A sessão final do golpe com nome de impeachment no Senado – epílogo da Operação Café Filho

Bruno Lima Rocha
No final da manhã e início da tarde de quarta feira, 31 de agosto de 2016, o Brasil assistiu pela televisão aberta e por assinatura, a destituição da presidente Dilma Rousseff, com pouco mais de um ano e meio decorridos de seu segundo mandato. A traição teve como um dos pivôs o próprio vice, Michel Temer, eleito e reeleito junto à Dilma, com a bênção de Lula e da direção nacional do PT. Neste breve texto, trago algumas evidências, categorias e debates os quais entendo como urgentemente necessários.
Impeachment Consumado
Por 61 votos a favor e 20 contrários no Senado, o governo de Dilma Rousseff em seu segundo mandato foi encerrado. Assim, está consumada a dupla traição. A primeira derruba um governo eleito; a segunda traição é o preço que a ex-esquerda paga por confiar em oligarcas. Os entreguistas viralatas comemoram.
No momento da defesa da preservação dos direitos políticos de Dilma Rousseff, o senador Lindbergh Farias (PT-RJ) esteve milagrosamente certo na analogia. Os golpistas parlamentares de 1964 comemoram. Auro de Moura Andrade sorri no inferno. Ranieri Mazzilli o cumprimenta ao lado de Lincoln Gordon (embaixador dos EUA no Brasil) e Castello Branco (marechal escolhido por Washington para assumir o cargo de presidente no Brasil). E, como em 1964, o povo não foi convocado a resistir. Em 1964, porque o populismo sempre rói a corda. Em 2016, porque o lulismo sequer consegue ou quer ser populista.
Discursando a favor da cassação dos direitos políticos de Dilma, a senadora Ana Amélia (PP-RS) deu o tom da distopia liberal conservadora: legalidade institucional para sangrar os direitos coletivos; esvaziar o exercício do Poder Executivo para que a maioria, apelando sempre para os intermediários profissionais. No “salve-se quem puder”, os grupos de interesses “prudentemente” devem ir tentando alguma vantagem mínima através dos arranjos institucionais dos Estados pós-coloniais.
No último ato, em uma manobra com o aval de Renan Calheiros, Dilma fica habilitada e preserva seus direitos políticos
Estamos diante de uma novidade. A cassação de direitos não obteve maioria absoluta, tendo 42 votos favoráveis, 36 contrários e três abstenções. Logo, não obteve a maioria absoluta de dois terços no Senado, sendo preservadas as possibilidades de exercício de funções públicas para a presidente deposta, mas não cassada. Logo, está instaurado um período de absoluta instabilidade política no jogo eleitoral-burguês brasileiro. Dilma Rousseff pode ser eleita para cargos públicos – há questão de compreensão e interpretação jurídica – e pode estar no páreo das disputas eleitorais abertas, além de poder operar como puxadora de votos em 2018. O lulismo perde, mas não perde tudo.
Com esta manobra, Michel Temer acaba de perder o governo de fato, ao menos em sua totalidade. Renan Calheiros tira do interino golpista a condição de governar, deixando o vice-presidente usurpador entregue ao PSDB. Esta condição de “governabilidade” dura até o ponto em que os tucanos devorarem suas plumas visando à eleição de 2018.
Não foi por falta de aviso: o epílogo da Operação Café Filho e a melancolia de centro-esquerda
A presidente deposta Dilma Rousseff foi “traída” por um oligarca, Michel Temer com origens no grupo político de Adhemar de Barros, ex-governador de São Paulo e golpista em 1964. Considerando sua trajetória no nacionalismo varguista, Dilma deveria saber onde estava se metendo. Consumada a farsa da farsa, a vitória da Operação Café Filho.
Dilma Rousseff se despede de vermelho; momento melancólico onde a ex-esquerda é destituída do Poder Executivo sem sequer arriscar uma plataforma de governo com o povo no protagonismo.
A aliança de golpistas pela via parlamentar com suspeitos da Operação Lava Jato veio através do rito e manto da “legalidade”, pela farsa jurídica e impeachment sem mérito. O pior da tradição do país dos bacharéis termina com as ilusões “legalistas” da centro-esquerda, ou da ex-esquerda.
Uma parte da análise da presidente destituída está correta: existe uma dimensão substantiva do Golpe, na agenda regressiva de direitos e um avanço repressivo sob um véu de “legalidade”.
Nada veio por acaso, incluindo a baixa capacidade de resposta. Os lulistas e afins rasgaram o manual da política e pactuaram com quem não presta sem fiar o pactuado com os oligarcas através de uma espada afiada pronta para ser desembainhada.
Enfim, se levaram um ditador positivista (Getúlio Vargas) ao suicídio em 1954, porque não destituiriam uma keynesiana de centro (Dilma Rousseff) para um cadafalso semelhante em 2016?! Apenas a criminosa ilusão e inocência política poderiam fazer crer o contrário.
Aplicando uma categorização do momento vivido
Categorizando: trata-se de uma disputa intra-elites, quando uma elite dirigente está sendo destituída do poder burguês – embora juridicamente legítimo – por um novo arranjo de posicionamento das elites políticas majoritárias e suas respectivas representações de classe dominante. O povo está desorganizado desde 2013, quando a rebelião popular não resultou em um projeto de maioria apontando saídas para além do jogo das urnas burguesas.
O governo que está sendo derrubado não é de esquerda, sequer é de centro-esquerda ou populista e tem no máximo, traços de nacionalismo autônomo. Com sua destituição, o modelo liberal-periférico vai se aprofundar após a posse definitiva dos interinos golpistas, reposicionando o Brasil no Sistema Internacional, aumentando o grau de subserviência e encurtando as margens de manobra.
No cenário doméstico, a meta estratégica de quem está golpeando e virando a mesa – por aplicar um impeachment sem mérito evidente – é destravar a liberdade absoluta de capital, transnacional de preferência, associado, nacional, diminuindo tanto o papel do aparelho de Estado na organização do capitalismo interno como também nas perdas de regulação e proteção sociais, trabalhistas e nos direitos de 4a geração.
Concluindo, consumado o golpe semi-parlamentarista, está aberto o caminho para uma ampla revisão constitucional no sentido à direita, aplicando uma agenda regressiva, de perda de condições de vida, retomando a restauração (neo)liberal da década de ’90 no século – a que foi ainda mais perdida do que a de ’80.
O debate estratégico que cabe fazer. Qual ‘lugar a ser construído’ as esquerdas vão escolher? Qual o ‘mal menor’ a centro-esquerda escolhe?
Diante desta melancólica derrota política e com a traição da traição, entendo que é necessário entrar em temas de fundo, em debates de tipo estratégico. De forma direta, cabe perguntar. Qual utopia a centro esquerda latino-americana escolhe ou escolherá a partir de agora? Vai seguir na aposta infundada no “aprimoramento das instituições” e esperar a cada 20 ou 25 anos um novo ciclo de virada de mesa por dentro do poder burguês compartilhado e sob a influência direta e indireta do Império?
Ou vai tentar ajudar criar um poder do povo organizado que, mesmo que convivendo em democracia indireta e representativa, vai estar de guarda alta e permanente para não deixar a mesa virar de forma tão simples retirando direitos conquistados?
Vale entender um pouco de estratégia para fundamentar a teoria e as escolhas políticas: “O objetivo finalista subordina o método segundo suas condicionalidades”, correto? Esse conceito operacional é de Golbery do Couto e Silva. Seria bom aprender como a direita se move para poder contrapor estes movimentos. No novo ciclo de golpes – agora brancos – na América Latina, temos Venezuela, Honduras, Paraguai, tentativas na Bolívia e Equador e Brasil. E como fica a resistência aos golpes?
Até quando os partidos eleitorais vão operar estritamente contando com o aprimoramento das instituições pós-coloniais ao invés de criar e ampliar instituições sociais decoloniais e populares?

Os marajás do Judiciário, protagonistas do impeachment

André Barrocal – Jornalista

Juízes e procuradores ganham fortunas, lutam por mais no Congresso e, diz sociólogo, insuflaram impeachment com ‘moralismo de ocasião’.
Quando estava no poder, Dilma Rousseff reuniu-se certa vez com o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Ricardo Lewandowski, para conversar sobre a crise política, mas o convidado só queria falar de aumento de salário do Judiciário.
No comando do julgamento da petista no Senado, o ministro aproveitou para pedir por lá a aprovação de uma lei de reajuste para o STF.
O comportamento de Lewandowski, que pelo cargo simboliza o sistema de justiça do País, dá vida a um diagnóstico feito pelo sociólogo Jessé Souza.
O Brasil, segundo ele, tem hoje um “aparelho jurídico-policial” bastante ativo na defesa de interesses corporativos.
Uma casta jurídica “composta pelos verdadeiros marajás do Estado brasileiro” e peça valiosa no impeachment.
Do “complexo jurídico-policial” descrito por Souza, ex-presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e professor de ciência política da Universidade Federal Fluminense, fazem parte juízes, procuradores de Justiça e policiais federais.
As duas primeiras categorias estão entre os mais altos salários pagos no serviço público e as mais caras do mundo.
O juiz Sergio Moro embolsou 651 mil reais em 2015, média mensal de 54 mil. Corregedora-nacional de Justiça até meados de agosto, Nancy Andrighi recebeu 40 mil por mês, de janeiro a julho de 2016, na qualidade de ministra do Superior Tribunal de Justiça (STJ).
Mesma média, em igual período, recebida pelo presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República, José Robalinho Cavalcanti.
O procurador-geral da República, Rodrigo Janot, chefe do Ministério Público (MP), ganhou 35 mil reais por mês.
Exceto em junho, quando levou 54 mil, em razão das férias.
O salário dos togados do STF é o valor máximo que deveria existir no setor público, de acordo com a Constituição. Está em 33,7 mil reais.
Vários “penduricalhos” (auxílios etc) garantem ao Judiciário e ao MP contracheques mais gordos, como os de Moro, Andrighi, Robalinho e Janot.
Em algumas ocasiões, os valores explodem.
Em abril, o procurador Deltan Dallagnol, chefe da força-tarefa da Operação Lava Jato, recebeu 86.850,59 reais.
Dois meses depois, a ministra do STJ, Regina Helena Costa ganhou 83.322,35 reais.
Uma lei foi enviada ao Congresso em 2015 por Dilma para disciplinar os penduricalhos e fazer o teto salarial do funcionalismo valer de fato, mas está parada entre os deputados.
Se o lobby de Lewandowki no impeachment der certo, a remuneração no STF subirá 16%, para 39,2 mil reais mensais.
Valor proposto para o procurador-geral em outra lei a tramitar no Senado.
As duas foram aprovadas em junho pelos deputados, os mesmos que seguram o projeto do teto.
Uma lei sancionada em julho por Michel Temer subiu em 41% os vencimentos dos funcionários do Judiciário e em 12%, os daqueles do MP.
Um impacto estimado pelo Ministério do Planejamento de 2 bilhões de reais ao erário este ano.
“A casta jurídica”, diz Souza, “consegue pornográfico aumento nos seus salários já nababescos, em meio à grave crise, e mostra todo o seu descaso e descolamento da realidade social vivida pelos outros cidadãos.”
Mesmo sem reajustes, o Brasil ocupa, com folga, o posto de campeão mundial em despesa com tribunais, ao menos no Ocidente.
Uma liderança apontada pelo professor Luciano da Ros, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, no estudo “O custo da Justiça no Brasil”, de 2015.
Aqui, gasta-se com o Judiciário 1,3% do PIB, a geração anual de riquezas do país. Nos Estados Unidos e na Inglaterra, 0,14%. Na Colômbia, 0,21%. No Chile, 0,22%. Em Portugal, 0,28%. Na Alemanha, 0,32%.
“Mesmo ostentando esses números hiperbólicos, a prestação da tutela jurisdicional, no Brasil, é uma das mais morosas do mundo, refletindo a ineficiência do Estado como prestador de serviços públicos”, diz o desembargador Reis Friede, vice-presidente do Tribunal Regional Federal (TRF) da Segunda Região, em artigo publicado em junho no jornal O Estado de S. Paulo.
O orçamento do MP também é sui generis.
Equivale a 0,32% do PIB, de acordo com o estudo de Da Ros, acima do gasto com o Judiciário de vários países. Na Itália, pátria da Operação Mãos Limpas, a Lava Jato de lá nos anos 1990 e a inspiração de Sérgio Moro no século XXI, morde 0,09%. Em Portugal, 0,06%. Na Espanha e Alemanha, 0,02%.
Tudo somado (Judiciário, MP, Defensoria Pública, Advocacia Geral da União), o Brasil possui um sistema de justiça de 1,8% do PIB.
Algo como 100 bilhões de reais anuais.
Esse “gigantismo”, escreve Da Ros, deveria tornar o “complexo jurídico” um tema de interesse geral, devido aos efeitos macroeconômicos e nas prioridades de investimento do setor público.
“O debate sobre o tipo de país que o Brasil quer ser crescentemente deverá levar em conta também o tamanho da comunidade jurídica que a sua população pode e/ou deseja sustentar”, diz.
A “casta jurídica” dona de gordos proventos, segundo Jessé Souza, foi um dos protagonistas do impeachment, análise feita por ele no livro A Radiografia do Golpe, recém-lançado pela editora Leya.
O impeachment, diz a obra, resulta de uma combinação de interesses.
No topo da hierarquia, a elite econômica, insatisfeito com as escolhas feitas pelo PT.
Esta elite teria dois “braços armados”: o Congresso e mídia, influenciados por financiamento eleitoral e publicidade, respectivamente.
Haveria, por fim, “um aliado de ocasião”: o “aparelho jurídico-policial do Estado”.
O “aliado de ocasião” foi decisivo, segundo o livro, para empurrar parte da sociedade à causa do impeachment. Por duas razões, basicamente.
De um lado, por identidade social. “Existe uma correspondência perfeita entre a classe média e a classe média alta que saíram às ruas com o perfil do novo tipo de operador jurídico que se instala no Estado”, escreve o sociólogo.
De outro, por oferecer um motivo para milhares de pessoas engrossarem passeatas “Fora Dilma”, a corrupção.
“A Lava Jato criou um verdadeiro campeonato entre as diversas corporações jurídicas para ver quem ganha o troféu de ‘guardião da moralidade pública’.”
Um “falso moralismo”, segundo Souza, pois mostra indignação com a corrupção, algo existente mundo afora, mas não com a escandalosa desigualdade social, mais típica do Brasil.
Uma desigualdade para a qual “casta jurídica” contribui com seus generosos holerites.
No caso dos magistrados, o “falso moralismo” talvez tenha ainda uma outra explicação.
Ex-corregedora nacional de Justiça, a juíza baiana Eliana Calmon acha que uma das empreiteiras baianas enroscadas na Lava Jato corrompeu tribunais.
“Não é possível que a Odebrecht levasse 30 anos de intimidade com o poder público, com o governo, sem a conivência do Judiciário”, diz.
O fato de o “complexo jurídico-policial” ser um “aliado de ocasião” do poder econômico, do Congresso e da mídia explica por que já se percebe um racha na coalizão pró-impeachment.
O aumento do salário de ministros do STF e do procurador-geral gera briga em Brasília. O PMDB de Temer é a favor das leis. O PSDB, segundo maior partido governista, é contra, por causa do efeito cascata.
O reajuste se multiplicará a juízes e promotores pelo País, devido a regras constitucionais.
Polêmica a descambar para ameaças de PSDB e DEM de romper com Temer.
Outro racha está nos rumos da Lava Jato.
Em junho, o STF impôs à operação uma derrota de caráter simbólico, ao negar a prisão de um trio da pesada do PMDB, os senadores Renan Calheiros e Romero Jucá e ex-presidente José Sarney. Prisões solicitadas por Janot com base justamente na acusação de o trio tentar atrapalhar as investigações.
Mais recentemente, após dois anos de sintonia com a República de Curitiba (Moro, procuradores, policiais federais), o ministro do STF Gilmar Mendes atacou a operação. Bastou a negociação de delações premidas com executivos das empreiteiras OAS e Odebrecht indicar que tucanos graúdos serão alvejados. Mendes, como se sabe, é íntimo do ninho tucano.
O “partidarismo” da operação, diz Jessé Souza, tem agora que penetrar em terreno minado e abranger antigos aliados.
“Esse é o aspecto central da crise atual. A luta de morte entre os políticos e os operadores jurídicos pelo espólio político do golpe.”
Publicado originalmente na Carta Capital

