A cobra que parece gente

Mario Pirata
Nascido em Vila Pinhal, Tupanciretã, no estado do Rio Grande do Sul (1898-1984), Raul Bopp lançou, em 1931, seu principal livro e um dos mais importantes do Modernismo: Cobra Norato.
Murilo Mendes afirmou que “Cobra Norato é o documento capital dessa ruptura de um poeta que, tendo viajado tanto e conhecido culturas tão diferentes, permaneceu tipicamente brasileiro e levou a termo, em pleno século XX, o que os outros descobridores do Brasil tinham tentado em vão desde o início do século XVII. Na linguagem, Bopp, forjador de um léxico saboroso, fundiu sabiamente vozes indígenas e africanas, alterando a sintaxe, sem cair nos exageros e preciosismos de Mário de Andrade”.
Digo isto para assinalar que a montagem de Cobra Norato, pelo grupo Giramundo de Minas Gerais, encerrou neste domingo ensolarado, em Porto Alegre, o fantástico evento “SESI BONECOS DO BRASIL”. E foi emocionante ver o brilho no olhar de um público imenso, ao céu aberto, em um dos palcos e nos quatro ou seis telões espalhados pelo Parque da Redenção (era tanta coisa por ver, difícil enumerar).
Esta amostragem, incluindo feira, exposição e oficinas, constrói assim um painel, desde Mestres Mamulengueiros, da tradição mais popular, até grupos contemporâneos locais e de outros estados, e pelas capitais por onde passa deixa um rastro colorido de encantamentos e cantorias. Reproduções e originais da manufatura dos bonequeiros, bonecos gigantes, pequenos, finos, grossos, que se espalham pela cidade cenotécnica, e uma estrutura extremamente bem montada fazem da festa um acontecimento grandioso.
Ainda tocado pela magia e pela beleza, ouso aqui levantar dois pontos para serem analisados pelos organizadores e colaboradores do evento, esperando dar uma pequena colaboração para a caravana que segue a estrada e certamente voltará em anos posteriores. Pensem comigo, por favor, e vejam como uma pequena tentativa de contribuição para o trabalho, já portentoso e digno de total respeito.
Qual o significado da palavra para a realização de um espetáculo, como dimensionar a importância dos autores que elaboram o texto que sairá dos “lábios” dos bonecos. Um cabloco pernambucano, gaúcho ou mineiro, que trabalha com base no improviso e com um arsenal de “cantos” simples e tradicionais não poderia ter o mesmo espaço dos grupos mais ousados e requintados nas artes da manipulação? Qual o valor da origem autoral para o teatro de bonecos?
Tentarei explicar melhor: não consegui acompanhar a apresentação de dois Mestres Mamulengueiros, pois o espaço destinado a eles era bem menor e de difícil visualização (estavam ao nível do chão e suas imagens não apareciam nos telões, e o público amontoava-se em pé na frente das estantes), pensei comigo, e com a minha filha ao meu lado: – Puxa, estivessem nos palcos grandes, um público maior poderia beber com mais qualidade desta água de fonte, onde os demais grupos mergulharam e se saciaram. E por que não? Um pequeno detalhe, uma pequena reconfiguração na ordem das apresentações, na sua disposição, propiciaria-nos este requinte. Não seria possível? Deixo a indagação com a rapaziada que pegou no pesado para montar o circo!
Segundo, segurando o mundo, bem fundo, e este ponto bateu forte também, doeu outro tanto: – Puxa, este público imenso acabou de assistir a encenação do texto do poeta Raul Bopp, e ele é o autor das palavras que viraram essa fantasia linda que assistimos, e não foi dito o seu nome, não foi pronunciada a sua autoria. Caramba, Bopp nasceu aqui, nesta terra, e seu poema está encerrando a festa. Bastaria o porta-voz do grupo, nos agradecimentos ao público, ou ao apresentador, citarem o seu nome (poderia ser dito até pela loquacidade de um fantoche ou de um marionete) e a platéia porto-alegrense teria conhecido quem escreveu e que ele nasceu por aqui, junto de nós. Plausível, não é incrível? Gente, por favor, o que estou tentando dizer é que o que separa um descuido de uma indelicadeza é um fio tão frágil quanto o que sustém a mão de um boneco no ar.
Ora, pode parecer uma gauchada, uma coisa pequena – por aqui dizemos que os bois com nomes, pelos nomes devem ser chamados. No entanto, vejam só: eu sei, de fonte segura, e de forma não menos irônica, que o autor do espetáculo do Grupo Caixa do Elefante, que antecedeu ao do texto de Raul Bopp, também era de um poeta daqui – não tão importante, e, certamente, menos significativo, mas agora com um outro pormenor: este está vivo, e estava lá, assistindo, aplaudindo com imensa e intensa alegria no coração.
Voltem, bonecos, sempre! Com suas companhias, suas famílias e seus criadores. Seus sonhos e seus amores. E os de seus autores.
Um grande e apertado brincabraço.

