Folha escondeu que 62% querem novas eleições por não ver "relevância"

Jornal GGN – Ontem o GGN publicou uma informação que consta no relatório da última pesquisa Datafolha, indicando que o instituto nunca usou as pedaladas fiscais para saber do povo se Dilma Rousseff merecia sofrer o impeachment. O que o Datafolha usava como justa causa era a Lava Jato: perguntava se a corrupção entre empresários, agentes públicos e políticos era motivo para afastar a atual presidente. Esse dado nunca foi explicitado por Folha e talvez justifique o desinteresse do jornal quanto à fragilidade da tese de que Dilma cometeu crime fiscal [leia maisaqui].
Agora, descobre-se que a Folha escondeu mais uma pergunta importante de seus eleitores, cujo resultado renderia a seguinte manchete: 62% dos brasileiros apoiam novas eleições. Ao invés disso, Folha reportou, no domingo (17), que 50% preferem Michel Temer no poder.
Como se já não bastasse a manipulação da pergunta que foi escolhida por Folha para legitimar Temer (o entrevistado do Datafolha só teve duas alternativas à pergunta “O que é melhor para o País: Dilma voltar ou Temer ficar”), o relatório divulgado ontem também havia passado por censura. Não constavam as perguntas que retratavam com menos parcialidade a atual crise política. O conteúdo só veio à tona após o Tijolaço encontrar os dados no servidor do Datafolha e o jornal ser pressionado pela imprensa a explicar a fraude.
O que a Folha escondeu dos leitores?
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O Datafolha perguntou, a pedido da Folha (foi o jornal que selecionou as perguntas): “Uma situação em que poderia haver novas eleições presidenciais no Brasil seria em caso de renúncia de Dilma e Temer a seus cargos. Você é a favor ou contra Temer e Dilma renunciaem para a convocação de novas eleições para a Presidência ainda neste ano?”
Aqui, 62% disseram ser a favor, 30% contra, 4% indiferente e 4%, que não sabem.
Segundo o El País, Sérgio D’ávila, editor-executivo da Folha, disse que deixou de publicar essa informação porque não exergou relevância nela. “(…) é prerrogativa da Redação escolher o que acha jornalisticamente mais relevante no momento em que decide publicar a pesquisa. O resultado da questão sobre a dupla renúncia de Dilma e Temer não nos pareceu especialmente noticioso, por praticamente repetir a tendência de pesquisa anterior e pela mudança no atual cenário político, em que essa possibilidade não é mais levada em conta.”
Se a renúncia de Temer e Dilma não é mais levada em conta, por que a Folha inseriu essa pergunta no questionário levado às ruas entre 14 e 15 de julho?
Outra dúvida foi levantada por Fernando Brito, do Tijolaço: “Sérgio D’Ávila não diz, porém, que este arquivo [o relatório do Datafolha] está sendo linkado somente agora, depois que veio a público, no início da noite [de quarta, 20], por este blog e por outros, o arquivo escondido nos servidores do Datafolha. Mais de duas horas depois de revelado o escândalo é que isso foi feito”.
Segundo o novo relatório, a realização de uma nova eleição tem mais apelo entre os jovens de 16 a 24 anos (68% favoráveis) e na faixa de 25 a 34 anos (também 68%). Entre aqueles que consideram o governo Temer ótimo ou bom, 50% são a favor de nova eleição, e 44%, contra.
Sobre o impeachment
O Datafolha também aferiu, sem o interesse noticioso do jornal, se o processo de impeachment de Dilma corria, na visão dos entrevistados, respeitando as regras democráticas e a Constituição. Aqui, 49% disseram que sim, outra parcela de 37% disse que não, e 14% não souberam avaliar.
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O líder do PT no Senado, Humberto Costa, disse que é “evidente que esses dados divulgados em pesquisas de opinião estão distorcidos, manipulados, com a finalidade de favorecer Temer e os setores que o apoiam. (…) É uma forma de tentar convencer os senadores de que a opinião pública está com o golpista e que, em razão disso, seus votos devem ser contra Dilma. Mas, a partir dessas denúncias, estamos vendo que nada é mais irreal do que essa tese.”
Dilma precisa do apoio de 28 senadores para vencer o impeachment na votação final, que deve ocorrer na segunda quinzena de agosto. O Planalto e a equipe da presidente afastada trabalham para conquistar o apoio dos senadores. Pela primeira votação (admissibilidade do impeachment) no Senado, Dilma precisa conquistar seis votos além dos 22 que já tinha. O senador Randolfe Rodigues (Rede) disse, na semana passada, que Dilma tem um universo de 9 senadores indecisos para trabalhar, e que 6 deles já estariam “inclinados” a ajudá-la. Mas a vitória da presidente está associada justamente à ideia de voltar ao poder e propôr, com consentimento do Congresso e do povo, novas eleições.

Desmonte do Estado ameaça as próximas gerações

Eduardo Maretti
Da RBA
A Plataforma Política Social e o Le Monde Diplomatique Brasil promoveram na noite de segunda (18), em São Paulo, o seminário “Austeridade Contra a Cidadania: O Desmonte do Estado Social”, em que se discutiu a conjuntura política do país com o governo interino de Michel Temer e as implicações de sua política na sociedade. Participaram do debate o ex-ministro da Saúde (2007 a 2010) José Gomes Temporão e os economistas Sérgio Gobetti, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), e Sérgio Haddad. A mediação foi do também economista Eduardo Fagnani, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Segundo os analistas, o país passa por grave momento político-institucional e a supressão de direitos e conquistas ameaça seriamente as próximas gerações. Temporão falou da gravidade do cenário a partir da visão do governo interino, segundo a qual é preciso diminuir os gastos com saúde, de acordo com o princípio de que “não cabe no orçamento”. No Brasil, 52% dos gastos com saúde são de origem privada, enquanto 48% vêm do setor público. Na Inglaterra, 85% dos gastos são públicos.
“Deveríamos estar como a Inglaterra. Para isso, deveríamos ampliar os gastos públicos, mas vai-se diminuir. O setor conservador vê a saúde como um gasto. A distorção que já existe vai ser ampliada se as propostas do governo forem implementadas”, disse Temporão.
Ele lembrou que o ministro interino, Ricardo Barros, propõe “planos de saúde baratinhos para desafogar o SUS”. “Não satisfeito, disse que a maioria dos pacientes imaginam que estão doentes. Enquanto isso, para usufruir de um plano de saúde do Senado, basta exercer o mandato por 180 dias. O país vive um sistema de castas.”
Na sexta-feira (15), Barros disse que o brasileiro tem uma cultura de fazer exames desnecessariamente e que a maioria dos pacientes “imagina” doenças, aumentando os gastos públicos.
Temporão destacou ainda a agenda liderada por parlamentares da bancada BBB (bala, boi e bíblia) no Congresso. Hoje, há cerca de cinco dezenas de projetos de lei que buscam destruir os direitos alcançados e impedir a conquista de novos. Ele citou propostas “pelo porte de armas, restrições ainda maiores sobre a legislação medieval que temos sobre o aborto, aniquilação do SUS, revisão da Lei Maria da Penha, aprovação de ‘Escola sem Partido’”, entre outras. “É uma agenda muito preocupante da direita ou extrema-direita”, afirmou.
Na educação, as perspectivas não são menos sombrias, segundo a palestra de Sérgio Haddad. Segundo ele, o país volta a uma aliança já conhecida no Ministério da Educação, formada pelo PSDB e DEM.
A privatização volta a ser uma diretriz de Estado, o que pode ser observado em textos publicados pela imprensa. Ele mencionou artigo de Alexandre Schneider, ex-secretário municipal de Educação de São Paulo, na gestão de Gilberto Kassab, que, na semana passada afirmou no jornal Folha de S. Paulo: “Chegou o momento de discutir com a sociedade brasileira a cobrança de mensalidade nas universidades públicas”.
Por trás dessa sugestão, a ideia é desmontar um sistema educacional sistêmico e universal, “focando” em uma área em detrimento do todo. No caso, a justificativa de cobrar mensalidades na universidade pública seria a de que o Estado precisa ter dinheiro para o ensino básico. “Essa lógica que predominou no governo Fernando Henrique Cardoso deve se impor em época de restrição orçamentária. Vamos viver um tempo de ‘focalização’ e se pode ver isso nos debates colocados na mídia” disse Haddad. “Estamos vendo uma crescente presença do setor privado nas estruturas que definem as políticas de educação.”
Ao lado das questões econômicas, há hoje no país a preocupante escalada censória e ideológica, simbolizada pela proposta Escola sem Partido, que se alastra por legislativos municipais, estaduais e federal. Fora todas as consequências na educação, “o ministério e as secretarias contarão com organismos de delação”, disse Haddad, em referência ao artigo 8° do PLS 193/2016, que tramita no Senado, e prevê: “O ministério e as secretarias de Educação contarão com um canal de comunicação destinado ao recebimento de reclamações relacionadas ao descumprimento desta lei, assegurado o anonimato”.
Economia
Já Sérgio Gobetti, do Ipea, teceu uma série de críticas à condução da política econômica não apenas pelo governo Dilma Rousseff, mas também pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Segundo ele, o Brasil é um dos poucos países do mundo que não tributam dividendos para acionistas que recebem transferências de lucros, e os governos petistas não enfrentaram a situação. “Passamos 12 anos de governo sem enfrentar isso e nem mesmo colocar no debate.”
De acordo com Gobetti, o grupo dos muito ricos do país é formado por 70 mil pessoas que receberam, em média, R$ 4 milhões, cada um, por ano, e pagaram 6% sobre esse valor. O grupo de pessoas da alta classe média, formado por quem ganha de R$ 200 mil a R$ 300 mil por ano, desembolsa 12% em média. “A alta classe média vive de salários, que é tributado pelo Imposto de Renda, enquanto os muito ricos vivem de aplicações financeiras ou de dividendos. Isso é algo escandaloso.”
Segundo os dados disponíveis, esses 70 mil contribuintes concentram pouco menos de 25% da riqueza no país. “Não existe paralelo no mundo de países que disponibilizam estatísticas como essas”, disse Gobetti.
Ele criticou também algumas políticas econômicas e opções dos governos petistas, como “a obsessão em não fazer nada que contrariasse o mercado”. Um dos equívocos, segundo ele, foi a desoneração da folha, pela qual o governo pretendeu incentivar o crescimento. “A desoneração começou na indústria, se estendeu para o turismo, aos hotéis, bares e restaurantes, comércio varejista e construção civil. A cereja do bolo foram os meios de comunicação. A Abert (Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e TV), comandada pela Rede Globo, foi lá, pediu e levou.”
Segundo Gobetti, a desoneração da folha, que o governo decidiu fazer em 2011, quando a indústria estava muito fragilizada, principalmente pela concorrência chinesa, custou R$ 25 bilhões por ano para o governo.