Senhor e Escravo/ Casa Grande e Senzala

João Alberto Wohlfart – Doutor em Filosofia pela PUCRS e professor de Filosofia no IFIBE
A crise política brasileira e o golpe na Presidente Dilma Rousseff podem ser lidos a partir de muitos vieses teóricos advindos da Filosofia, da Sociologia, da Economia, das Ciências Políticas e de outras áreas do saber. Podem ser lidos a partir de textos referenciais que a história do pensamento nos legou. O objeto do presente artigo é uma aproximação entre o texto da Dialética do Senhor e do Escravo, exposto por Hegel (1770-1831) no começo da Fenomenologia do Espírito, e a crise política vivida pelo Brasil na atualidade. Pensamos que este seja um viés teórico adequado para analisar criticamente o que está acontecendo no Brasil, principalmente no sentido de explicitar a lógica interna do processo e a articulação dos seus componentes.
A Fenomenologia do Espírito, uma obra que Hegel publicou no ano de 1807, expõe uma série de figuras que costuram o caminho pedagógico e racional entre a certeza sensível e conhecimento filosófico, entre a sensibilidade e o processo histórico. Uma das figuras de destaque muito conhecida e de decidida influência histórica nas lutas sociais e na formação da consciência histórica é a Dialética do Senhor e do Escravo. É uma figura que pode ser aplicada à composição teórica do círculo relacional entre o senhor capitalista e o empregado trabalhador, entre professor e aluno, entre mestre e discípulo, entre necessidade e liberdade, entre capital e trabalho, entre dominador e dominado, entre Casa Grande e Senzala etc.
Senhor e escravo são duas figuras verticalmente relacionadas numa situação de dominação do escravo pelo senhor. Nesta exposição, o senhor figura como o sujeito absolutamente livre, imediatamente relacionado consigo mesmo, autoconsciente de sua independência absoluta e alguém que usufrui de uma vida material de altíssimo nível. É sujeito de uma conta bancária gorda, dono de um apartamento luxuoso, carrão do ano na garagem e proprietário de uma grande fazenda. A sua independência e a sua capacidade de gerenciamento material lhe proporcionaram esta fortuna que adquiriu por merecimento próprio. Em razão disto, o senhor ostenta a consciência de liberdade e autonomia e despreza a sua negação absoluta, o escravo radicalmente incompatível com a sua condição.
O outro termo da relação é o escravo. Não possui nenhuma intuição de sua liberdade, rejeita a sua própria subjetividade e trabalha para o seu senhor. O trabalho dele lhe esgota fisicamente e somente recebe como recompensa de seu trabalho o suficiente para permanecer vivo, manter a sua força física de trabalho e continuar com a atividade de produzir para o seu senhor. Não se trata apenas de um duro trabalho executado no limite das suas forças físicas, mas esvazia a sua autoconsciência, a sua liberdade interior e interioriza a consciência do seu senhor como modelo que jamais conseguirá alcançar. No exercício do trabalho, o escravo não exerce a sua própria atividade, como se ela fosse uma materialização da subjetividade, mas exerce a atividade do senhor.
Entre o senhor e o escravo não se estabelece uma relação direta, pois entre eles está interposta a natureza. Ela aparece em dois momentos diferenciados. O primeiro, na condição positiva, é a natureza imediata tal como ela se estruturou como universo material; e o segundo, na condição negativa, enquanto transformada pelo trabalho humano e destinada ao consumo. Neste processo, o escravo se relaciona diretamente com a natureza positiva, pois com ela se confronta no ato do trabalho e de transformação. O escravo se depara com a dureza do objeto natural que necessita de muita força para ser superado. O senhor, em contrapartida, não se relaciona com a natureza imediata, mas apenas com a negativa porque a consome. O escravo não se relaciona com a natureza negativa porque ele não a consome, e quando ela está trabalhada escapa por completo de suas mãos.
Na Dialética do Senhor e do Escravo, o escravo reconhece e o senhor é o reconhecido. O senhor atribui a si mesmo a liberdade e a autonomia absolutas, enquanto nega o escravo e o rebaixa à condição de coisa. O escravo se nega a si mesmo através do esgotamento de suas forças físicas e o esvaziamento de sua liberdade ao confirmar a absoluticidade do senhor. Porém, nesta relação assimétrica, o escravo trabalha e o senhor apenas consome. O alto grau de vida material do senhor se deve ao trabalho do escravo, e não aos méritos do senhor.
Conforme afirmamos, entre o senhor e o escravo está a natureza, assinalada com os sinais do positivo e do negativo. Há um espaço não diretamente dominado pelo senhor, o ato sistêmico de enfrentamento da dureza da natureza pelo trabalho do escravo. Na sua dura atividade, o escravo passa por um processo de aprendizagem no qual se dá conta de que a liberdade e o alto nível de vida material do senhor somente são possíveis mediante o seu reconhecimento e o seu trabalho. Nesta pedagogia da aprendizagem através do trabalho e da intuição da liberdade pessoal, o escravo passa da heteronomia para a autonomia, da dependência para a liberdade. Ao conquistar a liberdade, o escravo desmistifica e dissolve a pretensa absoluticidade do senhor que recai na condição de escravo e é rebaixado à animalidade.
Para Hegel, o exercício do trabalho e a transformação da natureza constituem passos fundamentais para a humanização. Como o senhor não trabalha, apenas recebe pronto e consome o resultado do trabalho de outrem, ele vira animal e não dispõe da mediação fundamental de humanização. O que absolutamente desprezou e jamais quis para si mesmo, agora passa a ser a sua própria caracterização essencial. Neste nível, invertem-se as funções quando o senhor se torna escravo e o escravo se torna livre. Mas não é uma inversão simples na qual um assume a condição do outro e a relação social permanece exatamente a mesma, mas o senhor é desmistificado na sua posição de dominador absoluto e o escravo segue o seu caminho de humanização e libertação. É preciso destacar que o senhor aposta na incondicionalidade de seu domínio diante da qual o escravo não teria condições de esboçar qualquer caminho de liberdade e de consciência.
Parece-nos claro que o texto hegeliano aqui reconstruído em seus componentes fundamentais é um referencial para a leitura do cenário político atual. Na exposição dialética que aqui empreendemos, na História do Brasil identificamos a figura do Senhor com a Casa Grande e o Escravo com a Senzala. Na verdade, a Dialética do Senhor e do Escravo representa situações de relações historicamente situadas. Sob este viés, a História do Brasil é fortemente marcada pela presença de uma elite patriarcal, machista, patrimonialista, imperialista centrada no domínio e na acumulação capitalista. Por outro lado, temos uma massa de escravos impossibilitados de liberdade e excluídos das decisões, na condição de sujeitos sociais. Os escravos, atualmente os trabalhadores e o povo em geral, a massa de empobrecidos pelo sistema capitalista, sempre foram excluídos do processo político, das decisões e dos bens produzidos pela sociedade, e ainda rotulados de bagabundos, preguiçosos e objetos de assistencialismos por parte do Estado.
Ao longo da História do Brasil uma grande massa ficou excluída da fruição dos resultados econômicos e não participou dos rumos do país. A Economia, a Política, a Religião e o Direito estiveram voltados para a sustentação e a eternização de uma pequena elite patriarcal naturalmente considerada como dona do poder e das riquezas do país. O fenômeno que atravessa a História pode ser caracterizado a partir da oligarquia imperial que jamais abriu mão do domínio absoluto, invisivelmente sustentado por uma massa de escravos, trabalhadores e pela exclusão social. É toda uma base social que sustentou no topo da pirâmide uma elite dominadora, raivosa, autoritária, intolerante, ultraconservadora, branca e machista.
Dentro do grande contexto histórico de meio milênio houve um fenômeno no qual a grande maioria excluída e empobrecida se transformou em viés de políticas governamentais para tirá-las da miséria e incluí-las socialmente. Durante os governos de Lula e Dilma, talvez num fenômeno jamais visto na História da Humanidade, milhões de miseráveis foram resgatados e entraram na classe média. Diante desta constatação visível durante vários anos, a elite patriarcal não se conformou com os avanços e ficou furiosa e enraivecida diante dos desdobramentos deste fenômeno. Ela ficou incomodada como o aparecimento social de classes historicamente recalcadas à exclusão social porque começaram a ocupar os espaços exclusivamente deles, de sua propriedade. Ficaram brabos com a presença de negros e pobres nas Universidades, com os mais humildes que viajam de avião, com a necessidade de compartilhamento dos mesmos espaços como ruas, supermercados, bancos, praças públicas etc. A tradicional elite dominante, com diversas roupagens ao longo da História, raivosamente se posicionou diante de alguns acontecimentos estruturais que jamais se incluem em seus projetos e agendas temáticas. Com certeza, o golpe na Presidente Dilma Rousseff se deve muito mais em função dos avanços, das conquistas sociais e da nova posição do Brasil no cenário global das relações internacionais do que propriamente os erros.
O objeto do artigo é avaliar, dentro do contexto da crise e da atual configuração social brasileira, a relação entre a Casa Grande e a Senzala, entre a atual elite dominante e o povo da base à luz da Dialética do Senhor e do Escravo hegeliana, uma das fontes de inspiração de tantos movimentos sociais e de transformação social dos últimos dois séculos. Talvez, o problema maior dos governos petistas foi subir a rampa do Palácio do Planalto e afastar-se da grande base social e popular do país, cuja mobilização constitui a razão histórica de sua existência. Em palavras simples, substituiu-se a ligação política do Partido dos Trabalhadores com o povo pela governabilidade e pelo PMDB.
A ascensão social de milhões de seres humanos e o mergulho do Brasil na crise econômica e política revela um fenômeno diferente da estrutura lógica da Dialética do Senhor e do Escravo, mas facilmente explicável a partir dela. O texto hegeliano aqui referido expõe a oposição radical entre duas figuras, a do Senhor e a do Escravo, em cuja lógica uma representa o inverso de si mesma, uma é a outra em si mesma e uma é ela mesma na outra. O fenômeno da ascensão social produziu um fenômeno contraditório cujo processo não foi acompanhado pela formação da consciência e desenvolvimento da inteligência. Com acesso ao consumo e ao conjunto de bens básicos, ao invés de formar uma visão crítica e uma consciência esclarecida, constituiu-se uma espécie de mentalidade burguesa afinada à lógica capitalista do consumo.
O notável fato do escravo de ter produzido a sua liberdade e quebrado a sua dependência em relação ao senhor, esta lógica não aconteceu desta forma na política brasileira. A ascensão social, as políticas públicas e a significativa participação dos mais pobres no processo de desenvolvimento econômico não produziu uma força política capaz de quebrar com a lógica da dominação imperial e com a classe dominante, mas a fortaleceu. Não aconteceu um processo de libertação social e um mergulho para dentro da consciência popular enquanto potencialidade transformadora, mas uma espécie de mentalidade burguesa generalizada que anestesiou a população diante dos ataques da mídia golpista, do judiciário, da classe dominante e do próprio congresso nacional. Não foi produzida uma força popular crítica capaz de superar o domínio imperial, mas emergiu uma grande massa popular alinhada aos interesses políticos da burguesia e com mentalidade capitalista, o que inviabiliza qualquer proposta de transformação social e histórica mais profunda. Pelo viés do senhor e do escravo, a Grande Senzala não foi politizada e conscientizada, mas massificada e aliada ao poder dominante. Ela, ao invés de politizar-se e fortalecer-se como um bloco histórico crítico e revolucionário, transformou-se numa massa indiferenciada que interiorizou a mentalidade da oligarquia colonial e engolida por esta.
A casa grande está viva e ativa. Reapareceu com toda a sua fúria dominadora, com a pose machista patriarcal, com uma organização absoluta e perfeita, com tudo incorporado à sua lógica. Todas as formas históricas de machismo, patriarcalismo, patrimonialismo, colonialismo e imperialismo estão integradas e plenamente atualizadas. As conversas entre as pessoas, a opinião pública de base, a lógica dos meios de comunicação, as forças políticas do congresso nacional, o grande capital, os alvos do judiciário e a criminalização dos movimentos sociais, o governo golpista, o criacionismo nas escolas, a escola sem partido, tudo concorre para o fortalecimento da casa grande. Estes componentes constituem gigantescos tentáculos do mesmo e único pandemônio que dissolveu a força transformadora do povo e tem como alvo direto devorar Lula e o PT. Quase não nos sobra nada além deste monstro que dos domina por todos os lados. Contra o monstro que se instalou, novos movimentos deverão ser construídos.
Uma crítica possível de ser formulada a partir da lógica da Dialética do Senhor e do Escravo, no conhecido paradigma social da Fenomenologia do Espírito, é o desaparecimento da força de contradição e de articulação destas instâncias no cenário social e político brasileiros. Inclusive muitas das manifestações pró-golpe amplamente articuladas pelos meios de comunicação social foram favorecidas pela ascensão social e conquistaram significativa qualidade de vida com os governos de Lula e de Dilma. Tornaram-se inimigos dos governos que lhes proporcionaram uma situação econômica privilegiada, com ruptura política de base e com alinhamento à grande burguesia dominante. Ao invés da oportunidade histórica de superação da grande oligarquia patriarcal presente ao longo de toda a História do Brasil, os meios de comunicação conseguiram manipular de tal maneira a população que boa parte da população vincula a corrupção ao PT.
É visível que o momento atual é de reviravolta conservadora em âmbito mundial e nacional. Parece que andamos na contramão das potencialidades revolucionárias e transformadoras inscritas na Dialética do Senhor e do Escravo tecnicamente formulada por Hegel há um pouco mais de dois séculos atrás. Parece que as forças transformadoras recolheram e cederam amplo espaço para todas as formas possíveis de conservadorismo econômico, político, religioso e ideológico. Estamos num conservadorismo tal que falar do Senhor e do Escravo, e de todas as produções inspiradas nela, poderá ser passível de condenação e prisão. Mas a farsa do golpe aplicado contra a Presidente Dilma Rousseff não terá vida longa e duradoura. O golpe não esmagará definitivamente a Democracia, as forças de resistência e os movimentos populares. Em breve hão de eclodir novas forças de resistência capazes de contrapor à oligarquia patriarcal dominante. Com a destituição da Presidente Dilma Rousseff, as esquerdas deverão se rearticular, produzir novas forças políticas e novos caminhos de transformação.

