Viralatismo e entreguismo midiático e as TVs internacionais

Bruno Lima Rocha – Professor de Ciência Política e de Relações Internacionais
O Brasil vive um momento de governo interino ou golpista – entendo que é um golpe branco, midiático e semi-parlamentarista – onde o papel da mídia foi preponderante junto aos estamentos do aparelho judiciário, do Ministério Público e policial (delegados federais). Como é sabido hoje, o Projeto Pontes, iniciativa da representação diplomática dos Estados Unidos (EUA), tentando – e conseguindo – se aproximar de elementos-chave da Justiça Federal, do Ministério Público Federal e policiais federais (com ênfase em delegados) e centrando o trabalho em Curitiba conforme revelado pelo Wikileaks (ver link: https://wikileaks.org/plusd/cables/09BRASILIA1282_a.html), o que caracteriza uma nítida tentativa de ingerência dos EUA em nossa política doméstica, resultou no processo de afastamento da presidenta eleita.
Associado a isso, a produção de comunicação mediada, forçando os conglomerados de comunicação a entrarem em sintonia com as operações, incluindo a narrativa de folhetim e o clima de incerteza permanente sobre os tomadores de decisão do país, fez o peso político da hegemonia interna transitar de uma frágil governabilidade de centro-esquerda com aliados oligárquicos, conservadores e mercenários, para um discurso difuso, udenista e que tomava Sérgio Moro como herói vivo, redentor do país. Ponto para a ação diplomática e os enlaces sociais da inteligência dos EUA, mesmo que atuando de forma indireta e dentro dos limites da lei existente.
A exposição seletiva e a punição discricionária têm como pilar um alinhamento do imaginário coletivo do brasileiro médio – de classe média alta e alta – com o ideário dos Estados Unidos. Esta projeção de representações coletivas, como se estivéssemos fazendo política no Brasil a partir das posições estadunidenses, vem reforçada com a enorme exposição aos canais por assinatura via satélite e a própria internet. A força dos conglomerados de mídia, e especificamente a pauta dos debates marcada pela Globonews, reforçam tanto o viralatismo (complexo de inferioridade da elite brasileira) como o entreguismo (entrega de nosso patrimônio estratégico ao capital transnacional).
Os embates midiáticos e a guerra de versões em temas da política nacional se tornaram uma constante. Ao contrário do que possa interpretar uma leitura rasteira ou vulgar das relações de força, a mídia opera sobre o senso comum sendo item fundamental para a chamada guerra de 4ª geração. Nosso país é, visivelmente, alvo de uma operação muito bem orquestrada, onde incide a ação de mídia e marketing digital, coadunadas com a “cobertura” dos grandes veículos de comunicação aberta, em especial os três maiores conglomerados: O Globo, Estadão e Folha.
A cultura do luxo, o universo individual marcado por bens de consumo embalados em suporte simbólico estadunidense e a mundialização roubaram corações e mentes, reforçando estereótipos e terminando por brincar com a apropriação cultural. Imitamos quem nos domina sem mimetizar a oposição interna dos próprios sistemas simbólicos e culturais desafiando o dominador em seu próprio território. Este constructo pode arranhar a hipótese do porque a presença de Barack Hussein Obama não ter convertido em um amplo movimento de autoestima africana no Brasil.
O novo arranjo geopolítico do planeta não tem estrutura midiática de suporte
Em termos de projeção de poder dos BRICS – o bloco informal composto por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul – a guerra midiática é sofrível, sendo devastadora a ação dos grupos de mídia pró-EUA. A inteligência é uma arma de uso permanente das embaixadas com interesses em países com possibilidade de acúmulo de força no Sistema Internacional (SI). De forma indireta e através da ampliação das redes cibernéticas, as TVs internacionais via satélite se tornam uma ferramenta comum – como o ato de presença clássico dos grupos operacionais -, agindo sobre amplos setores da sociedade e, em última análise, agindo de acordo com o governo do país que a apoia, ou ao menos reforçando a política de um relevante setor político deste país.
Logo, a intenção das TVs internacionais é tentar abrir cunhas e vínculos diretos com importantes setores de audiência de nossos países – no caso, latino-americanos – atuando diretamente na formação de escolhas e influências. Na área de inteligência, tais operações estão na rubrica de operações psicológicas, psicossociais na tradição brasileira, também conhecidas como de tipo “corações e mentes”. No caso brasileiro, a situação é paradoxal. Influencia mais uma rede em inglês, como a CNN, do que redes que transmitem em castelhano, como a RT em espanhol.
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O desafio é abissal, pois a mentalidade mediana do país – a que hegemoniza o consenso forjado em termos políticos e culturais – nos coloca de costas para os países vizinhos latino-americanos, assim como de costas ao Oceano Atlântico, logo, distante da África, mesmo dos países de língua portuguesa, como Angola, Cabo Verde, Moçambique, Guiné-Bissau, Guiné-Equatorial e São Tomé e Príncipe. Enfim, quanto mais distantes da América Latina e dos países africanos, mais distantes ficaremos de nós mesmos, reforçando o dominante (EUA), dentro do universo simbólico daqui, gerando assim uma dupla ou tripla lealdade, associando a defesa da maioria como usurpação de um limitado poder concedido pela democracia representativa.
As TVs dos países dos BRICS, assim como suas mídias complementares, não obtiveram êxito em fortalecer tanto a resistência contra o golpe e menos ainda uma agenda do contra-golpe. Infelizmente, ao não penetrarem na sociedade brasileira, tais canais não chegam a fazer nenhum dano severo ao imperialismo cultural e jornalístico.