Desigualdade social, a prioridade

Frei Betto

O maior mérito do governo Lula é contribuir efetivamente para reduzir a desigualdade social no Brasil. Em 2002, nosso país ocupava o vergonhoso 3º lugar em desigualdade social no mundo. Hoje, somos o 10º; se não é motivo de orgulho, já representa um avanço nesta nação tão populosa.
O pico da desigualdade ocorreu na segunda metade dos anos 80, efeito da política de concentração de renda implementada pela ditadura militar – o herético “milagre brasileiro”, que levou o general Médici a admitir: “a economia vai bem, mas o povo vai mal”.
Desde 2001 há progressiva redução no fosso da desigualdade. A renda dos mais pobres tem crescido cerca de 4,5% ao ano. No governo Lula isso se acentuou graças às políticas sociais, em especial o Bolsa Família, que hoje distribui renda a mais de 30 milhões de pessoas pobres e, segundo o Ipea, há maior número de pessoas da família inseridas no mercado de trabalho.
Pesquisa do Ipea aponta que, em 2001, uma família de quatro pessoas dispunha de uma renda média mensal (em valores de hoje) de R$ 209. Em 2004 passou a R$ 239, um aumento de 14%.
Como fatores indiretos dessa melhora do quadro social temos a Constituição de 1988, que ampliou os direitos do trabalhador; o aperfeiçoamento de nossa democracia, que possibilitou mais controle das instituições e, em especial, a fiscalização do poder público (embora isso ainda esteja longe do razoável); e o maior profissionalismo dos funcionários do governo. Um dos desafios da reforma política, pela qual a nação tanto anseia, será a drástica diminuição dos cargos de confiança, de modo a vetar o uso da máquina pública como moeda eleitoral e compensação de alianças partidárias.
A questão social, tão efêmera nos governos anteriores ao de Lula e, quase sempre, restrita à dedicação da primeira-dama, tornou-se central a partir de 2003. Somada à expansão da educação fundamental, iniciada no governo FHC, influi na mudança do perfil da desigualdade no país.
Se o governo Lula merecer um segundo mandato, como anseio, terá como desafios, para melhorar esse perfil, reformar a política de juros, que hoje asfixia os gastos públicos e impede o desenvolvimento sustentável; massificar a educação de qualidade (a aprovação do Fundeb é um passo importante nesse sentido); e incluir na reforma tributária a tributação progressiva, de modo a obrigar os mais ricos a pagarem mais impostos.
Hoje a carga tributária é regressiva. Quem ganha até dois salários mínimos por mês arca com 48,8% do total, enquanto os privilegiados que recebem mais de 30 salários mínimos pagam apenas 26,3%. Eis aqui uma das principais causas da violência urbana. Não é a pobreza que revolta, é a desigualdade, essa odiosa convivência entre a miséria e a ostentação reforçada pela cultura do consumismo. Basta dizer que 70% dos recursos canalizados para atenuar a dívida pública (o famoso superávit primário) são amealhados por apenas 20 mil famílias. Ou seja, o Bolsa Marajás abocanha três vezes mais recursos que o Bolsa Família. Enquanto a Saúde dispõe de um orçamento anual de R$ 36 bilhões e a Educação de R$ 16 bilhões, os credores da dívida pública embolsam cerca de R$ 150 bilhões por ano.
Ainda não há motivos para comemoração. São raros os brasileiros dotados de liberdade substantiva, ou seja, em condições de vislumbrar alternativas para o seu projeto de vida, poder escolher uma delas e realizá-la, inclusive alterando-a parcial ou totalmente. A maioria está privada do direito à vocação e se submete à oportunidade de emprego, condenada a um trabalho que raramente se traduz em satisfação subjetiva, espiritual.
Um dos efeitos da desigualdade social é o desprezo pelos valores éticos. Na ânsia de livrar-se da pobreza e ingressar no mundo do consumo sofisticado (que os anúncios de TV propagandeiam como único reduto de dignidade e felicidade), ampliam-se a sonegação, a corrupção, o nepotismo e o corporativismo.
As reformas política e tributária são imprescindíveis para reduzir ainda mais a desigualdade social, mas não suficientes. O passo significativo será dado no dia em que o Brasil comemorar o êxito de sua reforma agrária, pois só o campo é capaz de absorver a mão-de-obra hoje condenada ao desemprego e estancar o êxodo rural que provoca o inchaço de nossas cidades, visivelmente marcadas pelo subemprego e pela crescente favelização.