O dia da vergonha nacional

Benedito Tadeu César – Cientista Político e professor universitário
Erramos todos. Tenho repetido esta frase em cada encontro de cientistas políticos nos quais tenho participado desde o início do processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff e em cada fala que tenho feito nas diversas manifestações públicas contra o golpe de que tenho participado nos últimos meses.
Erramos todos, porque acreditamos que as instituições públicas brasileiras estavam se consolidando no rumo da concretização da democracia no país. A farsa que se desenrolou durante cinco meses diante dos nossos olhos, desde abril deste ano, e que teve seu epílogo no último dia de agosto, foi urdida, construída, mantida e perpetrada no interior das instituições públicas brasileiras e foi desfechada por muitos dos que têm a obrigação legal de preservar a democracia.
Foi a ação conjunta do vice-presidente da República, da maioria esmagadora do Congresso Nacional, de amplos setores do Ministério Público, capitaneados pelo Procurador Geral da República, de muitos integrantes do Poder Judiciário e de uma maioria expressiva do Supremo Tribunal de Justiça (STF), todos defensores jurados da Constituição Federal de 1988, que tornou possível que a farsa da deposição “legal” de uma presidenta da República, eleita por mais de 54 milhões de votos, fosse encenada.
São as instituições públicas brasileiras que estão podres e corrompidas ou, pelo menos, boa parte dos seus integrantes, a começar por aqueles que detêm maior responsabilidade em cada uma delas. Contaram para corrompê-las com os inestimáveis serviços da grande mídia corporativa, controlada por apenas cinco famílias milionárias. Não fosse assim, a democracia teria sido preservada e a vontade expressa pelo voto de milhões não seria afrontada pela ação de uma minoria quatro vezes derrotada eleitoralmente – em 2002, em 2006, em 2010 e em 2014.
Vivemos em um país presidencialista onde, diferentemente dos países parlamentaristas, só o voto popular tem o poder constitucional de eleger e de destituir um presidente da República, por meio de sua não reeleição. Fora disto, só a caracterização expressa e irrefutável do cometimento de um “crime de responsabilidade no exercício da Presidência da República” pode justificar o afastamento do governante.
Destituir uma presidenta da República “pelo conjunto da obra”, como o fizeram os deputados federais e senadores brasileiros, afronta a Constituição vigente no país. A perda da maioria no Parlamento só justifica a retirada e/ou a troca do chefe do Executivo nos regimes parlamentaristas, nos quais os dirigentes são eleitos indiretamente, por indicação do poder Legislativo.
Não basta o cumprimento do ritual jurídico, para justificar e dar roupagem legal e constitucional ao processo fraudulento da destituição de Dilma Rousseff. O mundo todo sabe disto e sua denúncia tem sido expressa por jornalistas independentes e por editoriais dos maiores e mais respeitados veículos de comunicação internacionais. Um julgamento não é lícito apenas pelo cumprimento das regras formais de seu funcionamento. Um julgamento só é lícito quando os argumentos da defesa e da ré são levados em consideração.
Quando os julgadores declaram, antes de ouvir a ré e seus defensores e antes mesmo de conhecer o processo, que condenarão a acusada, esses julgadores devem ser impugnados e o julgamento anulado. Este é o procedimento adotado em qualquer tribunal de justiça honesto, como se espera existir em qualquer país democrático.
Não foi o que se viu no Brasil. Aqui, o presidente do STF, com sua presença e atuação na condução do processo de impeachment, coonestou o golpe e a afronta à democracia, no mínimo, quando admitiu que julgadores que haviam declarado seus votos condenatórios antes de encerrado o processo participassem do processo e condenassem a ré, tal como haviam antecipado que o fariam.
Mais uma vez, as elites políticas e econômicas brasileiras, que controlam as instituições públicas do país, interrompem, por meio de atos ilegais – como o fizeram em 1954, quando Getúlio Vargas foi levado ao suicídio, e em 1964, quando se uniram aos militares para instalar a ditadura que se arrastou até 1985 – o frágil processo de democratização e de construção de instituições e de procedimentos democráticos e de inclusão social neste país.
Encerrou-se hoje, com a conivência ativa de parcelas expressivas de integrantes das instituições públicas brasileiras, o mais longo período democrático durante a história republicana deste país. Encerram-se hoje 31 anos de democracia, construída a duras penas, no Brasil.
Hoje, somos alvo da chacota internacional.
No futuro, a história registrará o dia 31 de agosto de 2016 como o Dia da Vergonha Nacional.

