Lucas Coradini – Mestre em Sociologia, Doutor em Ciência Política e Professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul
Muitas leituras ideologizadas sobre a PEC 241 têm transitado nas redes sociais, recheadas de simplificações e incorreções, disputando a narrativa de seu significado e projetando efeitos no cenário político e econômica do país nas próximas décadas. Demonstram, de início, a polaridade inerente às diferentes visões de estado presentes na política e na sociedade brasileira. Nem uma nem outra tese pode ser falseada sumariamente sem a compreensão de que representam, antes, a uma concepção política ou posicionamento de classe específico – por mais que se insista em negar que existam.
Sem a pretensão de afirmar se o projeto de emenda constitucional é “o remédio para os problemas do país” ou a “PEC do fim do mundo”, como iniciam a maior parte das análises, sugiro partir do problema objetivo: definir a premissa comum sobre a qual decorrem as diversas linhas argumentativas. Que seja: vivemos uma crise de arrecadação que inviabiliza a manutenção dos gastos públicos nos padrões atuais, o que, aliado ao cenário de recessão econômica, nos encaminha para o agravamento da dívida pública. Assim, precisamos voltar a crescer, gerar arrecadação e impedir o aumento do endividamento. Essa é uma premissa validada tanto por apoiadores quanto pelos críticos da PEC 241, ou pelo menos deveria ser.
O segundo ponto a ser definido – e discursivamente em disputa – é a origem do problema. Entender sua causa é um exercício necessário para não repetir os mesmos erros. Em regra, os defensores da PEC têm direcionado suas análises para os dados sobre o aumento dos gastos públicos, de forma isolada, culpando a política econômica do governo antecessor por um suposto de “inchaço” da máquina estatal. Outras vezes, colocado sobre o ombro do funcionalismo público o fardo do desajuste fiscal. O que tem sido questionado, uma vez que, proporcionalmente ao PIB, os gastos com a folha de pagamento do funcionalismo estão dentro de parâmetros normais e estáveis ao longo dos últimos anos. Ademais, a realidade mostra que há muito a avançar na prestação de serviços públicos, tanto em sua amplitude quanto na qualidade, o que demanda necessariamente investimentos. Um Estado que amplia a rede de prestação dos serviços públicos e desenvolve políticas de bem estar social tende a ter os seus gastos aumentados, naturalmente. E, ao fazê-lo, não exerce função outra senão a que a Constituição lhe confere. A disputa discursiva, nesse ponto, dá-se entre os que entendem desejável e necessário que o estado aja dessa maneira, para atingir níveis de desenvolvimento humano mais elevados e dar cumprimento ao preconizado na Constituição Federal de 1988, e aqueles que entendem que o Estado não deva exercer tal função, defendendo, por consequência, a reformulação da constituição – ou emenda.
Paradoxalmente, o governo que mais gerou arrecadação, superávit primário e reduziu a dívida pública do Brasil, foi exercido no período de maior investimento na área social e ampliação de serviços públicos. Basta verificar os dados da economia com Lula e Paloci, entre 2002 e 2010: recorde de 826 bilhões em arrecadações em 2010, índice 63,6% superior aos oito anos do governo FHC, e obtenção, pela primeira vez, de um volume de reservas superior ao montante da dívida pública. Mesmo período de criação de Universidades e Institutos Federais, de programas como o Mais Médicos e o Farmácia Popular, Bolsa Família, PRONASCI, Programas habitacionais subsidiados como o Minha Casa, Minha Vida, entre outras políticas que implicaram em elevados investimentos. Somente para a educação, o orçamento passou de 18 bilhões em 2002 para 112 bilhões em 2014, um aumento de 223%.
O fato é que o atual problema fiscal não tem relação alguma com o investimento na área social, mas se deve a dois fatores: aos aportes realizados a bancos públicos entre 2010 e 2015, para realizar empréstimos com juros menores que a inflação para pequenas e médias empresas, e as desonerações fiscais, que geraram perdas de mais de quatrocentos e cinquenta bilhões em arrecadações. A expectativa era que o crescimento econômico dessa conta disso, mas o comportamento dos mercados não correspondeu ao esperado. Diferentemente das políticas de renda e emprego, que colocam o dinheiro na mão do trabalhador e o faz “circular” através do estímulo ao consumo, aquecendo e girando a roda da economia, as vantagens concedidas para a indústria, bancos e ao mercado financeiro não produziram os efeitos desejados, não retornando na forma de investimento, empregos e impostos. Com a crise econômica internacional, a crise política no Brasil e a constituição de um cenário de instabilidade institucional, a retração dos investimentos foi inevitável, gerando desempregos e diminuindo ainda mais a arrecadação.
Sem adentrar na polaridade pró-PT ou anti-PT, tão presente nesse debate, vale lembrar que o atual Ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, é o mesmo homem de confiança do governo Lula que à frente do Banco Central reduziu as taxas de juros de 25% em 2003 para 10,5% em 2010. E, em matérias de gastos públicos, não há coelho para tirar da cartola: o que Meirelles traz agora como proposta é uma reedição do que o então ministro Joaquim Levy já vinha tentando fazer, uma política de austeridade ao modelo do novo gerencialismo público. A receita de Levy, um pouco mais clássica, baseava-se no aumento de impostos para melhorar a arrecadação e no corte de gastos – e é bom lembrar que o corte em programas sociais iniciou ainda no governo Dilma. Levy fracassou apenas por que os projetos de aumento de impostos não prosperaram no legislativo, restando ao governo somente os desgastes que os cortes em programas sociais geraram. A diferença entre Levy e Meirelles é que o primeiro queria uma recuperação rápida de arrecadação através dos impostos, enquanto o segundo aposta numa recuperação de longo prazo a partir da volta da confiança de investidores e abertura ao capital internacional, sobre a qual também não há garantias. Em comum, o corte de gastos. Nenhuma das soluções agrada e, nesse ponto, demonstraram que as diferenças nas políticas econômicas de Temer e Dilma são menores do que parecem.
Limitar os gatos públicos, sabidamente, não é suficiente para gerar superávit primário. É preciso voltar a crescer e aumentar a arrecadação. E aí reside uma fragilidade do argumento favorável à PEC: achar que a recuperação econômica é possível apenas reduzindo gastos públicos. Seria possível alguma forma de desenvolvimento econômico sem investimento em educação, pesquisa científica e desenvolvimento tecnológico? Seria possível reaquecer o mercado sem nenhuma indução por parte do Estado? Depende da forma de desenvolvimento desejável, e aqui reside outra divergência conceitual que revela, ao fundo, modelos de Estado subjacentes aos discursos pró e anti PEC. Um focado na elevação da escolaridade da população, na inserção qualificada dos jovens no mercado do trabalho, no desenvolvimento da ciência e da tecnologia, na distribuição de renda, nas políticas de valorização do salário mínimo e elevação do consumo. O outro, centrado na produção de commodities, abertura ao capital internacional, arrecadação através de concessões e privatizações, favorecimento dos setores empresariais e busca pela atração de investimentos à custa do redimensionamento do valor da mão de obra a níveis inferiores e afrouxamento das leis trabalhistas. O primeiro, que pode levar o país a outro nível de relação como o mercado global. O segundo, que o torna ainda mais dependente e vulnerável às oscilações do mercado externo.
A contenção dos gastos públicos é um imperativo irrefutável, um discurso que encontra eco na sociedade. Mas, se ao final de duas décadas – caso a PEC seja efetivada – os idosos brasileiros não tiverem acesso a um atendimento de saúde digno, ou nossos jovens não tiverem acesso à educação pública de qualidade, terá valido a pena o ajuste? Tendo a concordar com o historiador Leandro Karnal quando afirma que “não basta salvar o navio, tem que salvar também aos passageiros”, ou quando compara os efeitos da medida à “vitória de Pirro”, aquele que vence a guerra quando já não conta mais com seu exército. Há relativo consenso de que saúde e educação são áreas essenciais que não deveriam ser afetadas, e que um problema de legitimidade decorreria de um Estado incapaz de garantir tais serviços. Mas, da forma como é operado o orçamento público, sem a garantia dos mínimos constitucionais, estas áreas ficariam mais suscetíveis do que nunca à discricionariedade dos agentes políticos. E aí reside um grande problema.
Quem não queria ver uma classe política e um judiciário com menos privilégios? Quem não queria ver o fim dos super salários no serviço público, das polpudas verbas de gabinete, do auxílio paletó, auxílio moradia, apartamentos funcionais, motoristas, veículos oficiais, viagens internacionais, jantares com dinheiro público, entre outros descalabros? Quem não é favorável à diminuição dos milhares de CC’s que aparelham a máquina estatal? Pois nada disso mudará com a PEC. Se haverá um congelamento dos gastos na totalidade dos três poderes, continuarão sobre juízes e políticos a discricionariedade sobre o uso e ampliação de seus benefícios, e essa conta será paga necessariamente com os recursos que iriam para a saúde e educação. Ao menos, ficará cristalino o dano que causam à sociedade a cada privilégio mantido ou aditivado. O teto nos gastos poderia ter um efeito positivo, se contasse com o bom senso das altas castas do serviço público, mas o mais provável é que cortem dos hospitais e das escolas para a manutenção dos ganhos corporativos. Exemplo disso é que, ao mesmo tempo em que tramita a PEC 241, o Congresso Nacional negocia com o STF um aumento para seus magistrados, o que produzirá um impacto financeiro em cadeia nas carreiras com os salários mais elevados do funcionalismo público. Temos os magistrados e os políticos mais caros do mundo, uma contradição absurda.
Saúde e educação aparecem no centro das preocupações e dos debates, uma vez que encerram atividades essenciais do Estado que podem ser inviabilizadas pelo congelamento do orçamento por duas décadas. Em relação à educação, defensores da PEC afirmam que a pirâmide etária está se invertendo, e que a tendência demográfica é de redução do número de jovens nos próximos vinte anos, o que levaria a um aumento per capita do gasto educacional. Ao justificarem por esse prisma que a PEC não terá efeitos substanciais na área, acabam por revelar seus parâmetros de tolerância com os patamares atuais em que se encontra a educação brasileira, naturalizando os milhares de analfabetos, de jovens fora da escola, a elitização do ensino superior, a fragilidade da nossa produção científica e tecnológica, e o fato da ampla maioria dos professores do país não receberem o piso salarial nacional.
Ao mesmo tempo, esta tendência demográfica inutilmente utilizada para atenuar os efeitos da PEC na educação, aponta para o aumento da população idosa e, por consequência, da demanda por serviços de saúde e previdência social nos próximos anos. Nessa ótica, em vinte anos de gastos congelados, não há dúvida de que haverá uma diminuição da capacidade de atendimento da rede de saúde, afetando especialmente a população mais vulnerável que depende estritamente dos serviços públicos. Naturaliza-se também, assim, que os mais pobres possam não ter acesso a um atendimento digno de saúde no futuro.
Congelar gastos é amarrar investimentos, sufocar a possibilidade de expansão dos serviços em um país em que, hoje, estes não chegam a todos da forma universal como deveriam. Significa, de forma simplificada, nenhum professor a mais, nenhum médico a mais, nenhuma escola nova, nenhum hospital novo. Significa, em outras palavras, a manutenção da precariedade atual agravada pela degradação e sucateamento que os anos trazem.
Mas então, qual seria a solução do problema? Como aumentar a arrecadação sem prejudicar os serviços públicos prestados a maior parte da população? Uma resposta possível é o aumento de impostos. Mas não o aumento dos impostos sobre as classes baixa e média, que são as camadas que mais pagam impostos no Brasil, mas o aumento dos impostos sobre os super ricos, o 0,05% da população que, segundo dados do IBGE, ganha acima de 160 salários mínimos por mês. Esta pequena parcela da população possui um patrimônio de 1,2 trilhão, ou seja, cerca de 25% de toda a riqueza declarada pelos contribuintes no Brasil, e é a menos taxada no país. O imposto de renda no Brasil só é progressivo da classe baixa para a classe média, o que faz com que esses super ricos paguem apenas 6,51% de sua renda em impostos, enquanto um assalariado que ganha 5 mil por mês paga 27,5%. Isso é possível porque 65,8% dos rendimentos dessa elite são considerados isentos ou não tributáveis pela legislação brasileira, como ocorre com os dividendos e os lucros. Da mesma forma ocorre com os impostos de transmissão de grandes heranças, que aqui possui uma das menores taxações do mundo. E engana-se que acredita numa fuga em massa dos investidores a partir dessa taxação: os segmentos realmente produtivos não abandonariam um mercado de 200 milhões de consumidores tão facilmente.
O Brasil é o melhor lugar para enriquecer, ou melhor, para os ricos ficarem ainda mais ricos. E uma das formas de fazê-lo é emprestando dinheiro para o próprio governo através da compra dos títulos públicos, que pagam elevados juros. Mas afinal, quem são os credores do Brasil? Que dívida é essa que se coloca como prioridade em relação a investimentos e programas de promoção de bem estar social? Para ter uma ideia, as despesas com o pagamento da dívida pública (juros mais amortizações e refinanciamento) consumiram, somente no ano de 2015, a quantia de R$ 978 bilhões, o que corresponde a 45,11% do Orçamento Geral da União. No mesmo ano, para a saúde foram destinados apenas 3,98%, para a educação 3,73% e para assistência social 3,08% – apesar de todo alarde sobre os gastos pretensamente “excessivos” em programas sociais.