Uma incógnita no horizonte

Cândido Grzybowski – Sociólogo, diretor do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase)
Estes últimos tempos foram de muita angústia e estresse político no Brasil. Difícil foi ficar de fora, como se não fosse com a gente. Não só foi algo rápido e impactante em termos de decomposição de verdades e certezas, de revelações de um sistema político profundamente corrompido, como tendeu a nós por em diferentes polos, profundamente separados. E ainda não dá para ver bem onde isto vai dar, quem dos representantes que temos poderá reivindicar alguma legitimidade para ser o governo do Brasil. Por enquanto continuamos nos atolando cada vez mais numa grande crise que, a essas alturas, já depende muito pouco do desfecho do impedimento da presidenta Dilma. Quaisquer das possibilidades legais possíveis só aprofundam a crise de hegemonia, de falta de rumos legítimos, de direções como expressão democrática de sonhos e desejos de amplos setores da sociedade, capazes de agregar e viabilizar propostas de uma nova onda de democratização. Aliás, o mais provável é entrarmos num processo mais ou menos longo de crise larval, de idas e vindas, de desmanche sem reconstrução, de perda de direitos de cidadania conquistados, de desemprego e instabilidade, de uma rápida expansão da miséria e pobreza, com enorme esgarçamento do tecido social. Terreno fértil para que prosperem demagogos e oportunistas, como já temos alguns, que transformam a diferença e a insatisfação com tudo que está aí em intolerância e ódio de uns sobre outros. O fenômeno de Trump, nos EUA, deve nos fazer pensar, assim como outros exemplos de ascensão de direitas fascistas pelo mundo, coisa que está à nossa porta. Quem pensa que o Brasil está livre disso se engana profundamente. O autoritarismo está cravado fundo no nosso DNA como país. A democracia ainda é uma tenra planta, no momento sofrendo por falta de seiva vital dos que defendem seus valores e princípios éticos, a água que vivifica as democracias sempre. Existem, sim, democratas convictos e radicais entre nós, mas estamos encurraladas pela situação brasileira e mundial, pelo capitalismo neoliberal sem pejo, do poder do dinheiro tout court.
Escrevo tudo isto porque a vida segue e não podemos parar, mas o bicho pode nos comer… Estamos de olho em Brasília, naquelas pequenas personagens que tomam a cena no Congresso Nacional e no governo provisório, mais à feição e ao serviço dos que financiaram as suas campanhas, do que da diversa cidadania brasileira. E esquecemo-nos de priorizar o nosso entorno.  Em menos de três meses teremos eleições municipais, uma primeira etapa no calendário político de resistência e reconstrução de outro Brasil. Em sã consciência, quem pode afirmar que está levando a sério as eleições municipais de outubro? Os territórios em que moramos, trabalhamos, vivemos, enfim, como os verdadeiros pilares do refazer a democracia brasileira de baixo para cima, representam a possibilidade de começar desde já a tarefa de construir um novo amanhã. Temos claro, vagas ideias de articulações de bastidores, de tomadas de posição, de figuras que se dizem e se lançam como candidatos a prefeitos e vereadores. Por quem? Por quê? Para que projeto? O que significa a constelação de partidos, no geral de ocasião, atrás deles e delas?
Estou aqui nesse Rio de Janeiro, cidade maquiada para o espetáculo olímpico, mais para turistas e o negócio dos jogos do que para nós, moradoras e moradores daqui. Algumas das obras até encantam e irão marcar o amanhã deste maravilhoso e mal tratado bem comum que é a nossa cidade. Cidade de encantos mil, tanto pelo azul do mar, baía e praias, pelos morros e florestas, como pelo seu jeito de ser, humor e cultura vibrante, do samba, da rap, do funk. Este é seu lado resistente, mesmo nas maiores adversidades.  Hoje discutimos, no cotidiano, mais a violência em ascensão do que as Olimpíadas que acontecerão em menos de um mês, mais o descalabro dos serviços públicos como educação e saúde e o caos que se instalou nos transportes públicos, mesmo com o saudado VLT (novo nome, maquiado, do conhecido bonde!) na área central, as linhas de BRTs e a extensão do grande linhão do metrô. A cidade ficou muito, muito mais difícil! Não dá para esperar solução lá do Planalto. Afinal, vivemos na planície, como lembrava o Betinho. E aqui estamos com um estado na UTI.
Minha outra vivência de cidade, nesta etapa da vida, é Rio Bonito, a 90 km do Rio e parte da Região Metropolitana. A 6 km da cidade, construí com minha companheira um pequeno paraíso de preservação da biodiversidade, a Chácara Iru, onde ainda pratico técnicas de agricultura orgânica, aprendidas desde o berço familiar em Erechim (RS).  Lá está a minha biblioteca dos meus mestres e inspiradores. A cidade de Rio Bonito, pequena, é a décima em número de carros per capita do Brasil! De bonito sobra pouco, pois o riozinho que está no centro é uma verdadeira vala de esgoto, onde qualquer chuva gera a tragédia de inundação. A Serra do Sambê, que contorna a cidade pelo Norte, tem seu encanto e uma vegetação de Mata Atlântica que ainda resiste.  Imagino que quando Darwin lá esteve na sua famosa vista ao Brasil, 200 anos atrás, viu outra coisa e muito se inspirou para a sua teoria de evolução das espécies. Lá nasceu, viveu e morreu o jornalista Astrojildo Pereira Duarte Silva (1890-1965), o fundador do PCB, em 1922, e seu primeiro presidente, expulso depois. Pois bem, hoje Rio Bonito é um quase desastre em termos políticos. A prefeita atual da cidade é a Solange do Amaral, aquela aliada nas falcatruas do Cunha, envolvendo propina. A cidade é parte da base eleitoral do deputado estadual Marcos Abraão, que nem merece comentários. Um desastre em termos de democracia e cidadania! Quem vai disputar a eleição municipal em outubro?  Sei lá!  Nos últimos anos o Ibase desenvolveu um trabalho em Rio Bonito, e outros 14 municípios da área de influência do Comperj, que resultou na criação de uma rede local de cidadania. Espero que algo diferente aconteça por lá, mas meu voto é ainda como cidadão do Rio de Janeiro.
No Rio – penso que o mesmo se passa nas grandes e médias cidades brasileiras – existem tramas em curso que vão acabar nos dando o dilema de escolher o de sempre, sem novidades reais. Serão provavelmente, muitos candidatos, mais do que reais propostas para a cidade. Tudo deverá ser decidido no segundo turno, entre os dois candidatos melhor colocados. Financiamento empresarial, que tudo distorce, deixou de ser legal. Mas alguém acredita que novas formas de financiamento ilícito não serão inventadas? E a questão mais importante: a agenda de cidade está posta na mesa para que a cidadania decida, pensando mais na cidade do que nas pequenas e corporativas agendas de candidatos, prometendo vantagens e favores para correligionários?
Não registro, no Rio ou em outros municípios, nenhum candidato ou força política levantando o debate da cidade como bem comum. Isto num momento em que os ventos políticos dominantes, no país e fora, voltam a priorizar uma agenda conservadora de mais liberalização, mais mercado, e menos público e regulação política, menos políticas para garantir direitos coletivos. O debate estratégico de resistência possível é resgatar a centralidade do comum na cidade para uma vida coletiva que faça sentido para todas e todos. Isto está presente nas lutas, em favelas, nas resistências a remoções, na luta por educação pública e saúde de qualidade, na luta por segurança pública como direito, na luta por mobilidade urbana para todo mundo, nos pontos de cultura e mídia alternativa. A lista é grande e inspiradora, basta olhar, querer e valorizar. São as sementes que vejo podendo anunciar outro amanhã para a cidade.
A incógnita que está no horizonte continuará incógnita enquanto não for decifrada com técnica, sem dúvida, mas, sobretudo, com imaginação, com esperança e determinação democrática, de direitos de cidadania, com nossa participação no antes, durante e após eleições. Ou seja, depende de nós mesmos mudar tal equação, ao seu modo bastante simples. Participemos desde já e exijamos o que não nos é revelado. Termino com a canção que se tornou o símbolo no combate à ditadura, de Geraldo Vandré. Penso que olhando para nossos lugares, nosso territórios locais, e para as possibilidades reais de ativismo cidadão que aí estão presentes, no aqui e agora, nosso engajamento pode começar a fazer a hora.
“Vem, vamos embora
Que esperar não é saber
Quem sabe faz a hora
Não espera acontecer”