Vivendo na caverna de Platão

Marília Veríssimo Veronese –  Professora e pesquisadora do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da UNISINOS.
Acho que todos os leitores e leitoras do Jornal Já conhecem o mito/alegoria da caverna de Platão. Dicotomias platônicas à parte, ele servirá aqui como uma metáfora para a leitura do nosso tempo. Na clássica obra “A República”, o filósofo grego (428 aC. – 347 aC.) descreve uma caverna onde prisioneiros – desde o nascimento – viam apenas sombras projetadas pela luz de uma enorme fogueira, na entrada da caverna. As sombras eram os personagens do seu mundo; eram tudo que eles conheciam e com elas se relacionavam em seu universo simbólico. Um deles, porém, conseguiu escapar da prisão cavernosa e, cego a princípio com tanta luz, acabou com ela se acostumando e enxergando as coisas, as pessoas, os animais, as cores, o movimento, a diversidade… voltou correndo para contar aos ex-companheiros o que havia lá no mundo “real”, animado com o teor e o potencial de suas bombásticas revelações!
Coitado! Ridicularizado a princípio, depois ameaçado – e como insistisse na declaração que eles viviam na ignorância e havia muitas coisas para além de seu mundo -, acabou morto pelos prisioneiros da caverna. Pois eu sustento que hoje boa parte dos cidadãos brasileiros está vivendo na caverna de Platão. As sombras projetadas são as “verdades” e o “real” produzidos pelos mais diversos agentes (no sentido de “ter agência”, agir, fazer, realizar); estes são geralmente midiáticos, e sua versão do “real” é legitimada como sendo a expressão exata da verdade. Se alguém questiona veículos midiáticos considerados “de referência”, “consagrados” – ou até mesmo boatos amalucados que circulam nas redes sociais – é defenestrado tal qual o sujeito que saiu da caverna e voltou para contar o que viu.
Tive um exemplo, há uns três anos atrás, quando circulou um hoax que utilizava uma imagem de um prédio público no interior de São Paulo – uma escola técnica pertencente à USP (Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiróz) – dizendo que era a fazenda do filho do Lula e tinha sido adquirida com dinheiro público. Tratava-se de um prédio luxuoso, que passava por uma fazenda de alto luxo. Logo saíram os desmentidos, o site e-farsas colocou o link da escola e viu-se que era apenas uma mentira inventada por algum mentecapto. Contudo, a versão factual pouco importou para quem difundia o boato. A sombra bruxuleante na parede da caverna à brazileira já havia se espalhado e era tomada como a mais certa e comprovada realidade. Uma pessoa que era meu contato no Facebook divulgou a postagem, que foi comentada imediatamente por uma legião de “pessoas de bem”, indignadas com os desmandos do “lulo-petismo”. De boa vontade (juro!), postei nos comentários que se tratava de um hoax, acrescentei o site da escola e esclarecimentos diversos sobre a falsidade do boato1. Fui “xingada” de epítetos muito pouco amigáveis, e que se eu não ia ajudar a divulgar, pelo menos que não atrapalhasse. Bloqueei aquela gente louca e me perguntei: estarei tendo o mesmo destino do habitante que fugiu da caverna?
Muitas outras situações vieram a provar que sim. Hoax passaram a ser “notícias” da mais profunda veracidade, boatos mentirosos motivaram decisões em câmaras de vereadores – vide situação bem recente que ocorreu na cidade de Feira de Santana, na Bahia (distante 100 km de Salvador, mais ou menos). Cidade esta que visitei em março deste ano e que tem uma universidade federal com um corpo docente extremamente qualificado, que tive oportunidade de conhecer durante um congresso ali realizado. Lamentavelmente, os vereadores do simpático município não lhes fazem jus. Esses nobres representantes municipais utilizaram a tribuna da Câmara para protestar contra um projeto de lei – inexistente! – que seria de autoria do deputado federal Jean Wyllys (PSOL-RJ) para retirar “textos considerados homofóbicos da Bíblia”. O boato na internet dizia que ele pretendia alterar a Bíblia… e os vereadores acreditaram!!!
Nas redes sociais
Quem é mais bitolado: esses “nobres” políticos (eleitos pela população!) ou os habitantes da imaginária caverna de Platão? Decida você mesmo, caro/a leitor/a! Quem deu início à discussão foi o vereador Edvaldo Lima (PP), que cogitou dar entrada em uma moção de repúdio contra o deputado federal. Na tribuna, ele criticou duramente o “projeto para alterar a bíblia”2. Meu último texto aqui foi sobre a tragicomédia brasileira. Pois é, ela continua firme, a desenrolar-se diante de nossos olhos incrédulos, talvez desde o ano de 1500 dC.
E não só no campo da política que as sombras projetadas nas paredes criam realidades e autorias indevidas. Um texto que circulou muito há algum tempo atrás, atribuído a Luis Fernando Verissimo, dizia lá pelas tantas que “dar é bom pra caramba”. Alguém que já tenha lido uma linha do que LFV escreve acha mesmo que ele escreveria isso!? Pois mesmo assim, lá passava o texto de mão em mão, com elogios ao autor por ser tão certeiro em suas assertivas sobre relacionamentos amorosos. Verificando sem dificuldade na internet, logo se descobria que o texto era de uma blogueira que escrevia na revista TPM, mas depois que caiu na rede, virou peixe sem mãe nem pai definidos. Por que as pessoas não verificam aquilo que postam?
E por que, ao verem que não é verdade, não admitem o erro e procuram a versão mais próxima da realidade? Talvez porque um Hampty-dumpty3 arquetípico tenha morada dentro de todos nós. O personagem utilizado por Lewis Carrol, no livro “Alice através do espelho”, dizia para Alice que dava às palavras o sentido que ele queria dar. Pouco importa a legitimidade desse sentido, o que importa é que ele era o dono do sentido, e assim manipulava-o à vontade.
Parte da imprensa faz exatamente isso, como ilustra bem o excelente documentário de Jorge Furtado, “Mercado de noticias”. Uma vez que a falsa versão, sem nenhuma verificação mais séria e responsável passa a circular e ser apropriada pela miríade incrivelmente variada de receptores…, pronto, está feito: a sombra da caverna não é mais questionada. Quem ousar fazê-lo sofrerá as consequências. Ela se impõe porque simplesmente é. E a força desse ser tem um poder incrível de mobilização das subjetividades. Não se trata simplesmente de “formar opinião”, mas sim de conformar subjetividades, modos de ser/estar no mundo, ideias e afetos diversos, dentre eles o ódio e o preconceito. Ou seja, se trata de produzir sujeitos, de produção de subjetividade no sentido de Deleuze e Guattari, autores conhecidos não só na filosofia como nos demais campos das humanidades e das ciências sociais. Quem não é desses campos deveria procurar conhecê-los, compreendê-los.
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Seja por sedimentação – martelar certo conteúdo dia após dia, durante anos, para solidificar um determinado viés da percepção de alguma coisa –, seja por fratura – “opa, parem tudo, não é nada daquilo, vejam só!”, através de uma “notícia” (na verdade interpretação viesada de algo) que dá novo sentido ao mundo, a parcela hegemônica da mídia brasileira não para. Simplesmente não para: ela age diuturnamente. Utiliza todas as ferramentas disponíveis da comunicação para produzir e sustentar seus interesses e a visão de mundo que defende.
É dessa forma que o “mensalão” vira o maior escândalo de corrupção de toda a história do Brasil. Sabemos que isso não é verdade, pois ao comparar o estrago feito por todos os lamentáveis escândalos de corrupção das últimas décadas, temos que ele ocupa um “modesto” décimo lugar. Vejamos:
Os dez maiores crimes de corrupção do Brasil4

Top Crime/Escândalo Ano Rombo
10º Mensalão 2005 R$ 55 milhões
Operação Sanguessuga 2006 R$ 140 milhões
Sudam 2001 R$ 214 milhões
Operação Navalha 2007 R$ 610 milhões
Anões do Orçamento 1993 R$ 800 milhões
TRT/SP 1999 R$ 923 milhões
Banco Marka 1999 R$ 1,8 bilhões
Vampiros da Saúde 1998 R$ 2,4 bilhões
Banestado 2003 R$ 42 bilhões
Privataria Tucana 1997 R$ 100 bilhões

E entender isso não tem nada a ver com defender os corruptos envolvidos no esquema do mensalão, que, aliás, eram oriundos de vários partidos políticos e de grandes corporações privadas. Cadeia neles! Agora, por que só neles?! Por que tanta seletividade? Ao querer que se diga a verdade dos fatos, não se está defendendo este ou aquele partido político. Apenas se quer refletir sobre a informação verdadeira em termos factuais! Entretanto, se a gente tenta argumentar com alguém que incorporou profundamente a inverdade em seus afetos e “certezas”, pode esquecer. Agressões e insultos- ou uma resistência obstinada – serão a resposta, jamais a reflexão crítica diante de fatos objetivos. Sim, porque o fato objetivo existe! Apesar de eu estar mais para Guattari do que para Durkheim (!), eu acredito que há uma factualidade em andamento que, embora contraditória e muitas vezes ambígua, possui uma concretude e uma existência que se desenrola objetivamente. Que pode ser demonstrada e provada, utilizando-se esses fatos e os dados decorrentes deles de forma objetiva.
O que a mídia faz é atribuir sentidos a esses fatos; o sentido que ela quer dar. É o Humpty-dumpty em ação. São os regimes de luz de Deleuze: onde a gente joga luz, ali há existência. O que se deixa no escuro, invisível, ali não há existência! Assim eu produzo a realidade do jeito que eu quiser, manipulando as luzes (acabo de ter um rompante de autoritarismo agudo, meu próprio Humpty-dumpty emergindo?).
Concluo que todos nós, homens e mulheres contemporâneos, estamos à mercê de nosso próprio personagem autoritário e manipulador, introjetado. A mercê das sombras das nossas cavernas de Platão existenciais. O que poderá fazer a diferença é o esforço consciente de nos informarmos em várias fontes, de refletirmos criticamente, de forçarmos o pensamento a pensar – e buscar- mais e melhor diversidade de análise do mundo, correndo sempre para fora da caverna e vendo a pluralidade que existe para além dela.
1 http://www.e-farsas.com/filho-de-lula-compra-fazenda-avaliada-em-47-milhoes-de-reais.html
2 http://g1.globo.com/bahia/noticia/2016/07/vereadores-repudiam-pl-inexistente-de-jean-wyllys-para-mudar-biblia.html
3 “When I use a word,” Humpty Dumpty said in rather a scornful tone, “it means just what I choose it to mean — neither more nor less.”.
 “The question is,” said Alice, “whether you can make words mean so many different things.”.
 “The question is,” said Humpty Dumpty, “which is to be master— that’s all.” (Through the Looking Glass, by Lewis Carroll). Disponível em: http://definitionsinsemantics.blogspot.com.br/2012/03/humpty-dumpty-principle-in-definitions.html
4 http://www.endodontiaclinica.odo.br/os-10-maiores-escandalos-de-corrupcao-do-brasil/