Assim, chegamos a uma terceira alternativa para a superação do atual quadro, para além do corte de gastos, e para além da taxação das camadas mais abastadas: rever a dívida pública brasileira. A auditora da Receita Federal, Maria Lucia Fatorelli, tem exaustivamente estudado e difundido essa ideia através do movimento Auditoria Cidadã da Dívida. Segundo Fatorelli, o “Sistema da Dívida” tem sido um dos espaços de operação de um modelo corrupto, e os estudos realizados têm comprovado que há muito tempo o endividamento público deixou de ser um mecanismo de financiamento do Estado e passou a ser um veículo de subtração de recursos orçamentários e dilapidação do patrimônio pela imposição contínua de privatização de áreas estratégicas como petróleo, portos, aeroportos, estradas, energia, saúde, educação, comunicações, entre outros. Segundo Fatorelli:
Nosso endividamento nasceu junto com a “independência”. Para o que o mundo financeiro reconhecesse nossa independência, herdamos uma dívida que Portugal havia contraído com a Inglaterra para brigar contra a nossa independência. O valor era 3,1 milhões de libras esterlinas – na época, muito dinheiro. Em 1931, quando Getúlio Vargas assumiu, ele questionou o fato de haver tantas cobranças sem os respectivos contratos. Ele determinou que houvesse uma auditoria. O resultado foi impressionante: apenas 40% da dívida estava documentada. Não existia controle dos pagamentos, nem das remessas ao exterior. Isso permitiu o início de uma revisão e certamente ajudou na implantação dos direitos sociais garantidos naquele período. O período atual iniciou na década de 1970, quando a dívida externa era de US$ 5 bilhões. Durante essa década, esse valor se multiplicou por dez. Era algo totalmente sem transparência, e o que se dizia era que o crescimento da dívida ocorreu para financiar o “milagre econômico”. Em 2010, durante a CPI da Dívida, pedimos os contratos referentes à década de 1970. Apenas 16% da dívida estava explicada em contratos. Há uma grande suspeita de que boa parte desses 84% restantes tenha sido recursos que vieram justamente para financiar a ditadura. Imaginávamos que a maior parte dessa dívida era com o FMI. Mas, durante a CPI, fizemos um gráfico que mostra a natureza desses valores, de 1970 até 1994. O principal credor não era o FMI, mas, sim, os bancos privados internacionais. (Entrevista ao Sul 21, 16/11/2012).
Além de taxar as grandes fortunas, de criar impostos sobre a transmissão de grandes heranças e rever ou auditar a dívida pública, há ainda outras formas de melhorar a arrecadação sem precisar “cortar na carne”. Uma delas é combater a sonegação fiscal e repatriar o dinheiro sonegado. Somente entre os envolvidos na operação Zelotes – que inclui a gigante Rede Globo – estima-se que 8 bilhões em impostos tenham sido sonegados e remetidos para fora do país. Outra forma de ajustar as contas é acabar com o fundo partidário, que é a destinação de recursos do orçamento para partidos políticos, e que tem sido a razão para a existência de 35 partidos políticos no Brasil, hoje consumindo mais de 800 milhões anuais. A diminuição dos gastos em publicidade do governo também seria uma medida razoável em tempos de crise, mas contraditoriamente esse gasto aumentou recentemente. Apenas entre maio e agosto desse ano a Globo recebeu 15,8 milhões de repasses federais, 24% a mais que no ano anterior. No mesmo período, o grupo Abril passou a receber 624% a mais do governo, e o grupo Bandeirantes 1.129%, segundo dados da própria SECOM, Secretaria de Comunicação do Governo Federal.
Enfim, há pelo menos dois caminhos possíveis para sair da crise: cortar da população ou cortar dos ricos. Nenhuma das alternativas é simples. A primeira poderá levar ao clamor popular, à insatisfação generalizada e agravar a impopularidade do governo. A segunda mexerá com interesses corporativos de grupos poderosos, formadores de opinião, cujo lobby no congresso é substancial. Grupos que veem no sucateamento da saúde e educação uma oportunidade de ampliar a oferta de serviços privados, por exemplo. O esforço do governo em aprovar a PEC 241 nos termos em que foi redigida demonstra a preferência em se indispor com o primeiro grupo, ao passo que o segundo é capaz de gerar mais instabilidade política e não poupará esforços para enfrentar àqueles que se opõem a seus interesses. Ao fim, o governo Temer e os 366 congressistas favoráveis à PEC cumprem a agenda com a qual se comprometeram quando se aliaram a estes grupos, braços auxiliares no processo de impeachment e, por isso, e apesar de toda discussão suscitada na sociedade, fatalmente deverão aprovar a emenda.
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Sérgio da Costa Franco: “Porto Alegre não se rendeu”
Elmar Bones

Essa história ficou encoberta, até que o historiador Sérgio da Costa Franco encontrou nos arquivos do Instituto Histórico um calhamaço de mais de 200 páginas manuscritas, que lhe tomou seis meses de trabalho. “Foi uma trabalheira”, diz ele, lembrando o paciente esforço que teve de fazer para decifrar os garranchos de um certo Queirós, autor de um diário inédito sobre o período em que Porto Alegre esteve sitiada pelos farroupilhas.
A descoberta motivou‑o a enfrentar um desafio do qual ele tinha desistido por “fastio” da Revolução Farroupilha. Partindo das informações do diário, ele retomou suas pesquisas para contar o que foram os 1.231 dias em que a cidade viveu sob a ameaça de escassez e abaixo de bombardeios.
Franco recebeu a reportagem do JÁ para esta entrevista exclusiva no dia 13 de julho de 2016.
JÁ – O senhor voltou a estudar a Revolução Farroupilha …
Eu me aproximei novamente do assunto por causa da história de Porto Alegre. O sítio farroupilha à cidade foi um episódio muito importante, influiu no seu desenvolvimento, causou uma paralisia dos negócios durante quatro anos, então sob este aspecto é que interessou. Vi que tinha muita coisa ainda inexplorada… e o assunto tinha quase virado um tabu.
Como foi o cerco?
O sítio de Porto Alegre nunca mereceu maior atenção dos historiadores regionais. Este fato é, de certo modo, compreensível. Toda a historiografia do ciclo farroupilha é marcada pela devoção reverencial aos rebeldes, senão por sua apaixonada mitificação. Dessa fatal parcialidade provavelmente nunca se livrará a bibliografia histórica rio-grandense, por mais revisões que se faça.
O sítio foi um fracasso….
Foi um fracasso militar dos farroupilhas. Depois de perderem a cidade na reação de 15 de junho de 1836, os rebeldes nunca mais conseguiram retomá-la. Mesmo com forte superioridade numérica, submetendo os moradores da capital à fome e a restrições diversas, jamais conseguiram dominar a sede provincial. Por isso, a cidade ganhou o título honorífico de “leal e valorosa”, outorgado pelo governo Imperial em 1841.
A omissão do cerco então foi deliberada?
Não soaria simpático aos porto-alegrenses o relato dos reiterados canhonaços e bombardeios com que as forças de Bento Gonçalves, Souza Netto, Bento Manoel e David Canabarro alvejaram repetidamente a cidade, intranqüilizando e atemorizando sua população.
Que efeitos teve sobre a cidade?
Freou a expansão da cidade durante vários anos. Equipamentos e serviços precisaram conter-se dentro do estreito perímetro das fortificações e trincheiras, e a população rural da periferia viveu submetida a repetidas mudanças de senhores sob a angústia das requisições forçadas, das violências pessoais e dos saques. A Câmara Municipal tinha vários portugueses e foi engraçado. Eles deram no pé, porque os farroupilhas tomaram a cidade e esses vereadores comerciantes portugueses se afastaram com as alegações mais estranhas. Por exemplo, o Lopo Gonçalves, fundador da Associação Comercial de Porto Alegre, figura importante da cidade, pediu uma licença por três meses para ir aos banhos de mar…. e se mandou em inícios de outubro!
Por que eles mantiveram o cerco se era inútil?
Taticamente, a manutenção do sítio pelos rebeldes teve apenas a eficácia de manter numerosas forças legalistas retidas na capital, privando-as de tentar o controle militar no interior da província. O sítio de Porto Alegre não ilustra os feitos guerreiros dos Bentos e dos Netos, nem os irmana à memória sentimental da capital gaúcha. Incoerente, a cidade ergueu monumentos e votou homenagens aos sitiadores que a maltrataram, e esqueceu os soldados, marinheiros e paisanos voluntários que garantiram sua integridade em quatro anos de lutas.
Esse é o tema de seu livro?
Sim. Ele foi também motivado pela recente descoberta de um esquecido diário manuscrito, no qual se narram, passo a passo, as peripécias do sítio entre 1837 e 1838. Tal documento, inédito, somado a outros já divulgados há muito tempo, patenteia o quanto foi dramático para a população citadina o cerco que lhe foi imposto, com algumas interrupções, desde junho de 1836 a dezembro de 1840.
Onde estava esse diário?
Eu o encontrei no Instituto Histórico, até copiei à máquina, me deu um trabalho enorme, porque era um manuscrito de difícil leitura. Interessante que a primeira parte desse manuscrito, o Moacyr Flores tinha encontrado e publicou num livrinho, uns anos atrás. Mas a parte que ele encontrou era pequena. O que eu encontrei é a continuação. Me dá a impressão de que o autor tinha um objetivo jornalístico, ele devia remeter para o Rio de Janeiro, provavelmente porque, ao fim de alguns capítulos, ele fala assim: “Seguiu pela sumaca tal”.
Quem era o autor do diário?
Era um português que se chamava Barreto Queirós. Ele só assina Queirós. O Moacyr dá como certo esse nome, e na investigação que fez diz que o sujeito era secretário do Cônsul da Sardenha, aqui. O que se identifica nele é que era português e hiper-reacionário, talvez partidário de Dom Miguel, porque é contra as Constituições, antiliberal. Mas ele registra o dia-a-dia: hoje, chegou o cara vendendo galinha, charque, então é interessante do ponto de vista de um relato do cotidiano.
Como era esse ambiente?
Porto Alegre ficou dividida. Os legalistas reconquistaram a cidade, mas havia o grupo dos partidários do Araújo Ribeiro, tio‑bisavô do deputado Paulo Odone, de tendência liberal, inclinado à negociação, e outro grupo radical, dos portugueses, que era contrário. Entre eles se digladiavam violentamente pela imprensa, e, no clima da cidade sitiada, as brigas eram ferozes. O português do diário era dos mais reacionários e suas observações são constantes. Eu tinha pensado em publicar, mas a copidescagem seria tão grande que não valia a pena. Depois, ele enchia muita linguiça, era linguagem de jornalista mesmo.
Com que freqüência ele escrevia?
Todos os dias. Mandava quando havia barco para o Rio, mas escrevia diariamente, textos enormes, até demais, descrevia o dia‑a‑dia e acrescentava divagações filosóficas. Eu entreguei a cópia ao Instituto Histórico, deu mais de 200 páginas datilografadas. O original era uma maçaroca no meio de outros documentos. Há outro diário, que foi publicado em 1885 ou 86, de um anônimo. Na verdade, era um advogado, Fagundes, que foi provedor da Santa Casa e deputado provincial. Ele escreveu sob o anonimato, mas era um diário dos anos 39 e 40, do final do sítio. Então, com o diário do Queirós, que se refere a 37 e 38, mais os documentos militares, a troca de correspondência e as atas da Câmara Municipal sobre problemas de desabastecimento e especulação de preços, com esse conjunto consegui fazer o livro.
Ficou esclarecido o local das fortificações?
As fortificações, sabe-se que eram só trincheiras cavadas, não havia construções de alvenaria, nada, salvo alguns baluartes que fizeram para botar canhões. Também havia os chamados “pontos” artilhados, que eram 16, um pouco mais fortificados, cada um tinha uns dois canhões.
O sítio chegou a perturbar a vida da cidade?
Ah, sim! A comunicação toda era via fluvial. O que garantia o abastecimento eram os lanchões que iam para São Leopoldo, isso quando os farrapos não estavam dominando aquela região, daí não passava nada. No mais, eram operações de guerrilha, na direção do Guaíba.
Como era a cidade dessa época?
Em Porto Alegre, viviam funcionários e comerciantes, principalmente. Deviam ser uns 10 mil na época da guerrilha, mas não era tão pouca gente. E dois mil homens foram defender as trincheiras, paisanos que não hesitaram…

Sobre as causas da Revolução, qual é a sua conclusão?
Bom, o primeiro manifesto dos farroupilhas não fala absolutamente em qualquer problema econômico. Não há nada. Só fala no problema político, nos presidentes estranhos à província, só isso. Depois, quando houve a proclamação da Independência, no manifesto de 1838, três anos depois, vem a justificativa econômica, já para legitimar a República. Aquilo sempre me chamou a atenção, a argumentação a posteriori. Eles queriam mesmo era o poder. Logo após a Guerra da Cisplatina, Bento Gonçalves, Bento Manoel e outros haviam sido generais do Exército brasileiro, tinham sido mal-sucedidos… Perderam a guerra, perderam o Uruguai, para eles foi um revés enorme. Eles eram gente da fronteira, acostumados a negociar com a Cisplatina, a ir e vir. Aquilo foi uma forte causa de inconformidade. É uma das causas mais quentes da Revolução Farroupilha, a derrota da Cisplatina.