O avanço do atraso e a possibilidade da resistência democrática

Benedito Tadeu César – Cientista Político
Vivemos um momento de refluxo das forças democráticas e de esquerda em todo o mundo e também no Brasil. É hora de resistência e de acúmulo de forças para poder voltar a avançar.
No plano internacional, o panorama é de avanço da direita. Na Argentina, a centro-esquerda foi derrotada com a vitória eleitoral de Macri. Na Bolívia, Evo Morales perdeu o plebiscito e não conseguiu autorização popular para se candidatar a um novo mandato presidencial. Na Venezuela, a desestabilização do governo Maduro é cada dia mais intensa. No Chile, Bachelet enfrenta problemas sérios e acusações de corrupção. No Peru, a esquerda sequer conseguiu chegar ao segundo turno das eleições presidenciais.
Nos EUA, Donald Trump, representando a ala mais à direita do Partido Republicano, será o candidato daquele partido à Presidência da República. Na Espanha, o Partido Popular (conservador) foi o mais votado nas últimas eleições, contrariando as expectativas de vitória da coligação Unidos Podemos. No Reino Unido, o Brexit venceu o plebiscito determinando que o país saia da Comunidade Europeia. Na Áustria, o Partido da Liberdade, de extrema direita, anti-imigração e eurocêntrico, conseguiu anular as eleições, que serão repetidas em outubro.
No plano nacional, o panorama é semelhante, senão pior do que o internacional. O golpe jurídico-midiático-parlamentar tem tudo para se “naturalizar”, com a destituição definitiva de Dilma pelo Senado no mês de agosto e a aceitação popular do desfecho autoritário. Dilma não conseguiu virar o jogo. O PT parece estar conformado com a derrota que sofreu, preferindo investir forças nas eleições municipais de outubro próximo.
Nem Dilma nem o PT apresentaram uma proposta capaz de sensibilizar as grandes massas e os setores mais avançados da sociedade, os movimentos sociais, partidos de esquerda e setores liberal democráticos. Não conseguiram, por outro lado, negociar com os setores menos retrógrados do empresariado e dos senadores a ponto de reverter os votos necessários para barrar o impeachment.
Impasse e paralisia
No plano político mais geral, há um impasse que leva à paralisação institucional, política e econômica do país. É um impasse tão profundo, que os principais agentes políticos encontram-se imobilizados. Há um aparente empate estabelecido entre os campos políticos em conflito. Nem Dilma e nem Temer têm condições de governar. Nem Dilma e nem Temer têm propostas capazes de aglutinar forças e ganhar a opinião pública e os setores de poder (empresários e movimentos sociais).
Dilma não vira o jogo e Temer não se estabiliza no governo. Cunha, mesmo afastado, continua controlando o governo interino e acuando Temer. PMDB, PSDB, PT e a imensa maioria dos políticos estão desmoralizados e sem legitimidade frente à opinião pública. Apoiadores sinceros e/ou ingênuos do golpe estão silenciosos, decepcionados e até envergonhados, e a grande mídia desmoralizada para uma boa parte da população e exposta ao ridículo pela imprensa internacional.
Os novos movimentos sociais de esquerda e de centro-esquerda tomam as ruas, deixadas vazias pelos que pretendiam tirar Dilma, mas veem lentamente suas forças se esvaírem sem conseguir alterar efetivamente o jogo político e abortar o impeachment.
Aécio e Marina se recolheram, tão logo as denúncias de corrupção que os atingiam foram finalmente tornadas públicas pela grande mídia. Aécio perde prestígio e talvez não se recupere, pois sua presença não interessa mais nem mesmo aos tucanos. Marina se preserva para reaparecer no momento oportuno como uma possível alternativa de governo, mas, por enquanto, a cada vez que se manifesta mais explicita o interesse principal de promoção de sua candidatura.
Não obstante a paralisia institucional e das principais lideranças políticas do país, caminham céleres as iniciativas neoliberais, antipopulares e antinacionais, promovendo o desmonte do arremedo de Estado de bem-estar social montado durante os governos Lula e Dilma.
Considerando-se os agentes políticos e as instituições da República, só quem avança são os procuradores, a PF e a força tarefa da lava-jato, Moro e o STF, fazendo com que o jogo penda em favor dos golpistas na medida em que prendem apenas petistas e aliados e não os peessedebistas e peemedebistas que apoiam o governo Temer e que também são acusados de corrupção.
Imbuídos de uma missão salvacionista, eles são os novos atores que dominam a cena, sem que se possa afirmar efetivamente quais são os seus objetivos reais. Sua “missão” seria apenas “limpar o país”, livrá-lo da corrupção e iniciar a construção de uma novíssima República? Que República seria esta e quem a construiria? De onde advém a força que demonstram? Terão suporte internacional? Por que se dedicam a desmontar as únicas empresas nacionais em condições de competir no mercado internacional e desenvolver tecnologia de ponta – a Petrobras e as grandes empreiteiras? Para onde conduzem o país e a quem o entregarão?
Uma disputa secular
O que sabemos, sem dúvidas, é que há uma disputa instalada no mundo e também no Brasil desde, pelo menos, o século XIX, sobre como desenvolver o sistema capitalista na economia e na política. De um lado, as propostas globalizantes, lideradas pelo grande capital internacionalizado e, de outro, os projetos nacionais. De um lado, a crença no livre mercado e na sua autorregulação e, de outro, a defesa da ação do Estado como indutor do crescimento da economia nacional, protegendo as indústrias nascentes, e realizando investimentos estratégicos para criar competitividade e conquistar mercados.
Ao longo do século XX, em meio a conflitos e guerras, cresceram as tentativas de projetos nacionais de desenvolvimento com forte presença do Estado e com inclusão social, como por exemplo no Japão e na Alemanha, e o desenvolvimento dos chamados Estados de Bem Estar Social nos países desenvolvidos, no pós-segunda guerra mundial.
Com a crise do bloco socialista e das alternativas nacionais de desenvolvimento nos países do terceiro mundo nas duas últimas décadas do século XX, avançaram novamente as posições ultraliberais de defesa do livre mercado internacional, a globalização e a financeirização da economia sem se submeterem a qualquer controle público.
Nesse processo, num movimento de defesa de mercados regionais, criaram-se os blocos econômicos ao mesmo tempo em que cresceu o individualismo e a xenofobia e entraram em crise os partidos políticos tradicionais, firmados na antiga dicotomia capital-trabalho e favoráveis a projetos nacionais de desenvolvimento, de um lado, ou de integração ao capital internacional, de outro.
No Brasil, esta disputa de caminhos de desenvolvimento do capitalismo se manifestou já a partir do final do Império, com a abolição da escravatura e a proclamação da República sem povo – os bestializados, na definição de José Murilo de Carvalho. As revoltas dos tenentes, na década de 1920, a Revolução de 1930, os conflitos e as instabilidades políticas de 1945, 1954, 1956/9, 1961 e 1964, bem como o processo de instabilidade política em curso, são expressões desta disputa que se arrasta no tempo.
De um lado, a ascensão de Getúlio Vargas e a criação do Estado Nacional Moderno no Brasil marcaram a vitória parcial e temporária da posição daqueles que, nos anos de 1960, se tornaram conhecidos como “nacional-desenvolvimentistas”. Neste grupo, além de Vargas, incluem-se ainda, com diferentes graus de defesa do projeto nacionalista e também do sistema político democrático, Juscelino Kubitschek, João Goulart, (Castelo Branco, Garrastazu Médici, Ernesto Geisel e João Figueiredo – durante a ditadura civil militar de 1964/1985), Itamar Franco, Lula da Silva e Dilma Rousseff.
De outro lado, a destituição de Vargas e a eleição de Dutra, em 1945, e o suicídio de Vargas, em 1954, marcaram momentos de vitórias parciais e temporárias dos favoráveis à associação plena com o capital estrangeiro que, nos anos de 1970/80, ficaram conhecidos como adeptos da teoria do “desenvolvimento associado e dependente”, formulada inicialmente e de modo crítico por Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto em 1965/67. Fazem parte deste grupo, Eurico Gaspar Dutra, Jânio Quadros, (Costa e Silva – durante a ditadura), José Sarney, Collor de Mello, FHC e Michel Temer.
A farsa do impeachment sem base jurídica é a nova face da mesma e contínua disputa
Durante os anos Lula/Dilma, auxiliados por uma conjuntura internacional de crise da economia norte-americana e europeia, mas de favorecimento da economia nacional em virtude da valorização das commodities brasileiras (minério e soja, principalmente), impulsionadas pelo crescimento acelerado da China, foi possível que o governo federal, com forte compromisso popular, adotasse políticas de investimento em infraestrutura e geração de tecnologia nacional, valorização da educação e inclusão social.
A chegada da crise à economia brasileira, em 2013/4, com a desaceleração do crescimento chinês e a retração do preço internacional das commodities, aliada à inabilidade política e aos erros de condução da economia por parte do governo Dilma, possibilitaram que as insatisfações populares latentes crescessem exponencialmente, sem ser orientadas para a defesa do Estado de Bem Estar Social que vinha sendo construído no país.