Plano Aquarela projeta o Brasil lá fora

Wilson Muller*

Pela primeira vez na história do trade nacional o país conta com um programa científico de divulgação do Brasil turístico no exterior. Trata-se do Plano Aquarela desenvolvido pelo Ministério do Turismo e posto em prática pela Embratur, em janeiro de 2005. O diferencial do país é reforçado por um símbolo formado por figuras geométricas em verde, amarelo, azul e vermelho em composição com as palavras Brasil e Sensacional, criação que sugere valores como alegria, sinuosidade, luminosidade e modernidade. A marca Brasil foi idealizada a partir de minuciosa pesquisa que se prolongou por vários meses, período em foi colhida a opinião de mais de 6 mil pessoas sobre o Brasil, em 18 dos principais mercados do mundo, entre profissionais do setor e os próprios turistas. Os resultados positivos que o país vem apresentando no setor evidenciam o acerto da iniciativa.

Para você ter uma idéia, só nos três primeiros meses de 2006, os turistas estrangeiros gastaram no Brasil 1,559 bilhão de dólares, ou 20% a mais que em igual período de 2005. Mais: ainda em 2006 o Brasil avançou oito pontos na posição relativa a destinos turísticos do mundo, subindo do 19o lugar, registrado em 2003, para o 11o este ano. Além disso, foi o melhor colocado entre os países da América do sul , no item destino turístico, ficando atrás apenas dos Estados Unidos.

Números como esses sugerem que não é excesso de otimismo afirmar que nosso país está caminhando para ocupar vigorosa posição de prestígio e relevância no turismo mundial. Para isso contribui uma nova mentalidade sobre a importância do turismo no Brasil de hoje, assunto levado a sério também pela iniciativa privada, estados e municípios, profissionais da mídia e a própria população. Cada qual fazendo a parte que lhe cabe no projeto, porque reconhecem que a indústria do turismo é essencial para fortalecer a economia, gerar empregos e produzir idéias ricas e produtivas.

*Presidente da Câmara de Turismo do RS

Quintanares com outros ares

Fraga*

A julgar pelas comemorações em torno do centenário de Mario Quintana, parece que o poeta já nasceu com 70 anos. Tudo a ver.

Na maioria das mais que merecidas homenagens (muitas com aspas, poucas sem) o que predomina é a visão de um velhinho frágil e bonzinho – distorção que ele mesmo seria o primeiro a desdenhar. Basta reler suas entrevistas, rever seu humor, relembrar sua graça e rabugice nas redações.

Quintana nunca foi como queriam que fosse. Irreverente, anticonvencional e avesso à solenidade, Quintana se mostrava acima de tudo um agudo crítico de costumes. Um sagaz e sarcástico observador das hipocrisias da sociedade e contradições da humanidade.

Debochava das falsas aparências – deste ou do outro mundo – e tinha ironia de sobra para quem o abordasse com clichês. Seu lugar era o oposto do lugar-comum. Justamente o que mais se vê quando o retratam agora, promocionalmente.

Visto sob esses enfoques marqueteiros, a imagem Quintana não passa de mais um produto da mídia. Neste ano, sua poética vende tudo que ele nunca pretendeu vender: sentimentalismo barato, romantismo ingênuo e até pieguismo.

Um recorte às vezes tão simplório que chega a desumanizar sua pessoa. Frágil, provavelmente Quintana não era: tinha humor, um humor ferino, mais que suficiente para encarar de frente tudo o que tenha vivido – afetos desfeitos, conflitos familiares, angústia existencial, inquietação intelectual.

Dar espaço a fatos, traços ou aspectos mais fortes, mais duros ou mais dolorosos da trajetória pessoal de Quintana não seria diminuir sua personalidade nem sua importância literária. Ao contrário, seria reconhecer em tudo isso a fonte principal da sua criação.