Foi deflagrada por razões políticas, então?
Sim. A meu ver, no início foram razões estritamente políticas. Depois, então, surge aquela fundamentação toda para justificar a declaração da independência. Aliás, quem faz aquilo, o manifesto todo é do Domingos José de Almeida, que de gaúcho não tinha nada, era mineiro. A Revolução nunca contou com o apoio de Porto Alegre, nem de Rio Grande ou de São José do Norte, as praças do litoral ligadas ao comércio. E o comércio não tinha interesse nenhum naquilo. Os farrapos estavam em completa impopularidade, tanto que meia dúzia de oficiais que estavam presos se organizaram e reconquistaram a cidade. Enfrentaram o cerco dos farrapos e os dominaram, com apenas 200 homens contra mais de 500. Aguentaram porque tinham o apoio popular. E, no final, vieram os populares para as trincheiras. Nisso também entrava o medo dos escravos, o exército dos farroupilhas era puro negro. No diário desse Queirós, ele só fala nisso “os negrinhos voltaram aí, olha a turma do São Benedito”, era tudo negro. Quando eles davam cifras de prisões, elas eram assim: 20 negros e cinco brancos. Os soldados e os lanceiros eram os escravos dos legalistas, que haviam sido recrutados com promessas de liberdade. Claro que a população da cidade tinha medo disso: imagine um exército de ex-escravos.
O que fica, hoje, dessa Revolução?
Agora é um negócio que se incorporou ao imaginário, uma porção de mitos se acumulou ao longo do tempo. A Revolução Farroupilha, na verdade, foi uma divisão dentro da sociedade. A disputa pelo poder, não era mais do que isso. Eu tenho estudado muito a história de Jaguarão, que é a minha terra, e descubro coisas engraçadas… O chefe farroupilha e o chefe legalista da cidade eram vizinhos, moravam no mesmo quarteirão. Os pátios das casas se encontravam. Eles até morreram na mesma época e pude ver o inventário dos dois. Era semelhante, os dois cheios de escravos.
A Câmara Municipal de Jaguarão foi a primeira a apoiar a República, logo que proclamada. Tinha um vereador que era irmão de Bento Gonçalves, e outros parentes, então a Câmara solidarizou-se com a República Rio-grandense. Quando de novo se reúnem, em 1845, a mesma Câmara que tinha prestado solidariedade ao Bento Gonçalves e à República Rio-grandense saúda o Duque de Caxias e agradece a pacificação, com um caloroso elogio à Caxias. Em seguida, realiza-se a eleição e vê-se o seguinte: os que foram declaradamente farrapos tiveram menos votos e os eleitos são gente da nova geração, que estavam aparecendo naquele momento.
Sobre o suposto acordo do Canabarro com Caxias, qual a sua versão? A carta forjada seria uma manobra de contra-informação?
Não sei. Mas que os escravos vêm a ser uma pedra no sapato dos Farrapos, isto sim. Eram. Eles tinham a promessa de liberdade e o acordo não saía por isso. Quer dizer, não é fora de propósito que os Canabarro resolvessem sacrificar os negrinhos…
Iam buscar os escravos dos adversários para lutar nas suas fileiras em troca de liberdade, mas mantinham os seus.
Chamavam os escravos dos adversários, sim. A Constituição Farroupilha não aboliu a escravatura, mesmo vindo depois da uruguaia, que aboliu.
Mauro Santayana: O Brasil e o perigoso jogo da História
MAURO SANTAYANA
RBA – (Versão estendida, sem redução para versão impressa) – Embora muita gente não o veja assim, o afastamento definitivo de Dilma Roussef da Presidência da República, em votação do Senado, por 61 a 20 votos, no final de agosto, é apenas mais uma etapa de um processo e de um embate muito mais sofisticado e complexo, em que está em jogo o controle do país nos próximos anos.
Desde que chegou ao poder, em 2003, o PT conseguiu a extraordinária proeza de fazer tudo errado, fazendo, ao mesmo tempo, paradoxalmente, quase tudo certo.
Livrou o país da dependência externa, pagando a dívida com o FMI, e acumulando 370 bilhões de dólares em reservas internacionais, que transformaram nosso país, de uma nação que passava o penico quando por aqui chegavam missões do Fundo Monetário Internacional, no que é, hoje – procurem por mayor treasuries holders no Google – o quarto maior credor individual externo dos Estados Unidos.
E o fez, ao contrário do que dizem críticos mendazes, sem aumentar a dívida pública.
A Bruta, em 2002, era de 80% e hoje não chega a 70%.
A Líquida era, em 2002, de aproximadamente 60% e hoje está por volta de 35%.
Mas isso não veio ao caso.
Ajudou a criar milhões de empregos, fez milhões de casas populares, criou o Pronatec, o Ciências Sem Fronteiras e o FIES, fez dezenas de universidades e escolas técnicas federais e promoveu extraordinários avanços sociais.
Mas isso não veio ao caso.
Voltou a produzir e a construir, depois de décadas de estagnação e inatividade, navios, ferrovias – vide aí a Norte-Sul, que já chegou a Anápolis – gigantescas usinas hidrelétricas (Belo Monte é a terceira maior do mundo) plataformas e refinarias de petróleo, mísseis ar-ar e de saturação, tanques, belonaves, submarinos, rifles de assalto, multiplicou o valor do salário mínimo e da renda per capita em dólares.
Mas isso não veio ao caso.
Porque o Partido dos Trabalhadores foi extraordinariamente incompetente em explicar, para a opinião pública, o que fez ou o que estava fazendo.
Se tinha um projeto para o país, e que medidas faziam, coordenadamente, na economia, nas relações exteriores, na infraestrutura e na defesa, parte desse projeto.
Em vez de “bandeiras” nacionais, como a do fortalecimento do país no embate geopolítico com outras nações, que poderiam ter “amarrado” e explicado a criação do BRICS, os investimentos da Petrobras no pré-sal, a política para a África e a América Latina do BNDES, o rearmamento das Forças Armadas, os investimentos em educação e cultura, em um mesmo discurso, o PT limitou-se a investir em conceitos superficiais e taticamente frágeis, como, indiretamente, o do mero crescimento econômico, fachada para as obras do PAC.
Na comunicação, o PT confiou mais na empatia do que na informação.
Mais na intuição, do que no planejamento.
Chamou, para estabelecer sua linha de comunicação, “marqueteiros” sem nenhuma afinidade com as causas defendidas pelo partido, e sem maior motivação do que a de acumular fortunas, que se dedicaram a produzir mensagens açucaradas, estabelecidas segundo uma estratégia eventual, superficial, voltadas não para um esforço permanente de fortalecimento institucional da legenda e de seu suposto projeto de nação, mas apenas para alcançar resultados eleitorais sazonais.
O Partido dos Trabalhadores teve mais de uma década para explicar, didaticamente, à população, as vantagens da Democracia, seus defeitos e qualidades, e sua relação de custo-benefício para os povos e as nações.
Não o fez.
Teve o mesmo tempo para estabelecer, institucionalmente, uma linha de comunicação, que explicasse, primeiro, a que tinha vindo, e os avanços e conquistas que estava obtendo para o país.
Como, por exemplo, a multiplicação do PIB em mais de quatro vezes, em dólar, desde o governo FHC – trágicos oito anos em que, segundo o Banco Mundial, o PIB e a renda per capita em dólares andaram para trás – que foram simplesmente ignorados.
Poderia ter divulgado, também, os 79 bilhões de dólares de Investimento Estrangeiro Direto dos últimos 12 meses, ou o aumento do superavit no comércio exterior, ou o fato de o real ter sido a moeda que mais se valorizou este ano no mundo, ou o crescimento da valorização do Bovespa desde o início de 2016, como exemplos de que o diabo não estava tão feio quanto parecia.
Mas também não o fez.
Sequer em seu discurso de defesa ao Senado – que deveria ter sido usado também para fazer uma análise do legado do PT para o país – Dilma Roussef tocou nestes números, para negar a situação de descalabro nacional imputada de forma permanente ao Partido dos Trabalhadores pela oposição, os internautas de direita e parte da mídia mais manipuladora e venal.
O PT dividiu-se, também, quando não deveria, e não estabeleceu uma estratégia clara, de longo prazo, que pudesse manter em andamento o projeto – de certa forma intuitivo – que pretendia implementar para o país.
O partido e suas lideranças foram reiteradamente advertidos de que ocorreria no Brasil o que aconteceu no Paraguai com Lugo – a presença aqui da mesma embaixadora norte-americana do golpe paraguaio era claramente indicativa disso.
De nada adiantou.
De que era preciso estabelecer uma defesa competente do governo e de seu projeto de país na internet – cujos principais portais foram desde 2013 praticamente abandonados à direita e à extrema-direita enquanto a esquerda, sem energia para se mobilizar, se recolhia ao monólogo, à vitimização e à lamentação vazia em grupos fechados e páginas do Facebook.
De nada adiantou.
Não se deu combate às excrescências que sobraram do governo Fernando Henrique, justamente no campo da corrupção, com a investigação de uma infinidade de escândalos anteriores, que poderia ter levado à cadeia bandidos antigos como os envolvidos agora, por indicação também de outros partidos, nos problemas da Petrobras.
E erros táticos imperdoáveis – não é possível que personagens como Dilma e Lindbergh continuem defendendo a Operação Lava-Jato, de público, em pleno julgamento do impeachment, quando essa operação parcial e seletiva foi justamente o principal fator na derrubada da Presidente da República.
Sob o mote de um republicanismo “inclusivo”, mas cego, criou-se um vasto ofidário, mostrando, mais uma vez, que o inferno – o próprio, não o dos outros – pode estar cheio de boas intenções.
Desse processo, nasceram uma nova classe média e uma plutocracia egoístas, conservadoras e “meritocráticas”, paridas no bojo da expansão econômica e do “aperfeiçoamento” administrativo, rapidamente entregues, devido à incompetência estratégica à qual nos referimos antes, de mão beijada, para adoção institucional pela direita.
Ampliaram-se a autonomia, o poder e as contratações do Ministério Público e da Polícia Federal, medidas elogiáveis, que poderiam em princípio funcionar muito bem em um país verdadeiramente democrático, mas que, no Brasil da desigualdade e da manipulação midiática, levaram à criação de uma nova casta – majoritariamente conservadora – de funcionários públicos educados em universidades privadas – também ideologicamente alinhadas com a direita – com financiamento do FIES e em cursinhos para concurseiros, que não tem nenhuma visão real do que é o país, a República ou a História, e acham – ao lado de jovens juízes – que devem mandar na Nação no lugar dos “políticos” e do povo que os elege.
Como consequência disso, há, hoje, uma batalha jurídica que está sendo travada, principalmente, no âmbito do Congresso Nacional, voltada para a aprovação de leis fascistas – disfarçadas, como sempre ocorre, historicamente, sob a bandeira da anti-corrupção, que, com a desculpa de combater a impunidade – em um país em que dezenas de milhares de presos, em alguns estados, a maioria deles, se encontra detido em condições animalescas sem julgamento ou acesso a advogado – pretende alterar a legislação e o código penal para restringir o direito à ampla defesa consubstanciado na Constituição, no sentido de se permitir a admissibilidade de provas ilícitas, de se restringir a possibilidade de se recorrer em liberdade, e de conspurcar os sagrados e civilizados princípios de que o ônus da prova cabe a quem está acusando e de que todo ser humano será considerado inocente até que seja efetiva e inequivocamente provada a sua culpa.
Batalha voltada, também, para expandir o poder corporativo dessa mesma plutocracia e seus muitos privilégios.
Enquanto isso, aguerrida, organizada, fartamente financiada por fontes brasileiras e do exterior, a direita – “apolítica”, “apartidiária”, fascista, violenta, hipócrita – deu, desde o início do processo de derrubada do PT do governo, um “show” de mobilização.
Colocou milhões de pessoas nas ruas.
E estabeleceu seu domínio sobre os espaços de comentários dos grandes portais e redes sociais – a imensa maioria das notícias já eram, desde 2013 pelo menos, contra o governo do PT, em um verdadeiro massacre midiático promovido pelos grandes órgãos de comunicação privados – estabelecendo uma espécie de discurso único que, embora baseado em premissas e paradigmas absolumente falsos, se impôs como sagrada verdade para boa parte da população.
Entre as principais lições dos últimos anos, vai ficar a de que a História é um perigoso jogo que não permite a presença de amadores.
Enganam-se aqueles que acham que o confronto expõe apenas a direita e a esquerda, ou o PT e o PSDB – que agora se assenhoreou do PMDB e dos partidos do baixo clero.
Muito mais grave é a guerra que se desenha – e que já começou, não se iludam – entre aqueles que atacam a política, os “políticos”, a democracia e o presidencialismo de coalizão – e aqueles que, por conveniência ou idealismo, serão chamados a mobilizar-se para defendê-los daqui até 2018 e além.
O futuro da República e da Nação será definido por esse embate.
E é o conjunto de erros e circunstâncias que vivemos até agora, e o que faremos a partir de agora, que poderá levar, ou não, para o Palácio do Planalto e o Parlamento, um governo fascista e autoritário em 2019.
Os opositores do PT tiveram com o processo de afastamento de Dilma, iniciado ainda em 2013, à época da Copa do Mundo, uma vitória de Pirro.