As manifestações de 2013 e também os chamados “rolezinhos” expressam a eclosão desse fenômeno no âmbito das classes médias e populares recém inseridas ao mercado de consumo de massas. Insuflados pela grande mídia, os protestos que tinham como alvo inicial os reajustes das tarifas de transporte público voltaram-se contra o governo, pedindo principalmente a ampliação e melhoria dos serviços de saúde e de educação e o combate à corrupção. De roldão, foram incluídos todos os tipos de pautas, desde o combate à homofobia e à violência contra as mulheres até a liberalização do porte de armas e a proibição do aborto, por exemplo.
A ausência de partidos políticos e lideranças aptas para canalizar e dar direção à insatisfação generalizada abriu espaço para o avanço de grupos oportunistas, desde o chamado Movimento Brasil Livre até os black-blocs, que direcionaram suas ações visando o enfraquecimento do governo e culminaram com a campanha do impeachment, a partir da reeleição da presidenta Dilma, liderada pelos partidos e lideranças que não aceitaram a derrota nas eleições presidenciais.
A piora das expectativas econômicas em função da crise que chegou ao país, o aumento da inflação e do desemprego, mais a ação articulada entre os promotores, delegados e juízes da Operação Lava Jato e a imprensa, e ainda entre as lideranças derrotadas nas eleições criaram o caldo de cultura que possibilitou o afastamento de Dilma e a entrega do governo ao grupo de Michel Temer, Eduardo Cunha, Eliseu Padilha, Geddel Vieira Lima e Romero Jucá. Um grupo cuja principal ideologia é o espólio do Estado nacional e que nunca chegou a elaborar um projeto de desenvolvimento para o país, fosse ele qual fosse – nacional ou associado/dependente dos grandes grupos da economia internacional, mantendo-se sempre como aliado principal dos vitoriosos em eleições presidenciais.
Este grupo, além disso, não detém legitimidade popular e nem força política suficiente para se manter no poder. Eduardo Cunha, deputado federal afastado da presidência da Câmara por corrupção e na iminência de perder seu mandato parlamentar, controla o governo e seus principais agentes políticos, a começar pelo presidente interino – mantido sob rédeas curtas, por meio da imposição de ministros e lideranças – sabe-se lá pela utilização de quais meios e métodos.
Na tentativa de conquistar o apoio dos setores empresariais e políticos comprometidos ideologicamente com as visões ultraliberais na economia e com concepções de desenvolvimento associado ao mercado e aos grandes centros hegemônicos do capital, o grupo atualmente no exercício da Presidência da República acelera a adoção de medidas de desmonte das políticas sociais e das estruturas do Estado voltadas para a promoção do desenvolvimento nacional de modo relativamente autônomo.
Este é o motivo para a voracidade e a velocidade das ações empreendidas por Temer e seu grupo, com a adoção de ações que visam à desarticulação acelerada do projeto de Estado de Bem Estar Social que vinha sendo implementado no Brasil durante os governos de Lula e de Dilma. Propondo-se a criar uma “revolução” na economia e nas instituições, capaz de fazer o Brasil retomar o crescimento, o governo Temer tem promovido uma política de terra arrasada, a partir da qual tudo teria que ser reconstruído noutros termos.
Citem-se, no plano social, por exemplo, a desobrigação de aplicação de valores do orçamento da União definidos constitucionalmente para as áreas de educação e saúde; a revisão das políticas de habitação popular; o não pagamento do reajuste do valor do Programa Bolsa Família; a aceleração da tramitação dos projetos de lei que visam a mudança na política previdenciária e de aposentadorias; a terceirização total das contratações de mão de obra, com a consequente precarização do trabalho e o enfraquecimento das organizações sindicais, bem como a alteração de outros dispositivos da CLT que garantem conquistas dos trabalhadores.
Vai na mesma direção, no plano das relações internacionais e da política econômica, a pressa com que o governo interino se lançou ao esforço para desmontar a política de integração Sul-Sul, empreendida pelos governos Lula e Dilma, e para reintegrar o Brasil ao sistema de comércio controlado pelos EUA; a tentativa em curso de alteração do regime de partilha para a exploração do petróleo na zona do Pré Sal, que visa desobrigar que a Petrobras participe com pelo menos 30% em qualquer contrato de exploração de petróleo firmado com empresas privadas.
Se aprovada, esta alteração colocará nas mãos de empresas não brasileiras a quinta maior reserva de petróleo do mundo, inviabilizará a criação do Fundo Soberano, que é uma espécie de investimento de longo prazo realizado pelo país, e impedirá que parcela importante dos royalties do petróleo sejam revertidos para o Fundo Social destinado à Educação e à Saúde.
Destaque-se, ainda, a proposta de emenda constitucional, apresentada como a salvação das finanças públicas, que visa congelar os gastos com custeio e manutenção da máquina estatal e dos investimentos nas áreas sociais, limitando seu reajuste à correção da inflação do ano anterior. Uma limitação que o governo Temer já impõe como condição para a revisão da dívida dos estados subnacionais com a União.
Se o novo contrato for aceito pelos estados, não apenas os atuais governadores, mas também todos os futuros governadores durante os próximos 20 anos estarão impedidos de aumentar os gastos de investimento, de políticas públicas e de custeio. Considerando-se apenas o aumento vegetativo da população, em declínio mas ainda positivo, a consequência será não apenas o congelamento dos gastos dos governos, mas a diminuição destes gastos.
Com isto, piorarão ainda mais as políticas de segurança, de saúde e de educação, por exemplo, e o Estado estará impossibilitado de investir em obras públicas como estradas, transportes, energia, infraestrutura etc. Diversos serviços que hoje são prestados pelo Estado e obras que são executadas diretamente por agências e órgãos públicos passarão a ser prestados e realizados por empresas privadas. Além disso, os salários de todos os servidores e servidoras públicas serão congelados aos níveis atuais, pois só serão reajustados para repor a inflação do período anterior aos reajustes.
O avanço do atraso e a necessidade da construção de uma frente ampla democrática
O avanço das políticas ultraliberais, com a tentativa de desmonte dos Estados de Bem-Estar Social, hoje em curso desde o plano internacional, passando pelo nacional e chegando aos estaduais, tem aberto espaço para a manifestação de grupos xenófobos e obscurantistas, dispostos a estancar e a fazer retroceder os avanços das liberdades civis já conquistadas em boa parte do mundo. No Brasil, citando-se apenas um exemplo crucial, no plano da educação, avançam as propostas de alteração no Plano Nacional de Educação, de interrupção da integração curricular que começava a ser construída e, até, de aprovação de legislação que proíbe o pensamento crítico nas escolas públicas, sob a alcunha de “escola sem ideologia”, mas que melhor seria denominar de escola com ideologia única.
Tanto no plano nacional quanto no plano estadual, só há uma saída para o enfrentamento dessas forças reacionárias e antidemocráticas que avançam. A construção de uma grande frente popular em defesa da democracia e do estado democrático de direito, que congregue partidos políticos, sindicatos, centrais sindicais, comitês e movimentos em defesa da democracia e contra o impeachment e todos aqueles que, engajados ou não em partidos e movimentos, estejam dispostos a defender a democracia. Uma frente suficientemente ampla para agregar todos os democratas, sejam eles liberais, sejam socialistas e até os que não têm definição político-ideológica firmada, mas defendem a democracia.
A intransigência de alguns partidos de esquerda e de centro-esquerda, apoiada em avaliações de que poderão firmar posições e preservar territórios, e o oportunismo de outros, acreditando que se apropriarão do espólio dos derrotados, só favorecerá o retrocesso e os avanços da direita golpista que hoje assalta o poder e as riquezas populares e nacionais. Frente às eleições municipais deste ano, cada partido lança candidatura isolada, justificando-se com a promessa de “união no segundo turno”, ao qual, possivelmente, nenhum deles chegará. Quando se derem conta do equívoco, a direita e o retrocesso já terão atropelado a todos.
Estamos em um momento de refluxo das forças democráticas e de esquerda em todo o mundo e também no Brasil. É hora de resistência, de acumulação de forças e de preparação para a reação de médio e de longo prazos. Disputas e divergências cabem e são bem-vindas nos momentos de avanço e de conquistas, pois nesses momentos é preciso se definir rumos e explicitar mais e novos objetivos a serem alcançados. Nos momentos de refluxo, como o atual, é preciso saber buscar semelhanças e, com elas, construir os consensos possíveis, para que se crie uma barreira capaz de conter o avanço das forças que não têm compromissos com os interesses nacionais, com as necessidades da ampla maioria da população e com a democracia.