Imprensa e jornalismo em transição: a contradição das Agendas

Agemir Bavaresco – Filósofo, professor e coordenador do Programa de Pós Graduação da PUCRS.
A movimentação dos cenários da imprensa e do jornalismo nos últimos anos registrou contradições e mudanças que apontam para a transição de modelos de empreendimento, causados pelo avanço da tecnologia que tem implicações na teoria da Agenda.
1 – Concentração empresarial em tempo digital
A primeira constatação é a convergência digital que permitiu a reunião de grupos jornalísticos, mídia, telecomunicações e Internet. Estes grupos passam a intervir no mercado oferecendo vendas virtuais, montando portais, explorando nichos de acesso à Internet, criando provedores de serviços, num emergente shopping digital. Somado a esses fatos, as novas tecnologias desencadearam um processo de concentração global de empresas e a consequente desnacionalização do setor.
a) Mídia Global X Mídia local: Uma cadeia produtiva de mídia é formada, grosso modo, por anunciantes, agências de publicidade e veículos de comunicação. O que tivemos no Brasil, nos últimos anos, foi uma desnacionalização de empresas anunciantes, porque as empresas estrangeiras além de adquirirem as agências de publicidade trocaram o comando de tomada de decisões, focado na matriz e com alinhamento de interesses. Junto com essa concentração empresarial global está o enfraquecimento da mídia nacional. Há, de um lado, o modelo de jornal impresso de faturamento tradicional a custos elevados e, de outro, o modelo de negócios incipiente de edição digital que não conseguiu ainda se implementar.
b) Modelo de negócio tradicional X Modelo de negócio digital: O modelo de negócios da imprensa tradicional entrou em crise com a entrada no mercado brasileiro do Google e do Facebook, absorvendo o faturamento publicitário através da interação direta com o usuário pelo preenchimento de dados, perfil e ouvindo suas opiniões e interesses. A publicidade tradicional funcionava com as seguintes estratégias: a publicidade popular usava as redes de televisão nacional para estimular o consumo de bens de massa; e a publicidade segmentada usava os jornais e revistas para atingir um público mais homogêneo e mais refinado nos hábitos de consumo de produtos e de opiniões. Este modelo dissolveu-se com a emergência da Internet e as redes sociais, sobretudo com o ingresso, por exemplo, do Google e do Facebook que articularam um modelo de negócio digital, ágil e versátil, baseado na segmentação e o acesso online do banco de dados instantâneo.
c) Empresas jornalísticas X Jornalismo: A rigor na origem das sociedades democráticas a liberdade de imprensa e de opinião são qualificadas de públicas, isto é, trata-se de um serviço público, independentemente, de ser estatal ou privado. A transição de modelos em curso atingiu, especialmente, o jornalismo. Cabe distinguir entre as empresas jornalísticas de imprensa da atividade jornalística, pois, isto explicita um conflito histórico entre os objetivos públicos do jornalismo e os interesses comerciais dos grupos de imprensa. O que se constata é uma perda do papel do jornalismo, pois este torna-se subordinado aos interesses privados das empresas jornalísticas, por exemplo, os jornais não expressam mais ideias, mas tornam-se instrumento de propaganda dos interesses corporativos das elites financeiras ou industriais em nível nacional ou internacional (Esta parte baseia-se em matéria de Luis Nassif. Xadrez da crise da imprensa e do jornalismo. GGN, 12/07/16). Face a estes cenários de transição da imprensa e do jornalismo coloca-se o problema da teoria da Agenda.
2 – Agenda da Mídia Tradicional X Agenda das Redes Sociais
O que faz com que as pessoas pensem determinados temas e deixem de lado outros? O que influencia ou forma a opinião pública? Conforme a Agenda Setting, teoria elaborada por Maxwell McCombs, a pauta das conversas e debates é provocada pelos jornais, televisão e rádio (meios tradicionais). Esses meios têm a força de mudar a realidade social, ou seja, informam os fatos a serem pensados ou debatidos pelo público. Eles estabelecem a pauta dos assuntos e o seu conteúdo em nível local, nacional e internacional.
Porém, em face da agenda da mídia tradicional surge a agenda das redes sociais: A internet e as redes sociais permitem que os cidadãos expressem opiniões e interesses, sem o filtro dos meios de comunicação tradicionais. Através das redes sociais muitas pautas foram estabelecidas, protestos e insurreições foram organizados. A esfera pública encontrou nas novas tecnologias uma forma de expressão direta de sua opinião, a tal ponto que alguns especialistas constatam um novo fenômeno: a formação de uma nova opinião pública.
De um lado, temos a opinião pública tradicional, agendada pelos meios de comunicação tradicionais e controlada por interesses privados e pelas regulações e poderes estatais. De outro, a nova opinião pública diferenciada pela participação inclusiva, pela autonomia, velocidade e transparência, que tem como agentes os cidadãos protagonistas e descentralizados, com mobilidade instantânea e articulados em redes sociais.
A esfera pública foi transformada pela internet que alterou o ecossistema comunicacional, criando uma nova opinião pública. O sociólogo Manuel Castells chama este fenômeno de autocomunicação de massas. Às ações coletivas em rede, como a construção colaborativa da Wikipédia, juntam-se milhares de pequenas comunidades que desenvolvem expressões de inteligência coletiva, articulando uma esfera pública autônoma e em rede.
Por isso, o controle da opinião pública, pautado pela agenda tradicional está sendo mudado pela agenda das redes sociais. As grandes corporações e agências internacionais de comunicação que detêm o poder de disseminar sua versão dos fatos e de estabelecer a agenda pública confronta-se com a agenda das redes sociais que expressam opiniões opostas, instaurando uma opinião pública contraditória com força de expressão plural e ação democrática.
 