2016 ou O golpe de mil faces – alguns ângulos de abordagem e princípios teóricos

Walter Morales Aragão – Prof. universitário, doutor em planejamento urbano e regional
“Um alaúde, uma telenovela, um trem.
Uma arara. É ao mesmo tempo bela e
banguela a Guanabara.”
VELOSO, Caetano.  In: O estrangeiro.
1.  Abordagem a partir de uma teoria das elites. Variantes no saber proletário: “brasa pouca, minha sardinha primeiro”; “a corda rebenta no lado mais fraco”;  “quem pode mais, chora menos”.
Brasil, século XXI. Um dos chamados “países-baleia”, os de grande população, território e recursos. Quinta maior população e quinto maior território do mundo. Uma das dez maiores economias. Detentor da maior extensão de área agricultável do planeta.
Cenário: 1ª agudização recente da crise capitalista iniciada nos anos 60 do século XX – no ano de 2007, quando dois milhões de estadunidenses perdem suas casas no estouro da bolha especulativa com hipotecas e, em poucas semanas, os bancos centrais europeus e dos EUA se obrigam a injetar cerca de quatro trilhões de dólares de dinheiro público para resgatar o mercado falido. Corrida a ativos seguros: terras agrícolas e estoques alimentares disparam, exportações de grãos são proibidas em diversos países – é a Guerra da Comida, de 2008, estopim das revoltas iniciais da Primavera Árabe. Agitações populares contra a carestia no Paquistão, Vietnã, Egito,  Haiti, Argélia e Madagascar. Nesta ilha a Hiunday adquire dois milhões de hectares para produção de biocombustíveis. Bancos alemães e companhias chinesas compram logo 80 milhões de hectares, obrigando Uruguai, Bolívia, Paraguai e países africanos a legislar sobre aquisições por estrangeiros.
O governo brasileiro, nucleado no PT, protege o país e a população da fúria externa. Ativa um pacote de medidas anti-ciclícas, usando reservas e órgãos estatais – se fossem privados seriam inúteis, em princípio, para tal finalidade. A AGU e o Incra reforçam o controle sobre aquisição de terras por estrangeiros. A Petrobrás segura os preços do gás de cozinha e dos combustíveis por quase quatro anos. São mantidos os programas de renda mínima, mantendo a demanda interna aquecida.  Os agricultores familiares e assentamentos ganham estímulo para a produção de alimentos ao mercado interno. Os efeitos deste pico da crise são atenuados.
Cenário: 2ª agudização recente da crise capitalista – A guerra econômica a partir de 2011.  Bombardeios ilegais da OTAN na Líbia, que possuía o melhor padrão de vida da África, com a expulsão de firmas chinesas e brasileiras. Os EUA intervém na economia mundial, rebaixando artificialmente o preço do petróleo. Ampliam a produção interna, flexibilizando a legislação ambiental. Exigem super-produções de suas aliadas monarquias absolutistas do Golfo – Arábia Saudita, Emirados A. Unidos, Kuwait – para prejudicar o Irã, a Venezuela e a Rússia. Promovem grandes manobras militares na Europa e no Mar do Sul da China, até às vésperas da Olimpíada do Rio, com vistas a obrigar Rússia e China a aumentar os gastos com defesa. Golpe “colorido” na Ucrânia – inclusive o Brasil perdeu aí uma parceria em foguete de satélite com a Ucrânia, num prejuízo de meio bilhão de reais. Diversas sanções econômicas sob variados pretextos: cartões Visa e Master foram proibidos aos russos depois do plebiscito e da reintegração da Criméia.
Manobra radical no Brasil atual: Pesquisa Datafolha do início de 2016 dispara o alarme das elites dominantes: Lula continua favorito a 2018, mesmo sob todo o massacre midiático-jurídico seletivo. EUA espionam Dilma, Petrobras e outras instâncias no Brasil. Repassam informações a interlocutores seus de diversos órgãos no Brasil, numa grande entrega de provas ilícitas. Já no governo Clinton a CIA espionara concorrentes europeus e brasileiros em licitações de radares: o capitalismo monopolista global odeia concorrência – isto fica para discursos e botecos periféricos. A  grande burguesia e o rentismo decidem rasgar a CF 1988 em seus princípios de soberania popular através do cidadão-eleitor. Apegam-se, descabidamente, a itens secundários formalmente previstos. Seria como decidir pela invasão agora da Venezuela ou do Uruguai, alegando que a declaração de guerra pelo Senado está prevista na CF.
Do ângulo das elites dominantes o golpe de 2016 é um gesto heróico de salvação do capitalismo nativo, recolocando em seu “devido lugar” os trabalhadores assalariados e suas parcelas da população aliadas – indígenas, populações tradicionais, agricultores familiares – os quais, irracionalmente ao ver dos dominantes, encontravam-se praticando uma cidadania inaceitável. Analogia clássica: o mito grego do “Leito de Procusto” – assaltante que ajustava suas vítimas a uma cama de ferro, cortando-as ou espichando-as. Adequadamente parte do ciclo do herói Teseu, mais preocupado com o labirinto da queda dos lucros do que com o Minotauro popular.
2. Ângulo soviético: se o impedimento da presidente eleita confirmar-se, de um ângulo etapista histórico o Brasil terá um passo positivo – as massas ficarão mais críticas à validade da democracia burguesa. O golpe dirá mais sobre a ditadura de classe instalada na economia e no Estado brasileiro do que qualquer curso de formação política. Talvez haja festa na Coreia do Norte: “Não dissemos a vocês que eleições sob o capitalismo são um teatro ruim, que rasgam a bel-prazer? Ditadura de classe por ditadura de classe, busquem uma comprometida com a maioria da sociedade. Será uma democracia mais realista do que esta aí.”
3. Tempos nebulosos: Karl Marx, no artigo ” O 18 brumário de Luís Bonaparte”, estuda o golpe de Estado na França do século XIX, quando o presidente (não o vice, como aqui e agora) rasgou a constituição republicana e proclamou-se imperador.  No texto, satiriza o pânico do pequeno burguês típico ante as mobilizações sociais e as manobras parlamentares aparentemente incompreensíveis. Ansiedade que terminaria clamando, num apelo sintético e patético, pelo descarte da frágil democracia liberal em troca de sossego (para os negócios): “Mais vale um fim com terror, do que este terror sem fim!”.
Veremos que novas estações produzirá este nosso 2016 brumário.