Restauração Oligárquica e as Contradições da Retomada Neoliberal no Brasil Pós-Golpe

Marcelo Milan – Economista, professor de economia na UFRGS.

As classes dominantes no Brasil têm o golpismo inscrito em seu DNA. O mais recente golpe, em vias de se consolidar, mesmo ficando cabalmente comprovado que não houve nenhum crime de responsabilidade por parte da presidenta eleita que o legitime juridicamente, comporta muitos adjetivos que qualificam seus agentes imediatos e permitem diferenciá-lo de outros golpes do passado: clepto-parlamentar, manipulativo-midiático, iníquo-judiciário, farsesco-policialesco e pato-empresarial. A ruptura institucional ainda apresenta elementos mediatos de aumento do fanatismo religioso, fundado em novas denominações que combinam ascetismo e comércio, remetendo diretamente às trevas da Idade Média da intolerância e da venda de indulgências. O assincronismo se reflete também na semelhança entre a burguesia nativa com o papel dos barões ladrões do século XIX nos EUA. Cabe também lembrar a influência do nacionalismo de corte protofascista de segmentos das classes médias que, na ausência de massa encefálica suficiente, insistem em querer pensar utilizando o fígado. O golpe representa a manifestação deste autoritarismo atávico, suprimido apenas durante curtos intervalos quando foram permitidas, pela mobilização popular, farsas eleitoreiras com resquícios distantes de democracia. Todas as manifestações características do atraso político, social e cultural mais primitivo, gestadas por séculos aqui e alhures, ressurgem unificados na atual conjuntura política nacional (embora, de formas aparentemente diferentes, cada vez mais também nos países de maior tradição eleitoral).

Emprega-se neste artigo, como tentativa de síntese desse processo, o termo restauração oligárquica, como oposto à renovação democrática restrita que, por ser restrita, nunca avançou de forma a alcançar sua plenitude, e que precisa ser renovada de tempos em tempos, na forma justamente de interrupções da dominação oligárquica. A presente “pausa democrática” é, assim, um eufemismo para a restauração oligárquica, que tem sido a norma e não a exceção no Brasil e na América Latina. Os curtos períodos em que há respeito às eleições e ao veredito das urnas são, na verdade, “pausas autoritárias”. A oligarquia golpista apresenta marcadas diferenças setoriais e de interesses econômicos, envolvendo estamentos burocráticos do Estado e elites econômicas do setor privado. Contudo, o golpe demonstra uma unidade de propósito destes setores. E este objetivo tem sido uma característica constante no conflito estrutural entre capitalismo e democracia, no Brasil e no mundo (como mostram recentemente os casos da Grécia e de Portugal): destruir ou tornar irrelevantes os mecanismos de participação popular na vida política, por um lado, e ampliar a dominação dos canais de representação dos interesses pecuniários da minoria no Estado. É claro que este propósito não é um fim em si, mas um meio para amealhar o máximo possível da riqueza nacional e impedir que essa possa ser compartilhada por todos aqueles que contribuem para sua produção e por aqueles impedidos por diversas razões.

Um outro elemento importante, mas não discutido nesse texto para não complexificar em demasia a discussão, é o papel do capital e do poder político internacional no presente golpe, outra característica permanente das relações entre economias subdesenvolvidas e as economias de elevada renda per capita com objetivos geopolíticos agressivos. A estratégia de tomada de poder sem apelo, ainda, à violência estrutural aberta, exige um trabalho por dentro das instituições políticas, jurídicas e midiáticas que requer uma inteligência estratégica dificilmente disponível entre os segmentos golpistas imediatos. Uma rápida observação do ministério interino é evidência mais que suficiente. Por fim, o termo oligarquia capta melhor a composição destes segmentos do que a expressão “plutonomia”, cunhada pelo Citibank em dois memorandos internos vazados para denominar os donos do poder político e econômico. Ou seja, a plutonomia presume um grau de sofisticação ausente entre o golpismo local.

Para além da dinâmica política, o golpe não pode ser entendido sem sua dimensão econômica. Todas as forças políticas derrotadas nas últimas eleições, proporcionadas pelo mais recente interstício eleitoral, voltaram ao governo pela porta dos fundos do golpe, desta vez para aplicar um programa econômico que envolve a retomada neoliberal que, por força do fracasso político das hostes golpistas, não tem nem teria respaldo eleitoral. E as derrotas eleitorais são explicadas em parte pela própria memória popular dos efeitos da aplicação do programa econômico neoliberal nos anos 1990 e início dos anos 2000. O neoliberalismo aberto das forças conservadoras derrotadas, agora reunidas no golpe, foi brevemente interrompido pelo social liberalismo da coalizão política que se fragmentou e acelerou a restauração oligárquica. Mas no que consiste esse programa econômico de retomada neoliberal? Ele possui três grandes vetores estruturais, além de medidas mais conjunturais, voltadas a reestruturar o capitalismo brasileiro por meio do aumento da lucratividade do capital: modificação no papel do Estado na economia, mudança na relação capital-trabalho e mudança na forma de inserção da economia brasileira na economia mundial. Todos estes elementos representam uma volta ao período pré-1930, se estendendo ao período colonial, reforçando a existência de uma restauração oligárquica.

Com relação ao primeiro vetor, embora muitas vezes se associe o neoliberalismo com um Estado mínimo, na verdade ele representa uma mudança no papel do Estado para reforçar mecanismos competitivos em toda a sociedade. Isso pode exigir inclusive um Estado forte e mesmo autoritário. Por exemplo, o economista estadunidense Paul Samuelson se referia ao regime de Pinochet como ‘fascismo de mercado’. No caso brasileiro, fica clara a reorientação pretendida: retirar o Estado dos setores tradicionais de educação, saúde e previdência e transferência destes serviços para instituições privadas voltadas para o lucro, ampliando o espaço de valorização do capital. Outras atividades devem ser esvaziadas gradualmente, até se tornarem irrelevantes, como no caso da cultura, da ciência e da tecnologia (incompatível com o fundamentalismo religioso de cunho comercial que respalda o golpe), das políticas fundiárias para a agricultura familiar e das políticas de direitos mínimos às minorias. Além das privatizações de empresas e dos bancos estatais, serviços de segurança pública, inclusive o serviço prisional, devem ser transformadas crescentemente em atividades lucrativas. A principal mudança que compõe este primeiro vetor é o congelamento do orçamento federal por 20 anos (o chamado nominalismo) para as despesas com bens e serviços e liberdade para expansão do orçamento para os juros e as amortizações da dívida pública. Assim, a proposta de desvinculação dos gastos da arrecadação, liberando 30% das receitas para uso livre pelo governo golpista, representará redução no montante gasto com serviços públicos em saúde, educação e previdência e disponibilidade para transferências para o serviço da dívida, por exemplo. Com a consolidação do golpe, impostos mais regressivos deverão ser majorados.

Ainda com relação ao primeiro vetor estrutural, há também medidas de caráter conjuntural, como a aprovação de um elevado déficit orçamentário (excesso de gastos sobre receitas) para 2016. Esse déficit deve ser empregado como justificativa para cortes progressivos em programas sociais, como o Minha Casa Minha Vida, e para acelerar a reforma da previdência. Por outro lado, em uma economia em recessão o déficit é uma medida que minimiza a queda na atividade econômica e evita um aprofundamento da crise, dando algum fôlego econômico ao golpe. Dentro das forças políticas que apoiam a ruptura eleitoral, há também uma outra explicação para a ampliação do déficit. Discute-se muitas vezes a necessidade de coordenação entre a política monetária, que compreende a determinação da taxa básica de juros, o gerenciamento da liquidez e as condições de expansão do crédito e de evolução da taxa de câmbio, e a política fiscal, que compreende a definição dos gastos do governo, incluindo transferências, e as principais fontes de arrecadação. A diferença entre as duas se traduz, em parte, pela evolução da dívida pública, cuja taxa de expansão depende também da taxa de juros definida pelo Banco Central. Se há uma política de contenção de despesas e o Banco Central eleva a taxa de juros, exigindo maiores desembolsos financeiros pelo governo, então a contenção inicial de gastos (em geral com bens e serviços públicos), será parcialmente neutralizada, elevando o chamado déficit nominal. As duas políticas precisam, portanto, estar coordenadas para evitar ambiguidades. Por outro lado, quando o presidente do Banco Central, agora transformado em sucursal de um banco privado, anuncia que não há espaço para cortes nas taxas de juros, que no Brasil têm estado continuamente entre as maiores do mundo, ele sinaliza que a nova dívida pública gerada pelos déficits ampliados será remunerada a taxas “escorchantes”. Trata-se de um enorme programa de transferência de renda para a parcela mais rica da população, além dos detentores externos dos títulos da dívida, em detrimento da população mais pobre. Exatamente como esperado de uma oligarquia que tem no rentismo um grande aliado.