Uma Árvore de Golpes

Duilio de Avila Bêrni – Professor de economia política (UFSC e PUCRS, aposentado). Coautor de “Mesoeconomia” (Bookman, 2011) e “Teoria dos Jogos” (Saraiva, 2014).
Se tinha gente insatisfeita com as moderadas conquistas de posições igualitárias alcançadas pelo lulismo, só posso imaginar como estes falantes “estar-se-ão” sentindo com o temível governo Temer. Mas é precisamente esta a questão que desencadeou inúmeros golpes na ordem democrática alcançada no Brasil depois do impeachment do presidente Collor de Mello. Mais ou menos consensual, o impeachment de Collor nutriu-se precisamente da carência de capital político do presidente vencedor das primeiras eleições diretas depois do movimento político-militar que rompeu com a ordem institucional em 1964. Com pouco mais de 50 anos de deflagração da primeira, vemos agora a terceira ruptura na ordem institucional no país.
Visualizo um diagrama de árvore (dendograma) em que o nó inicial é o golpismo que, rapidamente, bifurca-se em dois troncos contendo atentados às liberdades políticas e socioeconômicas, ambas ramificando-se em variadas combinações. Sem falar nos atropelos já praticados na política externa, o primeiro tronco diz respeito às motivações políticas do golpe, cabendo ao Brasil a vivência de inúmeras variantes e, agora, uma tentativa de golpe parlamentar com a proposta do impeachment do mandato de Dilma Rousseff. No Brasil contemporâneo, uma forma disfarçada de golpe consiste na chamada judicialização das ações legislativas e impugnação judicial de medidas do poder executivo. Como foi referido por estes dias nas redes sociais, o Brasil não tem um poder judiciário, mas 17 mil juízes fazendo pelo menos 17 mil tipos de justiça…
Um dos troncos secundários é o chamado complô do quarteto promotores-juízes-polícia-imprensa. Novo tronco associa-se a uma tosca visão de neoliberalismo, ou melhor, a visão rasteira de libertarianismo, quando seus arautos, no final, esquecem a liberdade política e enfatizam apenas “a soberania dos mercados”. Estes golpes não são de hoje, como atestam as ações progressistas e a reação a elas que antecederam o golpe militar. Depois da renúncia de Jânio Quadros à presidência da república em 1961, uma junta militar vetou a posse de seu sucessor e negociou com o congresso nacional a instituição do parlamentarismo no Brasil. Depois de alguns meses da manutenção da instabilidade política, um plebiscito restaurou o presidencialismo, quando João Goulart lançou seu programa de “reformas de base”, despontando – e despertando furores de parte das referidas classes empresariais – a reforma agrária. Mas, além dela, falava-se na promoção de uma reforma na administração pública, da política tributária e do sistema bancário. Não é de surpreender que as forças conservadoras, em plenos tempos de guerra fria e emergência do regime revolucionário cubano, invocaram o apoio dos militares, os quais, afinal, tornaram-se os protagonistas do lamentável espetáculo.
Com duas décadas de duração, aos poucos, a ditadura militar foi vendo sua aceitação pela maioria da classe política corroer-se, culminando com a assembleia constituinte que determinou a realização de eleições diretas para a presidência da república em 1989. No ínterim entre as eleições que levaram Collor ao poder e às que dele afastaram os militares, vimos a eleição indireta de Tancredo Neves, carregando como candidato a vice-presidente o nome de José Sarney. Sarney veio a avalizar novo golpe ao livre exercício do poder popular, pois nunca foi empossado como vice-presidente. A nomeação do titular de sua chapa nunca ocorreu, uma vez que Tancredo Neves adoeceu antes da posse e, como tal, não foi ungido ao cargo. Sarney, que estava destinado a acompanhar Tancredo por um período de quatro anos, mas que – se Tancredo tivesse tomado posse por um minuto – seu vice teria apenas dois anos de mandato, devendo encaminhar a convocação de novas eleições. Pois ele conseguiu estender seu mandato para um quinquênio, sendo o único presidente civil a fazê-lo: os mandatos quadrienais voltaram, cabendo a Fernando Henrique mudar a constituição, dando-se guarida ao direito a uma reeleição. Antecessor de FHC, a quem Sarney – mal-humorado – não deu posse, Fernando Collor venceu uma eleição em que não faltaram de lado a lado manifestações de despreparo e prática da mentira. Aclamado no segundo turno eleitoral por uma frágil coalizão de partidos, o que chega a surpreender é que este arranjo tenha durado um par de anos. Em seu governo, a corrupção endêmica grassava em muitos segmentos do governo federal e contribuiu para que a norma institucional fosse rompida com um pedido de impeachment aprovado sem a participação do voto popular, eis que todo espetáculo ocorreu no congresso nacional.
Durante os governos que o sucederam, houve relativa calma, pelo menos no que diz respeito à sanha de golpes ou impeachment. Seguiu-se à surpreendente conversão de Fernando Henrique ao ideário neoliberal a triunfal entrada em cena de Lula, que governou na relativa paz compatível com a realidade de uma enorme população pobre e desassistida sequer de direitos civis. Tal foi o sucesso econômico do governo Lula que, em escolha idiossincrática, lançou como candidata a sucedê-lo e, como tal, preservação do lulismo, a Dilma Rousseff. A presidenta – o substantivo feminino foi incorporado desde que Dilma sucedeu Wrana Panizzi na presidência da Fundação de Economia e Estatística – fez um governo que amargou sérios tropeços econômicos, acarretando-lhe a corrosão do controle da máquina pública e o otimismo da população. De estonteantes índices de popularidade alcançados em pesquisas de opinião, este indicador passou a registrar queda, mergulhando a níveis baixíssimos, certamente auxiliados pela histriônica reação de Aécio Neves à própria derrota nas eleições de 2014. Abalado com a contundência do ódio de Aécio e sua ascenção a arauto das classes conservadoras, o governo Dilma passou a fazer-lhes concessões, contribuindo crescentemente para a perda de apoio por parte das classes populares. A tragédia prosseguiu, na eleição de 2014, com a sagração, nas duas casas, de um congresso nacional reacionário em termos políticos e econômicos, insatisfeito com a forma como o governo estava financiando medidas de efeito redutor da desigualdade econômica. Não surpreende que um político oportunista do porte de Eduardo Cunha tenha sido eleito presidente da câmara e desencadeado um pedido de impeachment do mandato de Dilma com raso conteúdo lógico, mas de agudo apelo ideológico.
Na mesma linha do golpe de Sarney, que não estava credenciado a assumir a presidência, Michel Temer carrega a ilegitimidade de, mesmo no período em que responde interinamente pela presidência, tenta impingir à economia um programa de governo de manifesto corte antipopular, eivado de tentativas de cortes de direitos sociais e econômicos. Precisamente sobre essa dimensão econômica é que assenta o segundo tronco do mundo golpista. Nesta região da árvore, os golpes são ainda mais frequentes, pois são perpetrados em resposta às pressões exercidas sobre os poderes executivo e legislativo por representantes da chamadas classes empresariais. Entusiasma-as, por exemplo, o sequestro de algumas conquistas sociais e econômicas alcançadas pela classe trabalhadora durante o lulismo. Mas esta, alquebrada por inúmeras derrotas, não deveria esquecer que um momento dramático a agitar este tronco ocorreu no pós-1964, quando a estabilidade no emprego conquistada durante a ditadura varguista, foi varrida e substituída pelo instituto do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço. O FGTS é um fundo de poupança que assegurava direitos econômicos sobre a desvalorização do dinheiro, mas pagava um juro de modestos 3% a. a., quando as cadernetas de poupança pagavam 6% e os empréstimos habitacionais corriam a juros de 12% a. a. Bons tempos, infelizmente… Pois novos golpes foram-lhe assestados durante o governo FHC, mudando regras da aposentadoria para praticamente a mesma expectativa de vida ao nascer, isto é, criou-se direito à aposentadoria por idade para 75 anos, quando o brasileiro médio deverá estar… morto.
Mas esta derrota para o trabalhador médio resultou ainda no golpe misto que foi assestado contra, digamos, a “jovialidade” da composição do supremo tribunal de justiça do país, ao também a eles reformarem a tradicional aposentadoria do funcionário público de 70 anos. Com isto, naturalmente, os desígnios dessa suprema corte devem tornar-se mais conservadores, ainda que desalinhados dos interesses políticos imediatos.
Nos dias que correm, anunciam-se intenções de cortes abruptos nas despesas públicas, talvez recitados como nos teatros de marionetes, pois as reações e a própria “base aliada” levaram o governo provisório a rever o ímpeto das medidas anunciadas. Este foi o caso dos cortes e recomposição do programa de habitação popular “Minha Casa, Minha Vida”, do financiamento à educação superior pelos programas Pro-Uni, FIES e as mais infames propostas de reformulação do SUS. As próprias críticas endereçadas ao déficit público do governo afastado foram substituídas por uma espécie de reformulação imóvel, pois aceitou e até ampliou seu volume, já anunciando que os próximos anos também terão que conviver com esse promotor de um hiato inflacionário. No Brasil do “andar superior” tornou-se tabu falar em combate ao déficit com a ampliação da tributação. Descarta-se liminarmente com este tipo de reação que se daria por meio da adoção dos impostos diretos, como o imposto de renda progressivo, o imposto sobre grandes fortunas e de transmissão de bens por herança.
Nesse andar superior, meter o ombro na porta é, como observamos, ação rotineira. E nada o ilustra com cores mais vivas que a tragicomédia da tentativa de impeachment que hoje vemos contra o mandato de Dilma Rousseff. A acusação original, emergindo da iniciativa pessoal de três advogados, dois dos quais foram, no passado, figuras de proa, comprometidos com a cruzada antilulismo, com uma acusação de “operações de crédito indevidas” concernentes ao ano de 2014. A esta percepção enviesada, associou-se um crescente grupo de inconformados com os resultados da eleição desse ano.
Constatada a improcedência do pedido, rapidamente esses defensores de uma ordem legal conveniente, reciclaram seu pedido para as contas de 2015. Especialmente na preparação do julgamento do mérito da tese da prática de crime de responsabilidade ora em andamento no senado federal. por contraste a julgamentos semelhantes de todos os governos anteriores, inclusive dos estados, cuja recomendação era de “aprovar com ressalvas”, agora o exame ganha foros de discussão entre o lobo e o cordeiro: “Se não foi pedalada fiscal, foi algum outro ilícito ainda mais revoltante. E não se discute mais.”
Diferentemente de Michel Temer, outro paulista não se encantou com a tentação do poder: Amador Bueno. Com efeito, ao encerrar-se o Domínio Espanhol sobre Portugal, em 1640, a colônia de súditos da Espanha residente em São Paulo rebelou-se contra a assunção de Dom João IV ao trono português e intimou Amador Bueno a assumir o reinado da região que, desta forma, se tornaria independente do restante do Brasil Colônia. O incorruptível paulista recusou a honraria e, ao contrário do esperado, saudou de espada em riste a ordem institucional portuguesa. No presente momento, Temer faz um prejulgamento espetacular do julgamento a que Dilma Rousseff será submetida pelo Senado da república. Alardeia-se que ele sonha-se capaz de reestabilizar o Brasil nos dois anos e meio de mandato que talvez o aguardem. Aécio iniciou a desestabilização política. Temer conta com a desestabilização institucional. Amador Bueno está sepultado.
 