Afinal, tudo que Quintana mais fez foi olhar para dentro de si e descrever com bom humor e muita poesia esse reflexo. Por isso soa original, do lirismo à ironia.

Então, neste centenário edulcorado do poeta, o que se perde é a oportunidade de conhecer melhor o ser humano. Pois quase tudo que se vê exposto, escrito, falado, filmado, citado, ou simplesmente relembrado, leva para o enaltecimento de uma figura esquematicamente sob medida para ações e promoções, patrocinadas ou não.

O Quintana que vou lembrar de perto, já que tive esse privilégio, é o do deboche das coisas ao redor da gente, na Caldas Jr. Alguém que era capaz de escrever sobre um mesmo tema com ângulos antagônicos, e resultados maravilhosos. Como fez com casa:

• Amar é trocar a alma de casa.
• Ele morava sozinho. E um dia fugiu de casa.

O primeiro verso, um definitivo hino amoroso. O segundo, na minha opinião, o menor conto de terror do mundo. Como se vê, ou não se vê em anúncios bobinhos, comerciais suavezinhos, perfis repetitivos e depoimentos formais, um Quintana de uma estatura que ainda está por ser medida. Talvez no sesquicentenário dele.Quintanares com outros ares

A Casa de Quintana

Christian Lavich Goldschmidt*

Ao comemorarmos o centenário de nascimento do poeta Mario Quintana, ensaios e artigos sobre sua vida e obra estão sendo publicados. Em julho, mês de seu aniversário, as homenagens aumentaram, ultrapassando as fronteiras das páginas dos jornais, transferindo-se para os programas de rádio e televisão. Para quem acompanha a imprensa de outros Estados brasileiros, não resta dúvidas sobre o alcance que têm hoje a obra de Mario Quintana.

Entre os gaúchos, não há quem não saiba sobre ele. Sua vida está imortalizada não somente através de suas obras, mas também naquele que é um dos centros culturais mais belos do Brasil. A Casa de Cultura Mario Quintana, situada em pleno centro de Porto Alegre, é o maior reconhecimento que a sociedade gaúcha deu ao poeta que encanta a todos de Norte a Sul do Brasil.

O simbolismo desta Casa de Cultura, acredito, ainda não seja compreensível para a maioria das pessoas. A maior parte dos que a frequentam, vão a Casa em busca de bons filmes, de bons espetáculos teatrais, ou até mesmo em busca do bom café servido no Café dos Cata-ventos. Porém, esse não é somente um centro cultural, ali estão expostas todas as formas de Quintana.

A Casa está imbuída de suas vicissitudes, de suas poesias, de seus passos, de suas mais diversas manifestações. Mas o que mais percebo quando estou nesta Casa, são os olhares de Quintana por detrás das paredes a observar atentamente os visitantes, convidando-os a um passeio pelos meandros desta Casa que em momento algum foi somente sua, e nem mesmo agora a deixam ser.

E eu, sabedor desta observação, fujo de seus olhares, pelo menos tento, nem que seja para brincar um pouco de esconde-esconde. Mas depois me dou por vencido, e entrego-me, deixo Quintana a me guiar e vou mostrando aos poucos que o que desejo é ficar o mais próximo quanto puder de sua vida. Então, o máximo que consigo, é aproximar-me de sua sabedoria e tirar dela proveito devotando-me às suas poesias.

A Casa de Cultura Mario Quintana tem hoje uma programação diversificada e de qualidade que atrai um número cada vez maior de visitantes. Essa pluralidade cultural tem um responsável, é ele Sérgio Napp. Não poderia ser diferente, Napp foi amigo de Quintana, e com responsabilidade, nos brinda com a oportunidade da continuidade de suas poesias. Sérgio Napp está para a Casa de Cultura Mario Quintana, assim como Eva Sopher está para o Teatro São Pedro.

A previdência e os presidenciáveis

Vilson Antonio Romero

As pesquisas de intenção de voto, antes do início da campanha política no rádio e na televisão, apontam para uma polarização entre tucanos e petistas, apesar do crescimento da candidatura P-SOLista, saudada por opositores do atual governo, em razão de possibilitar um segundo turno, o que, em pesquisas do primeiro semestre, era quase inimaginável.

Mesmo ainda restando mais de dois meses para o sufrágio de outubro, período durante o qual ocorrerá – em tese – o escancaramento dos programas de governo ou plataformas eleitorais e onde os eventuais debates entre presidenciáveis podem permitir o surgimento de algumas “saias justas”, em especial dirigidas à atual coligação governante, tentamos vislumbrar o que pode acontecer com a previdência social no próximo governo, seja este ou aquele.