A judicialização da política, a ascensão da Antipolítica e de uma plutocracia que acredita, piamente, que não precisa de votos, nem de maior legitimação do que sua condição de concursada para “consertar” o país e punir vereadores, prefeitos, deputados, senadores, governadores, Presidentes da República, em defesa de “homens de bem” que desfilam com as cores da bandeira e com uniformes negros de inspiração nazista, ajudará a sepultar, no lugar de aperfeiçoar, o regime presidencialista anteriormente vigente, e introduzirá um novo elemento, ilegítimo e espúrio, no universo político brasileiro, transformando-se em permanente ameaça para o funcionamento e a essência da Democracia.
Infelizmente, para o país e para a República, a permanência de Dilma no poder tornou-se, devido à irresponsabilidade da mídia e da oposição – vide as pautas bomba do ano passado – ao sucesso da estratégia de fabricação do consentimento levada a cabo pela direita e à incompetência política do Partido dos Trabalhadores – de tal forma insustentável, que, se ela voltasse, caminharíamos para uma situação de confronto em que o fascismo – como ocorreu em 1964, no Brasil, e, mais tarde, no Chile e na Argentina – ficaria – como já está ficando, de fato – com todas as armas, e a esquerda, com todas as vítimas.
Nações e pessoas precisam aprender que, às vezes, é preciso saber dar um passo para trás para depois tentar avançar de novo.
É preciso resistir, mas com um projeto claro para o país.
A corajosa defesa do governo Dilma por parte de grandes lideranças da agricultura e da indústria brasileira, como os senadores Kátia Abreu, ex-Presidente da Confederação Nacional da Agricultura, e Armando Monteiro, ex-Presidente da Confederação Nacional da Indústria, mostram que não é impossível sonhar com uma aliança que una empresários e trabalhadores nacionalistas em torno de um projeto vigoroso e coordenado de desenvolvimento, que possa promover o fortalecimento do país, do ponto de vista econômico, militar e geopolítico – é preciso preservar e concluir os programas concebidos e iniciados nos últimos anos, como o dos caças Gripen NG BR, o do submarino atômico nacional, o do cargueiro multipropósito KC-390, o dos tanques leves Guarani, o projeto de enriquecimento de urânio da Marinha – e evitar, ao mesmo tempo, a abjeta entrega de nossas riquezas, como os principais poços do pré-sal, já descobertos, desenvolvidos e produzindo, aos estrangeiros (até mesmo a estatais estrangeiras, como estão defendendo, em absurda contradição, parte de nossos privatistas de plantão).
A costura de uma aliança que evite a subordinação e o caos e a transformação do país em uma nação fascista, na prática, em pouco mais de dois anos, deveria ser, daqui pra frente, a primeira missão de todo cidadão brasileiro – ou ao menos daqueles que tenham um mínimo de consciência e de informação – neste país assolado pelo ódio e pela mentira, a hipocrisia e a ignorância.
A divisão da Nação, a crescente radicalização e o isolamento antidemocrático das forças de esquerda – que devem combater esse isolamento também internamente e rapidamente se organizar sob outras legendas e outras condições – a fratura da sociedade nacional; a desqualificação da política e da democracia; só interessam àqueles que pretendem consolidar seu domínio sobre o nosso país, evitando que o Brasil fortaleça sua soberania e a sua sociedade, em todos os aspectos, e que venha a ocupar o lugar que lhe cabe no mundo, como quinta maior nação do planeta em população e território.
É preciso costurar uma ampla aliança nacional, que parta, primeiramente, do centro nacionalista – se não existir, é preciso criar-se um – suprapartidária, politicamente includente, equilibrada e conciliatória, que una militares nacionalistas da reserva – e eles existem, vide o Almirante Othon, por exemplo – empresários como Armando Monteiro e Kátia Abreu, técnicos e engenheiros desenvolvimentistas, grandes empresas de capital majoritariamente nacional e os trabalhadores, começando pelos de grandes estatais como a Petrobras, em torno de um projeto que possa evitar a descaracterização e a destruição da Democracia, o estupro das liberdades democráticas e dos direitos individuais, o pandemônio político e institucional e a “fascistização” do país, com a entrega de nossas riquezas e de nosso futuro aos ditames internacionais.
Vamos fazê-lo?
Disputa local decidiu os rumos da revolução
No local onde Neto fundou a República Rio-grandense, no “Campo dos Menezes”, no atual município de Candiota, foi colocado um marco de concepção positivista, em 1935, como parte das comemorações do Centenário da Revolução Farroupilha.
Na placa está escrito: “Neste local em 11 de setembro de 1836, travou-se a batalha do Seival e foi proclamada a República de Piratini”.
Um reparo: a expressão “República de Piratini” foi o rótulo pejorativo que os inimigos aplicaram para diminuir o significado da separação – Piratini era um lugarejo perdido no interior da Província. Neto proclamou a República Rio-grandense
Foram os propagandistas republicanos meio século depois que a adotaram a “República de Piratini” porque se coadunava com as “pequenas pátrias” de Augusto Comte.
Outro detalhe. Ali onde está o marco se deu uma batalha, não entre duas nações, mas entre dois caudilhos, dois coronéis da Guarda Nacional, que disputavam o poder na região de Bagé.
O coronel João da Silva Tavares foi o único comandante da Guarda Nacional que permaneceu fiel ao Império. Era compadre de Bento Gonçalves e foi convidado. Não aceitou o convite para entrar na conspiração. Uma das razões era sua rivalidade com Neto, em Bagé.
Por isso, foi um dos primeiros a pegar em armas em defesa das posições imperiais. Tavares impôs a primeira derrota aos farrapos, menos de um mês depois da tomada de Porto Alegre. Mas com o avanço da rebelião por toda a província ele ficou isolado e teve que emigrar.
A revolução ainda não completara um ano, quando Neto recebe sinais de que Tavares está de volta para retomar Bagé. Tavares faz alto junto ao Arroio Candiota. Netto sai ao seu encontro. Tavares posiciona sua tropa no alto da coxilha, Neto posta-se no baixio, depois de atravessar o arroio Seival.

Segundo o historiador Othelo Rosa, Tavares tinha 560 homens e Neto, 430. Depois da primeira carga de fogo, as duas forças se atracam de lança e espada. A vanguarda dos imperiais leva vantagem no primeiro embate. Mas um acidente desorganiza sua ação: quebra-se o freio do cavalo de Tavares, o animal dispara e causa enorme confusão entre os que lutavam. Refeitos, os homens ainda tentam reagir, mas o oficial que comanda o ataque é ferido na coxa, cai do cavalo e sua gente se dispersa.
“Silva Tavares completamente destroçado deixa no campo 180 mortos, 63 feridos e mais de 100 prisioneiros”, escreve Othelo Rosa. Não menciona as perdas de Neto. “Foram mínimas”, segundo Araripe, um autor insuspeito.
A vitória na “Batalha do Seival” foi tão cabal , tão entusiasmante que Neto, instigado pelos oficiais exaltados do seu exército, toma uma decisão gravíssima, no dia seguinte. Ainda no acampamento e diante da tropa perfilada, ele proclama a República Rio-grandense, separada do Brasil.
“Camaradas, nós que compomos a Primeira Brigada do exército liberal, devemos ser os primeiros a proclamar, como proclamamos, a independência dessa província, a qual fica desligada das demais do Império e forma um Estado livre e independente, com o título de República Riograndense, e cujo manifesto às nações civilizadas se fará oportunamente. Camaradas! Gritemos pela primeira vez: “Viva a República Rio-grandense! Viva a Independência! Viva o exército republicano riograndense”
Foi um gesto tomado num local isolado, perante algumas centenas de soldados, num tempo em que as notícias andavam a cavalo. Mas foi suficiente para sustentar a guerra por mais nove anos.
Os marajás do Judiciário, protagonistas do impeachment
André Barrocal – Jornalista
2016 ou O golpe de mil faces – alguns ângulos de abordagem e princípios teóricos
Walter Morales Aragão – Prof. universitário, doutor em planejamento urbano e regional
“Um alaúde, uma telenovela, um trem.
Uma arara. É ao mesmo tempo bela e
banguela a Guanabara.”
VELOSO, Caetano. In: O estrangeiro.
1. Abordagem a partir de uma teoria das elites. Variantes no saber proletário: “brasa pouca, minha sardinha primeiro”; “a corda rebenta no lado mais fraco”; “quem pode mais, chora menos”.
Brasil, século XXI. Um dos chamados “países-baleia”, os de grande população, território e recursos. Quinta maior população e quinto maior território do mundo. Uma das dez maiores economias. Detentor da maior extensão de área agricultável do planeta.
Cenário: 1ª agudização recente da crise capitalista iniciada nos anos 60 do século XX – no ano de 2007, quando dois milhões de estadunidenses perdem suas casas no estouro da bolha especulativa com hipotecas e, em poucas semanas, os bancos centrais europeus e dos EUA se obrigam a injetar cerca de quatro trilhões de dólares de dinheiro público para resgatar o mercado falido. Corrida a ativos seguros: terras agrícolas e estoques alimentares disparam, exportações de grãos são proibidas em diversos países – é a Guerra da Comida, de 2008, estopim das revoltas iniciais da Primavera Árabe. Agitações populares contra a carestia no Paquistão, Vietnã, Egito, Haiti, Argélia e Madagascar. Nesta ilha a Hiunday adquire dois milhões de hectares para produção de biocombustíveis. Bancos alemães e companhias chinesas compram logo 80 milhões de hectares, obrigando Uruguai, Bolívia, Paraguai e países africanos a legislar sobre aquisições por estrangeiros.
O governo brasileiro, nucleado no PT, protege o país e a população da fúria externa. Ativa um pacote de medidas anti-ciclícas, usando reservas e órgãos estatais – se fossem privados seriam inúteis, em princípio, para tal finalidade. A AGU e o Incra reforçam o controle sobre aquisição de terras por estrangeiros. A Petrobrás segura os preços do gás de cozinha e dos combustíveis por quase quatro anos. São mantidos os programas de renda mínima, mantendo a demanda interna aquecida. Os agricultores familiares e assentamentos ganham estímulo para a produção de alimentos ao mercado interno. Os efeitos deste pico da crise são atenuados.
Cenário: 2ª agudização recente da crise capitalista – A guerra econômica a partir de 2011. Bombardeios ilegais da OTAN na Líbia, que possuía o melhor padrão de vida da África, com a expulsão de firmas chinesas e brasileiras. Os EUA intervém na economia mundial, rebaixando artificialmente o preço do petróleo. Ampliam a produção interna, flexibilizando a legislação ambiental. Exigem super-produções de suas aliadas monarquias absolutistas do Golfo – Arábia Saudita, Emirados A. Unidos, Kuwait – para prejudicar o Irã, a Venezuela e a Rússia. Promovem grandes manobras militares na Europa e no Mar do Sul da China, até às vésperas da Olimpíada do Rio, com vistas a obrigar Rússia e China a aumentar os gastos com defesa. Golpe “colorido” na Ucrânia – inclusive o Brasil perdeu aí uma parceria em foguete de satélite com a Ucrânia, num prejuízo de meio bilhão de reais. Diversas sanções econômicas sob variados pretextos: cartões Visa e Master foram proibidos aos russos depois do plebiscito e da reintegração da Criméia.
Manobra radical no Brasil atual: Pesquisa Datafolha do início de 2016 dispara o alarme das elites dominantes: Lula continua favorito a 2018, mesmo sob todo o massacre midiático-jurídico seletivo. EUA espionam Dilma, Petrobras e outras instâncias no Brasil. Repassam informações a interlocutores seus de diversos órgãos no Brasil, numa grande entrega de provas ilícitas. Já no governo Clinton a CIA espionara concorrentes europeus e brasileiros em licitações de radares: o capitalismo monopolista global odeia concorrência – isto fica para discursos e botecos periféricos. A grande burguesia e o rentismo decidem rasgar a CF 1988 em seus princípios de soberania popular através do cidadão-eleitor. Apegam-se, descabidamente, a itens secundários formalmente previstos. Seria como decidir pela invasão agora da Venezuela ou do Uruguai, alegando que a declaração de guerra pelo Senado está prevista na CF.
Do ângulo das elites dominantes o golpe de 2016 é um gesto heróico de salvação do capitalismo nativo, recolocando em seu “devido lugar” os trabalhadores assalariados e suas parcelas da população aliadas – indígenas, populações tradicionais, agricultores familiares – os quais, irracionalmente ao ver dos dominantes, encontravam-se praticando uma cidadania inaceitável. Analogia clássica: o mito grego do “Leito de Procusto” – assaltante que ajustava suas vítimas a uma cama de ferro, cortando-as ou espichando-as. Adequadamente parte do ciclo do herói Teseu, mais preocupado com o labirinto da queda dos lucros do que com o Minotauro popular.
2. Ângulo soviético: se o impedimento da presidente eleita confirmar-se, de um ângulo etapista histórico o Brasil terá um passo positivo – as massas ficarão mais críticas à validade da democracia burguesa. O golpe dirá mais sobre a ditadura de classe instalada na economia e no Estado brasileiro do que qualquer curso de formação política. Talvez haja festa na Coreia do Norte: “Não dissemos a vocês que eleições sob o capitalismo são um teatro ruim, que rasgam a bel-prazer? Ditadura de classe por ditadura de classe, busquem uma comprometida com a maioria da sociedade. Será uma democracia mais realista do que esta aí.”