A autorização de expansão do déficit é uma decisão política, como praticamente tudo mais em economia. O economista britânico Abba Lerner afirmou que a economia ganhou o status de rainha das ciências sociais por assumir um programa de pesquisa que tinha como questões centrais racionalizar problemas políticos resolvidos. Tentativas de reversão do déficit em uma economia em recessão levam a riscos de colapso econômico completo, como demonstrado no caso dos Estados Unidos no chamado penhasco fiscal. O congresso conservador não autorizou a ampliação dos limites da dívida pública (embora esse limite tenha sido ampliado continuamente durante os períodos em que o executivo era comandado pelos conservadores), e serviços públicos essenciais (para a maioria da população) foram interrompidos, levando o congresso a reverter sua decisão. No Brasil, do ponto de vista do ciclo recessivo atual, o governo golpista é portanto pragmático ao expandir o déficit primário. A austeridade é um programa fracassado, como reconhece o próprio FMI e cada vez mais outras instituições do establishment. Essa decisão apresenta diversos aspectos que convergem para a consolidação político-jurídica do golpe, por um lado, e da consecução de seus objetivos econômicos de curto e longo prazo, de outro. Os reajustes salariais para segmentos privilegiados do estamento burocrático, que tem papel fundamental em garantir a legalidade do golpe, são financiados com emissão de dívida remunerada a taxas elevadas, garantindo o consenso entre o rentismo.

O segundo vetor envolve uma mudança nos parâmetros institucionais do conflito capital-trabalho, isto é, mudanças na legislação trabalhista que aumentam a barganha dos trabalhadores por salários e benefícios. Aqui há um amplo pacote de medidas contra os trabalhadores, incluindo a terceirização, e mudanças nas regras de correção do salário mínimo. A mais importante medida é a proposta de tornar redundante as regras legais de proteção ao trabalhador na barganha com os patrões. A proposta de mudança que privilegia o negociado pelo legislado representa um enorme retrocesso e que aponta para mecanismos formais próximos à escravidão (que deve ter uma forte expansão nos próximos anos). A existência de uma legislação trabalhista garantindo contratos de trabalho com um mínimo de equidade jurídica é uma das características de uma economia capitalista moderna em comparação com uma economia arcaica. Essa ofensiva não acontece apenas no Brasil, e na França tem levado a confrontos campais entre os trabalhadores e a repressão estatal, com a proibição de manifestações na cidade de Paris. No Brasil os sindicatos parecem não estar muito engajados no confronto a esse enorme retrocesso no sentido de uma economia de corte semi-escravista em que direitos trabalhistas são facilmente ignorados pela necessidade de manter o emprego. Com a provável compressão salarial, e a interpretação econômica dos economistas do golpe é que os salários cresceram desnecessariamente nos últimos anos, e isso é inaceitável para uma República de Bananas, as condições de ampliação da lucratividade ficam asseguradas, mesmo que isso implique restrição de demanda para adquirir os bens produzidos com uma lucratividade potencial maior em função da maior compulsão ao trabalho em condições degradantes de trabalho proporcionadas pela inobservância “consensuada” da lei.

Do ponto de vista das propostas estruturais que incluem o primeiro e o segundo vetor, a reforma da previdência é central. Em primeiro lugar, os reajustes dos vencimentos foram desvinculados do salário mínimo, implicando perdas reais potenciais nos próximos anos para que se crie espaço para o pagamento de mais juros aos rentistas. Além disso, as mudanças demográficas permitem ampliar o período de venda da força de trabalho, mesmo que em condições desfavoráveis pelas mudanças proporcionadas pelo segundo vetor. Com a redução do Estado como absorvedor de parte da mão de obra nacional, resta a exploração no setor privado, já que se trata de força de trabalho qualificada, ou a marginalização, com a justificativa ideológica da punição por “falta de mérito ou esforço” (o que não é totalmente falso para alguns segmentos da burocracia estatal). A ampliação da oferta de trabalho amplia a competição entre os trabalhadores, em linha com o ideário neoliberal, em um contexto de reforma dos parâmetros da barganha salarial (e dos benefícios trabalhistas da Era Vargas – que devem desaparecer progressivamente), com o “negociado” (outro termo para chantagem patronal na maioria dos setores produtivos) prevalecendo (na verdade eliminando) sobre o legislado (os parâmetros legais referidos acima), haverá forte compressão salarial e uma forte expansão da lucratividade.

O terceiro e último vetor estruturante é a mudança da orientação do Brasil na economia global. A diversificação das parcerias comerciais do país nos últimos anos serão revistas e o Mercosul deve ser solapado aos poucos. As mudanças na legislação ambiental permitirão acelerar a reprimarização da economia e completar a restauração oligárquica. O Brasil tenderá a ocupar novamente o seu papel tradicional na divisão internacional do trabalho, como produtor de mercadorias primários e insumos produtivos de baixo valor agregado. Nem mesmo com o segundo vetor plenamente desenvolvido o Brasil poderá competir com a China e os novos espaços de acumulação de capital na Ásia (Vietnã, Camboja etc.) em termos de custos trabalhistas. A estratégia de exploração extensiva da oferta de trabalho semi-escravo, que se encontra em transformação pela própria dinâmica da rápida acumulação chinesa, com expansão das greves e dos salários, não poderia ser facilmente emulada no Brasil sem uma forte repressão dos sindicatos e partidos de esquerda. Além disso, as empresas chinesas, sendo que as maiores e mais importantes são estatais, investem em inovação, introduzindo forte progresso técnico na economia. A burguesia industrial brasileira não investe em quantidade e em qualidade. Sobram os serviços, que sofrem competição internacional restrita, e o agronegócio, que ainda é competitivo em função da própria aceleração chinesa, mas que encontrará dificuldades com o rebalanceamento da China, o menor crescimento mundial e a expansão da fronteira agrícola na África e a manutenção do protecionismo agrícola dos países de renda elevada. O BRICS, enfraquecido estrategicamente pelos EUA, perderá espaço na agenda externa do governo golpista em sua estratégia de submissão incondicional aos ditames de Washington. Por fim, a estratégia de transferência dos ativos nacionais para o capital internacional representa a canalização da renda potencial interna para o exterior, contribuindo ainda mais para reduzir o dinamismo endógeno da acumulação de capital.

A restauração oligárquica e a retomada neoliberal é, pela própria dinâmica que instaura, eivada de contradições que apontam para seus limites de sustentação econômica. O congelamento dos gastos públicos e os ataques aos trabalhadores, refletidos em rebaixamento salarial, reduzirão o mercado interno. Elementos de entreguismo ampliam a canalização da renda e da riqueza doméstica para o exterior, a troco de comissões e posições nas direções das empresas transferidas para o controle externo. A elevação de impostos que virá com a consolidação do golpe deve ampliar o caráter regressivo da tributação no Brasil, restringindo ainda mais o mercado interno. Esse movimento aprofunda ainda mais a desigualdade de renda e riqueza, típico de sociedades com dominação oligárquica, restringindo as possibilidades de dinamismo endógeno. Nesta situação, apenas a ampliação do mercado externo se torna factível para realizar os maiores lucros proporcionados pela nova configuração do conflito entre capital e trabalho e em menor medida pela ocupação do espaço público pelo setor privado que busca o lucro (principalmente via estatais com elevado grau de internacionalização).