Pesquisando rapidamente nas páginas eletrônicas dos principais partidos oponentes (www.pt.org.br e www.psdb.org.br) temos ainda poucas sinalizações sobre eventuais projetos de mudanças no sistema de seguro social brasileiro. No atual governo, inclusive tem havido manifestações sistemáticas, desde que assumiu o novo ministro da Fazenda, de não haver necessidade de mais reformas na previdência. Editorial de um importante jornal diário do sul do País realça que “as duas reformas previdenciárias já realizadas, uma no governo FH, outra no governo Lula, mostraram-se claramente insuficientes”. Prevê que “o ano de 2006 deve fechar com um rombo nas contas da previdência entre R$ 43 bilhões e R$ 45 bilhões.

No ano passado, já sob o impacto da segunda reforma previdenciária, o déficit havia sido de R$ 38,6 bilhões”. Reforça ainda, espelhando pensamento expressivo do empresariado brasileiro – e, obviamente, dos principais financiadores de campanha – que “são números impressionantes, pois sangram os cofres do Tesouro, inviabilizando investimentos”.

No “site” tucano, há uma entrevista com um de seus próceres, o ex-presidente FHC, onde afirma: “A Previdência tem de passar por uma nova reforma em março”. Na página petista, foram divulgados recentemente os nomes dos integrantes das comissões do programa de governo, onde, no tema Previdência, são listados diversos integrantes, entre eles Helmut Schwarzer, atual secretário ministerial, como formuladores de propostas.

Como se vê, por mais que seja um tema sensível à grande parcela dos mais de 125 milhões de eleitores, há uma possibilidade muito concreta de surgirem propostas de alterações na previdência, envolvendo principalmente dois de seus subsistemas: o regime geral (dos trabalhadores celetistas) e o  regime próprio (dos servidores públicos).

Há ainda uma longa trilha até a data da eleição e, maior ainda, até a posse e apresentação de projetos, mas com certeza o debate sobre previdência social abrangerá a intenção ou não de acabar com encargos sobre as folhas salariais, deslocando o financiamento para o faturamento líquido das empresas. Estarão na pauta a universalidade do sistema público e seu papel de  instrumento de poupança nacional ou ainda a pura e simples transformação da previdência num programa de renda mínima e a uniformização futura dos sistemas de previdência do setor público e privado ressaltando sempre a preservação dos direitos adquiridos, que nesta fase de palanques eleitorais, será o discurso dos candidatos.

As velhas bicicletas

Marco Aurélio Nunes*

Sentado num banco do Parque da Redenção, na manhã de um domingo, assisti ao movimento do Brique. Era fácil notar famílias passeando sob o sol com o inseparável chimarrão, cães nas guias e suas crianças comendo pipoca ou lambuzadas pelo algodão doce. O fluxo de bicicletas era pequeno. Mas um grupo de ciclistas exibindo suas bikes com marchas desfrutava da sombra de árvores centenárias. Neste momento, retrocedi no tempo. Sem deixar a poluição visual de cartazes e bandeiras de partidos políticos afetar minha memória, comecei a recordar do Parque da Redenção há 35 anos.

O Brique não existia oficialmente. Se não estou enganado, consolidou-se no início da década de 80. Naquela época, então com dez anos de idade, meu avô convidava-me para andar de bicicleta. O rumo era certo. Não precisava nem perguntar. O caminho tinha a direção da Redenção. Saíamos de Teresópolis sempre após o almoço. A idéia era aproveitar ao máximo a tarde de domingo. Antes, porém, eu sempre indagava: “pegou a carteirinha?”. Tratava-se de uma carteira do Sindicato dos Comerciários. Acontece que, com esse documento, meu avô alugava minha bicicleta.

Depois de escolhida – geralmente preferia uma de aro 26, apesar da dificuldade para me equilibrar – pedalava por cerca de uma hora. Meu avô observava-me sentado em um banco próximo do espelho d’água. Após devolver a bicicleta locada, atirávamos pipoca às carpas, andávamos de pedalinho, trenzinho e, ainda, visitávamos o mini-zôo. Admirávamos os macacos-pregos coçar a cabeça e, logo em seguida, caminhávamos pelos recantos existentes no parque. Somente depois pegávamos o ônibus para irmos embora. Chegava em casa exausto, mas aproveitava tudo o que a Redenção oferecia em termos de divertimento.