3. Tempos nebulosos: Karl Marx, no artigo ” O 18 brumário de Luís Bonaparte”, estuda o golpe de Estado na França do século XIX, quando o presidente (não o vice, como aqui e agora) rasgou a constituição republicana e proclamou-se imperador. No texto, satiriza o pânico do pequeno burguês típico ante as mobilizações sociais e as manobras parlamentares aparentemente incompreensíveis. Ansiedade que terminaria clamando, num apelo sintético e patético, pelo descarte da frágil democracia liberal em troca de sossego (para os negócios): “Mais vale um fim com terror, do que este terror sem fim!”.
Veremos que novas estações produzirá este nosso 2016 brumário.
Confira a íntegra do discurso de Dilma em julgamento do impeachment no Senado
Da Agência Brasil
A presidenta afastada Dilma Rousseff discursou na manhã desta segunda-feira (29) por cerca de 45 minutos no plenário do Senado, durante a última fase do julgamento do processo de impeachment. Em sua fala, Dilma , ressaltou que foi ao Senado “olhar diretamente nos olhos dos que a julgarão e negou ter cometido crimes dos quais é acusada, segundo ela, “injusta e arbitrariamente”. “Hoje, o Brasil, o mundo e a história nos observam. E aguardam o desfecho desse processo de impeachment”, disse.
Ouça a íntegra do discurso
Confira a íntegra do discurso de Dilma do Senado:
Excelentíssimo Senhor Presidente do Supremo Tribunal Federal Ricardo Lewandowski
Excelentíssimo Senhor Presidente do Senado Federal Renan Calheiros,
Excelentíssimas Senhoras Senadoras e Excelentíssimos Senhores Senadores,
Cidadãs e Cidadãos de meu amado Brasil,
No dia 1o de janeiro de 2015 assumi meu segundo mandato à Presidência da República Federativa do Brasil. Fui eleita por mais 54 milhões de votos.
Na minha posse, assumi o compromisso de manter, defender e cumprir a Constituição, bem como o de observar as leis, promover o bem geral do povo brasileiro, sustentar a união, a integridade e a independência do Brasil.
Ao exercer a Presidência da República respeitei fielmente o compromisso que assumi perante a nação e aos que me elegeram. E me orgulho disso. Sempre acreditei na democracia e no Estado de direito, e sempre vi na Constituição de 1988 uma das grandes conquistas do nosso povo.
Jamais atentaria contra o que acredito ou praticaria atos contrários aos interesses daqueles que me elegeram.
Nesta jornada para me defender do impeachment me aproximei mais do povo, tive oportunidade de ouvir seu reconhecimento, de receber seu carinho. Ouvi também críticas duras ao meu governo, a erros que foram cometidos e a medidas e políticas que não foram adotadas. Acolho essas críticas com humildade.
Até porque, como todos, tenho defeitos e cometo erros.
Entre os meus defeitos não está a deslealdade e a covardia. Não traio os compromissos que assumo, os princípios que defendo ou os que lutam ao meu lado. Na luta contra a ditadura, recebi no meu corpo as marcas da tortura. Amarguei por anos o sofrimento da prisão. Vi companheiros e companheiras sendo violentados, e até assassinados.
Na época, eu era muito jovem. Tinha muito a esperar da vida. Tinha medo da morte, das sequelas da tortura no meu corpo e na minha alma. Mas não cedi. Resisti. Resisti à tempestade de terror que começava a me engolir, na escuridão dos tempos amargos em que o país vivia. Não mudei de lado. Apesar de receber o peso da injustiça nos meus ombros, continuei lutando pela democracia.
Dediquei todos esses anos da minha vida à luta por uma sociedade sem ódios e intolerância. Lutei por uma sociedade livre de preconceitos e de discriminações. Lutei por uma sociedade onde não houvesse miséria ou excluídos. Lutei por um Brasil soberano, mais igual e onde houvesse justiça.
Disso tenho orgulho. Quem acredita, luta.
Aos quase setenta anos de idade, não seria agora, após ser mãe e avó, que abdicaria dos princípios que sempre me guiaram.
Exercendo a Presidência da República tenho honrado o compromisso com o meu país, com a Democracia, com o Estado de Direito. Tenho sido intransigente na defesa da honestidade na gestão da coisa pública.
Por isso, diante das acusações que contra mim são dirigidas neste processo, não posso deixar de sentir, na boca, novamente, o gosto áspero e amargo da injustiça e do arbítrio. E por isso, como no passado, resisto.
Não esperem de mim o obsequioso silêncio dos covardes. No passado, com as armas, e hoje, com a retórica jurídica, pretendem novamente atentar contra a democracia e contra o Estado do Direito.
Se alguns rasgam o seu passado e negociam as benesses do presente, que respondam perante a sua consciência e perante a história pelos atos que praticam. A mim cabe lamentar pelo que foram e pelo que se tornaram.
E resistir. Resistir sempre. Resistir para acordar as consciências ainda adormecidas para que, juntos, finquemos o pé no terreno que está do lado certo da história, mesmo que o chão trema e ameace de novo nos engolir.
Não luto pelo meu mandato por vaidade ou por apego ao poder, como é próprio dos que não tem caráter, princípios ou utopias a conquistar. Luto pela democracia, pela verdade e pela justiça. Luto pelo povo do meu País, pelo seu bem-estar.
Muitos hoje me perguntam de onde vem a minha energia para prosseguir. Vem do que acredito. Posso olhar para trás e ver tudo o que fizemos. Olhar para a frente e ver tudo o que ainda precisamos e podemos fazer. O mais importante é que posso olhar para mim mesma e ver a face de alguém que, mesmo marcada pelo tempo, tem forças para defender suas ideias e seus direitos.
Sei que, em breve, e mais uma vez na vida, serei julgada. E é por ter a minha consciência absolutamente tranquila em relação ao que fiz, no exercício da Presidência da República que venho pessoalmente à presença dos que me julgarão. Venho para olhar diretamente nos olhos de Vossas Excelências, e dizer, com a serenidade dos que nada tem a esconder que não cometi nenhum crime de responsabilidade.
Não cometi os crimes dos quais sou acusada injusta e arbitrariamente.
Hoje o Brasil, o mundo e a história nos observam e aguardam o desfecho deste processo de impeachment.
No passado da América Latina e do Brasil, sempre que interesses de setores da elite econômica e política foram feridos pelas urnas, e não existiam razões jurídicas para uma destituição legítima, conspirações eram tramadas resultando em golpes de estado.
O Presidente Getúlio Vargas, que nos legou a CLT e a defesa do patrimônio nacional, sofreu uma implacável perseguição; a hedionda trama orquestrada pela chamada “República do Galeão, que o levou ao suicídio.
O Presidente Juscelino Kubitscheck, que contruiu essa cidade, foi vítima de constantes e fracassadas tentativas de golpe, como ocorreu no episódio de Aragarças.
O presidente João Goulart, defensor da democracia, dos direitos dos trabalhadores e das Reformas de Base, superou o golpe do parlamentarismo mas foi deposto e instaurou-se a ditadura militar, em 1964.
Durante 20 anos, vivemos o silêncio imposto pelo arbítrio e a democracia foi varrida de nosso País. Milhões de brasileiros lutaram e reconquistaram o direito a eleições diretas.
Hoje, mais uma vez, ao serem contrariados e feridos nas urnas os interesses de setores da elite econômica e política nos vemos diante do risco de uma ruptura democrática. Os padrões políticos dominantes no mundo repelem a violência explícita. Agora, a ruptura democrática se dá por meio da violência moral e de pretextos constitucionais para que se empreste aparência de legitimidade ao governo que assume sem o amparo das urnas. Invoca-se a Constituição para que o mundo das aparências encubra hipocritamente o mundo dos fatos.
As provas produzidas deixam claro e inconteste que as acusações contra mim dirigidas são meros pretextos, embasados por uma frágil retórica jurídica.
Nos últimos dias, novos fatos evidenciaram outro aspecto da trama que caracteriza este processo de impeachment. O autor da representação junto ao Tribunal de Contas da União que motivou as acusações discutidas nesse processo, foi reconhecido como suspeito pelo Presidente do Supremo Tribunal Federal. Soube-se ainda, pelo depoimento do auditor responsável pelo parecer técnico, que ele havia ajudado a elaborar a própria representação que auditou. Fica claro o vício da parcialidade, a trama, na construção das teses por eles defendidas.
São pretextos, apenas pretextos, para derrubar, por meio de um processo de impeachment sem crime de responsabilidade, um governo legítimo, escolhido em eleição direta com a participação de 110 milhões de brasileiros e brasileiras. O governo de uma mulher que ousou ganhar duas eleições presidenciais consecutivas.
São pretextos para viabilizar um golpe na Constituição. Um golpe que, se consumado, resultará na eleição indireta de um governo usurpador.
A eleição indireta de um governo que, já na sua interinidade, não tem mulheres comandando seus ministérios, quando o povo, nas urnas, escolheu uma mulher para comandar o país. Um governo que dispensa os negros na sua composição ministerial e já revelou um profundo desprezo pelo programa escolhido pelo povo em 2014.
Fui eleita presidenta por 54 milhões e meio de votos para cumprir um programa cuja síntese está gravada nas palavras “nenhum direito a menos”.
O que está em jogo no processo de impeachment não é apenas o meu mandato. O que está em jogo é o respeito às urnas, à vontade soberana do povo brasileiro e à Constituição.
O que está em jogo são as conquistas dos últimos 13 anos: os ganhos da população, das pessoas mais pobres e da classe média; a proteção às crianças; os jovens chegando às universidades e às escolas técnicas; a valorização do salário mínimo; os médicos atendendo a população; a realização do sonho da casa própria.
O que está em jogo é o investimento em obras para garantir a convivência com a seca no semiárido, é a conclusão do sonhado e esperado projeto de integração do São Francisco. O que está em jogo é, também, a grande descoberta do Brasil, o pré-sal. O que está em jogo é a inserção soberana de nosso País no cenário internacional, pautada pela ética e pela busca de interesses comuns.
O que está em jogo é a auto-estima dos brasileiros e brasileiras, que resistiram aos ataques dos pessimistas de plantão à capacidade do País de realizar, com sucesso, a Copa do Mundo e as Olimpíadas e Paraolimpíadas.
O que está em jogo é a conquista da estabilidade, que busca o equilíbrio fiscal mas não abre mão de programas sociais para a nossa população.
O que está em jogo é o futuro do País, a oportunidade e a esperança de avançar sempre mais.
Senhoras e senhores senadores,
No presidencialismo previsto em nossa Constituição, não basta a eventual perda de maioria parlamentar para afastar um Presidente. Há que se configurar crime de responsabilidade. E está claro que não houve tal crime.
Não é legítimo, como querem os meus acusadores, afastar o chefe de Estado e de governo pelo “conjunto da obra”. Quem afasta o Presidente pelo “conjunto da obra” é o povo e, só o povo, nas eleições. E nas eleições o programa de governo vencedor não foi este agora ensaiado e desenhado pelo Governo interino e defendido pelos meus acusadores.
O que pretende o governo interino, se transmudado em efetivo, é um verdadeiro ataque às conquistas dos últimos anos.
Desvincular o piso das aposentadorias e pensões do salário mínimo será a destruição do maior instrumento de distribuição de renda do país, que é a Previdência Social. O resultado será mais pobreza, mais mortalidade infantil e a decadência dos pequenos municípios.
A revisão dos direitos e garantias sociais previstos na CLT e a proibição do saque do FGTS na demissão do trabalhador são ameaças que pairam sobre a população brasileira caso prospere o impeachment sem crime de responsabilidade.
Conquistas importantes para as mulheres, os negros e as populações LGBT estarão comprometidas pela submissão a princípios ultraconservadores.
O nosso patrimônio estará em questão, com os recursos do pré-sal, as riquezas naturais e minerárias sendo privatizadas.
A ameaça mais assustadora desse processo de impeachment sem crime de responsabilidade é congelar por inacreditáveis 20 anos todas as despesas com saúde, educação, saneamento, habitação. É impedir que, por 20 anos, mais crianças e jovens tenham acesso às escolas; que, por 20 anos, as pessoas possam ter melhor atendimento à saúde; que, por 20 anos, as famílias possam sonhar com casa própria.
Senhor Presidente Ricardo Lewandowski, Sras. e Srs. Senadores,
A verdade é que o resultado eleitoral de 2014 foi um rude golpe em setores da elite conservadora brasileira.
Desde a proclamação dos resultados eleitorais, os partidos que apoiavam o candidato derrotado nas eleições fizeram de tudo para impedir a minha posse e a estabilidade do meu governo. Disseram que as eleições haviam sido fraudadas, pediram auditoria nas urnas, impugnaram minhas contas eleitorais, e após a minha posse, buscaram de forma desmedida quaisquer fatos que pudessem justificar retoricamente um processo de impeachment.
Como é próprio das elites conservadoras e autoritárias, não viam na vontade do povo o elemento legitimador de um governo. Queriam o poder a qualquer preço.
Tudo fizeram para desestabilizar a mim e ao meu governo.
Só é possível compreender a gravidade da crise que assola o Brasil desde 2015, levando-se em consideração a instabilidade política aguda que, desde a minha reeleição, tem caracterizado o ambiente em que ocorrem o investimento e a produção de bens e serviços.