Todavia, a situação externa não parece apontar para a rápida expansão da economia mundial que seria necessária para esta estratégia de reestruturação capitalista no Brasil se consolidar de forma sustentada. A China, principal parceira comercial do Brasil, se encontra em processo de desaceleração. A economia chinesa também se encontra em meio a um processo de transição (o chamado rebalanceamento), reduzindo o papel das exportações e dos investimentos e ampliando o papel dos gastos públicos e do consumo interno. O sistema bancário paralelo chinês é outra incógnita que aponta para uma maior fragilidade financeira e a possibilidade de uma crise internacional de grandes proporções. Os EUA apresentam uma trajetória ambígua, com sinais de retomada intercalados por indicadores pessimistas. De qualquer forma, os problemas estruturais que levaram à crise e ao seu aprofundamento, a crescente desigualdade de renda e riqueza ou brazilianização da sociedade, permanecem intocados. O sistema financeiro segue livre para proporcionar instabilidade e fragilidade ao resto da economia. A Europa, após a saída da Grã-Bretanha da União Europeia, deve aprofundar sua espiral deflacionária e estagnacionista. O Mercosul, um dos poucos mercados que absorvem a produção industrial do Brasil, será esvaziado na estratégia geopolítica dos golpistas, assim como os parceiros comerciais construídos na África no último período. Ao mesmo tempo, a política monetária, terceirizada à banca privada, com a manutenção de taxas de juros recordes, também reforçam a trajetória recente de apreciação da moeda brasileira e impõem uma dificuldade maior de retomada da atividade econômica via setor externo. Aparentemente apenas o agronegócio conseguiria minimizar estas barreiras, o que poderia atrair capitais para a agroindústria e proporcionar alguma expansão da acumulação de capital no Brasil, estabilizando a sociedade pós-golpe. Mas essa transformação não seria suficiente para consolidar um período de crescimento elevado e sustentado generalizado, como sugere a desapontadora história econômica do Brasil e da América Latina nos longos períodos de dominação oligárquica.

Ou seja, com a oclusão das demais fontes de realização dos lucros potenciais gerados na produção, em função do favorecimento político do capital frente tanto ao trabalho como ao Estado, a própria acumulação sustentada de capital fica comprometida, e com ela o dinamismo da própria economia capitalista por meio dos efeitos indiretos que o investimento gera e que são necessários para manter a expansão da atividade econômica sem sobressaltos. Ao mesmo tempo, a capacidade ociosa ampliada pela recente crise e os estoques não vendidos em níveis elevados em alguns ramos industriais sugerem que o investimento não deve decolar de forma sustentada nos próximos trimestres. Ainda que haja uma leve recuperação do investimento, ele pode simplesmente reproduzir o padrão anterior, em que a burguesia compradora nacional simplesmente investe de forma quantitativa mas não qualitativa, com diferente tipos de apoio estatal. O investimento que amplia a competitividade no capitalismo do século XXI é feito de forma diferente, intensivo em conhecimento e tecnologicamente sofisticado, o que é incompatível com o fundamentalismo religioso abrigado no governo golpista. Se mesmo com o apoio do Estado o padrão de investimento não parece ter conduzido a um progresso técnico significativo, sem o apoio Estatal, de acordo com o cânone neoliberal, as possibilidades são ainda menores (e nesse sentido a restauração oligárquica e a retomada neoliberal podem bem representar o prego no caixão da burguesia industrial, com o pato sendo devidamente pago pelos trabalhadores). E mesmo as multinacionais aqui instaladas nunca conduziram o país à fronteira tecnológica por razões óbvias de competição interestatal. A retomada do padrão de privatizações dos anos 1990 também não será capaz de proporcionar avanços técnicos mais densos. Há nesse caso apenas transferência de propriedade, e alguns casos apropriação dos reduzidos espaços de inovação técnica criados no Brasil, como no caso das construtoras e da extração de petróleo em águas profundas pela Petrobrás. Os supostos ganhos de eficiência da transferência de propriedade não são claros, e mesmo que ocorram seriam incapazes de proporcionar um salto em termos de crescimento econômico. As privatizações na área da infraestrutura podem expandir os investimentos, mas novamente se coloca a questão: como esta infraestrutura poderá ser utilizada se os demais setores que a utilizam se encontram estagnados? A resposta parece apontar para as consequências da manutenção da taxa de juros em patamares elevados. Isto sinaliza um aprofundamento da financeirização das empresas no Brasil, com as condições favoráveis para o capital produtivo em seu conflito com o trabalho existindo apenas como condição necessária para a retomada da acumulação, mas não suficiente. O governo golpista está enredado em uma retomada neoliberal fadada ao fracasso, agora como nos anos 1990. As contradições são geradas portanto pelas próprias opções políticas e econômicas gestadas pela restauração oligárquica. Sem a legitimidade que o crescimento econômico proporciona (mas que nem sempre este é o caso, como mostra o momento golpista anterior ao atual). A sustentação de um governo ilegítimo e de uma estratégia econômica que tem tudo para fracassar exige uma forte repressão por parte do governo central e dos governos estaduais aliados ao golpe. Mas a restauração oligárquica já deu mostras de que esse é justamente o propósito.

 