Confira a íntegra do discurso de Dilma em julgamento do impeachment no Senado

Da Agência Brasil
A presidenta afastada Dilma Rousseff discursou na manhã desta segunda-feira (29) por cerca de 45 minutos no plenário do Senado, durante a última fase do julgamento do processo de impeachment. Em sua  fala, Dilma , ressaltou que foi ao Senado “olhar diretamente nos olhos dos que a julgarão e negou ter cometido crimes dos quais é acusada, segundo ela, “injusta e arbitrariamente”. “Hoje, o Brasil, o mundo e a história nos observam. E aguardam o desfecho desse processo de impeachment”, disse.
Ouça a íntegra do discurso 
Confira a íntegra do discurso de Dilma do Senado:
Excelentíssimo Senhor Presidente do Supremo Tribunal Federal Ricardo Lewandowski
Excelentíssimo Senhor Presidente do Senado Federal Renan Calheiros,
Excelentíssimas Senhoras Senadoras e Excelentíssimos Senhores Senadores,
Cidadãs e Cidadãos de meu amado Brasil,
No dia 1o de janeiro de 2015 assumi meu segundo mandato à Presidência da República Federativa do Brasil. Fui eleita por mais 54 milhões de votos.
Na minha posse, assumi o compromisso de manter, defender e cumprir a Constituição, bem como o de observar as leis, promover o bem geral do povo brasileiro, sustentar a união, a integridade e a independência do Brasil.
Ao exercer a Presidência da República respeitei fielmente o compromisso que assumi perante a nação e aos que me elegeram. E me orgulho disso. Sempre acreditei na democracia e no Estado de direito, e sempre vi na Constituição de 1988 uma das grandes conquistas do nosso povo.
Jamais atentaria contra o que acredito ou praticaria atos contrários aos interesses daqueles que me elegeram.
Nesta jornada para me defender do impeachment me aproximei mais do povo, tive oportunidade de ouvir seu reconhecimento, de receber seu carinho. Ouvi também críticas duras ao meu governo, a erros que foram cometidos e a medidas e políticas que não foram adotadas. Acolho essas críticas com humildade.
Até porque, como todos, tenho defeitos e cometo erros.
Entre os meus defeitos não está a deslealdade e a covardia. Não traio os compromissos que assumo, os princípios que defendo ou os que lutam ao meu lado. Na luta contra a ditadura, recebi no meu corpo as marcas da tortura. Amarguei por anos o sofrimento da prisão. Vi companheiros e companheiras sendo violentados, e até assassinados.
Na época, eu era muito jovem. Tinha muito a esperar da vida. Tinha medo da morte, das sequelas da tortura no meu corpo e na minha alma. Mas não cedi. Resisti. Resisti à tempestade de terror que começava a me engolir, na escuridão dos tempos amargos em que o país vivia. Não mudei de lado. Apesar de receber o peso da injustiça nos meus ombros, continuei lutando pela democracia.
Dediquei todos esses anos da minha vida à luta por uma sociedade sem ódios e intolerância. Lutei por uma sociedade livre de preconceitos e de discriminações. Lutei por uma sociedade onde não houvesse miséria ou excluídos. Lutei por um Brasil soberano, mais igual e onde houvesse justiça.
Disso tenho orgulho. Quem acredita, luta.
Aos quase setenta anos de idade, não seria agora, após ser mãe e avó, que abdicaria dos princípios que sempre me guiaram.
Exercendo a Presidência da República tenho honrado o compromisso com o meu país, com a Democracia, com o Estado de Direito. Tenho sido intransigente na defesa da honestidade na gestão da coisa pública.
Por isso, diante das acusações que contra mim são dirigidas neste processo, não posso deixar de sentir, na boca, novamente, o gosto áspero e amargo da injustiça e do arbítrio. E por isso, como no passado, resisto.
Não esperem de mim o obsequioso silêncio dos covardes. No passado, com as armas, e hoje, com a retórica jurídica, pretendem novamente atentar contra a democracia e contra o Estado do Direito.
Se alguns rasgam o seu passado e negociam as benesses do presente, que respondam perante a sua consciência e perante a história pelos atos que praticam. A mim cabe lamentar pelo que foram e pelo que se tornaram.
E resistir. Resistir sempre. Resistir para acordar as consciências ainda adormecidas para que, juntos, finquemos o pé no terreno que está do lado certo da história, mesmo que o chão trema e ameace de novo nos engolir.
Não luto pelo meu mandato por vaidade ou por apego ao poder, como é próprio dos que não tem caráter, princípios ou utopias a conquistar. Luto pela democracia, pela verdade e pela justiça. Luto pelo povo do meu País, pelo seu bem-estar.
Muitos hoje me perguntam de onde vem a minha energia para prosseguir. Vem do que acredito. Posso olhar para trás e ver tudo o que fizemos. Olhar para a frente e ver tudo o que ainda precisamos e podemos fazer. O mais importante é que posso olhar para mim mesma e ver a face de alguém que, mesmo marcada pelo tempo, tem forças para defender suas ideias e seus direitos.
Sei que, em breve, e mais uma vez na vida, serei julgada. E é por ter a minha consciência absolutamente tranquila em relação ao que fiz, no exercício da Presidência da República que venho pessoalmente à presença dos que me julgarão. Venho para olhar diretamente nos olhos de Vossas Excelências, e dizer, com a serenidade dos que nada tem a esconder que não cometi nenhum crime de responsabilidade.
Não cometi os crimes dos quais sou acusada injusta e arbitrariamente.
Hoje o Brasil, o mundo e a história nos observam e aguardam o desfecho deste processo de impeachment.
No passado da América Latina e do Brasil, sempre que interesses de setores da elite econômica e política foram feridos pelas urnas, e não existiam razões jurídicas para uma destituição legítima, conspirações eram tramadas resultando em golpes de estado.
O Presidente Getúlio Vargas, que nos legou a CLT e a defesa do patrimônio nacional, sofreu uma implacável perseguição; a hedionda trama orquestrada pela chamada “República do Galeão, que o levou ao suicídio.
O Presidente Juscelino Kubitscheck, que contruiu essa cidade, foi vítima de constantes e fracassadas tentativas de golpe, como ocorreu no episódio de Aragarças.
O presidente João Goulart, defensor da democracia, dos direitos dos trabalhadores e das Reformas de Base, superou o golpe do parlamentarismo mas foi deposto e instaurou-se a ditadura militar, em 1964.
Durante 20 anos, vivemos o silêncio imposto pelo arbítrio e a democracia foi varrida de nosso País. Milhões de brasileiros lutaram e reconquistaram o direito a eleições diretas.
Hoje, mais uma vez, ao serem contrariados e feridos nas urnas os interesses de setores da elite econômica e política nos vemos diante do risco de uma ruptura democrática. Os padrões políticos dominantes no mundo repelem a violência explícita. Agora, a ruptura democrática se dá por meio da violência moral e de pretextos constitucionais para que se empreste aparência de legitimidade ao governo que assume sem o amparo das urnas. Invoca-se a Constituição para que o mundo das aparências encubra hipocritamente o mundo dos fatos.
As provas produzidas deixam claro e inconteste que as acusações contra mim dirigidas são meros pretextos, embasados por uma frágil retórica jurídica.
Nos últimos dias, novos fatos evidenciaram outro aspecto da trama que caracteriza este processo de impeachment. O autor da representação junto ao Tribunal de Contas da União que motivou as acusações discutidas nesse processo, foi reconhecido como suspeito pelo Presidente do Supremo Tribunal Federal. Soube-se ainda, pelo depoimento do auditor responsável pelo parecer técnico, que ele havia ajudado a elaborar a própria representação que auditou. Fica claro o vício da parcialidade, a trama, na construção das teses por eles defendidas.
São pretextos, apenas pretextos, para derrubar, por meio de um processo de impeachment sem crime de responsabilidade, um governo legítimo, escolhido em eleição direta com a participação de 110 milhões de brasileiros e brasileiras. O governo de uma mulher que ousou ganhar duas eleições presidenciais consecutivas.
São pretextos para viabilizar um golpe na Constituição. Um golpe que, se consumado, resultará na eleição indireta de um governo usurpador.
A eleição indireta de um governo que, já na sua interinidade, não tem mulheres comandando seus ministérios, quando o povo, nas urnas, escolheu uma mulher para comandar o país. Um governo que dispensa os negros na sua composição ministerial e já revelou um profundo desprezo pelo programa escolhido pelo povo em 2014.
Fui eleita presidenta por 54 milhões e meio de votos para cumprir um programa cuja síntese está gravada nas palavras “nenhum direito a menos”.
O que está em jogo no processo de impeachment não é apenas o meu mandato. O que está em jogo é o respeito às urnas, à vontade soberana do povo brasileiro e à Constituição.
O que está em jogo são as conquistas dos últimos 13 anos: os ganhos da população, das pessoas mais pobres e da classe média; a proteção às crianças; os jovens chegando às universidades e às escolas técnicas; a valorização do salário mínimo; os médicos atendendo a população; a realização do sonho da casa própria.
O que está em jogo é o investimento em obras para garantir a convivência com a seca no semiárido, é a conclusão do sonhado e esperado projeto de integração do São Francisco. O que está em jogo é, também, a grande descoberta do Brasil, o pré-sal. O que está em jogo é a inserção soberana de nosso País no cenário internacional, pautada pela ética e pela busca de interesses comuns.
O que está em jogo é a auto-estima dos brasileiros e brasileiras, que resistiram aos ataques dos pessimistas de plantão à capacidade do País de realizar, com sucesso, a Copa do Mundo e as Olimpíadas e Paraolimpíadas.
O que está em jogo é a conquista da estabilidade, que busca o equilíbrio fiscal mas não abre mão de programas sociais para a nossa população.
O que está em jogo é o futuro do País, a oportunidade e a esperança de avançar sempre mais.
Senhoras e senhores senadores,
No presidencialismo previsto em nossa Constituição, não basta a eventual perda de maioria parlamentar para afastar um Presidente. Há que se configurar crime de responsabilidade. E está claro que não houve tal crime.
Não é legítimo, como querem os meus acusadores, afastar o chefe de Estado e de governo pelo “conjunto da obra”. Quem afasta o Presidente pelo “conjunto da obra” é o povo e, só o povo, nas eleições. E nas eleições o programa de governo vencedor não foi este agora ensaiado e desenhado pelo Governo interino e defendido pelos meus acusadores.
O que pretende o governo interino, se transmudado em efetivo, é um verdadeiro ataque às conquistas dos últimos anos.
Desvincular o piso das aposentadorias e pensões do salário mínimo será a destruição do maior instrumento de distribuição de renda do país, que é a Previdência Social. O resultado será mais pobreza, mais mortalidade infantil e a decadência dos pequenos municípios.
A revisão dos direitos e garantias sociais previstos na CLT e a proibição do saque do FGTS na demissão do trabalhador são ameaças que pairam sobre a população brasileira caso prospere o impeachment sem crime de responsabilidade.
Conquistas importantes para as mulheres, os negros e as populações LGBT estarão comprometidas pela submissão a princípios ultraconservadores.
O nosso patrimônio estará em questão, com os recursos do pré-sal, as riquezas naturais e minerárias sendo privatizadas.
A ameaça mais assustadora desse processo de impeachment sem crime de responsabilidade é congelar por inacreditáveis 20 anos todas as despesas com saúde, educação, saneamento, habitação. É impedir que, por 20 anos, mais crianças e jovens tenham acesso às escolas; que, por 20 anos, as pessoas possam ter melhor atendimento à saúde; que, por 20 anos, as famílias possam sonhar com casa própria.
Senhor Presidente Ricardo Lewandowski, Sras. e Srs. Senadores,
A verdade é que o resultado eleitoral de 2014 foi um rude golpe em setores da elite conservadora brasileira.
Desde a proclamação dos resultados eleitorais, os partidos que apoiavam o candidato derrotado nas eleições fizeram de tudo para impedir a minha posse e a estabilidade do meu governo. Disseram que as eleições haviam sido fraudadas, pediram auditoria nas urnas, impugnaram minhas contas eleitorais, e após a minha posse, buscaram de forma desmedida quaisquer fatos que pudessem justificar retoricamente um processo de impeachment.
Como é próprio das elites conservadoras e autoritárias, não viam na vontade do povo o elemento legitimador de um governo. Queriam o poder a qualquer preço.
Tudo fizeram para desestabilizar a mim e ao meu governo.
Só é possível compreender a gravidade da crise que assola o Brasil desde 2015, levando-se em consideração a instabilidade política aguda que, desde a minha reeleição, tem caracterizado o ambiente em que ocorrem o investimento e a produção de bens e serviços.
Não se procurou discutir e aprovar uma melhor proposta para o País. O que se pretendeu permanentemente foi a afirmação do “quanto pior melhor”, na busca obsessiva de se desgastar o governo, pouco importando os resultados danosos desta questionável ação política para toda a população.
A possibilidade de impeachment tornou-se assunto central da pauta política e jornalística apenas dois meses após minha reeleição, apesar da evidente improcedência dos motivos para justificar esse movimento radical.
Nesse ambiente de turbulências e incertezas, o risco político permanente provocado pelo ativismo de parcela considerável da oposição acabou sendo um elemento central para a retração do investimento e para o aprofundamento da crise econômica.
Deve ser também ressaltado que a busca do reequilíbrio fiscal, desde 2015, encontrou uma forte resistência na Câmara dos Deputados, à época presidida pelo Deputado Eduardo Cunha. Os projetos enviados pelo governo foram rejeitados, parcial ou integralmente. Pautas bombas foram apresentadas e algumas aprovadas.
As comissões permanentes da Câmara, em 2016, só funcionaram a partir do dia 5 de maio, ou seja, uma semana antes da aceitação do processo de impeachment pela Comissão do Senado Federal. Os Srs. e as Sras. Senadores sabem que o funcionamento dessas Comissões era e é absolutamente indispensável para a aprovação de matérias que interferem no cenário fiscal e encaminhar a saída da crise.
Foi criado assim o desejado ambiente de instabilidade política, propício a abertura do processo de impeachment sem crime de responsabilidade.
Sem essas ações, o Brasil certamente estaria hoje em outra situação política, econômica e fiscal.
Saiba Mais
Dilma: impeachment resultará na eleição indireta de um governo usurpador
Muitos articularam e votaram contra propostas que durante toda a vida defenderam, sem pensar nas consequências que seus gestos trariam para o país e para o povo brasileiro. Queriam aproveitar a crise econômica, porque sabiam que assim que o meu governo viesse a superá-la, sua aspiração de acesso ao poder haveria de ficar sepultada por mais um longo período.
Mas, a bem da verdade, as forças oposicionistas somente conseguiram levar adiante o seu intento quando outra poderosa força política a elas se agregou: a força política dos que queriam evitar a continuidade da “sangria” de setores da classe política brasileira, motivada pelas investigações sobre a corrupção e o desvio de dinheiro público.
É notório que durante o meu governo e o do Pr Lula foram dadas todas as condições para que estas investigações fossem realizadas. Propusemos importantes leis que dotaram os órgãos competentes de condições para investigar e punir os culpados.