Não se procurou discutir e aprovar uma melhor proposta para o País. O que se pretendeu permanentemente foi a afirmação do “quanto pior melhor”, na busca obsessiva de se desgastar o governo, pouco importando os resultados danosos desta questionável ação política para toda a população.
A possibilidade de impeachment tornou-se assunto central da pauta política e jornalística apenas dois meses após minha reeleição, apesar da evidente improcedência dos motivos para justificar esse movimento radical.
Nesse ambiente de turbulências e incertezas, o risco político permanente provocado pelo ativismo de parcela considerável da oposição acabou sendo um elemento central para a retração do investimento e para o aprofundamento da crise econômica.
Deve ser também ressaltado que a busca do reequilíbrio fiscal, desde 2015, encontrou uma forte resistência na Câmara dos Deputados, à época presidida pelo Deputado Eduardo Cunha. Os projetos enviados pelo governo foram rejeitados, parcial ou integralmente. Pautas bombas foram apresentadas e algumas aprovadas.
As comissões permanentes da Câmara, em 2016, só funcionaram a partir do dia 5 de maio, ou seja, uma semana antes da aceitação do processo de impeachment pela Comissão do Senado Federal. Os Srs. e as Sras. Senadores sabem que o funcionamento dessas Comissões era e é absolutamente indispensável para a aprovação de matérias que interferem no cenário fiscal e encaminhar a saída da crise.
Foi criado assim o desejado ambiente de instabilidade política, propício a abertura do processo de impeachment sem crime de responsabilidade.
Sem essas ações, o Brasil certamente estaria hoje em outra situação política, econômica e fiscal.
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Muitos articularam e votaram contra propostas que durante toda a vida defenderam, sem pensar nas consequências que seus gestos trariam para o país e para o povo brasileiro. Queriam aproveitar a crise econômica, porque sabiam que assim que o meu governo viesse a superá-la, sua aspiração de acesso ao poder haveria de ficar sepultada por mais um longo período.
Mas, a bem da verdade, as forças oposicionistas somente conseguiram levar adiante o seu intento quando outra poderosa força política a elas se agregou: a força política dos que queriam evitar a continuidade da “sangria” de setores da classe política brasileira, motivada pelas investigações sobre a corrupção e o desvio de dinheiro público.
É notório que durante o meu governo e o do Pr Lula foram dadas todas as condições para que estas investigações fossem realizadas. Propusemos importantes leis que dotaram os órgãos competentes de condições para investigar e punir os culpados.
Assegurei a autonomia do Ministério Público, nomeando como Procurador Geral da República o primeiro nome da lista indicado pelos próprios membros da instituição. Não permiti qualquer interferência política na atuação da Polícia Federal.
Contrariei, com essa minha postura, muitos interesses. Por isso, paguei e pago um elevado preço pessoal pela postura que tive.
Arquitetaram a minha destituição, independentemente da existência de quaisquer fatos que pudesse justificá-la perante a nossa Constituição.
Encontraram, na pessoa do ex-Presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha o vértice da sua aliança golpista.
Articularam e viabilizaram a perda da maioria parlamentar do governo. Situações foram criadas, com apoio escancarado de setores da mídia, para construir o clima político necessário para a desconstituição do resultado eleitoral de 2014.
Todos sabem que este processo de impeachment foi aberto por uma “chantagem explícita” do ex-Presidente da Câmara, Eduardo Cunha, como chegou a reconhecer em declarações à imprensa um dos próprios denunciantes. Exigia aquele parlamentar que eu intercedesse para que deputados do meu partido não votassem pela abertura do seu processo de cassação.
Nunca aceitei na minha vida ameaças ou chantagens. Se não o fiz antes, não o faria na condição de Presidenta da República. É fato, porém, que não ter me curvado a esta chantagem motivou o recebimento da denúncia por crime de responsabilidade e a abertura deste d processo, sob o aplauso dos derrotados em 2014 e dos temerosos pelas investigações.
Se eu tivesse me acumpliciado com a improbidade e com o que há de pior na política brasileira, como muitos até hoje parecem não ter o menor pudor em fazê-lo, eu não correria o risco de ser condenada injustamente.
Quem se acumplicia ao imoral e ao ilícito, não tem respeitabilidade para governar o Brasil. Quem age para poupar ou adiar o julgamento de uma pessoa que é acusada de enriquecer às custas do Estado brasileiro e do povo que paga impostos, cedo ou tarde, acabará pagando perante a sociedade e a história o preço do seu descompromisso com a ética.
Todos sabem que não enriqueci no exercício de cargos públicos, que não desviei dinheiro público em meu proveito próprio, nem de meus familiares, e que não possuo contas ou imóveis no exterior. Sempre agi com absoluta probidade nos cargos públicos que ocupei ao longo da minha vida.
Curiosamente, serei julgada, por crimes que não cometi, antes do julgamento do ex-presidente da Câmara, acusado de ter praticado gravíssimos atos ilícitos e que liderou as tramas e os ardis que alavancaram as ações voltadas à minha destituição.
Ironia da história? Não, de forma nenhuma. Trata-se de uma ação deliberada que conta com o silêncio cúmplice de setores da grande mídia brasileira.
Viola-se a democracia e pune-se uma inocente. Este é o pano de fundo que marca o julgamento que será realizado pela vontade dos que lançam contra mim pretextos acusatórios infundados.
Estamos a um passo da consumação de uma grave ruptura institucional. Estamos a um passo da concretização de um verdadeiro golpe de Estado.
Senhoras e Senhores Senadores,
Vamos aos autos deste processo. Do que sou acusada? Quais foram os atentados à Constituição que cometi? Quais foram os crimes hediondos que pratiquei?
A primeira acusação refere-se à edição de três decretos de crédito suplementar sem autorização legislativa. Ao longo de todo o processo, mostramos que a edição desses decretos seguiu todas as regras legais. Respeitamos a previsão contida na Constituição, a meta definida na LDO e as autorizações estabelecidas no artigo 4° da Lei Orçamentária de 2015, aprovadas pelo Congresso Nacional.
Todas essas previsões legais foram respeitadas em relação aos 3 decretos. Eles apenas ofereceram alternativas para alocação dos mesmos limites, de empenho e financeiro, estabelecidos pelo decreto de contingenciamento, que não foram alterados. Por isso, não afetaram em nada a meta fiscal.
Ademais, desde 2014, por iniciativa do Executivo, o Congresso aprovou a inclusão, na LDO, da obrigatoriedade que qualquer crédito aberto deve ter sua execução subordinada ao decreto de contingenciamento, editado segundo as normas estabelecidas pela Lei de Responsabilidade Fiscal. E isso foi precisamente respeitado.
Não sei se por incompreensão ou por estratégia, as acusações feitas neste processo buscam atribuir a esses decretos nossos problemas fiscais. Ignoram ou escondem que os resultados fiscais negativos são consequência da desaceleração econômica e não a sua causa.
Escondem que, em 2015, com o agravamento da crise, tivemos uma expressiva queda da receita ao longo do ano — foram R$ 180 bilhões a menos que o previsto na Lei Orçamentária.
Fazem questão de ignorar que realizamos, em 2015, o maior contingenciamento de nossa história. Cobram que, quando enviei ao Congresso Nacional, em julho de 2015, o pedido de autorização para reduzir a meta fiscal, deveria ter imediatamente realizado um novo contingenciamento. Não o fiz porque segui o procedimento que não foi questionado pelo Tribunal de Contas da União ou pelo Congresso Nacional na análise das contas de 2009.
Além disso, a responsabilidade com a população justifica também nossa decisão. Se aplicássemos, em julho, o contingenciamento proposto pelos nossos acusadores cortaríamos 96% do total de recursos disponíveis para as despesas da União. Isto representaria um corte radical em todas as dotações orçamentárias dos órgãos federais. Ministérios seriam paralisados, universidades fechariam suas portas, o Mais Médicos seria interrompido, a compra de medicamentos seria prejudicada, as agências reguladoras deixariam de funcionar. Na verdade, o ano de 2015 teria, orçamentariamente, acabado em julho.
Volto a dizer: ao editar estes decretos de crédito suplementar, agi em conformidade plena com a legislação vigente. Em nenhum desses atos, o Congresso Nacional foi desrespeitado. Aliás, este foi o comportamento que adotei em meus dois mandatos.
Somente depois que assinei estes decretos é que o Tribunal de Contas da União mudou a posição que sempre teve a respeito da matéria. É importante que a população brasileira seja esclarecida sobre este ponto: os decretos foram editados em julho e agosto de 2015 e somente em outubro de 2015 o TCU aprovou a nova interpretação.
O TCU recomendou a aprovação das contas de todos os presidentes que editaram decretos idênticos aos que editei. Nunca levantaram qualquer problema técnico ou apresentaram a interpretação que passaram a ter depois que assinei estes atos.
Querem me condenar por ter assinado decretos que atendiam a demandas de diversos órgãos, inclusive do próprio Poder Judiciário, com base no mesmo procedimento adotado desde a entrada em vigor da Lei de Responsabilidade Fiscal, em 2001?
Por ter assinado decretos que somados, não implicaram, como provado nos autos, em nenhum centavo de gastos a mais para prejudicar a meta fiscal?
A segunda denúncia dirigida contra mim neste processo também é injusta e frágil. Afirma-se que o alegado atraso nos pagamentos das subvenções econômicas devidas ao Banco do Brasil, no âmbito da execução do programa de crédito rural Plano Safra, equivale a uma “operação de crédito”, o que estaria vedado pela Lei de Responsabilidade Fiscal.
Como minha defesa e várias testemunhas já relataram, a execução do Plano Safra é regida por uma lei de 1992, que atribui ao Ministério da Fazenda a competência de sua normatização, inclusive em relação à atuação do Banco do Brasil. A Presidenta da República não pratica nenhum ato em relação à execução do Plano Safra. Parece óbvio, além de juridicamente justo, que eu não seja acusada por um ato inexistente.
A controvérsia quanto a existência de operação de crédito surgiu de uma mudança de interpretação do TCU, cuja decisão definitiva foi emitida em dezembro de 2015. Novamente, há uma tentativa de dizer que cometi um crime antes da definição da tese de que haveria um crime. Uma tese que nunca havia surgido antes e que, como todas as senhoras e senhores senadores souberam em dias recentes, foi urdida especialmente para esta ocasião.
Lembro ainda a decisão recente do Ministério Público Federal, que arquivou inquérito exatamente sobre esta questão. Afirmou não caber falar em ofensa à lei de responsabilidade fiscal porque eventuais atrasos de pagamento em contratos de prestação de serviços entre a União e instituições financeiras públicas não são operações de crédito.
Insisto, senhoras senadoras e senhores senadores: não sou eu nem tampouco minha defesa que fazemos estas alegações. É o Ministério Público Federal que se recusou a dar sequência ao processo, pela inexistência de crime.
Sobre a mudança de interpretação do TCU, lembro que, ainda antes da decisão final, agi de forma preventiva. Solicitei ao Congresso Nacional a autorização para pagamento dos passivos e defini em decreto prazos de pagamento para as subvenções devidas. Em dezembro de 2015, após a decisão definitiva do TCU e com a autorização do Congresso, saldamos todos os débitos existentes.
Não é possível que não se veja aqui também o arbítrio deste processo e a injustiça também desta acusação.
Este processo de impeachment não é legítimo. Eu não atentei, em nada, em absolutamente nada contra qualquer dos dispositivos da Constituição que, como Presidenta da República, jurei cumprir. Não pratiquei ato ilícito. Está provado que não agi dolosamente em nada. Os atos praticados estavam inteiramente voltados aos interesses da sociedade. Nenhuma lesão trouxeram ao erário ou ao patrimônio público.
Volto a afirmar, como o fez a minha defesa durante todo o tempo, que este processo está marcado, do início ao fim, por um clamoroso desvio de poder.
É isto que explica a absoluta fragilidade das acusações que contra mim são dirigidas.
Tem-se afirmado que este processo de impeachment seria legítimo porque os ritos e prazos teriam sido respeitados. No entanto, para que seja feita justiça e a democracia se imponha, a forma só não basta. É necessário que o conteúdo de uma sentença também seja justo. E no caso, jamais haverá justiça na minha condenação.
Ouso dizer que em vários momentos este processo se desviou, clamorosamente, daquilo que a Constituição e os juristas denominam de “devido processo legal”.
Não há respeito ao devido processo legal quando a opinião condenatória de grande parte dos julgadores é divulgada e registrada pela grande imprensa, antes do exercício final do direito de defesa.
Não há respeito ao devido processo legal quando julgadores afirmam que a condenação não passa de uma questão de tempo, porque votarão contra mim de qualquer jeito.
Nesse caso, o direito de defesa será exercido apenas formalmente, mas não será apreciado substantivamente nos seus argumentos e nas suas provas. A forma existirá apenas para dar aparência de legitimidade ao que é ilegítimo na essência.
Senhoras e senhores senadores,
Nesses meses, me perguntaram inúmeras vezes porque eu não renunciava, para encurtar este capítulo tão difícil de minha vida.
Jamais o faria porque tenho compromisso inarredável com o Estado Democrático de Direito.
Jamais o faria porque nunca renuncio à luta.
