Só, que o levou a promover um plebiscito em 2009 – mesmo ano em que se fez o debate no governo sobre as possibilidades de construção no Cais Mauá – Fogaça intuiu o problema.
A cautela de Fogaça não impediu que um grupo de cidadãos se organizasse para combater o modelo proposto, baseado no tripé shopping-espigões-estacionamento, que será capaz de garantir aos investidores, uma receita anual que beira R$ 1 bilhão.
O cálculo foi feito pela Faculdade de Administração da PUC-RS e separa a receita segundo o nicho de negócio.
Arte: Andres Vince
Arte: Andres Vince

Tomando esse dado pode se ter ideia dos valores que estão em jogo para o Estado do Rio Grande do Sul. Além das estimativas de que a operação do complexo gere cerca de 16 mil empregos diretos e R$ 70 milhões em ICMS anualmente, o contrato prevê que o arrendamento passará a ser calculado percentualmente sobre o total da receita bruta do empreendimento quando ela for maior que R$ 160 milhões ao ano.
Neste caso, ao invés de pagar os R$ 3 milhões fixos, o consórcio precisará entregar aos cofres públicos 1,95% do faturamento do negócio. Esse seria o recurso disponível para aplicar na modernização da área portuária ainda em operação em Porto Alegre.
Além disso, após o fim da concessão (em 25 anos ou 50, caso haja prorrogação do contrato), toda a área e as benfeitorias realizadas nela – shopping, edifícios comerciais e estacionamento – passam a integrar o patrimônio do Estado do Rio Grande do Sul.
Matrículas só foram escrituradas depois da licitação
Dossiê Cais Mauá - Parte 1 - Escritura
Disputa judicial impediu que Estado registrasse terrenos em seu nome | Reprodução

Com a chamada desafetação das áreas, concluída no Conselho da Autoridade Portuária (CAP), restava registrar os terrenos em nome do Estado do Rio Grande do Sul.
Só que a área só foi escriturada três meses depois de lançado o edital, quando uma sentença do juiz de direito Antonio C. A. Nascimento e Silva pôs fim a uma ação judicial iniciada pelo próprio governo diante da recusa do Registro de Imóveis da 1ª Zona de Porto Alegre em escriturar a área por não possuir documentação que autorizasse tal atitude.
O Estado argumentava que, sendo terreno oriundo de aterro pago pelos cofres estaduais – lá no governo Borges de Medeiros – era logicamente patrimônio do Rio Grande do Sul. Por outro lado, havia um entendimento de que por ser margem de curso d’água, pertenceria à União.
Foi, portanto só a partir da decisão judicial que o cartório emitiu as matrículas em 30 de setembro de 2010 – a abertura da licitação ocorreu em junho.
Sobreposição de contratos causa limbo administrativo
Consórcio se recusou a assumir áreas enquanto não houver acerto entre operações|Tânia Meinerz
Consórcio se recusa a assumir área enquanto não houver acerto entre operações|Tânia Meinerz

O tema das escrituras do Cais Mauá voltou à pauta no final de 2010, quando a imprensa noticiou que a Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq) estava questionando judicialmente a competência do Estado para promover o arrendamento, na medida em que entendia que a área pertencia à União.
Foi o primeiro de muitos processos que ainda se desenrolam no judiciário gaúcho.
Esse acabou sendo sanado após a posse do governador Tarso Genro (PT 2011-2014), que negociou com o Planalto em condições políticas mais favoráveis que sua antecessora, Yeda Crusius (PSDB).
A conciliação entre as partes foi homologada no ano de 2012 e, em março, houve a assinatura de um termo aditivo para reconhecer a participação da Agência Nacional de Transportes Aquáticos (Antaq) como fiscalizadora do contrato e das obras.
Foi apenas nesta data que a posse da área foi passada efetivamente para o consórcio Cais Mauá do Brasil S.A. e que o contrato passou a valer integralmente.
Entretanto, quatro anos depois, ainda há áreas que não estão sob o domínio legal da empresa formada para revitalizar e administrar o Cais Mauá. Os armazéns da série B3, tombados, e também o C2 e o C3, que ocupam as docas e serão demolidos para a construção das torres comerciais, além do próprio prédio da Superintendência de Portos e Hidrovias (SPH), que será restaurado e transformado em hotel, estão em um limbo administrativo.
O consórcio se recusou a assumir a responsabilidade dessas unidades porque estão ocupadas por atividades que não tem relação com o empreendimento.
SPH, corpo de Bombeiros, e os organismos de regulação do trabalho portuário (OGMO e sindicato) receberão novas sedes, construídas pela concessionária da área. Porém, segundo o Governo do Estado, ainda não há definição dos novos endereços. “Isso faz parte de uma segunda fase do empreendimento, não é necessária a desocupação imediata para o início do trabalho”, justifica o diretor-geral da Secretaria de Transportes, Vanderlan Frank Carvalho.
Já com o terminal de embarque e desembarque de passageiros da Catsul, que tem linhas hidroviárias para a Zona Sul de Porto Alegre e também para Guaíba, o problema é mais delicado.
Há uma evidente sobreposição de contratos, uma vez que a operação das linhas do catamarã também é um negócio regido por licitação na qual consta a obrigação de o Estado ceder um armazém para a função de terminal.
Apesar disso, o diretor-geral reconhece o direito do consórcio Cais Mauá sobre o imóvel, mas acredita em um entendimento entre as partes. “A circulação de usuários do catamarã também é importante para o Cais Mauá. Então é bem possível – ou melhor, com certeza – eles vão conviver bem”, prevê Carvalho.
Só que o consórcio não demonstrou toda essa boa vontade quando, em 2013, questionou a operação não apenas do catamarã, mas também do Cisne Branco e do barco do Grêmio Náutico União (GNU). “Tendo em vista que inexiste no contrato menção à obrigação de manter esse serviço em funcionamento dentro de sua área de arrendamento, requer à SPH esclarecimentos sobre a possibilidade de autorizar a continuidade de embarque e desembarque mediante remuneração acordada entre as partes. Caso não seja possível, entende ser cabível a interrupção imediata do serviço por se tratar de atividade não prevista no contrato”, registra uma correspondência enviada à SPH pelos empreendedores.