O avanço do atraso e a possibilidade da resistência democrática

Benedito Tadeu César – Cientista Político
Vivemos um momento de refluxo das forças democráticas e de esquerda em todo o mundo e também no Brasil. É hora de resistência e de acúmulo de forças para poder voltar a avançar.
No plano internacional, o panorama é de avanço da direita. Na Argentina, a centro-esquerda foi derrotada com a vitória eleitoral de Macri. Na Bolívia, Evo Morales perdeu o plebiscito e não conseguiu autorização popular para se candidatar a um novo mandato presidencial. Na Venezuela, a desestabilização do governo Maduro é cada dia mais intensa. No Chile, Bachelet enfrenta problemas sérios e acusações de corrupção. No Peru, a esquerda sequer conseguiu chegar ao segundo turno das eleições presidenciais.
Nos EUA, Donald Trump, representando a ala mais à direita do Partido Republicano, será o candidato daquele partido à Presidência da República. Na Espanha, o Partido Popular (conservador) foi o mais votado nas últimas eleições, contrariando as expectativas de vitória da coligação Unidos Podemos. No Reino Unido, o Brexit venceu o plebiscito determinando que o país saia da Comunidade Europeia. Na Áustria, o Partido da Liberdade, de extrema direita, anti-imigração e eurocêntrico, conseguiu anular as eleições, que serão repetidas em outubro.
No plano nacional, o panorama é semelhante, senão pior do que o internacional. O golpe jurídico-midiático-parlamentar tem tudo para se “naturalizar”, com a destituição definitiva de Dilma pelo Senado no mês de agosto e a aceitação popular do desfecho autoritário. Dilma não conseguiu virar o jogo. O PT parece estar conformado com a derrota que sofreu, preferindo investir forças nas eleições municipais de outubro próximo.
Nem Dilma nem o PT apresentaram uma proposta capaz de sensibilizar as grandes massas e os setores mais avançados da sociedade, os movimentos sociais, partidos de esquerda e setores liberal democráticos. Não conseguiram, por outro lado, negociar com os setores menos retrógrados do empresariado e dos senadores a ponto de reverter os votos necessários para barrar o impeachment.
Impasse e paralisia
No plano político mais geral, há um impasse que leva à paralisação institucional, política e econômica do país. É um impasse tão profundo, que os principais agentes políticos encontram-se imobilizados. Há um aparente empate estabelecido entre os campos políticos em conflito. Nem Dilma e nem Temer têm condições de governar. Nem Dilma e nem Temer têm propostas capazes de aglutinar forças e ganhar a opinião pública e os setores de poder (empresários e movimentos sociais).
Dilma não vira o jogo e Temer não se estabiliza no governo. Cunha, mesmo afastado, continua controlando o governo interino e acuando Temer. PMDB, PSDB, PT e a imensa maioria dos políticos estão desmoralizados e sem legitimidade frente à opinião pública. Apoiadores sinceros e/ou ingênuos do golpe estão silenciosos, decepcionados e até envergonhados, e a grande mídia desmoralizada para uma boa parte da população e exposta ao ridículo pela imprensa internacional.
Os novos movimentos sociais de esquerda e de centro-esquerda tomam as ruas, deixadas vazias pelos que pretendiam tirar Dilma, mas veem lentamente suas forças se esvaírem sem conseguir alterar efetivamente o jogo político e abortar o impeachment.
Aécio e Marina se recolheram, tão logo as denúncias de corrupção que os atingiam foram finalmente tornadas públicas pela grande mídia. Aécio perde prestígio e talvez não se recupere, pois sua presença não interessa mais nem mesmo aos tucanos. Marina se preserva para reaparecer no momento oportuno como uma possível alternativa de governo, mas, por enquanto, a cada vez que se manifesta mais explicita o interesse principal de promoção de sua candidatura.
Não obstante a paralisia institucional e das principais lideranças políticas do país, caminham céleres as iniciativas neoliberais, antipopulares e antinacionais, promovendo o desmonte do arremedo de Estado de bem-estar social montado durante os governos Lula e Dilma.
Considerando-se os agentes políticos e as instituições da República, só quem avança são os procuradores, a PF e a força tarefa da lava-jato, Moro e o STF, fazendo com que o jogo penda em favor dos golpistas na medida em que prendem apenas petistas e aliados e não os peessedebistas e peemedebistas que apoiam o governo Temer e que também são acusados de corrupção.
Imbuídos de uma missão salvacionista, eles são os novos atores que dominam a cena, sem que se possa afirmar efetivamente quais são os seus objetivos reais. Sua “missão” seria apenas “limpar o país”, livrá-lo da corrupção e iniciar a construção de uma novíssima República? Que República seria esta e quem a construiria? De onde advém a força que demonstram? Terão suporte internacional? Por que se dedicam a desmontar as únicas empresas nacionais em condições de competir no mercado internacional e desenvolver tecnologia de ponta – a Petrobras e as grandes empreiteiras? Para onde conduzem o país e a quem o entregarão?
Uma disputa secular
O que sabemos, sem dúvidas, é que há uma disputa instalada no mundo e também no Brasil desde, pelo menos, o século XIX, sobre como desenvolver o sistema capitalista na economia e na política. De um lado, as propostas globalizantes, lideradas pelo grande capital internacionalizado e, de outro, os projetos nacionais. De um lado, a crença no livre mercado e na sua autorregulação e, de outro, a defesa da ação do Estado como indutor do crescimento da economia nacional, protegendo as indústrias nascentes, e realizando investimentos estratégicos para criar competitividade e conquistar mercados.
Ao longo do século XX, em meio a conflitos e guerras, cresceram as tentativas de projetos nacionais de desenvolvimento com forte presença do Estado e com inclusão social, como por exemplo no Japão e na Alemanha, e o desenvolvimento dos chamados Estados de Bem Estar Social nos países desenvolvidos, no pós-segunda guerra mundial.
Com a crise do bloco socialista e das alternativas nacionais de desenvolvimento nos países do terceiro mundo nas duas últimas décadas do século XX, avançaram novamente as posições ultraliberais de defesa do livre mercado internacional, a globalização e a financeirização da economia sem se submeterem a qualquer controle público.
Nesse processo, num movimento de defesa de mercados regionais, criaram-se os blocos econômicos ao mesmo tempo em que cresceu o individualismo e a xenofobia e entraram em crise os partidos políticos tradicionais, firmados na antiga dicotomia capital-trabalho e favoráveis a projetos nacionais de desenvolvimento, de um lado, ou de integração ao capital internacional, de outro.
No Brasil, esta disputa de caminhos de desenvolvimento do capitalismo se manifestou já a partir do final do Império, com a abolição da escravatura e a proclamação da República sem povo – os bestializados, na definição de José Murilo de Carvalho. As revoltas dos tenentes, na década de 1920, a Revolução de 1930, os conflitos e as instabilidades políticas de 1945, 1954, 1956/9, 1961 e 1964, bem como o processo de instabilidade política em curso, são expressões desta disputa que se arrasta no tempo.
De um lado, a ascensão de Getúlio Vargas e a criação do Estado Nacional Moderno no Brasil marcaram a vitória parcial e temporária da posição daqueles que, nos anos de 1960, se tornaram conhecidos como “nacional-desenvolvimentistas”. Neste grupo, além de Vargas, incluem-se ainda, com diferentes graus de defesa do projeto nacionalista e também do sistema político democrático, Juscelino Kubitschek, João Goulart, (Castelo Branco, Garrastazu Médici, Ernesto Geisel e João Figueiredo – durante a ditadura civil militar de 1964/1985), Itamar Franco, Lula da Silva e Dilma Rousseff.
De outro lado, a destituição de Vargas e a eleição de Dutra, em 1945, e o suicídio de Vargas, em 1954, marcaram momentos de vitórias parciais e temporárias dos favoráveis à associação plena com o capital estrangeiro que, nos anos de 1970/80, ficaram conhecidos como adeptos da teoria do “desenvolvimento associado e dependente”, formulada inicialmente e de modo crítico por Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto em 1965/67. Fazem parte deste grupo, Eurico Gaspar Dutra, Jânio Quadros, (Costa e Silva – durante a ditadura), José Sarney, Collor de Mello, FHC e Michel Temer.
A farsa do impeachment sem base jurídica é a nova face da mesma e contínua disputa
Durante os anos Lula/Dilma, auxiliados por uma conjuntura internacional de crise da economia norte-americana e europeia, mas de favorecimento da economia nacional em virtude da valorização das commodities brasileiras (minério e soja, principalmente), impulsionadas pelo crescimento acelerado da China, foi possível que o governo federal, com forte compromisso popular, adotasse políticas de investimento em infraestrutura e geração de tecnologia nacional, valorização da educação e inclusão social.
A chegada da crise à economia brasileira, em 2013/4, com a desaceleração do crescimento chinês e a retração do preço internacional das commodities, aliada à inabilidade política e aos erros de condução da economia por parte do governo Dilma, possibilitaram que as insatisfações populares latentes crescessem exponencialmente, sem ser orientadas para a defesa do Estado de Bem Estar Social que vinha sendo construído no país.
As manifestações de 2013 e também os chamados “rolezinhos” expressam a eclosão desse fenômeno no âmbito das classes médias e populares recém inseridas ao mercado de consumo de massas. Insuflados pela grande mídia, os protestos que tinham como alvo inicial os reajustes das tarifas de transporte público voltaram-se contra o governo, pedindo principalmente a ampliação e melhoria dos serviços de saúde e de educação e o combate à corrupção. De roldão, foram incluídos todos os tipos de pautas, desde o combate à homofobia e à violência contra as mulheres até a liberalização do porte de armas e a proibição do aborto, por exemplo.
A ausência de partidos políticos e lideranças aptas para canalizar e dar direção à insatisfação generalizada abriu espaço para o avanço de grupos oportunistas, desde o chamado Movimento Brasil Livre até os black-blocs, que direcionaram suas ações visando o enfraquecimento do governo e culminaram com a campanha do impeachment, a partir da reeleição da presidenta Dilma, liderada pelos partidos e lideranças que não aceitaram a derrota nas eleições presidenciais.
A piora das expectativas econômicas em função da crise que chegou ao país, o aumento da inflação e do desemprego, mais a ação articulada entre os promotores, delegados e juízes da Operação Lava Jato e a imprensa, e ainda entre as lideranças derrotadas nas eleições criaram o caldo de cultura que possibilitou o afastamento de Dilma e a entrega do governo ao grupo de Michel Temer, Eduardo Cunha, Eliseu Padilha, Geddel Vieira Lima e Romero Jucá. Um grupo cuja principal ideologia é o espólio do Estado nacional e que nunca chegou a elaborar um projeto de desenvolvimento para o país, fosse ele qual fosse – nacional ou associado/dependente dos grandes grupos da economia internacional, mantendo-se sempre como aliado principal dos vitoriosos em eleições presidenciais.
Este grupo, além disso, não detém legitimidade popular e nem força política suficiente para se manter no poder. Eduardo Cunha, deputado federal afastado da presidência da Câmara por corrupção e na iminência de perder seu mandato parlamentar, controla o governo e seus principais agentes políticos, a começar pelo presidente interino – mantido sob rédeas curtas, por meio da imposição de ministros e lideranças – sabe-se lá pela utilização de quais meios e métodos.
Na tentativa de conquistar o apoio dos setores empresariais e políticos comprometidos ideologicamente com as visões ultraliberais na economia e com concepções de desenvolvimento associado ao mercado e aos grandes centros hegemônicos do capital, o grupo atualmente no exercício da Presidência da República acelera a adoção de medidas de desmonte das políticas sociais e das estruturas do Estado voltadas para a promoção do desenvolvimento nacional de modo relativamente autônomo.
Este é o motivo para a voracidade e a velocidade das ações empreendidas por Temer e seu grupo, com a adoção de ações que visam à desarticulação acelerada do projeto de Estado de Bem Estar Social que vinha sendo implementado no Brasil durante os governos de Lula e de Dilma. Propondo-se a criar uma “revolução” na economia e nas instituições, capaz de fazer o Brasil retomar o crescimento, o governo Temer tem promovido uma política de terra arrasada, a partir da qual tudo teria que ser reconstruído noutros termos.
Citem-se, no plano social, por exemplo, a desobrigação de aplicação de valores do orçamento da União definidos constitucionalmente para as áreas de educação e saúde; a revisão das políticas de habitação popular; o não pagamento do reajuste do valor do Programa Bolsa Família; a aceleração da tramitação dos projetos de lei que visam a mudança na política previdenciária e de aposentadorias; a terceirização total das contratações de mão de obra, com a consequente precarização do trabalho e o enfraquecimento das organizações sindicais, bem como a alteração de outros dispositivos da CLT que garantem conquistas dos trabalhadores.
Vai na mesma direção, no plano das relações internacionais e da política econômica, a pressa com que o governo interino se lançou ao esforço para desmontar a política de integração Sul-Sul, empreendida pelos governos Lula e Dilma, e para reintegrar o Brasil ao sistema de comércio controlado pelos EUA; a tentativa em curso de alteração do regime de partilha para a exploração do petróleo na zona do Pré Sal, que visa desobrigar que a Petrobras participe com pelo menos 30% em qualquer contrato de exploração de petróleo firmado com empresas privadas.
Se aprovada, esta alteração colocará nas mãos de empresas não brasileiras a quinta maior reserva de petróleo do mundo, inviabilizará a criação do Fundo Soberano, que é uma espécie de investimento de longo prazo realizado pelo país, e impedirá que parcela importante dos royalties do petróleo sejam revertidos para o Fundo Social destinado à Educação e à Saúde.
Destaque-se, ainda, a proposta de emenda constitucional, apresentada como a salvação das finanças públicas, que visa congelar os gastos com custeio e manutenção da máquina estatal e dos investimentos nas áreas sociais, limitando seu reajuste à correção da inflação do ano anterior. Uma limitação que o governo Temer já impõe como condição para a revisão da dívida dos estados subnacionais com a União.
Se o novo contrato for aceito pelos estados, não apenas os atuais governadores, mas também todos os futuros governadores durante os próximos 20 anos estarão impedidos de aumentar os gastos de investimento, de políticas públicas e de custeio. Considerando-se apenas o aumento vegetativo da população, em declínio mas ainda positivo, a consequência será não apenas o congelamento dos gastos dos governos, mas a diminuição destes gastos.
Com isto, piorarão ainda mais as políticas de segurança, de saúde e de educação, por exemplo, e o Estado estará impossibilitado de investir em obras públicas como estradas, transportes, energia, infraestrutura etc. Diversos serviços que hoje são prestados pelo Estado e obras que são executadas diretamente por agências e órgãos públicos passarão a ser prestados e realizados por empresas privadas. Além disso, os salários de todos os servidores e servidoras públicas serão congelados aos níveis atuais, pois só serão reajustados para repor a inflação do período anterior aos reajustes.
O avanço do atraso e a necessidade da construção de uma frente ampla democrática
O avanço das políticas ultraliberais, com a tentativa de desmonte dos Estados de Bem-Estar Social, hoje em curso desde o plano internacional, passando pelo nacional e chegando aos estaduais, tem aberto espaço para a manifestação de grupos xenófobos e obscurantistas, dispostos a estancar e a fazer retroceder os avanços das liberdades civis já conquistadas em boa parte do mundo. No Brasil, citando-se apenas um exemplo crucial, no plano da educação, avançam as propostas de alteração no Plano Nacional de Educação, de interrupção da integração curricular que começava a ser construída e, até, de aprovação de legislação que proíbe o pensamento crítico nas escolas públicas, sob a alcunha de “escola sem ideologia”, mas que melhor seria denominar de escola com ideologia única.
Tanto no plano nacional quanto no plano estadual, só há uma saída para o enfrentamento dessas forças reacionárias e antidemocráticas que avançam. A construção de uma grande frente popular em defesa da democracia e do estado democrático de direito, que congregue partidos políticos, sindicatos, centrais sindicais, comitês e movimentos em defesa da democracia e contra o impeachment e todos aqueles que, engajados ou não em partidos e movimentos, estejam dispostos a defender a democracia. Uma frente suficientemente ampla para agregar todos os democratas, sejam eles liberais, sejam socialistas e até os que não têm definição político-ideológica firmada, mas defendem a democracia.
A intransigência de alguns partidos de esquerda e de centro-esquerda, apoiada em avaliações de que poderão firmar posições e preservar territórios, e o oportunismo de outros, acreditando que se apropriarão do espólio dos derrotados, só favorecerá o retrocesso e os avanços da direita golpista que hoje assalta o poder e as riquezas populares e nacionais. Frente às eleições municipais deste ano, cada partido lança candidatura isolada, justificando-se com a promessa de “união no segundo turno”, ao qual, possivelmente, nenhum deles chegará. Quando se derem conta do equívoco, a direita e o retrocesso já terão atropelado a todos.
Estamos em um momento de refluxo das forças democráticas e de esquerda em todo o mundo e também no Brasil. É hora de resistência, de acumulação de forças e de preparação para a reação de médio e de longo prazos. Disputas e divergências cabem e são bem-vindas nos momentos de avanço e de conquistas, pois nesses momentos é preciso se definir rumos e explicitar mais e novos objetivos a serem alcançados. Nos momentos de refluxo, como o atual, é preciso saber buscar semelhanças e, com elas, construir os consensos possíveis, para que se crie uma barreira capaz de conter o avanço das forças que não têm compromissos com os interesses nacionais, com as necessidades da ampla maioria da população e com a democracia.