Confesso a Vossas Excelências, no entanto, que a traição, as agressões verbais e a violência do preconceito me assombraram e, em alguns momentos, até me magoaram. Mas foram sempre superados, em muito, pela solidariedade, pelo apoio e pela disposição de luta de milhões de brasileiras e brasileiros pelo País afora. Por meio de manifestações de rua, reuniões, seminários, livros, shows, mobilizações na internet, nosso povo esbanjou criatividade e disposição para a luta contra o golpe.
As mulheres brasileiras têm sido, neste período, um esteio fundamental para minha resistência. Me cobriram de flores e me protegeram com sua solidariedade. Parceiras incansáveis de uma batalha em que a misoginia e o preconceito mostraram suas garras, as brasileiras expressaram, neste combate pela democracia e pelos direitos, sua força e resiliência. Bravas mulheres brasileiras, que tenho a honra e o dever de representar como primeira mulher Presidenta do Brasil.
Chego à última etapa desse processo comprometida com a realização de uma demanda da maioria dos brasileiros: convocá-los a decidir, nas urnas, sobre o futuro de nosso País. Diálogo, participação e voto direto e livre são as melhores armas que temos para a preservação da democracia.
Confio que as senhoras senadoras e os senhores senadores farão justiça. Tenho a consciência tranquila. Não pratiquei nenhum crime de responsabilidade. As acusações dirigidas contra mim são injustas e descabidas. Cassar em definitivo meu mandato é como me submeter a uma pena de morte política.
Este é o segundo julgamento a que sou submetida em que a democracia tem assento, junto comigo, no banco dos réus. Na primeira vez, fui condenada por um tribunal de exceção. Daquela época, além das marcas dolorosas da tortura, ficou o registro, em uma foto, da minha presença diante de meus algozes, num momento em que eu os olhava de cabeça erguida enquanto eles escondiam os rostos, com medo de serem reconhecidos e julgados pela história.
Hoje, quatro décadas depois, não há prisão ilegal, não há tortura, meus julgadores chegaram aqui pelo mesmo voto popular que me conduziu à Presidência. Tenho por todos o maior respeito, mas continuo de cabeça erguida, olhando nos olhos dos meus julgadores.
Apesar das diferenças, sofro de novo com o sentimento de injustiça e o receio de que, mais uma vez, a democracia seja condenada junto comigo. E não tenho dúvida que, também desta vez, todos nós seremos julgados pela história.
Por duas vezes vi de perto a face da morte: quando fui torturada por dias seguidos, submetida a sevícias que nos fazem duvidar da humanidade e do próprio sentido da vida; e quando uma doença grave e extremamente dolorosa poderia ter abreviado minha existência.
Hoje eu só temo a morte da democracia, pela qual muitos de nós, aqui neste plenário, lutamos com o melhor dos nossos esforços.
Reitero: respeito os meus julgadores.
Não nutro rancor por aqueles que votarão pela minha destituição.
Respeito e tenho especial apreço por aqueles que têm lutado bravamente pela minha absolvição, aos quais serei eternamente grata.
Neste momento, quero me dirigir aos senadores que, mesmo sendo de oposição a mim e ao meu governo, estão indecisos.
Lembrem-se que, no regime presidencialista e sob a égide da nossa Constituição, uma condenação política exige obrigatoriamente a ocorrência de um crime de responsabilidade, cometido dolosamente e comprovado de forma cabal.
Lembrem-se do terrível precedente que a decisão pode abrir para outros presidentes, governadores e prefeitos. Condenar sem provas substantivas. Condenar um inocente.
Faço um apelo final a todos os senadores: não aceitem um golpe que, em vez de solucionar, agravará a crise brasileira.
Peço que façam justiça a uma presidenta honesta, que jamais cometeu qualquer ato ilegal, na vida pessoal ou nas funções públicas que exerceu. Votem sem ressentimento. O que cada senador sente por mim e o que nós sentimos uns pelos outros importa menos, neste momento, do que aquilo que todos sentimos pelo país e pelo povo brasileiro.
Peço: votem contra o impeachment. Votem pela democracia.
Muito obrigada.
Edição: Amanda Cieglinski
Sistema Único da Assistência Social em risco: tendência de uma agenda neoconservadora
Jucimeri Silveira*
As primeiras iniciativas do Ministério de Desenvolvimento Social e Agrário do governo interino de Michel Temer demonstram reais tendências de desmonte do Sistema Único de Assistência Social, num cenário de redução de direitos, de investida neoliberal e de avanço de uma agenda conservadora na política, em detrimento das conquistas democráticas. Os discursos de manutenção do que se conquistou de forma deliberativa e republicana nos últimos 10 anos na Assistência Social, não encontram coerência com a prática de gestão e as propostas, algumas já anunciadas ou implantadas por Decreto, com destaque para:
Anúncio de recursos financeiros relativos ao exercício de 2016 garantidos apenas até setembro, com orientação de articulação de emendas parlamentares como saída possível. A descontinuidade dos recursos fere a lógica do SUAS quanto aos repasses obrigatórios, regulares e automáticos fundo a fundo, para a manutenção e expansão de serviços continuados. Os bloqueios baseados apenas nos saldos em conta trazem absoluta insegurança aos municípios e prejuízos no planejamento e na manutenção da rede estatal em todo o Brasil. Coloca-se em risco o funcionamento das mais de 10 mil unidades públicas de referência e especializadas que atendem a população mais vulnerável e com direitos violados em todo o Brasil;
Implantação de Visitadores Sociais vinculados ao programa “Criança Feliz”, voltado à primeira infância. O programa de governo desconsidera a rede de serviços implantada, o pacto federativo e a descentralização, a possibilidade de cofinancimento de serviços tipificados, como a Proteção Social Básica no Domicílio, e o acompanhamento das condicionalidades do Programa Bolsa Família. A contratação precarizada de 80 mil visitadores reforça a tendência de desmonte da gestão do trabalho, com evidente desqualificação do trabalho especializado na assistência social. Com isso, surgem, com novas roupagens, práticas da chamada medicina social, o que nos faz relembrar a implantação em 1920 da primeira Escola de Serviço Social para atendimento materno infantil, as primeiras iniciativas na década de 1930 no Brasil para controle materno infantil e dos pobres. A situação de maior pobreza na infância e juventude evidentemente requer atuação integrada das políticas públicas. Entretanto, devem compor a rede de serviços do conjunto de políticas sociais. A Assistência Social não pode reassumir funções de outras políticas públicas. Os municípios não podem sofrer com a sobreposição, a residualidade e sobreposição de ações;
Rearticulação das ações solidárias em nível central desconsiderando a municipalização da política, especialmente no papel do município compor e cofinanciar direta e indiretamente a rede socioassistencial não governamental, com evidente tendência de retomada da primazia da atuação solidária da sociedade civil, em detrimento da manutenção e expansão qualificada da rede estatal. A atuação do terceiro setor é complementar e regulada no Vínculo SUAS, e, deste modo, não pode ser a “saída salvadora” para os contingenciamentos de recursos, ou servir de argumento para a organização das chamadas “portas de saída” do Programa Bolsa Família. O Programa Comunidade Solidária do governo Fernando Henrique demonstrou sua incapacidade em substitui os impactos dos sistemas estatais, orientados pelo princípio da universalidade, como o caso do SUAS, bem como da primazia estatal;
Cristalização da agenda de pactuação de recursos e ações nas instâncias do SUAS. Sob os argumentos de insuficiência de recursos ou redirecionamento da gestão para uma perspectiva de maiores resultados e estudo de cursos, o que se percebe é um congelamento na agenda de pactuação de serviços para todo o Brasil. O Plano Decenal comanda a plena universalização da proteção social na assistência social (benefícios e serviços), com cobertura progressiva para as desproteções, devendo compor um conjunto de iniciativas que possibilitem a redução da desigualdade, das vulnerabilidades e assimetrias de poder;
Rearticulação das Comunidades Terapêuticas e de políticas proibicionistas, segregadoras e higienistas, para o atendimento da população em uso de álcool e outras drogas. As perspectivas são de retrocessos na agenda integrada entre políticas públicas para a oferta de serviços de atenção e proteção, redutores de danos, com possibilidades maiores de interrupção da condição de rua ou outras situações associadas. A culpabilização dos indivíduos sociais por sua condição encontra total coincidência com a cultura conservadora que moraliza e criminaliza os pobres;
“Focalismo” extremo nos mais pobres e redução do acesso à Segurança de Renda. As medidas anunciadas quanto aos controles “mais rígidos”, (sugerindo fraudes passadas) no acesso aos benefícios socioassistenciais (Programa Bolsa Família e Benefício de Prestação Continuada), demonstra a evidente tendência de progressiva redução de acessos, baseada na opção neoliberal por restringir políticas distributivas quanto à abrangência, permanência e escala. Maior focalização nos 5% mais pobres em relação ao Programa Bolsa Família ou adoção de critérios como maior grau de dependência, no caso de pessoa idosa e pessoa com deficiência, pode indicar no mínimo um “filtro” maior no acesso a um direito Constitucional. A subordinação da política social à política econômica, desconsiderando inclusive o papel de desenvolvimento das economias locais, coloca em risco a manutenção do vínculo do BPC ao salário mínimo, e a universalização de políticas distributivas, sendo que estas têm efeitos diretos na redução da desigualdade de renda. Expressa, ainda, uma total desconsideração do papel das políticas distributivas no desenvolvimento humano, que evoluiu positivamente 47,8% nos últimos 20 anos, com expressiva redução na última década da pobreza, da fome, da mortalidade infantil, entre outras dimensões que posicionaram o Brasil como referência mundial nas políticas sociais;
Redução do papel das instâncias deliberativas. A implantação de medidas que não passaram por pactuação e deliberação ferem o pacto federativo construído no SUAS, e expressa um descumprimento da Lei Orgânica de Assistência Social e da própria Constituição Federal de 1988, que define novos dispositivos democráticos. Políticas de Estado respeitam o comando Constitucional da participação, implicam processos deliberativos e interfederativos, o que requer o recurso permanente do diálogo, da produção de consensos disputados nas arenas políticas na via institucional. Negar o processo democrático construído no SUAS combina com a cultura política conservadora, num cenário de golpe à democracia, já que anula o conflito como atributo da democracia, e impõe uma agenda de retrocessos no campo dos direitos humanos e das políticas públicas.
O cenário político desafia os/as defensores/as de direitos humanos, e, particularmente da assistência social, a uma atuação vigilante, tanto nos espaços institucionalizados de participação, quanto, e, sobretudo, nos espaços políticos de resistência e luta coletiva em defesa da democracia e dos direitos.
A atual conjuntura revela uma tendência que extrapola os retrocessos na assistência social. Coloca-se em prática nas diversas políticas públicas e sistemas específicos em direitos humanos, uma agenda regressiva, com evidente avanço do conservadorismo. Pautas como a redução da maioridade penal, são alimentadas por propostas que reforçam a face do Estado “gerente” para o mercado e “penal” para os mais pobres e os movimentos sociais.
Além da subordinação da política social ao ajuste fiscal, outras medidas neoliberais afetam os/as trabalhadores/as, como a reforma na previdência social, a mercantilização da saúde, com o desmonte do Sistema Único de Saúde, a precarização do sistema público de ensino e o programa “Escola Sem Partido”, entre outras. As reformas planejadas afetam a soberania brasileira e as conquistas parciais em direitos humanos, e já sinalizam a volta da pobreza, o aumento da violência e o aprofundamento da desigualdade, em todas as suas dimensões (racial, de gênero, socioeconômica).
É preciso reafirmar os direitos e as conquistas de nossa democracia recente, entre eles o direito à assistência social num projeto popular de defesa das reformas estruturantes. A conjuntura exige resistência, mobilização e luta coletiva, o que requer uma estreita aliança entre trabalhadores/as sociais e usuários/as dos serviços, com fortalecimento dos movimentos e organizações em defesa dos direitos e da democracia!
Os efeitos danosos do golpe
João Alberto Wohlfart – Doutor em Filosofia pela PUCRS e professor de Filosofia no IFIBE
O golpe aplicado na Presidente Dilma Rousseff pela oligarquia política do congresso nacional, pela mídia dos grandes meios de comunicação social, pelo judiciário direitista ultraconservador e por grandes corporações capitalistas evidencia os seus efeitos em todos os espaços e em todos os setores. O que acontece no epicentro do poder em Brasília, os interesses que se escondem e as forças de poder se disseminam por toda a sociedade. Abordaremos no artigo que segue alguns desdobramentos sistêmicos do golpe e que sentimos duramente em todas as esferas nas quais nos encontramos.
O golpe tem um viés econômico que tem tudo a ver com o capitalismo internacional e nacional. Os atores do golpe são grandes elites capitalistas nacionais e internacionais diretamente interessadas em nossas riquezas naturais, tais como a Amazônia, o Pré-sal, os minérios, as terras etc. O fundo do golpe é uma nova fase do imperialismo capitalista internacional que visa transformar o Brasil em uma das colônias privilegiadas da voracidade devoradora da imensa fome capitalista. Diante desta força devoradora das grandes corporações capitalistas, qualquer projeto nacionalista, que envolve algumas das políticas adotadas pelos governos Lula e Dilma fogem aos interesses privatistas dos golpistas. Este é um dos motivos basilares pelos quais a elite dominante depõe a Presidente Dilma e deseja acabar como PT.