Quando lembro de tudo isso fico refletindo: como seria hoje a Redenção se ainda houvesse as velhas bicicletas para locação? Sei, alguém me disse, “parece que acabaram com as bicicletas porque estavam sendo furtadas e, além disso, pessoas acostumadas a caminhar pelas trilhas do parque reclamavam muito!”. É, os princípios mudaram e a violência cresceu assustadoramente. Imagine hoje alguém chegar na Redenção e alugar uma bicicleta apenas portando um documento sindical! Aposto que em menos de duas semanas não haveria mais bicicletas para locar. Por isso, quem seria louco de enfrentar um processo licitatório com esse propósito se, atualmente, esse serviço de lazer fosse de interesse da Prefeitura?

Sem garantias de ressarcimento do prejuízo e, também, de segurança, isso não seria possível. Mas que saudade das velhas bicicletas! Será que não há uma maneira delas retornarem? Pessoas como eu, que moram num apartamento pequeno e sem condições de guardar uma bicicleta, creio, gostariam de ter essa opção nos finais de semana, apesar de tudo. Ah! esqueci dos que possuem bicicletas! Porto Alegre não se compara, por exemplo, com cidades da Holanda, que têm o trânsito adaptado ao tráfego das bicicletas. Mas, no Bom Fim, já existem as ciclovias. O ciclista pode chegar tranqüilo na Redenção. Não vamos perder o glamour! A Capital dos gaúchos merece mais charme. Antigamente se ouvia o som do trenzinho, agora não mais.

A inesperada reabilitação de Getúlio Vargas

Mário Maestri *

Getúlio Vargas tem sido desancado devido às violências cometidas contra as comunidades alemãs e italianas do Rio Grande do Sul, sobretudo durante a II Guerra Mundial. Atribuiu-se também à campanha getulista de “nacionalização” dos kystos raciais a crise dos falares étnicos alemães e italianos. Em geral, os fatos sucederam-se no passado em forma bastante diversa da que são percebidos pelo senso comum, mesmo historiográfico.

René Gertz, 57, professor da PUCRS e da UFRGS, tem dedicado boa parte de sua produção historiográfica ao estudo dos sucessos ocorridos quando do Estado Novo [1937-45], no que se refere sobretudo à comunidade colonial alemã da qual descende. Seu ensaio O perigo alemão, de 1991, constitui referência obrigatória na discussão do imaginário brasileiro sobre os alemães no RS. Gertz tem dirigido também trabalhos de pós-graduação sobre esse e temas correlatos.

A publicação do livro O Estado Novo no Rio Grande do Sul, de René Gertz [Passo Fundo: EdiUPF, 2005], constituiu ato por si só meritório, considerando-se a carência de estudos referentes ao Estado Novo no RS, pobreza em parte talvez devida aos inevitáveis constrangimentos biográficos ensejados pelo período, no que se refere ao comportamento dos próceres sulinos durante o período ditatorial.

O livro de René Gertz destaca-se pelo candente revisionismo, com destaque para a inesperada absolvição de Vargas que, do inferno historiográfico, é transferido para suave purgatório, já que o peso dos pecados da “campanha de nacionalização” é lançado às costas do interventor Cordeiro de Farias e de seus dois principais súcubos, o secretário da Educação, Coelho de Souza, e o famigerado coronel Aurélio Py, autor do best-seller A 5ª coluna no Brasil: a conspiração nazi no RS, publicado pela Globo, em abril de 1942.

O Estado Novo no Rio Grande do Sul impõe-se sobretudo por suas interpretações. A apresentação inicial dos sucessos históricos que levaram ao Estado Novo é sumária e a proposta do enfraquecimento da economia sulina durante o período fica em aberto, sobretudo devido às limitadas fontes disponíveis, fato assinalado pelo autor. Também são sintéticos os capítulos “Administração e sociedade” e “Educação e saúde”, ricos em sugestões para novas investigações.

O capítulo a “Cultura no Rio Grande do Sul” apresenta dura radiografia da ação da intelectualidade sulina durante o Estado Novo que, tanto na versão positivista como na católica, segundo Gertz, colaborou, direta ou indiretamente, com a ditadura, ou adaptou-se a ela, sem maiores pruridos. Nas raras exceções que confirmam a triste regra encontram-se os intelectuais comunistas Dyonélio Machado, Cyro Martins e Ivan Pedro Martins, que seguiram disparando sobretudo com as armas da ficção.