Assegurei a autonomia do Ministério Público, nomeando como Procurador Geral da República o primeiro nome da lista indicado pelos próprios membros da instituição. Não permiti qualquer interferência política na atuação da Polícia Federal.
Contrariei, com essa minha postura, muitos interesses. Por isso, paguei e pago um elevado preço pessoal pela postura que tive.
Arquitetaram a minha destituição, independentemente da existência de quaisquer fatos que pudesse justificá-la perante a nossa Constituição.
Encontraram, na pessoa do ex-Presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha o vértice da sua aliança golpista.
Articularam e viabilizaram a perda da maioria parlamentar do governo. Situações foram criadas, com apoio escancarado de setores da mídia, para construir o clima político necessário para a desconstituição do resultado eleitoral de 2014.
Todos sabem que este processo de impeachment foi aberto por uma “chantagem explícita” do ex-Presidente da Câmara, Eduardo Cunha, como chegou a reconhecer em declarações à imprensa um dos próprios denunciantes. Exigia aquele parlamentar que eu intercedesse para que deputados do meu partido não votassem pela abertura do seu processo de cassação.
Nunca aceitei na minha vida ameaças ou chantagens. Se não o fiz antes, não o faria na condição de Presidenta da República. É fato, porém, que não ter me curvado a esta chantagem motivou o recebimento da denúncia por crime de responsabilidade e a abertura deste d processo, sob o aplauso dos derrotados em 2014 e dos temerosos pelas investigações.
Se eu tivesse me acumpliciado com a improbidade e com o que há de pior na política brasileira, como muitos até hoje parecem não ter o menor pudor em fazê-lo, eu não correria o risco de ser condenada injustamente.
Quem se acumplicia ao imoral e ao ilícito, não tem respeitabilidade para governar o Brasil. Quem age para poupar ou adiar o julgamento de uma pessoa que é acusada de enriquecer às custas do Estado brasileiro e do povo que paga impostos, cedo ou tarde, acabará pagando perante a sociedade e a história o preço do seu descompromisso com a ética.
Todos sabem que não enriqueci no exercício de cargos públicos, que não desviei dinheiro público em meu proveito próprio, nem de meus familiares, e que não possuo contas ou imóveis no exterior. Sempre agi com absoluta probidade nos cargos públicos que ocupei ao longo da minha vida.
Curiosamente, serei julgada, por crimes que não cometi, antes do julgamento do ex-presidente da Câmara, acusado de ter praticado gravíssimos atos ilícitos e que liderou as tramas e os ardis que alavancaram as ações voltadas à minha destituição.
Ironia da história? Não, de forma nenhuma. Trata-se de uma ação deliberada que conta com o silêncio cúmplice de setores da grande mídia brasileira.
Viola-se a democracia e pune-se uma inocente. Este é o pano de fundo que marca o julgamento que será realizado pela vontade dos que lançam contra mim pretextos acusatórios infundados.
Estamos a um passo da consumação de uma grave ruptura institucional. Estamos a um passo da concretização de um verdadeiro golpe de Estado.
Senhoras e Senhores Senadores,
Vamos aos autos deste processo. Do que sou acusada? Quais foram os atentados à Constituição que cometi? Quais foram os crimes hediondos que pratiquei?
A primeira acusação refere-se à edição de três decretos de crédito suplementar sem autorização legislativa. Ao longo de todo o processo, mostramos que a edição desses decretos seguiu todas as regras legais. Respeitamos a previsão contida na Constituição, a meta definida na LDO e as autorizações estabelecidas no artigo 4° da Lei Orçamentária de 2015, aprovadas pelo Congresso Nacional.
Todas essas previsões legais foram respeitadas em relação aos 3 decretos. Eles apenas ofereceram alternativas para alocação dos mesmos limites, de empenho e financeiro, estabelecidos pelo decreto de contingenciamento, que não foram alterados. Por isso, não afetaram em nada a meta fiscal.
Ademais, desde 2014, por iniciativa do Executivo, o Congresso aprovou a inclusão, na LDO, da obrigatoriedade que qualquer crédito aberto deve ter sua execução subordinada ao decreto de contingenciamento, editado segundo as normas estabelecidas pela Lei de Responsabilidade Fiscal. E isso foi precisamente respeitado.
Não sei se por incompreensão ou por estratégia, as acusações feitas neste processo buscam atribuir a esses decretos nossos problemas fiscais. Ignoram ou escondem que os resultados fiscais negativos são consequência da desaceleração econômica e não a sua causa.
Escondem que, em 2015, com o agravamento da crise, tivemos uma expressiva queda da receita ao longo do ano — foram R$ 180 bilhões a menos que o previsto na Lei Orçamentária.
Fazem questão de ignorar que realizamos, em 2015, o maior contingenciamento de nossa história. Cobram que, quando enviei ao Congresso Nacional, em julho de 2015, o pedido de autorização para reduzir a meta fiscal, deveria ter imediatamente realizado um novo contingenciamento. Não o fiz porque segui o procedimento que não foi questionado pelo Tribunal de Contas da União ou pelo Congresso Nacional na análise das contas de 2009.
Além disso, a responsabilidade com a população justifica também nossa decisão. Se aplicássemos, em julho, o contingenciamento proposto pelos nossos acusadores cortaríamos 96% do total de recursos disponíveis para as despesas da União. Isto representaria um corte radical em todas as dotações orçamentárias dos órgãos federais. Ministérios seriam paralisados, universidades fechariam suas portas, o Mais Médicos seria interrompido, a compra de medicamentos seria prejudicada, as agências reguladoras deixariam de funcionar. Na verdade, o ano de 2015 teria, orçamentariamente, acabado em julho.
Volto a dizer: ao editar estes decretos de crédito suplementar, agi em conformidade plena com a legislação vigente. Em nenhum desses atos, o Congresso Nacional foi desrespeitado. Aliás, este foi o comportamento que adotei em meus dois mandatos.
Somente depois que assinei estes decretos é que o Tribunal de Contas da União mudou a posição que sempre teve a respeito da matéria. É importante que a população brasileira seja esclarecida sobre este ponto: os decretos foram editados em julho e agosto de 2015 e somente em outubro de 2015 o TCU aprovou a nova interpretação.
O TCU recomendou a aprovação das contas de todos os presidentes que editaram decretos idênticos aos que editei. Nunca levantaram qualquer problema técnico ou apresentaram a interpretação que passaram a ter depois que assinei estes atos.
Querem me condenar por ter assinado decretos que atendiam a demandas de diversos órgãos, inclusive do próprio Poder Judiciário, com base no mesmo procedimento adotado desde a entrada em vigor da Lei de Responsabilidade Fiscal, em 2001?
Por ter assinado decretos que somados, não implicaram, como provado nos autos, em nenhum centavo de gastos a mais para prejudicar a meta fiscal?
A segunda denúncia dirigida contra mim neste processo também é injusta e frágil. Afirma-se que o alegado atraso nos pagamentos das subvenções econômicas devidas ao Banco do Brasil, no âmbito da execução do programa de crédito rural Plano Safra, equivale a uma “operação de crédito”, o que estaria vedado pela Lei de Responsabilidade Fiscal.
Como minha defesa e várias testemunhas já relataram, a execução do Plano Safra é regida por uma lei de 1992, que atribui ao Ministério da Fazenda a competência de sua normatização, inclusive em relação à atuação do Banco do Brasil. A Presidenta da República não pratica nenhum ato em relação à execução do Plano Safra. Parece óbvio, além de juridicamente justo, que eu não seja acusada por um ato inexistente.
A controvérsia quanto a existência de operação de crédito surgiu de uma mudança de interpretação do TCU, cuja decisão definitiva foi emitida em dezembro de 2015. Novamente, há uma tentativa de dizer que cometi um crime antes da definição da tese de que haveria um crime. Uma tese que nunca havia surgido antes e que, como todas as senhoras e senhores senadores souberam em dias recentes, foi urdida especialmente para esta ocasião.
Lembro ainda a decisão recente do Ministério Público Federal, que arquivou inquérito exatamente sobre esta questão. Afirmou não caber falar em ofensa à lei de responsabilidade fiscal porque eventuais atrasos de pagamento em contratos de prestação de serviços entre a União e instituições financeiras públicas não são operações de crédito.
Insisto, senhoras senadoras e senhores senadores: não sou eu nem tampouco minha defesa que fazemos estas alegações. É o Ministério Público Federal que se recusou a dar sequência ao processo, pela inexistência de crime.
Sobre a mudança de interpretação do TCU, lembro que, ainda antes da decisão final, agi de forma preventiva. Solicitei ao Congresso Nacional a autorização para pagamento dos passivos e defini em decreto prazos de pagamento para as subvenções devidas. Em dezembro de 2015, após a decisão definitiva do TCU e com a autorização do Congresso, saldamos todos os débitos existentes.
Não é possível que não se veja aqui também o arbítrio deste processo e a injustiça também desta acusação.
Este processo de impeachment não é legítimo. Eu não atentei, em nada, em absolutamente nada contra qualquer dos dispositivos da Constituição que, como Presidenta da República, jurei cumprir. Não pratiquei ato ilícito. Está provado que não agi dolosamente em nada. Os atos praticados estavam inteiramente voltados aos interesses da sociedade. Nenhuma lesão trouxeram ao erário ou ao patrimônio público.
Volto a afirmar, como o fez a minha defesa durante todo o tempo, que este processo está marcado, do início ao fim, por um clamoroso desvio de poder.
É isto que explica a absoluta fragilidade das acusações que contra mim são dirigidas.
Tem-se afirmado que este processo de impeachment seria legítimo porque os ritos e prazos teriam sido respeitados. No entanto, para que seja feita justiça e a democracia se imponha, a forma só não basta. É necessário que o conteúdo de uma sentença também seja justo. E no caso, jamais haverá justiça na minha condenação.
Ouso dizer que em vários momentos este processo se desviou, clamorosamente, daquilo que a Constituição e os juristas denominam de “devido processo legal”.
Não há respeito ao devido processo legal quando a opinião condenatória de grande parte dos julgadores é divulgada e registrada pela grande imprensa, antes do exercício final do direito de defesa.
Não há respeito ao devido processo legal quando julgadores afirmam que a condenação não passa de uma questão de tempo, porque votarão contra mim de qualquer jeito.
Nesse caso, o direito de defesa será exercido apenas formalmente, mas não será apreciado substantivamente nos seus argumentos e nas suas provas. A forma existirá apenas para dar aparência de legitimidade ao que é ilegítimo na essência.
Senhoras e senhores senadores,
Nesses meses, me perguntaram inúmeras vezes porque eu não renunciava, para encurtar este capítulo tão difícil de minha vida.
Jamais o faria porque tenho compromisso inarredável com o Estado Democrático de Direito.
Jamais o faria porque nunca renuncio à luta.
Confesso a Vossas Excelências, no entanto, que a traição, as agressões verbais e a violência do preconceito me assombraram e, em alguns momentos, até me magoaram. Mas foram sempre superados, em muito, pela solidariedade, pelo apoio e pela disposição de luta de milhões de brasileiras e brasileiros pelo País afora. Por meio de manifestações de rua, reuniões, seminários, livros, shows, mobilizações na internet, nosso povo esbanjou criatividade e disposição para a luta contra o golpe.
As mulheres brasileiras têm sido, neste período, um esteio fundamental para minha resistência. Me cobriram de flores e me protegeram com sua solidariedade. Parceiras incansáveis de uma batalha em que a misoginia e o preconceito mostraram suas garras, as brasileiras expressaram, neste combate pela democracia e pelos direitos, sua força e resiliência. Bravas mulheres brasileiras, que tenho a honra e o dever de representar como primeira mulher Presidenta do Brasil.
Chego à última etapa desse processo comprometida com a realização de uma demanda da maioria dos brasileiros: convocá-los a decidir, nas urnas, sobre o futuro de nosso País. Diálogo, participação e voto direto e livre são as melhores armas que temos para a preservação da democracia.
Confio que as senhoras senadoras e os senhores senadores farão justiça. Tenho a consciência tranquila. Não pratiquei nenhum crime de responsabilidade. As acusações dirigidas contra mim são injustas e descabidas. Cassar em definitivo meu mandato é como me submeter a uma pena de morte política.
Este é o segundo julgamento a que sou submetida em que a democracia tem assento, junto comigo, no banco dos réus. Na primeira vez, fui condenada por um tribunal de exceção. Daquela época, além das marcas dolorosas da tortura, ficou o registro, em uma foto, da minha presença diante de meus algozes, num momento em que eu os olhava de cabeça erguida enquanto eles escondiam os rostos, com medo de serem reconhecidos e julgados pela história.
Hoje, quatro décadas depois, não há prisão ilegal, não há tortura, meus julgadores chegaram aqui pelo mesmo voto popular que me conduziu à Presidência. Tenho por todos o maior respeito, mas continuo de cabeça erguida, olhando nos olhos dos meus julgadores.
Apesar das diferenças, sofro de novo com o sentimento de injustiça e o receio de que, mais uma vez, a democracia seja condenada junto comigo. E não tenho dúvida que, também desta vez, todos nós seremos julgados pela história.
Por duas vezes vi de perto a face da morte: quando fui torturada por dias seguidos, submetida a sevícias que nos fazem duvidar da humanidade e do próprio sentido da vida; e quando uma doença grave e extremamente dolorosa poderia ter abreviado minha existência.
Hoje eu só temo a morte da democracia, pela qual muitos de nós, aqui neste plenário, lutamos com o melhor dos nossos esforços.
Reitero: respeito os meus julgadores.
Não nutro rancor por aqueles que votarão pela minha destituição.
Respeito e tenho especial apreço por aqueles que têm lutado bravamente pela minha absolvição, aos quais serei eternamente grata.
Neste momento, quero me dirigir aos senadores que, mesmo sendo de oposição a mim e ao meu governo, estão indecisos.
Lembrem-se que, no regime presidencialista e sob a égide da nossa Constituição, uma condenação política exige obrigatoriamente a ocorrência de um crime de responsabilidade, cometido dolosamente e comprovado de forma cabal.
Lembrem-se do terrível precedente que a decisão pode abrir para outros presidentes, governadores e prefeitos. Condenar sem provas substantivas. Condenar um inocente.
Faço um apelo final a todos os senadores: não aceitem um golpe que, em vez de solucionar, agravará a crise brasileira.
Peço que façam justiça a uma presidenta honesta, que jamais cometeu qualquer ato ilegal, na vida pessoal ou nas funções públicas que exerceu. Votem sem ressentimento. O que cada senador sente por mim e o que nós sentimos uns pelos outros importa menos, neste momento, do que aquilo que todos sentimos pelo país e pelo povo brasileiro.
Peço: votem contra o impeachment. Votem pela democracia.
Muito obrigada.
Edição: Amanda Cieglinski