O X da questão do teto dos gastos públicos

Apito Brasil – Sindicato do Banco Central
O quarto item da justificativa de fundamentação da proposta de emenda constitucional que cria teto para os gastos públicos traz uma afirmação poderosa que cativou de imediato a simpatia da grande imprensa e o apoio de formadores de opinião pública: a de que a raiz do problema fiscal do Governo federal está no crescimento acelerado da despesa pública primária, que variou 51% acima da inflação, só no período de 2008 a 2015, enquanto a performance da receita no mesmo período teria sido de apenas 14,5%. “Torna-se, portanto, necessário estabilizar o crescimento da despesa primária, como instrumento para conter a expansão da dívida pública.”
Ao apresentar esses dados de maneira binária, sem contexto, o governo interino de Michel Temer tenta jogar nas costas do funcionalismo público federal e das rubricas de saúde e educação a responsabilidade pelo desajuste financeiro da União. O artífice de toda essa retórica – o ministro da Fazenda Henrique Meirelles – quer fazer a sociedade crer que a medida “essencial para recolocar a economia em trajetória de crescimento, com geração de renda e empregos” é congelar o salário do servidor público, sobretudo do Executivo, e desvincular da receita as despesas com saúde e educação.
O que o ministro da Fazenda não conta é que nenhuma coisa nem outra é a vilã da diferença de 42 pontos percentuais verificada entre a evolução da despesa e da receita – pegando o próprio exemplo dado na justificativa da PEC 241/2016. Não é preciso o uso de matemática financeira para perceber que existe uma contradição nesse argumento. É só usar a lógica, em seu sentido mais puro. Se considerarmos que a despesa é fator X, a receita é fator Y e que o percentual dos gastos com educação e saúde, fator Z, está fixado em relação ao fator Y, logo se deduz que o aumento da diferença entre X e Y não decorre do fator Z, justamente porque ele está rigorosamente atrelado percentualmente à evolução de Y.
Então, se não podemos responsabilizar a educação e a saúde pelo desajuste nas contas públicas, talvez seja a despesa com o funcionalismo a grande culpada pelo estado das coisas. Só que mais uma vez, a premissa está eivada de vícios. Mas desta vez, será preciso usar equações matemáticas para demonstrar as ambiguidades das afirmações usadas pelo governo para legitimar a PEC do teto dos gastos públicos.
No ciclo do governo de Fernando Henrique Cardoso, que foi de 1995 a 2002, os gastos com o funcionalismo correspondiam a 55% da receita da União. Hoje, essa correlação é de apenas 40%, 15 pontos percentuais a menos. Ora, se os custos com o funcionalismo caíram em relação à receita, também não se pode atribuir ao servidor público a culpa pela crise fiscal do país.
Se esses dois aspectos – funcionalismo e desvinculação de receita –, que são a razão de existir da PEC 241/2016, não causaram o desequilíbrio das contas públicas, quais foram os fatores de aumento desordenado das despesas? Onde foi aplicado esse dinheiro? Quem o consumiu? Por qual ralo escoaram recursos tão valiosos para a sociedade?
Se forem sinceras as motivações do novo governo de neutralizar a verdadeira fonte de tamanho desajuste orçamentário, Temer e Meirelles serão obrigados a olhar para o lado e, para desespero do mercado, deparar-se com o óbvio: as despesas foram infladas ao longo desses anos por uma forte e continuada política de endividamento do Estado, a um custo elevado para o país. Um simples aumento de um ponto percentual na taxa Selic, por exemplo, provoca um custo fiscal entre R$ 15 bilhões e R$ 20 bilhões. As despesas com juros acumuladas de junho de 2014 a junho de 2015, foram da ordem de R$ 420 bilhões. Nada menos de 45% do orçamento da União é para a rolagem da dívida e o pagamento dos juros.
Em junho de 2015, com o país já em recessão, a relação dívida/PIB ficou em 63%, o pior resultado da História. No mesmo mês de 2014, estava em 55% do PIB. Para analistas do mercado, o grande temor é o de que a dívida bruta ultrapasse os 70% do PIB, e indicador levaria o país a novo rebaixamento pelas agências de risco.
Os servidores públicos não estão em dissonância com os anseios da sociedade brasileira nem descolados da realidade. Defendem também um ajuste de contas, desde que feito com qualidade, de maneira a favorecer a recuperação da economia. O funcionalismo já aceitou dar sua cota ao acordar um reajuste salarial muito abaixo da inflação. Mas o que se vê nas intenções anunciadas pelo governo interino são ações mais contundentes, aproveitando o desequilíbrio fiscal para tomar medidas que debilitam o Estado, em especial os programas que promovem o bem-estar.
É preciso inverter essa lógica, porque a discussão que se fez até aqui, com caminhos que contemplam maior ou menor superávit primário, não vai à raiz do problema. Os cortes no orçamento e a política de juros altos não são utilizados para reduzir os gastos do Estado e torná-lo mais eficiente. São, no fundo, mecanismos para facilitar a descomunal transferência de renda para uma classe que sempre expropriou o Estado.
Chegamos, então, à conclusão de que estamos diante de,no mínimo, uma desonestidade intelectual propalada por quem defende a tese da PEC do teto dos gastos. Vimos que a justificativa do governo, quando colocada em perspectiva, ganha sentido real, desmistifica certos dogmas reiteradamente vendidos como verdadeiros e criminaliza a dívida interna, hoje acima de R$ 3 trilhões. Se se quer colocar no cadafalso princípios pétreos e direitos constitucionais, que ao menos sejam mais transparentes e menos dissimulados, a fim de que haja um debate franco de ideias, mas que também se tenha a coragem de discutir o DNA da dívida interna. Afinal, quem e por que temem uma auditoria na dívida pública?
Edição 98 – 8/7/2016 SINDICATO DO BANCO CENTRAL – SINAL
APITO BRASIL – EDIÇÃO 98/16