A crise econômica que o país atravessa nos últimos tempos tem as marcas da elite golpista. Como o Brasil estava emergindo como uma nova potência mundial, impulsionada por algumas políticas estatais estruturantes, desestabilizaram mundialmente os preços do petróleo, dos minérios, da soja e outros produtos agrícolas, o que inevitavelmente colocou o país em crise. Soma-se a isto a crise hídrica que causou uma profunda restrição no setor elétrico, provocando o aumento considerável do preço da energia elétrica. Uma significativa classe social, amplamente beneficiada por Lula e Dilma, sentiu profundamente os efeitos de contingenciamentos e os meios de comunicação aproveitaram o descontentamento destas classes e incendiaram um onda de protestos contra Dilma. Assim, a profunda crise política na qual o Brasil atualmente está mergulhado inviabiliza qualquer perspectiva de retomada da atividade econômica em curto prazo, com a qual o povo sofre profundamente.
O golpe em curso tem efeitos danosos na política. Definitivamente, a política deixou de ser o poder do povo para o povo. Como a ética e a política foram cindidos, a política se transformou numa estratégia de domínio de uma pequena classe de privilegiados que explora a grande massa da população. Vimos no golpe em curso a força em coro de um grupo elitista nacional e internacional, através de um processo parlamentar que envolve o congresso nacional, o judiciário, os meios de comunicação, para inviabilizar a efetivação de qualquer projeto democrático. Os poderes do Estado, constituídos para salvaguardar a Constituição e a Democracia, são os primeiros a violentá-las e dissolvê-las. Em função da cisão estabelecida entre estes poderes e o povo brasileiro, transformaram-se em articuladores do golpe, numa ação política de extrema direita. As vozes do povo que emanam dos mecanismos políticos legitimamente estabelecidos se perdem e a política se transforma na voz dos mais fortes, tudo na legitimidade parlamentar e jurídica.
O golpe em curso tem consequências doutrinais e ideológicas. Estamos assistindo a volta de formas de pensamento autoritárias e conservadoras. Elas estão vindo com toda a força e se destinam a legitimar um estado de coisas existente, inviabilizando qualquer tentativa de transformação social. São fundamentalismos econômicos, religiosos, políticos e sociais. São facilmente perceptíveis dogmatismos neoliberais ligados ao privatismo econômico, ao mercado absoluto e dominador, ao individualismo consumista etc. Os dogmatismos religiosos são visíveis nos muitos fiéis que ostentam práticas devocionais, concepções superadas como o criacionismo e práticas religiosas separadas da realidade. A leitura fundamentalista da bíblia é uma das facetas deste dogmatismo. A faceta mais conservadora do fundamentalismo é concentrada num significativo grupo de políticos que habita o congresso nacional, que carrega a bíblia embaixo do braço e representa uma das facetas mais conservadoras da política brasileira. É uma forma de encobrir com a santa religião e com discurso moralista um conjunto de interesses econômicos.
O golpe protagoniza tensões e enfrentamentos extremos. É a tensão entre a casa grande e a senzala, entre o povo e a oligarquia dominante, entre o patriarcalismo de direita e as esquerdas políticas etc. Mas as supremas tensões carregam em si mesmas o fenômeno da indiferenciação e da indistinção. Esta indiferença se manifesta na massificação da opinião pública amplamente dominada pelos grandes meios de comunicação social, na postura religiosa ultraconservadora, no discurso fascista contra o PT e contra Lula, na voz unívoca dos meios de comunicação, na generalização de um discurso que retrata apenas uma pequena fração da realidade, sem permitir que ela apareça de forma abrangente. O que circula nos meios de comunicação, nas mentes das pessoas e o que é comentado no dia a dia caracteriza uma aparência imediata que esconde uma realidade muito mais ampla e complexa. Trata-se do fenômeno do cinismo generalizado e universalizado, expresso principalmente na dogmatização de uma visão imediata e parcial da realidade. Em outras palavras, a realidade é encoberta por um discurso imediato, não raras vezes expresso numa linguagem de deboche. Vê-se um discurso uniformizado, extremamente superficial, imediato, parcial e fragmentado, que tomou conta de toda a sociedade e se manifesta numa opinião pública intensamente massificada.
A massificação da opinião pública, em forma de cinismo social, é um ambiente propício para que os golpistas possam impor o seu projeto. Diante da massificação da informação intensamente interiorizada pela população, as vozes democráticas e os discursos que apontam para outra interpretação da realidade ficam sem força. Neste contexto, uma iniciativa de desmistificação dos interesses ideológicos que se escondem por debaixo do golpe, não vai ter expressão na opinião pública e não terá força de transformação social. Em outras palavras, um discurso místico e parcial toma conta da realidade, enquanto que um discurso mais crítico e abrangente fica proibido de ser dito. Os meios de comunicação exercem um papel central para que a opinião pública se configure desta maneira. Talvez seja esta a intenção de fundo para a implantação da dita escola sem partido, para excluir da escola toda a tentativa de gestação de um pensamento crítico e sistemático.
O fenômeno social aqui indicado precisa produzir a sua negação, a sua oposição, a sua contradição interna em tensões sociais com posições e práticas diferentes e opostas. A imensa superficialidade da opinião pública e o cinismo social precisam ser quebrados e produzir uma nova configuração e correlação de forças. Para a quebra da indiferença e imediatez social precisam aparecer novas forças de informação, novas forças políticas, novas concepções sociais, novos discursos capazes de penetrar na estrutura social. E esta oposição deve configurar-se em nova síntese social, em nova estrutura social para redimensionar o Estado e os poderes constituídos. Estes fenômenos devem dar outra função ao congresso nacional e ao supremo tribunal federal, no sentido de recuperarem a vanguarda da Democracia e da vontade popular. Mas, considerando o cenário nacional de hoje, com quase certeza devem aparecer fenômenos sociais intensos opostos ao que hoje vivenciamos e interpretamos epistemologicamente.
Mas os efeitos do golpe não param por aí. Ele tem consequências locais, nacionais e internacionais. Representa a ruptura de uma série de tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, especialmente no que concerne à Democracia e à liberdade dos povos. Uma geografia complexa de relações internacionais na qual o Brasil figura como um dos atores fundamentais pode ser dissolvida. Neste cenário, corremos o risco de voltar a um modelo de relação de dependência diante das grandes potências do norte e perder a soberania nacional. A plataforma de fundo de um golpe como aquele que estamos assistindo, no qual o que não é dito e não aparece na telinha da televisão, são os interesses capitalistas internacionais que representam os motivos fundamentais. Todos os dias observamos a tendência de dissolução de importantes conquistas do povo resultantes de muita luta, suor e sangue de muitas gerações. A condição de importante ator internacional conquistada pelo Brasil nos últimos anos tende a desaparecer e a se transformar, em pouco tempo, numa republiqueta sem expressão internacional.
Com estas considerações, as consequências do golpe aparecem na totalidade da estrutura social, na economia, na política, na religião, na cultura e no conhecimento. Tem a sua faceta na padronização da informação e na consequente massificação da opinião pública, que repete em toda a sua abrangência um discurso superficial e imediato. Uma possível força de contradição de uma opinião mais crítica e sistemática, por ora, não tem muita força. O golpe se transformou num fenômeno de muitas dimensões, pois penetra no interior das relações interpessoais mais restritas, no interior das famílias, dos grupos, e se estende para o cenário nacional e internacional.
O risco de disrupção na estratégia de aniquilar o PT
Róber Iturriet Ávilla – Doutor em Economia, professor da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, pesquisador da Fundação de Economia e Estatística, diretor sindical do SEMAPI.
Além de tirar o PT do poder, os grupos mais conservadores querem banir o partido e tudo o que ele representa. Cabe a reflexão do que ocorrerá ao Brasil heterogêneo e desigual caso não haja um substituto à altura que, como a sigla, proponha apenas remédios e ajustes para maior justiça social e menor desequilíbrio econômico
Desde 2013 o Brasil vive momentos de tensão política e social. Indubitavelmente, o resultado desse processo foi uma derrota política retumbante do governo Dilma Rousseff, do seu partido, o PT, e da esquerda brasileira de uma maneira geral. Essa alteração é complexa e envolve uma miríade de variáveis, as quais podem ser categorizadas com profundidade. Análise essa que escapa dos objetivos deste pequeno texto.
Entretanto, é possível observar que houve uma derrota no campo das ideias e no imaginário da “opinião pública”, simbolicamente direcionada ao PT. De forma mais abrangente, é possível dizer que a esquerda brasileira perdeu corações e mentes no período recente. A despeito de seus enormes erros na condução do partido e dos governos, a transformação que se deu no poder foi paulatinamente construída pelos conservadores.
As ideias antagônicas foram constantemente plantadas, de maneira nítida a quem consegue enxergar além das obviedades: seja na mídia tradicional, seja nos partidos políticos, seja no enfoque pontual de problemas estruturais. É do jogo. A disputa de ideias e de versões é constante em qualquer sociedade minimamente sadia e organizada.
As disputas entre os “progressistas” e “conservadores” não conformam uma especificidade do nosso tempo e tampouco do Brasil. O PT apenas encabeçou um grupo que possui alguma articulação desde o PTB, pelo menos. Podemos chamar esse segmento de “centro-esquerda”, com enraizamento em setores populares. Quer dizer, não são grupos políticos e sociais que buscam acabar com o capitalismo, mas compreendem que existem distorções históricas e mesmo do próprio sistema que requerem interferências de políticas públicas e, portanto, do Estado.
No campo econômico, particularmente, tais grupos partem da visão de que é preciso correções na distribuição porque o livre mercado tende a concentrar a renda e a riqueza. Seja porque uns capitais são maiores do que outros, seja porque há assimetria na relação capital-trabalho, seja porque os países estão em estágios distintos de acúmulo de capital e, por consequência, de inserção tecnológica.
No caso do PT, ao longo dos últimos governos, houve uma identificação de grupos populares com as políticas implementadas, como as de transferência direta de renda, elevação do salário mínimo em termos reais e políticas de acesso à educação superior. Sejam esses grupos mais ou menos conscientes disto, os 13 anos de governo “do PT” proporcionaram uma inclusão social nunca ocorrida no Brasil.
Ao redor do mundo, há segmentos mais à direita que também patrocinam tais políticas. Não por acaso, desde o século XIX, traços social-democratas nasciam na direita e no conservadorismo, o caso alemão é icônico. Remediar os pobres e ampliar direitos sociais, trabalhistas e civis era uma forma de garantir a estabilidade social em um sistema que reproduz cronicamente a desigualdade.
Sob outra perspectiva, pode-se dizer que dominar grupos sociais exige sacrifício. Aqueles que exercem o poder precisam de consentimento dos dominados. A dominação não ocorre mais através da força bruta, como era nas sociedades mais primitivas. Os dominados precisam se sentir beneficiados com o sistema para que haja estabilidade. Coloquialmente, essa ideia está na analogia de entregar alguns anéis e preservar os dedos.
Contudo, no caso brasileiro, os grupos políticos que emergem ao poder não parecem ter tais intenções. Os sinais autoritários são claros. Na proibição de protestos nos estádios, na tentativa de restringir o pensamento crítico que contesta a ordem social posta (sob o rótulo de “escola sem partido”) , na constante tentativa de criminalizar e desqualificar a esquerda, seus representantes políticos e intelectuais.
Além de tirar o PT do poder, os grupos mais conservadores querem aniquilar com o partido e com tudo o que ele representa. O Ministro do STF Gilmar Mendes chegou a ensaiar um pedido de cassação do partido, tal qual ocorreu com os “comunistas” após o golpe de 1964. Eles não querem adversários que contestem seu poder, sua ordem e o modus operandi na Terra Brasilis.
Suas intenções no campo da organização são igualmente claras: privatizações, perda de direitos sociais e trabalhistas, enxugamento das políticas públicas como saúde, educação e assistência social, redução de salários, congelamento de gastos e sepultamento da constituição de 1988.
A derrota do PT parece irreversível. É bastante provável que haja uma disputa nas esquerdas pelo seu espólio, ou mesmo internamente, caso o partido sobreviva. Cabe a reflexão, entretanto, do que ocorrerá caso o partido seja banido e não haja um substituto à altura. Ora, o partido nunca foi revolucionário e sempre esteve de acordo com a ordem posta, ele propõe apenas remédios e ajustes para que haja maior justiça social e menor desequilíbrio econômico. É um partido que representa a conciliação de interesses, a partir da voz dos trabalhadores e dos mais excluídos. Sem esse campo político, sob o nome de “PT” ou sob outro agrupamento, a possibilidade de conciliação é mais difícil.
O Brasil é um país bastante heterogêneo, desigual, com um passivo social de 388 anos de escravidão, com periferias imensas nas principais capitais. É preciso ter em mente que 50% da população recebe menos de R$ 1.300,00 mensais! Na derruba recente, os grupos populares não saíram em massa às ruas para defender o governo, possivelmente por insatisfações diversas, já sentindo os efeitos do austericídio de 2015.
A partir do momento em que esses grupos sentirem na pele o que representa o aniquilamento da esquerda e sem uma direita consciente de que é preciso atender aos dominados, os riscos de disrupção social não são pequenos. Indaga-se se o caminho escolhido pela elite brasileira de destruir seus adversários é mesmo inteligente. Aniquilar a voz e os direitos dos dominados pode ter efeitos deletérios sobre os interesses de quem executa essas articulações.
Artigo originalmente publicado no site Brasil Debate