Um balanço crítico e político das Olimpíadas do Rio

Bruno Lima Rocha – Professor de ciência política e de relações internacionais
Terminados os Jogos Olímpicos do Rio em 2016, entendo que é chegado o momento de realizar uma série de balanços e posicionamentos após o grande evento. Para este texto, aporto duas considerações, uma de ordem territorial, observando o ordenamento da mancha urbana, suburbana e favelizada  do Rio de Janeiro e o quanto a realização de eventos similares não modificou a situação de violência policial, abandono de populações inteiras e a prática de racismo institucionalizado, disfarçado de “caos urbano”. Na sequência, faço um debate a respeito do modelo de desenvolvimento do esporte brasileiro visando o desempenho nos Jogos do Rio. A ausência de uma institucionalização do esporte de base sempre foi a mais visível de nossas características, e como tal, infelizmente, continua sendo.
Os Jogos Olímpicos da distopia midiática e o “caos urbano” no Rio 
Vivemos as Olimpíadas no auge de um anticlímax político, econômico e social. É como que ao fim de uma realidade fabricada, despertássemos todos diante do anunciado pesadelo da quebra do pacto de classes. Mais do mesmo, os conglomerados econômico-midiáticos que venderam a ilusão, agora vendem a resiliência, ao invés da realidade. Lembremos.
Quando no longínquo ano de 2007, o Rio de Janeiro sediou os Jogos Panamericanos, o país vivia um ambiente político diferente. O estado fluminense era governado pelo ex-tucano Sérgio Cabral Filho, homem vinculado a grupos empresariais arrivistas no período lulista, como a Delta Engenharia e o Grupo X, de Eike Batista. Como base da aliança de governo de Cabral Filho, a presença do PT local e a pavimentação da aliança com a legenda de Michel Temer. As realizações do Rio vieram acompanhadas do lado mais bárbaro e sinistro do Estado pós-colonial brasileiro. Nos meses anteriores ao Pan, que quebrara recordes de superfaturamento nas obras e contratos emergenciais, o número de mortos pela ação violenta da Polícia Militar ultrapassara os do Iraque em plena guerra civil. Uma parte razoável destes dados macabros à época podem ser conferidos no domínio Rio Body Count 2 (http://riobodycount2.blogspot.com.br/).
Em outubro de 2009, se verificarmos as imagens registradas na 121ª sessão do Comitê Olímpico Internacional, veremos discursos do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a presença do prefeito Eduardo Paes (o mesmo, já no PMDB), do governador Sérgio Cabral Filho, à época presidente do Banco Central e hoje ministro da Fazenda do governo interino-golpista Henrique Meirelles, e do então ministro do Esporte, Orlando Silva, hoje deputado federal pelo PC do B de São Paulo. Esta representação da aliança entre a centro-esquerda, oligarcas e financistas marcou o segundo mandato de Lula e a eleição da sucessora do ex-sindicalista, em outubro de 2010.
Logo após a primeira eleição de Dilma e Temer, o país assistiu a um espetáculo midiático chamado “A Guerra do Rio”, com as câmaras de TV projetando a ocupação do Complexo do Alemão, iniciando com a fuga de traficantes da Vila Cruzeiro, transmitida ao vivo pelas redes de TV líderes (neste link é possível compreender o momento:  https://www.youtube.com/watch?v=PDPMPesOaQg). O impacto de ver centenas de homens armados de forma ilegal, em plena luz do dia, dá uma impressão de excepcionalidade. Longe disso, pois se trata simplesmente do cotidiano vivido por mais de três milhões de pessoas apenas da Região Metropolitana do Rio. A “exceção” não é o fato, e sim a transmissão.
Com o acionar coordenado de mídia, tecnocratas do mundo jurídico-policial e agências de marketing digital a serviço dos ultra liberais, a frágil aliança de classes entre ex-reformistas, oligarcas, industriais e financistas foi rompida. Junto desta, podem estar indo para o ralo, tanto a diminuta soberania popular, assim como a maioria de nossos direitos trabalhistas e sociais. Eis as Olimpíadas da distopia.
Apesar do bom desempenho, ainda não temos um modelo de desenvolvimento esportivo
Antes de escrever estas linhas e durante a exibição das Olimpíadas, as quais acompanhei com intensidade, revisei meus escritos a respeito do mesmo tema.  A ausência do Estado na promoção do esporte escolar como base para o desenvolvimento olímpico nacional.  Ou seja, buscando incessantemente as estruturas de Estado como garantidoras do direito ao esporte como parte fundamental da cidadania, especialmente como parte do direito à infância e a adolescência. Se formos levar em conta este absurdo e os poucos centros de excelência para o desenvolvimento esportivo brasileiro, veremos que os “resultados” em termos de competição, resultam em verdadeiro “milagre” nacional.
O Brasil fechou sua posição nos Jogos do Rio em 13º – mesmo levando em conta o absurdo que é a contabilidade de ouros coletivos como equivalentes a ouros individuais. À frente do país estão, em ordem decrescente, EUA, Grã Bretanha, China, Rússia (desfalcada do atletismo), Alemanha, Japão, França, Coréia do Sul, Itália, Austrália, Holanda e Hungria. Nas sete posições abaixo do Brasil estão, Espanha, Quênia, Jamaica, Croácia, Cuba, Nova Zelândia e Canadá.  Nas dez posições sequentes estão: Uzbequistão, Cazaquistão, Colômbia, Suíça, Irã, Grécia, Argentina, Dinamarca, Suécia e África do Sul; nas posições de 31ª a 40ª, estão: Ucrânia, Sérvia, Polônia, Coréia do Norte, Bélgica, Tailândia, Eslováquia, Geórgia, Azerbaijão e Bielorússia. Assim, dentre os 40 primeiros países, verificamos sete Estados nacionais sem modelo de desenvolvimento desportivo, sendo estes: Brasil, Quênia, Jamaica, Colômbia, Argentina, África do Sul e Tailândia. Como o que vale para o Comitê Olímpico Internacional (COI) é o número de medalhas de ouro, alguns países, como Jamaica e Quênia, se especializam em determinadas modalidades ou provas específicas de atletismo e a partir desta base modelam seu desempenho. Proporcionalmente em termos de recursos, instalações e número de praticantes de base, o Brasil foi muito bem, dentro das quadras, deixando para o momento posterior a mesma situação de incerteza e desespero fora dos locais de competição.
O mérito para tais resultados vêm das políticas de alto rendimento (incluindo a polêmica dos atletas “militares”, da abnegação de atletas dedicando-se ao profissionalismo e dos raros exemplos de confederações que têm centros de excelência, ligas profissionais e planejamento. Como modelo fechado, neste sentido, temos apenas a Confederação Brasileira de Voleibol (CBV), não sendo à toa a presença do cartola Carlos Arthur Nuzman na Presidência do Comitê Olímpico Brasileiro e que um dos seus dois sucessores na CBV , Ary Graça Filho, ocupe a Presidência da Federação Internacional de Voleibol (FIVB).
Sendo a CBV o modelo para o desenvolvimento de modalidades olímpicas no país, ressaltando que os esportes coletivos têm outra dinâmica dos individuais (como por exemplo, a necessidade de tipos e atributos físicos pré-condicionados para os coletivos), nota-se que o desporto se desenvolve apesar da ausência do Estado como formulador e implantando as políticas necessárias.
O ciclo de qualquer modalidade com ambições olímpicas é difusão, participação e competição (o que na gíria denomina-se no amadorismo ou nas divisões inferiores como “atleta federado”); partindo dos resultados desta última selecionam-se o alto rendimento e daí os programas de incentivo e permanência no desempenho ranqueado internacionalmente. Sem esta base, fazer do esporte brasileiro um direito de todas e todos é  simplesmente uma missão  em vida de treinadores abnegados, como o técnico de boxe da comunidade do Vidigal – zona sul do Rio de Janeiro -, Raff Giglio. De seu projeto, além das centenas de crianças que atendem aos treinamentos ao longo de mais de duas décadas, saiu um medalhista olímpico e outros dois selecionados em 2016. Já o aluguel de seu ginásio, após haver sido despejado, é pago com o mecenato de um ator global! Histórias como estas e absurdos institucionais correspondentes, mais que justificam o choro e a raiva de atletas de alto rendimento e os técnicos de base.
Apontando duas conclusões
Aponto, por fim duas conclusões deste texto. A primeira aponta para a injustiça estrutural da mancha urbana do Rio como um espelho das distorções do país. Cada cidade brasileira e sua correspondente Região Metropolitana; acostumaram a organizar grandes eventos e trabalhar com a possibilidade de atração turística sem com isso modificar a injustiça e a pobreza espacialmente dividida.
Já o modelo do esporte de base, ou pior, a ausência deste, simplesmente exaure as forças dos difusores das modalidades desportivas. Como resultado, além das narrativas típicas do capitalismo, onde se destacam os empenhos e valores individuais de superação, temos mais do mesmo. O Estado opera como modelo de acumulação e também atende, parcialmente, a alguns direitos sociais, todos incompletos. Como o direito ao esporte, infelizmente, trata-se do mesmo abandono e injustiça estrutural.
(www.estrategiaeanaliseblog.com / blimarocha@gmail.com para e-mail e Facebook)
 

Estratificação de renda e de patrimônio dos declarantes de IR no Brasil – a desigualdade é ainda maior do que se imaginava

Róber Iturriet Avila – Doutor em economia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, professor da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, pesquisador da Fundação de Economia e Estatística e diretor sindical do SEMAPI.
João Batista Santos Conceição – Graduando em ciências econômicas na Universidade do Vale do Rio dos Sinos e bolsista FEE/FAPERGS.
A ampliação da transparência das declarações de imposto de renda à Receita Federal do Brasil facilitou a mensuração das disparidades no rendimento e no patrimônio dos brasileiros. Anteriormente, os dados disponíveis advinham de surveys como a Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílio (PNAD) ou a Pesquisa de Orçamento Familiar (POF). Sabidamente, a renda dos mais ricos está subestimada nessas pesquisas, uma vez que esses tendem a omitir sua receita quando questionados.
Já as declarações de imposto de renda são mais precisas. Há que ponderar que, em muitos casos, os bens imóveis declarados possuem defasagem de avaliação. Além disso, uma parcela do patrimônio está contabilizada em pessoas jurídicas. Por fim, a renda e o patrimônio podem não ser plenamente declarados. De todo modo, esses são os melhores dados disponíveis, mesmo que se restrinjam as 27 milhões de pessoas que declaram imposto de renda.
A partir desses dados, foram estabelecidos intervalos decílicos e centílicos. Ou seja, as análises abaixo utilizam o universo dos dados em intervalos de cem partes iguais, fragmentação centílica, ou em dez partes iguais, análise decílica. Isso quer dizer que o 1º centil se refere ao 1% com menores dados e o 8º decil se refere ao intervalo entre os 70% inferiores e os 20% superiores.
Outro esclarecimento metodológico relevante, antes de observar os resultados, se refere às tipificações de renda. Os rendimentos das pessoas físicas recebem tratamentos tributários diferenciados. Os “rendimentos tributáveis” são majoritariamente compostos por rendimentos do trabalho, embora tenha também rendimento de propriedade, como por exemplo, alugueis. Já os “rendimentos tributados exclusivamente na fonte” e “rendimentos isentos” são compostos majoritariamente por rendimentos do capital, como aplicações financeiras, lucros, dividendos, embora esteja incluso também rendimento do trabalho, como o 13º salário. A soma desses três tratamentos tributários será chamada de “rendimento total” neste texto.
No gráfico abaixo é possível observar que a média de rendimentos se eleva de maneira expressiva nas últimas faixas, sobretudo a partir do 96º centil, cuja taxa de variação do rendimento médio em relação ao imediatamente anterior é de 11,12%, chegando a 20,69% no 98º centil e 148,87% no último centil, enquanto nas faixas intermediárias a taxa de variação fica em torno de 4%. Cabe destacar que o último centil se refere aos mais ricos entre os declarantes e não em relação à população total. Como o gráfico está em R$ 1.000,00; a última faixa retrata renda média acima de R$ 1 milhão.
Gráfico 1 – Rendimento médio total dos declarantes por intervalos centílicos – R$ mil – Brasil – 2014
Rendimento médio 2014
Fonte: Receita Federal do Brasil
Assim como na segmentação centílica, a repartição decílica do 1% mais rico entre os declarantes passa a elevar de forma mais significativa a partir do 6º decil, com uma taxa de variação de 12,31%, chegando a 30,91% no 9º decil e a 226,63% no último decil, cujo rendimento médio de cada declarante chega a R$ 3.879.300,00. Embora os declarantes permaneçam anônimos, é possível identificar que o declarante que obteve o maior rendimento em 2014 informou ter recebido R$ 1.071.215.915,10 (um bilhão) entre rendimentos tributáveis, dividendos e rendimento sujeito à tributação exclusiva.
Gráfico 2 – Rendimento médio total dos declarantes por intervalos decílicos do último centil – R$ mil – Brasil – 2014
Rendimento médio total
Fonte: Receita Federal do Brasil
A exposição das declarações de bens e direitos é também importante para um entendimento mais acurado do Brasil. Embora muitos desses bens não sofram atualização na base de dados da Receita Federal, como os imóveis, outros são atualizados anualmente, como as aplicações financeiras, por exemplo. Esses dados podem servir como proxy de riqueza. Embora não haja apenas um indicador de riqueza, a consideração do acúmulo pregresso de bens móveis e imóveis, dinheiro, companhias entre outros bens declarados no imposto de renda pessoa física conformam a estimativa mais exata que existe. No que concerne aos bens e direitos, é possível observar uma elevação acentuada nos quatro últimos centis. Na repartição decílica do último centil, a variação mais acentuada se dá nos últimos dois: 54,12% e 241,14%, respectivamente.
Gráfico 3 – Média patrimonial dos declarantes de imposto de renda por centis – R$ milhões – Brasil – 2014
Média patrimonial
Gráfico 4 – Média patrimonial do último centil dos declarantes de imposto estratificada por decis- R$ milhões – Brasil – 2014
Média patrimonial último centil
Antes de 1995, o País tributava os dividendos de forma linear e exclusiva na fonte, com uma alíquota de 15%, independentemente do seu volume. Em 1996, com a aprovação da Lei nº 9.249, os lucros ou dividendos passaram a ser isentos. Na medida em que os dividendos são isentos de impostos, os segmentos mais elevados da sociedade contribuem menos ao erário. Os rendimentos isentos de 2014 alcançaram R$ 733,6 bilhões, enquanto o imposto devido total de todos os declarantes foi de R$ 128,83 bilhões, ou seja, bastante abaixo do valor dos rendimentos isentos. Cabe destacar que as isenções de dividendos beneficiou 2,1 milhões de pessoas, dentre elas as 20,9 mil mais ricas do Brasil (0,01%), as quais possuem patrimônio médio de R$ 40 milhões.
Chama atenção também, nas declarações de imposto de renda, o volume de subsídio existente aos gastos privados em saúde e em educação. No mesmo ano em análise, as despesas declaradas chegaram a R$ 76,78 bilhões, 59,6% do imposto devido total, ponderando-se que a dedução não é integral. Adicionalmente, verifica-se que as alíquotas de imposto brasileiras são relativamente menores, seja na comparação com os países desenvolvidos, seja com os demais países da América Latina, conforme já exposto em textos anteriores.
Os dados acima explicitam que a desigualdade no Brasil é maior do que se imaginava, com uma discrepância grande daqueles declarantes que figuram entre o 1%, o que corresponde a 0,13% mais ricos da população total. Ressalta-se ainda que esses declarantes possuem expressivos rendimentos isentos de impostos, ou seja, lucros e dividendos. Desde as primeiras sistematizações mais acuradas sobre o funcionamento da economia, ainda no século XVIII, se preconiza que os tributos devem ser proporcionais à renda dos indivíduos. No Brasil há muito a avançar nessa temática.
 