René Gertz apresenta provas incontestáveis da adesão de intelectuais sulinos de destaque ao Estado Novo. Para outros, o material probatório é mais fraco. Assinala que Erico Verissimo compareceu, com Moysés Vellinho, Dante de Laytano, entre outros, ao lançamento do Comitê Intelectual pró-Estado Novo, pronunciando palestra radiofônica, em abril de 1938, na Rádio Farroupilha, em defesa da ditadura. De Mário Quintana, registra-se a participação em “Comissão Julgadora de frases alusivas ao ‘Dia da Bandeira’”.

Ainda que novos estudos retoquem o longo rol de intelectuais “cuja vinculação ou a proximidade com o regime está claramente documentada”, não modificarão a constatação da harmonia entre a pena, do mundo das idéias, e o coturno, da ordem ditatorial. Fenômeno que exige discussão mais profunda, já que envolve as raízes próximas da cultura erudita do Rio Grande do Sul.

Sobre essa questão, temos também a valiosa dissertação, ainda inédita, de Gláucia Konrad, de 1994, “A política cultural do Estado novo no RS: imposição e resistência”, na qual o autor apóia-se parcialmente. Com sensibilidade, Gertz lembra que a talvez “alegada falta de entusiasmo” rio-grandense sobre o Estado Novo e, portanto, a colaboração despreocupada com ele, registre sentimento de que “nada de muito novo estava ocorrendo”, sobretudo em relação à República Velha.

No valioso capítulo final, Gertz empreende sentida denúncia das violências da “campanha da nacionalização” que, para ele, teria vitimado sobretudo a população colonial alemã. Segundo o autor, a “campanha” teria sido “menos agressiva” na “região de colonização italiana ao norte de Porto Alegre, em Caxias do Sul e adjacências” do que “nas regiões de colonização alemã”.

Entre as razões do comportamento diferencial estariam a maior simpatia brasileira para com os “italianos”; a existência de sentimento  sobre o “perigo alemão” desde a chegada dos imigrantes em 1824; a mobilização antialemã durante a I Guerra Mundial; a adesão e simpatia ao partido nazista no Estado, fenômeno para o qual não contamos ainda com análise de fôlego como a realizada para a Região Colonial Italiana por Loraine Giron, em As sombras  do littorio: o fascismo no Rio Grande do Sul, de 1994. Na abordagem da espinhosa questão, Gertz assinala que “mais ou menos a metade dos pastores do Sínodo Riograndense eram filiados ao partido nazista”.

Sobretudo, Gertz defende que os excessos da “campanha da nacionalização” seriam obra de Cordeiro de Farias, “claro adepto da tese do ‘perigo alemão’, preocupadíssimo com a situação ‘etnográfico-internacionalista’” sulina. Sugere que a partida do interventor para a Itália, como membro da FEB, constituiu “justificativa pública” para superação de situação insustentável. Sua substituição pelo cel. Ernesto Dorneles seria também tentativa de distensão

René Gertz é historiador ponderado e contido. A tensão afetiva devido à abordagem das violências antialemãs no Estado Novo fica registrada em algumas raras ênfases lingüísticas. Professora brasileira agindo na zona colonial alemã durante a “campanha de nacionalização” em forma desembaraçada é classificada de “menininha”. As depredações populares, em 18 e 19 de agosto, após os duríssimos ataques a navios mercantes brasileiros desarmados por submarino alemão que causaram mais de seiscentos mortos, são definidas como “anarquia”, “animalescas”, produto da ação de “fanáticos”.

René Gertz assinala que a intervenção do Exército, pondo fim às manifestações populares anti-Eixo de agosto, ocorreu “à revelia do interventor”, constituindo desautorização de sua exacerbação da “campanha de nacionalização”. Assinala pedido de renúncia de Cordeiro de Farias, de 22 de agosto de 1942, após a ação do Exército. Mais ainda. Em 1950, Getúlio justificava a nomeação do cel. Ernesto Dorneles como medida “contra aqueles” que, em seu nome e contra a sua vontade, “praticavam atos de violência e de arbítrio, com base em prejuízo étnico”.