O Xadrez da Rainha da Inglaterra e do interino do Jaburu

A história é repleta de paradoxos. É como uma espiral, sempre dá voltas retornando ao mesmo lugar, mas alguns degraus acima, como dizia o músico e filósofo Koellreutter. Há enormes semelhanças entre as crises das primeiras décadas do século 20 e as atuais, culminando com o Brexit do Reino Unido, a campanha pela saída do Reino Unido da Comunidade Europeia, que foi vitoriosa no referendo.
Desde o século 19 há a disputa pelo controle das políticas econômicas nacionais, entre a proposta globalizantes – liderada pelo grande capital internacionalizado – e os projetos nacionais.
Esta disputa está na raiz da economia como ciência. De um lado, o pensamento majoritário de crença no mercado, que nasce com Adam Smith, com o mundo racionalmente integrado por economias nacionais, cada qual fundando-se em suas vantagens comparativas.
De outro, o desenvolvimento da economia política, a convicção sobre o papel do Estado nacional para criar a competitividade sistêmica, a partir das ideias do norte-americano Alexander Hamilton, sistematizadas depois pelo economista alemão Friedrick List. Nesse modelo, mercado interno passa a ser tratado como ativo nacional, assim como a proteção das indústrias nascentes, os investimentos estratégicos para conquistar mercados etc.
Na base de tudo, sistemas eleitorais nos quais os dois lados irão vender suas utopias, sobre qual modelo é mais eficiente para levar o bem-estar à maior parte da população eleitora.
 Primeiro passo – a integração dos mercados
No século 19, a expansão da economia global, as novas rotas marítimas, a integração continental com as ferrovias, permitiram alguma integração internacional através do comércio.
O passo seguinte foi através dos fluxos de capitais, a primeira articulação efetiva entre países, a partir da coordenação do Banco da Inglaterra, tendo como parceiros os bancos centrais da Europa e dos países periféricos – no caso nosso, do Banco do Brasil cumprindo essas funções.
A cooptação das elites nacionais se dava através de três personagens centrais:
1.      Os capitalistas locais, que já mantinham relações com a banca inglesa.
2.      Economistas portadores das últimas novas da nova ciência, incumbidos de criar a utopia de que a livre circulação de capitais traria a prosperidade geral.
3.      Políticos eleitos, turbinados pelos recursos dos capitalistas e pelas utopias dos economistas.
A globalização viceja fundamentalmente em países democráticos, em que o jogo se decide pela cooptação dos vários agentes de opinião pública: intelectuais, jornais, políticos, advogados.
No meu livro “Os Cabeças de Planilha” detalho melhor esse modelo e a maneira como cooptaram Rui Barbosa, o primeiro Ministro da Fazenda da República.
Com esse pacto instituiu-se o predomínio do capital financeiro, abolindo qualquer forma de controle e regulação de mercados em um longo período que vai das três últimas décadas do século 19 até a Primeira Guerra Mundial.
Permitiu-se a criação de uma gama extraordinária de novas operações de mercado, visando turbinar ainda mais a especulação.
No tempo de Rui Barbosa, já se batizara de “tacadas” as jogadas possíveis com o controle da moeda, do crédito e a liberação do câmbio, que incluíam jogadas em bolsa, concessões ferroviárias escandalosas, operações de crédito com estados e União.
Esse modelo gera uma dinâmica que se espalha por várias economias até implodir o próprio modelo: Força política –> Desregulação de mercado –> Criação de novos instrumentos financeiros –> Geração de bolhas especulativas –> Implosão.
No caso brasileiro, o resultado foi a grande crise cambial do encilhamento, no nascimento da República, que atrasou por trinta anos o desenvolvimento do país.
Segundo passo – o choque de realidade
Aí chega a conta. Sucessivas bolhas especulativas minam as economias nacionais, mas o sistema político não consegue reagir porque, no período de predomínio da financeirização, sufocam-se as alternativas democráticas de mudança de rota.
Os cidadãos são tomados de profundo ceticismo em relação ao modelo político vigente, tanto interna quanto externamente, em relação às instituições multilaterais, em geral criadas para impor o poder do credor sobre os devedores.
As consequências fazem parte da história: Primeira Guerra, marcando o início do fim do modelo; crise de 1929 assinalando seus estertores; as disputas cambiais-comerciais entre nações; o nascimento do comunismo na Rússia (ainda uma economia feudal) e do nazi-fascismo a partir das disputas eleitorais na Alemanha, França e Espanha; a incapacidade da Liga das Nações em arbitrar conflitos nacionais.Na sequência, a consolidação de regimes ditatoriais até o desfecho final na Segunda Grande Guerra.
Os tempos são outros, o desfecho certamente será distinto, mas os sintomas são os mesmos.
Desde 1972, a financeirização passou a comandar as políticas nacionais. A expansão do capitalismo norte-americano turbinou a China, da mesma maneira que o inglês turbinou os Estados Unidos no século 19. Montaram-se os grandes blocos econômicos, abolindo as fronteiras nacionais.
No plano socioeconômico, abriu uma enorme janela de oportunidades, brilhantemente aproveitada pela China e pelos Tigres Asiáticos, relativamente aproveitada pela América Latina.
Países com baixos salários começaram a se industrializar, como chão de fábrica das grandes corporações. E países que não lograram desenvolver uma estratégia eficiente ficaram fora do baile.
Mais que isso, com o avanço das redes sociais e das diversas formas de comunicação global, a expansão do mercado de consumo e dos valores ocidentais, e sua contraposição, nos movimentos fundamentalistas em países de pouca tradição democrática,abrem espaço para um redesenho da geopolítica mundial. Nesse entrechoque de culturas, países inteiros foram destroçados devido ao desmonte de suas instituições. Trocaram uma ordem anacrônica, antidemocrática, pelo caos.
Em fins do século 19, as diversas guerras e crises europeias e do Oriente Médio promoveram um formidável fluxo de migração para os emergentes, beneficiando substancialmente EUA e América do Sul com mão de obra de qualidade superior.
No século 21, o fluxo migratório inverteu, com populações inteiras de nações destroçadas ou que perderam o dinamismo, invadindo o mercado de trabalho dos países centrais, já assolado pelas perdas de direitos, consequência dos ajustes que tiveram que serem feitos para impedir a quebra dos sistemas bancários nacionais.
Os efeitos são visíveis:
1.      Aumento do individualismo e da xenofobia.
2.      Crise dos partidos tradicionais e das instituições internas.
3.      Crescimento dos partidos de direita, estimulados pelas mídias nacionais, que pretenderam cavalgar a onda para ampliar seu poder político, ante as novas formas de comunicação.
É o que explica o referendo britânico.
A integração europeia era defendida pelo establishment político, financeiro, acadêmico. E foi derrotada pelo voto de protesto difuso, no qual se misturaram  a ultradireita xenófoba e a esquerda antiglobalização. Ou seja, a elite perdeu o controle das massas. O regime democrático torna-se disfuncional. E a maneira encontrada para controlar as pressões nacionais – a camisa de força da União Europeia – começa a fazer água.
Os desdobramentos no Brasil
Todos esses episódios têm desdobramentos no Brasil.
De 2008 a 2012 o Brasil se beneficiou da estratégia anticíclica de Lula e da sobrevida da especulação internacional com commodities, que garantiu alguns anos a mais de fartura.
Quando a crise derrubou as cotações de commodities, depois de dois anos de bom governo Dilma perdeu o rumo. Não conseguiu definir uma estratégia econômica, política, ou social, como ocorreu na crise de 2008 com Lula.
A crise derrubou o ânimo nacional e incendiou as ruas, com multidões insufladas pela mídia e compondo uma geleia geral ideológica: contra os impostos e a favor da melhoria da educação e saúde públicas.
A insatisfação foi turbinada pela Lava Jato, pela piora nas expectativas econômicas e pelos problemas com os serviços públicos.Mas não resultou em um conjunto articulado de propostas, encampado por algum partido político ou alguma liderança emergente. Houve apenas a insatisfação generalizada que abriu espaço para a ação descoordenada de grupos oportunistas de diversas espécies, como os grupos de Cunha-Temer, a Lava Jato, a mídia, os mercadistas. E isso em uma quadra da história em que escassearam as figuras referenciais, na política, na Justiça, no MPF, nos partidos e na mídia.
Essa frente entregou o poder de bandeja para uma das organizações mais suspeitas da moderna história política brasileira: o grupo de Michel Temer, Eduardo Cunha, Eliseu Padilha, Geddel Vieira de Lima e Romero Jucá.
A chance de dar certo é próxima de zero, conforme se verá a seguir.
Um interino vulnerável moral e penalmente
A notícia de Temer recebendo Eduardo Cunha reservadamente no Palácio Jaburu, por si, seria motivo de impedimento de Temer. O presidente interino conversando reservadamente com um parlamentar cujo cargo foi suspenso por suspeita de corrupção, apontado em vários desvios e proibido de frequentar a Câmara, justamente para não conspirar contra a Justiça. Certamente a conversa não girou sobre o Brexit nem sobre a atual campanha do Vasco da Gama. E só foi oficialmente divulgada após os vazamentos sobre o encontro sigiloso.
Para o interino se expor dessa maneira, mostra uma relação nítida de interesses.
A qualquer momento, Temer poderá ser fuzilado por uma das seguintes alternativas:
1.      Uma delação de Cunha ou de outros membros da quadrilha.,
2.      Uma denúncia da Procuradoria Geral da República.
3.      Vazamentos de informações pelos jornais e redes sociais.
Será possível ao país conviver com um interino com tais vulnerabilidades, com uma biografia polêmica, uma companhia suspeita e tendo nas mãos a mais poderosa caneta da República?
Um interino sem dimensão política
Dilma entendeu a dimensão da crise, mas não teve competência para enfrentá-la. Temer sequer logrou um diagnóstico consistente sobre o cenário atual. É surpreendente que, em algum momento de sua vida, criasse fama de intelectual. Suas declarações públicas não conseguem ir além dos ecos da imprensa,.
A maneira como se escora em Cristovam Buarque é deprimente. Alardeou aos quatro ventos o grande elogio recebido de Cristovam, que disse que só votaria pela volta de Dilma se ela mantivesse Henrique Meirelles e a equipe econômica. Ou seja, o aggiornamento de Cristovam não foi apenas em relação ao PT, mas à própria social democracia e à função do Estado que um dia fizeram parte de sua biografia.
Cristovam é uma espécie de Eugenio Bucci do Senado, equilibrando-se permanentemente entre extremos através de declarações rasas de um equilibrismo vazio.
A receita da lição de casa – os sacrifícios impostos aos cidadãos – funcionou quando podia se invocar o fantasma da hiperinflação. Qualquer sacrifício seria legítimo, pois todos eles visariam impedir a volta do fantasma.
O momento é outro. Têm-se uma população que experimentou períodos de bonança, conquistou direitos, incluiu-se no mercado e não aceita retrocessos. Para ela, Temer acena com mudanças radicais na Previdência, cortes nos gastos sociais com educação e saúde, aparelhamento da máquina pública com o que de pior a fisiologia política criou, a corrupção endêmica, profundamente enraizada na atuação política do grupo que empalmou o poder.
A democracia sem votos
É nessa sinuca que se desenvolve a tese da democracia sem votos, um sistema controlado pelas corporações públicas, pelo Ministério Público Federal e Tribunais superiores, pelos Tribunais de Contas associados à mídia.
É por aí que se entende a geopolítica norte-americana, de aproximar-se das estruturas dos Ministérios Públicos e Judiciários nacionais. Aliás, como bem lembrou Dilma na entrevista à Pública, a interferência externa não é agente central do golpe, que é fundamentalmente coisa nossa.
Será impossível se aplicar as teses neoliberais a seco. Nem encontrar políticos de discurso claro e vida limpa para conduzir o desmonte do Estado social sem ter o que mostrar pela frente.
Olhando todas essas peças do jogo, há movimentos que tenderão a crescer exponencialmente:
1.      Contra o golpe, ganhará fôlego a tese da constituinte exclusiva para a reforma política, suprapartidária, tendo como bandeira comum a crítica à crise de representatividade do Parlamento e dos partidos.
2.      Como aprimoramento do golpe, inicialmente a tentativa de tucanização de Temer, esbarrando na dinâmica da Lava Jato, de criminalizar também as lideranças tucanas até agora poupadas. Todos fazem parte do mesmo balaio.
3.       Como saída alternativa, o impedimento da chapa Dilma-Temer seguido de eleições indiretas visando consagrar alguém fora da política tradicional para completar o trabalho.
4.       Como lance final, maneiras de inviabilizar as eleições de 2018, pela óbvia impossibilidade de vencer eleições montado na velha lição neoliberal de desmonte das conquistas sociais.
Artigo publicado originalmente no site GGN – O jornal de todos os jornais.
http://jornalggn.com.br/noticia/o-xadrez-da-rainha-da-inglaterra-e-do-interino-do-jaburu