Sistema Único da Assistência Social em risco: tendência de uma agenda neoconservadora

Jucimeri Silveira*
 As primeiras iniciativas do Ministério de Desenvolvimento Social e Agrário do governo interino de Michel Temer demonstram reais tendências de desmonte do Sistema Único de Assistência Social, num cenário de redução de direitos, de investida neoliberal e de avanço de uma agenda conservadora na política, em detrimento das conquistas democráticas. Os discursos de manutenção do que se conquistou de forma deliberativa e republicana nos últimos 10 anos na Assistência Social, não encontram coerência com a prática de gestão e as propostas, algumas já anunciadas ou implantadas por Decreto, com destaque para:
 Anúncio de recursos financeiros relativos ao exercício de 2016 garantidos apenas até setembro, com orientação de articulação de emendas parlamentares como saída possível. A descontinuidade dos recursos fere a lógica do SUAS quanto aos repasses obrigatórios, regulares e automáticos fundo a fundo, para a manutenção e expansão de serviços continuados. Os bloqueios baseados apenas nos saldos em conta trazem absoluta insegurança aos municípios e prejuízos no planejamento e na manutenção da rede estatal em todo o Brasil. Coloca-se em risco o funcionamento das mais de 10 mil unidades públicas de referência e especializadas que atendem a população mais vulnerável e com direitos violados em todo o Brasil;
Implantação de Visitadores Sociais vinculados ao programa “Criança Feliz”, voltado à primeira infância. O programa de governo desconsidera a rede de serviços implantada, o pacto federativo e a descentralização, a possibilidade de cofinancimento de serviços tipificados, como a Proteção Social Básica no Domicílio, e o acompanhamento das condicionalidades do Programa Bolsa Família. A contratação precarizada de 80 mil visitadores reforça a tendência de desmonte da gestão do trabalho, com evidente desqualificação do trabalho especializado na assistência social. Com isso, surgem, com novas roupagens, práticas da chamada medicina social, o que nos faz relembrar a implantação em 1920 da primeira Escola de Serviço Social para atendimento materno infantil, as primeiras iniciativas na década de 1930 no Brasil para controle materno infantil e dos pobres. A situação de maior pobreza na infância e juventude evidentemente requer atuação integrada das políticas públicas. Entretanto, devem compor a rede de serviços do conjunto de políticas sociais. A Assistência Social não pode reassumir funções de outras políticas públicas. Os municípios não podem sofrer com a sobreposição, a residualidade e sobreposição de ações;
Rearticulação das ações solidárias em nível central desconsiderando a municipalização da política, especialmente no papel do município compor e cofinanciar direta e indiretamente a rede socioassistencial não governamental, com evidente tendência de retomada da primazia da atuação solidária da sociedade civil, em detrimento da manutenção e expansão qualificada da rede estatal. A atuação do terceiro setor é complementar e regulada no Vínculo SUAS, e, deste modo, não pode ser a “saída salvadora” para os contingenciamentos de recursos, ou servir de argumento para a organização das chamadas “portas de saída” do Programa Bolsa Família. O Programa Comunidade Solidária do governo Fernando Henrique demonstrou sua incapacidade em substitui os impactos dos sistemas estatais, orientados pelo princípio da universalidade, como o caso do SUAS, bem como da primazia estatal;
Cristalização da agenda de pactuação de recursos e ações nas instâncias do SUAS. Sob os argumentos de insuficiência de recursos ou redirecionamento da gestão para uma perspectiva de maiores resultados e estudo de cursos, o que se percebe é um congelamento na agenda de pactuação de serviços para todo o Brasil. O Plano Decenal comanda a plena universalização da proteção social na assistência social (benefícios e serviços), com cobertura progressiva para as desproteções, devendo compor um conjunto de iniciativas que possibilitem a redução da desigualdade, das vulnerabilidades e assimetrias de poder;
Rearticulação das Comunidades Terapêuticas e de políticas proibicionistas, segregadoras e higienistas, para o atendimento da população em uso de álcool e outras drogas. As perspectivas são de retrocessos na agenda integrada entre políticas públicas para a oferta de serviços de atenção e proteção, redutores de danos, com possibilidades maiores de interrupção da condição de rua ou outras situações associadas. A culpabilização dos indivíduos sociais por sua condição encontra total coincidência com a cultura conservadora que moraliza e criminaliza os pobres;
“Focalismo” extremo nos mais pobres e redução do acesso à Segurança de Renda. As medidas anunciadas quanto aos controles “mais rígidos”, (sugerindo fraudes passadas) no acesso aos benefícios socioassistenciais (Programa Bolsa Família e Benefício de Prestação Continuada), demonstra a evidente tendência de progressiva redução de acessos, baseada na opção neoliberal por restringir políticas distributivas quanto à abrangência, permanência e escala. Maior focalização nos 5% mais pobres em relação ao Programa Bolsa Família ou adoção de critérios como maior grau de dependência, no caso de pessoa idosa e pessoa com deficiência, pode indicar no mínimo um “filtro” maior no acesso a um direito Constitucional. A subordinação da política social à política econômica, desconsiderando inclusive o papel de desenvolvimento das economias locais, coloca em risco a manutenção do vínculo do BPC ao salário mínimo, e a universalização de políticas distributivas, sendo que estas têm efeitos diretos na redução da desigualdade de renda. Expressa, ainda, uma total desconsideração do papel das políticas distributivas no desenvolvimento humano, que evoluiu positivamente 47,8% nos últimos 20 anos, com expressiva redução na última década da pobreza, da fome, da mortalidade infantil, entre outras dimensões que posicionaram o Brasil como referência mundial nas políticas sociais;
Redução do papel das instâncias deliberativas. A implantação de medidas que não passaram por pactuação e deliberação ferem o pacto federativo construído no SUAS, e expressa um descumprimento da Lei Orgânica de Assistência Social e da própria Constituição Federal de 1988, que define novos dispositivos democráticos. Políticas de Estado respeitam o comando Constitucional da participação, implicam processos deliberativos e interfederativos, o que requer o recurso permanente do diálogo, da produção de consensos disputados nas arenas políticas na via institucional. Negar o processo democrático construído no SUAS combina com a cultura política conservadora, num cenário de golpe à democracia, já que anula o conflito como atributo da democracia, e impõe uma agenda de retrocessos no campo dos direitos humanos e das políticas públicas.
O cenário político desafia os/as defensores/as de direitos humanos, e, particularmente da assistência social, a uma atuação vigilante, tanto nos espaços institucionalizados de participação, quanto, e, sobretudo, nos espaços políticos de resistência e luta coletiva em defesa da democracia e dos direitos.
 A atual conjuntura revela uma tendência que extrapola os retrocessos na assistência social. Coloca-se em prática nas diversas políticas públicas e sistemas específicos em direitos humanos, uma agenda regressiva, com evidente avanço do conservadorismo. Pautas como a redução da maioridade penal, são alimentadas por propostas que reforçam a face do Estado “gerente” para o mercado e “penal” para os mais pobres e os movimentos sociais.
 Além da subordinação da política social ao ajuste fiscal, outras medidas neoliberais afetam os/as trabalhadores/as, como a reforma na previdência social, a mercantilização da saúde, com o desmonte do Sistema Único de Saúde, a precarização do sistema público de ensino e o programa “Escola Sem Partido”, entre outras. As reformas planejadas afetam a soberania brasileira e as conquistas parciais em direitos humanos, e já sinalizam a volta da pobreza, o aumento da violência e o aprofundamento da desigualdade, em todas as suas dimensões (racial, de gênero, socioeconômica).
É preciso reafirmar os direitos e as conquistas de nossa democracia recente, entre eles o direito à assistência social num projeto popular de defesa das reformas estruturantes. A conjuntura exige resistência, mobilização e luta coletiva, o que requer uma estreita aliança entre trabalhadores/as sociais e usuários/as dos serviços, com fortalecimento dos movimentos e organizações em defesa dos direitos e da democracia!

Lava Jato: após omitir-se, o Supremo se assusta. Vai acordar?

Marcelo Auler – Reporter

Em sua coluna de terça-feira (23/08) na Folha de S. Paulo, a farejadora Mônica Bérgamo – a quem devo parte do Prêmio Esso que recebi em 1992 quando estávamos na Veja -, traz a público a indignação do ministro Gilmar Mendes – logo ele – com o vazamento de informações – Vazamento de citação a Toffoli em delação abre crise entre STF e  MPF. Referia-se ao provável vazamento por procuradores da República de informações reveladas por Veja em sua última edição. Foi uma tentativa direta de queimar o ministro Dias Toffoli como, aliás, Luís Nassif  comentou em oportuno artigo no  próprio sábado (20/08) – A vingança torpe da Lava Jato contra Dias Toffoli. Tanto que viralizou.
No transcorrer do dia, Mendes voltou a se manifestar, ampliando suas críticas às 10 Medidas Contra a Corrupção, apresentadas pelo Ministério Público Federal, com mais de dois milhões de assinaturas coletadas em todo o país. Segundo o UOL, o ministro do Supremo Tribunal Federal, referindo-se aos procuradores da Lava Jato, sem citá-los comentou que os “cemitério está cheio desses heróis“.
Bateu firme na proposta de “que prova ilícita, obtida de boa fé, deve ser validada”. Para ele, “a priori, tem que ser muito criticada e se negar trânsito. Imagine, agora, um sujeito que é torturado, ah, mas foi de boa fé”.
Avançando, criticou os procuradores e foi citar seu velho arqui-inimigo, o ex-delegado federal Protógenes Queiroz, da Operação Satiagraha – deflagrada em 2008 -, expulso da Polícia Federal por violação de sigilo funcional.
“Isso lembra o nosso delegado herói, que fazia interceptação telefônica sob o argumento de que agia com bons propósitos. Ora, espera aí. A autoridade se distingue do criminoso porque não comete crime, senão é criminoso também! Aí vira o Estado de Direito da barbárie (…) Estado de Direito tem que ser Estado de Direito. Não se combate crime com a prática de crime. É preciso moderação, que os procuradores calcem as sandálias da humildade”.
Acostumado a lidar com procuradores da República desde os anos 90, com muitos dos quais desenvolvi amizade, eu lamento que dentro do Ministério Público Federal, que sempre assumiu o seu papel constitucional de fiscal da lei, tenha hoje um grupo – pequeno, é verdade – que se destaque pela defesa de métodos que ferem a Constituição e o Estado de Direito, Pior ainda, o próprio juiz Sérgio Moro defendeu algo parecido na Câmara dos Deputados, mas naquela vez não se ouviu qualquer voz do STF criticá-lo.
Alerto para um comentário postado aqui no blog pelo leitor Ramirez Gonzaga, que certamente já é o que muitos começam a defender. Se acontecer, entendo que será um retrocesso, mas plenamente justificado aos olhos de uma parcela da sociedade, pela ação deste pequeno grupo que age sob o silêncio da maioria. Diz o leitor Gonzaga:
“Com todo respeito ao Ministério Público, vejo que os poderes investigatórios desse órgão deve ser revisto e seus membros devem se ocupar apenas com sua função acusatória. Esse negócio da Liga da Justiça formada entre um juiz, procuradores e policiais federais se mostrou perniciosa ao País”.
Silêncio sobre o grampo na cela – Não sei se a opinião de Mendes é compartilhada pelos outros dez ministros . Geralmente não é. Mas, ao que parece, o Supremo está despertando muito tarde para um problema que vem sendo apontado na Lava Jato há anos. Aqui neste blog, desde agosto de 2014. E não só pela questão dos vazamentos, mas também pelo uso de métodos heterodoxos adotados nas investigações que acabaram sendo validados, ainda que indiretamente, pelos tribunais superiores, inclusive o próprio STF.
Para citar um exemplo clássico, basta refazer uma pergunta muitas vezes repetida aqui: O que foi feito pela Polícia Federal – e pelo Ministério Público Federal, que deve exercer o controle externo do DPF – da sindicância sobre o grampo ilegal encontrado na cela da Alberto Youssef?
O resultado desta sindicância, lembre-se, foi prometida pelo corregedor do DPF, delegado Roberto Mario da Cunha Cordeiro, em ofício ao próprio juiz Moro, para o final de novembro de 2015 (veja ao lado), como noticiamos em novembro na reportagem Grampo da Lava Jato: aproxima-se a hora da verdade.
Passaram-se nove meses e ela não veio a público.E o pior, por todas as informações que se tem, ela está concluída e deverá atingir pesos pesados da Força Tarefa da Lava Jato. Mas não é tornada pública. Medo de serem obrigados a punir membros da Força Tarefa?
Afinal, como o agente da Polícia Federal Dalmey Werlang confessou, foi ele quem instalou o grampo a mando dos delegados Rosalvo Ferreira Franco, superintendente do DPF no Paraná, Igor Romário de Paulo, coordenador regional da Delegacia de Combate ao Crime Organizado (DRCOR) e Marcio Anselmo Adriano, que comandava as investigações na época.
Sindicância engavetada – É algo semelhante com o que aconteceu com a sindicância para apurar o grampo mandado instalar no fumódromo.
Desde agosto de 2015, na primeira reportagem nesse blog sobre a força tarefa de Curitiba –  Lava Jato revolve lamaçal na PF-PR – noticiamos que, através  do depoimento do Agente de Polícia Federal (APF) Dalmey Werlang, que o grampo no fumódromo partiu de uma ordem da delegadas Daniele Gossenheimer Rodrigues, chefe do Núcleo de Inteligência Policial (NIP) da Superintendência, coincidentemente, esposa do delegado Igor.
 A responsabilidade dela pela colocação do grampo foi confirmada pela Sindicância realizada, mas a corregedoria e a direção-geral do DPF decidiram que ela e Werlang só responderão a um Processo Administrativo Disciplinar (PAD), tal como informamos em Para o DPF, grampo ilegal na Superintendência do PR é transgressão disciplinar, Esqueceram que o uso de grampo ambiental sem autorização judicial é considerado crime?