Além das violências da “nacionalização”, René Gertz refere-se rapidamente à repressão do truculento Cordeiro de Farias ao movimento operário, aos comunistas e aos integralistas. Não chega a abordar o maior crime cometido pelo interventor nas primeiras semanas de seu consulado, contra pacífico movimento religioso popular de caboclos e colonos empobrecidos, em Sobradinho e Soledade, com a morte de talvez mais de cinqüenta beatos absolutamente desarmados. Sucessos que tardam ainda a ter a reparação que exigem na memória e na historiografia rio-grandense.

Passamos a ser exemplo

* Eng.Vitor Bertini
O sucesso do movimento dos moradores do bairro Moinhos de Vento e da Marquês do Pombal pela preservação do túnel verde da rua deve ser colocado como exemplo de defesa de interesses legítimos e de resultados, sem radicalismos de ambos os lados envolvidos. A primeira reação das pessoas, surpresas e assustadas com início do corte radical das tipuanas, foi de revolta, de protesto veemente para impedir que a destruição alcançasse um ponto irremediável. O momento seguinte, no entanto, se caracterizou por uma atitude positiva que ganhou receptividade no bairro e na cidade e sensibilizou as autoridades municipais, desde o Prefeito, até os responsáveis pelas obras do conduto forçado Álvaro Chaves.
Partiu-se, então, para a busca de uma solução que analisou, em primeiro lugar, a possibilidade de colocação dos dutos, sem a quase eliminação das árvores. Diante do fato de não ser viável esta alternativa, apontou-se para o estudo técnico de desvio das obras por um outro trajeto. Foi o que terminou acontecendo.
O envolvimento das comunidades na solução de uma questão pontual e que mexe com o seu dia a dia torna-se cada vez mais comum, à medida que as pessoas exercem a plena cidadania. Nem sempre, entretanto, as reivindicações se preocupam na construção do caminho desejado, ou de abrir um diálogo com o causador do transtorno, ou com quem decide uma nova obra, ou serviço reivindicado. Assim, o outro lado achará desculpas mais fáceis, ou terá poucos argumentos para mudar a decisão anterior.
A avaliação do fato que faço, com a visão de gestor público que fui até poucos dias atrás e de ativo participante desta causa de preservação das árvores, é de que as duas partes podem se sentir vitoriosas. Por isto, aponto o “case” tipuanas da Marquês do Pombal como paradigma. Não dá para aplicar aqui o ditado de que um negócio é bom quando satisfaz os dois lados, porque não se tratou de aspectos comerciais ou financeiros, mas de uma manifestação de amor à natureza e à beleza da cidade que conseguiu ampla receptividade, graças aos nossos esforços e união. Parabéns a todos nós e principalmente aos moradores da Marquês.

De esposas a matronas

Luciana Kaross*

A tradução teatral, assim como a tradução de poesia, é a que tem proporcionado maiores oportunidades de debate. As divergências em relação à adequação dos textos traduzidos, quando comparados ao original, demonstram o quanto ainda é preciso estabelecer parâmetros para avaliar as traduções de textos teatrais. As críticas mais contundentes parecem esquecer que a tradução teatral tem dois objetivos distintos: a publicação e a encenação.

A peça The Merry Wives of Windsor, de William Shakespeare, que a coleção L&PM Pockets disponibilizou em meados no ano passado com tradução de Millôr Fernandes parece perfeita para ilustrar o que acabei de afirmar. Poder-se-ia começar uma análise comparativa pelo título escolhido pelo tradutor: as Wives (esposas em inglês) ganharam muitos e muitos quilos e tornaram-se matronas em seu As Alegres Matronas de Windsor, mas a questão do título é a menos intrigante.

De todas as diferenças – e elas foram muitas – que pude anotar entre o texto original e a tradução, o que mais chama atenção foi a citação de personagens historicamente distantes no tempo. A personagem Simple se apresenta invocando o nome de Henrique Oitavo. Ora, esta peça é protagonizada por John Falstaff, contemporâneo de Henrique IV, pois Falstaff aparece na peça que leva o nome do rei. Da coroação de Henrique IV à coroação de Henrique VIII há um lapso de tempo de 110 anos. Sendo assim, a personagem não só não conhecia a fama de Henrique VIII como também não poderia supor sua futura existência.

Apesar disso, a tradução é bem escrita e tem coerência interna. As piadas remontam ao gosto brasileiro, ainda que haja dois ou três exageros na comicidade. Quando observada com lupa, a tradução de Millôr Fernandes está recheada de pequenos pecados que não comprometem a publicação. Talvez o pecado maior tenha sido colocar o termo tradução na capa quando o mais adequado seria adaptação.