Os significados da violência do governo Sartori

A ação do governo José Sartori sobre os estudantes que ocupavam a Secretaria da Fazenda e os atos praticados contra o jornalista da Já Editores mostra o quanto o Estado é o ator social mais violento. Quer dizer, o Estado, detentor do monopólio da violência, quando praticou atos contra estudantes e a imprensa, não pode ter suas ações consideradas legítimas, ao contrário, devem ser criticadas como arbitrárias. Primeiro porque a violência de Estado só é legitima quando está no limite de construções jurídicas e práticas que a limitem, no caso, o Estatuto da Criança e do Adolescente, que garante a presença de Conselheiro Tutelar e a Constituição Federal, que garante a liberdade de imprensa, que a prisão do jornalista contraria. Quer dizer, o Estado só pode ser detentor da violência se ela for sempre, uma violência contida. Segundo, os fatos revelam que o governo Sartori adotou a lógica de repressão pura e simples dos movimentos sociais, o que significa, que trouxe para o interior do Estado uma lógica do plano externo para a administração interna, a lógica da guerra, que é bastante diferente da lógica da resolução dos conflitos internos.
Para os marxistas ortodoxos como para os neomarxistas, o Estado é sempre um instrumento violento porque é expressão de dominação, no caso, da classe burguesa no poder. O exercício da violência, nesta visão, é sempre para proteger posses econômicas e manter à distância as camadas exploradas. Mas o que o governo Sartori conquista ao manter a distância e reprimindo estudantes? Minha resposta: o questionamento sobre um projeto de governo que se baseia no desmonte das políticas públicas de educação. De fato, a atenção dada as possibilidades de privatização de diversos campos e estruturas do estado acena para uma aliança, que o governo quer esconder, entre o projeto neoliberal e partido no poder. Xavier Crettiez, em sua obra “As formas da violência”(Loyola, 2011), chama a atenção para a ideia seminal de Trotsky, de que “Todo Estado está fundado na força”: da mesma forma que a aliança entre fisco e exército no passado permitiu o enriquecimento do Senhor por meio da imposição a todos os súditos de um recolhimento de impostos, agora, sucessivos parcelamentos salariais e negativas de reajuste como no caso dos professores atualizam a estratégia de que o governo só pode governar se explorar uma classe, no caso, a dos servidores públicos.
A questão evolutiva, de um estado que monopoliza a violência interna, realizada pela função da polícia, com a lógica da administração da violência externa, realizada pela administração da guerra, confunde estas duas dimensões, tratar o espaço interno público como espaço de guerra, e o que o governo Sartori dissemina é o sentimento de insegurança, modifica a economia psíquica de seus cidadãos, que agora tem como característica, ao menos nos serviços públicos e no âmbito escolar, um aumento do medo, ao mesmo tempo que veem no Estado que tem o compromisso de os proteger, o recuo das dimensões de honra e coragem – só um covarde bate em estudantes. Quer dizer, ao mesmo tempo que o governo Sartori recusa a afirmação de que é um governo violento – ele foi a imprensa dize-lo -, ele sanciona ações violentas contra jovens na capital. Crettiez lembra a famosa fórmula de Julien Freund: “O Estado verdadeiramente forte é aquele que consegue dissimular a força nas formas, nos costumes e nas instituições, sem ter de exibi-la incessantemente para ameaçar seus membros ou intimidá-los” (FREUND, J. L’Essence du politique. Paris, Dalluz, 2004).
Por que a referência ao Direito e a norma não foi suficiente no caso dos estudantes que ocuparam a Secretaria da Fazenda, mas o foi no caso dos professores que ocuparam o CAFF? É que o consenso dos grupos envolvidos foi diferente em cada caso: no primeiro, os estudantes revelaram uma total perda de fé na política, na possibilidade de atendimento das reivindicações pelo Estado; no segundo, os professores foram capazes de depositar fé nas promessas do mesmo Estado. Mas é esta recusa a legitimidade do Estado que chama a atenção, a recusa do cumprimento de uma ordem judicial, a recusa de cumprimento de uma ordem de saída do espaço público: ele revela a recusa de uma identidade, a recusa do reconhecimento da autoridade do Estado. Ele revela a descoberta feita pela sociedade de que a legitimidade do Estado como monopólio da violência é, ao final, uma ficção jurídica, de que não tem sentido. Ele o deixa de reconhecer como instância de valor.
Quando o Estado pratica atos de violência que a população considera ilegítima, ele atrai a desconfiança da sociedade para si. Quando brigadianos batem em alunos ou professores, o que se tem é não é a produção da ordem, mas a produção da desconfiança. Para o cidadão, que vê tais atos, o Estado perde sua legitimidade simplesmente porque vê que o Estado não reconhece o individuo como pessoa portadora de direitos: não foi simplesmente bestial retirar estudantes da Secretaria da Fazenda a base de gás de pimenta? Sob nenhum aspecto foi uma violência regrada e controlada, como exigem as democracias, ao contrário, foi uma violência típica de situações de guerra.
Trata-se de compreender o que significa o termo “manutenção da ordem”. Surgido com a III República Francesa, a regulação pacifica das ruas foi uma exigência da questão operária, forma de substituir a fúria camponesa pelo ritual da passeata pacificada. As passeatas modernas nascem, afirma Crettiez, da necessidade de legitimar a democracia pelo afastamento da agitação popular. Exige-se uma gestão democrática dos conflitos, e daí, diversos agentes são criados com o objetivo não de aniquiliar o inimigo, mas reconduzir o cidadão “momentamente extraviado” à ordem republicana. A negociação com organizadores de manifestações vem antes do uso de agua, gás ou outros mecanismos de repressão.
Desde os movimentos de Maio de 68, a expressão “manutenção da ordem” era a filosofia baseada no distanciamento dos protagonistas do conflito, justamente o contrário do visto nas cenas que difundiram-se na internet do momento de retirada dos manifestantes. Quer dizer, o que é base do Estado Democrático de Direito, o uso da violência legítima não se realizou. O governo não consegue reconhecer que não há lugar para violência ilegítima porque ela abala a confiança do cidadão no seu Estado. Por isso, a adoção de formas não negociadas, formas adotadas para forçar os estudantes a abandonarem o espaço público assemelha-se a formas do terrorismo: não foi o que sentiram os estudantes, o uso da força como forma de tortura? Não foi relatado inclusive um abuso sexual à uma estudante nas redes sociais? Esse tipo de abuso no entanto, nunca é feito sem planejamento, o Estado sabe que pode obter um resultado mais rapidamente do que aquele conquistado mediante a legalidade. É uma opção o uso da violência.
Claro que muitas vezes, o uso da violência pelo estado não é premeditada, mas provém de um contexto que escapa aos agentes de Estado. Pelo menos é essa a visão passada pelas lideranças policiais, no caso de abusos. Pode-se acreditar nela? É claro que não! São ações nas quais falta discernimento pelas corporações encarregadas da repressão policial, daí o uso desproporcional do uso da força; ações onde é visível, pelas atitudes das forças policiais, da obstinação furiosa visível na intensidade da violência que muitas vezes pode ser encarada como válvula de escape inconsciente dos próprios policiais, vítimas de rebaixamento de salários ou de certa perversidade de alguns indivíduos no cargo, etc; finalmente, são ações que revelam a onipotência do Estado, raro nas democracias, onde a corporação policial faz uma ação completamente sem fundamento legal ou jurídico.
O governo Sartori, por esta razão, oscila entre a manutenção da ordem e a repressão. Pode-se notar a duplicidade do discurso, entre um governador que afirma respeitar os estudantes e um aparelho policial cuja ação é imediatamente repressiva. É verdade que o modus operandi dos novos movimentos sociais é problemática, ao retirar a centralidade de uma autoridade da gestão dos movimentos sociais. Mas o Estado deve encontrar uma forma de se relacionar com movimentos de múltiplas lideranças. Foi o que se viu quando uma fração dos estudantes, sob o orgumento de autonomia, resolveu, após um acordo que se entendia geral, invadir a Secretaria da Fazenda. Esta é uma realidade que exige ao Estado criar novas formas de administrar os conflitos. A comunicação entre o Estado e a sociedade não pode ser resumida a força, ela precisa mais uma vez ser renovada. Caso contrário, estudantes, sociedade e Estado estarão cada vez mais distantes dos objetivo constitucionais porque incapazes de chegar a termos de acordos comuns para a conquista de direitos e expressão de reivindicações.

A truculência da Brigada Militar para desalojar 42 jovens

O Batalhão de Operações Especiais (BOE) da Brigada Militar foi convocado para desalojar cerca de quarenta estudantes do ensino básico público do Rio Grande do Sul que ocuparam dependências da Secretaria de Estado da Fazenda na manhã e tarde da quarta-feira, dia 15 de junho.
Foram utilizados spray de pimenta  contra os manifestantes na rua, que se solidarizavam com a ocupação, e contra os estudantes que resistiam, sentados e de forma não violenta, no interior da secretaria.
As imagens falam por si.

 
Depois de desalojados à força, os jovens foram conduzidos ao Presídio Central, considerada a prisão em piores condições do país, e ao Presídio Feminino Madre Pelletier, para triagem. Só foram liberados após as 23h, mais de 18 horas depois das prisões.
Jornalista do Já Porto Alegre foi detido juntamente com os manifestantes, mesmo após ter se identificado como um profissional de imprensa no desempenho do seu trabalho.
Os alunos que ocuparam a Secretaria da Fazenda constituem um grupo dissidente das organizações estudantis que negociaram com o governo a desocupação das escolas até a próxima segunda feira, dia 20 de junho, após assembleias a serem realizadas até o final desta semana.
De acordo com o grupo dissidente, a negociação ocorreu antes da consulta ao conjunto dos estudantes e representa capitulação à política educacional do Governo Sartori, o que não é aceito pelos demais estudantes.
A ação da Brigada Militar do Estado do Rio Grande do Sul revela, no mínimo, despreparo das forças policiais para abordar manifestantes.