Uma crítica por esquerda aos militantes ainda vinculados ao governo deposto- 2

 
BRUNO LIMA ROCHA*
Apresentação
Este artigo entra como a segunda parte da série de crítica aos partidos de centro-esquerda e movimentos de esquerda social que foram – são – base de apoio do partido de governo deposto (PT) e seus aliados. Não tomamos como alvo desta crítica o lulismo em si, como fenômeno eleitoral de pacto conservador com melhorias materiais concretas de vulto, mas sim as agrupações organizadas que dentro deste guarda-chuva da governabilidade coexistiram pacificamente dentro do “governo em disputa”. Ao contrário do primeiro texto, este tem abordagem mais de ordem tática (equivalendo ao curtíssimo, curto e médio prazos), sendo a dimensão estratégica e teórica (longo prazo e finalismo) o objeto de terceiro e último artigo desta série.
Reconheço a delicadeza do tema, e assim como no primeiro texto, a meta não é reforçar teses sectárias ou praticar hegemonismo estéril. Apresento conceitos operacionais, do manual da política, e proponho debate franco e sincero. Nenhuma das palavras do artigo foi escrita no sentido de depreciar esforços sinceros, ganhos materiais concretos, melhoria das condições de vida e dedicação militante. É justo o oposto; é para valorizar a militância e o trabalho intelectual comprometido que aqui escrevo.
Princípios da política e a acumulação de forças dispersa do partido de governo
Antes de nada, é preciso voltar ao básico da política e a analogia com as ciências do conflito ou da guerra. Uma agrupação política, partido, corrente, movimento, coletivo, se aglutinado ideologicamente, deveria – tenderia ao menos – ser minimamente consequente com seus objetivos. E para tal, ao menos como forma de sobrevivência de seu próprio projeto coletivo, elencar inimigos estratégicos, apontar adversários táticos, demarcar um campo de alianças possível e outro desejável e criar caminhos ao longo da própria caminhada. Se observarmos o inimigo interno, o general Golbery do Couto e Silva afirmava – e praticava – uma premissa de que “o objetivo subordina ao método, segundo as condicionalidades”. Logo, é fundamental apontar a meta finalista, definir o objetivo estratégico e daí derivar em momentos táticos, com manobras de envergadura ou de posições cambiáveis. Na ausência deste debate, os tempos são imersos dentro da legalidade e institucionalidade burguesa, apenas e não apesar destas, e logo, invertem-se prioridades e mensurações. Óbvio que não se trata de coerência livresca, pureza estéril e menos ainda abstrações belicistas (com motivação classista ou anti-imperialista) que possam ganhar forma distante das sociedades concretas, fora do mundo realmente existente.
Especificamente, o projeto majoritário – e porque não, também o hegemônico – passara por momentos de legitimidade, ascensão, discurso lavado e agora está em xeque. Aponto aqui uma crítica, vejamos. Após a queda do muro de Berlim, o fim da Bipolaridade e do chamado “socialismo” real (preferia afirmar como capitalismo de Estado, e se me permitem o constructo, uma espécie de Estado Hobbesiano Distributivista), realmente a maior parte das esquerdas latino-americanas se encontra sem paradigmas. O mesmo se dá com o Partido dos Trabalhadores (PT), força política que se formara dentro de uma ideia reformista radical, mas que também nasceu plena de legitimidade, como que a expressão política dos renascidos ou nascentes movimentos sociais brasileiros do final da década de ’70.
O tripé movimento sindical (originalmente movimento operário), intelectualidade à esquerda e agentes pastorais orientados pela Teologia da Libertação formou, junto à presença de correntes de esquerda não stalinistas (ou ao menos, não assumidamente stalinistas), formou a base de um partido massificado e com acúmulo o suficiente para construir uma alternativa de poder em 1989, aprofundando o reconhecimento de direitos de quarta geração que constam na Constituição Federal de 1988. Podemos sem exagero, marcar os momentos de disputa presidencial como representações das fases da legenda como um todo. Um primeiro período foi da fundação em 1980 até 1989; o segundo da derrota para Collor, a formação de uma maioria interna, o aprofundamento da relação de dirigentes e chefes políticos, sendo esta fase de 1989 até 2002; a penúltima, o exercício de governo com o Poder Executivo compartilhado, de 2003 até a deposição temporária (no meu entender, através de golpe semi-parlamentarista) da presidente reeleita Dilma Rousseff. A fase atual, arriscando nesta periodização, não teria necessariamente iniciado através do golpe com apelido de impeachment, mas antes, na crise do modelo de governabilidade em 2013 e o arrefecimento tanto da extrema esquerda (primeiro), como das manobras de massificação conservadoras (depois).
Vamos tomar como uma razoável definição de meta de longo prazo do partido de governo fazer do Estado brasileiro um complexo conjunto de instituições e aparelhos públicos, atuando a ação estatal de forma pública. Assim, tornar público o aparelho de Estado e lutar através de um conceito de hegemonia difusa, também trabalhando por um novo consenso político-cultural na sociedade, um ponto de chegada necessário para transformar as relações sociais no país. Digo que, do ponto de vista da legalidade, chegamos perto dessa meta. Se tomarmos a Constituição Federal de 1988, assim como o Estatuto da Criança e do Adolescente, das Cidades, o conjunto de leis ambientais, e as interpretações do Judiciário até pouco tempo atrás, tínhamos, ao menos parcialmente, esferas desta contra-hegemonia dentro de importantes instituições de Estado. A “luta de posições” se justificaria assim, sem levar em conta o médio prazo, que dirá o longo prazo, e absolutamente ignorando o fato de que os limites da democracia formal (liberal-democrática) são mais curtos na América Latina do que na Europa.
Em 2013, antes da ascensão dos protestos massivos em escala nacional, passando após pela sua captura parcial pelos conglomerados de mídia – especificamente em São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília – havia um debate bastante diminuto no Congresso Nacional apontando para a necessidade de uma reforma política. A proposta, originalmente do deputado federal Henrique Fontana (PT-RS), trazia importante elementos, e um que poderia virar o jogo político (ver neste link: http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/POLITICA/439530-PRINCIPAIS-PONTOS-DA-PROPOSTA-DE-HENRIQUE-FONTANA.html)
O item deste debate, que não fora sequer pautado em nível nacional, permitia um aprofundamento da democracia participativa. O tema em si vale toda uma série de artigos, mas ressalto que este seria o momento devido para, em ano ímpar e ainda distante do cenário eleitoral, o partido de governo e seus aliados de centro—esquerda, não se pusessem contra as agrupações e partidos de esquerda e extrema-esquerda e sim compreendessem a gravidade do momento. Ora, se há reconhecimento nos limites concretos das instituições liberal-democráticas na América Latina, se o modelo econômico do lulismo estava fazendo água, se não havia acumulação necessária para aplicar a Nova Matriz Econômica – e de fato a taxa Selic volta a subir na mesma proporção da queda da popularidade de Dilma – e o consenso político-cultural estava intacto em função do controle dos meios de comunicação de massa (devido também à inação do PT) – seria necessário, ao invés de renovar o pacto de elites, tentar aprofundar a luta por direitos coletivos, mesmo que atropelando governos municipais e estaduais correligionários ou alinhados ao Planalto de então.
Obviamente foi feito tudo ao contrário, e a reforma política que sequer fora ao plenário antes de junho de 2013, após, era apresentada como o “bode na sala” pelos estrategistas da governabilidade. Não há, e não havia na época tampouco, modelo de acumulação de forças e continua havendo uma subestimação do nível ideológico da luta popular. No plano acadêmico, teses e laudas sem fim apostando na “estabilidade do sistema político brasileiro” não resistiram a uma investida bem feita pelo andar de cima pós-colonial, com o aval da mídia hegemônica e o empurrão do Império como de costume. Como se dizia quando era pensado um projeto de poder: sem teoria não há sequer possibilidade, sem organização não há como fazer a aposta teórica e sem a base social necessária, nenhuma das necessidades anteriores é realizável.
Apontando a conclusão óbvia
Como a governabilidade estava fiada no pacto conservador do lulismo e no jogo do ganha-ganha e, como o modelo de primarização de nossa economia aumenta a dimensão da dependência interdependente de preços marcados em outros centros de poder, simplesmente a base social da reeleição ruiu. Já venho afirmando aqui o nível conspirativo do golpe, o acionar das direitas mais ideológicas, o papel dos EUA e dos ultra-liberais. Mas, nenhum destes fatores impede a crítica quanto à ausência de projeto de poder uma vez conquistada, mais uma vez, a reeleição.
Na ausência deste e na inflexão ainda mais à direita do segundo governo Dilma Rousseff, com direito a austericídio e ministro da Fazenda Chicago Boy, estava aberta a porteira para uma aventura política reacionária alimentada pela Operação Lava Jato. Também é certo que a estrutura necessária para um projeto de poder passa pela democracia interna combinada com a coesão de centenas de quadros médios. Houve, e há justamente o oposto.
Precisamos debater de forma franca, mas dura o tema do finalismo, da necessidade de um projeto finalista e dos limites institucionais reais – e não formais – da democracia indireta e representativa em nosso Continente. Do contrário, caso este tema não seja seriamente debatido e sem acusar o inimigo por se portar como tal, teremos outro ciclo de ilusões pelos próximos quinze ou vinte anos, até resultar em novo retrocesso e assim seguiremos na sina latino-americana.
Bruno Lima Rocha é professor de ciência política e de relações internacionais
(www.estrategiaeanalise.com.br / blimarocha@gmail.com – para E-mail ou Facebook)
 

O Xadrez da Rainha da Inglaterra e do interino do Jaburu

A história é repleta de paradoxos. É como uma espiral, sempre dá voltas retornando ao mesmo lugar, mas alguns degraus acima, como dizia o músico e filósofo Koellreutter. Há enormes semelhanças entre as crises das primeiras décadas do século 20 e as atuais, culminando com o Brexit do Reino Unido, a campanha pela saída do Reino Unido da Comunidade Europeia, que foi vitoriosa no referendo.
Desde o século 19 há a disputa pelo controle das políticas econômicas nacionais, entre a proposta globalizantes – liderada pelo grande capital internacionalizado – e os projetos nacionais.
Esta disputa está na raiz da economia como ciência. De um lado, o pensamento majoritário de crença no mercado, que nasce com Adam Smith, com o mundo racionalmente integrado por economias nacionais, cada qual fundando-se em suas vantagens comparativas.
De outro, o desenvolvimento da economia política, a convicção sobre o papel do Estado nacional para criar a competitividade sistêmica, a partir das ideias do norte-americano Alexander Hamilton, sistematizadas depois pelo economista alemão Friedrick List. Nesse modelo, mercado interno passa a ser tratado como ativo nacional, assim como a proteção das indústrias nascentes, os investimentos estratégicos para conquistar mercados etc.
Na base de tudo, sistemas eleitorais nos quais os dois lados irão vender suas utopias, sobre qual modelo é mais eficiente para levar o bem-estar à maior parte da população eleitora.
 Primeiro passo – a integração dos mercados
No século 19, a expansão da economia global, as novas rotas marítimas, a integração continental com as ferrovias, permitiram alguma integração internacional através do comércio.
O passo seguinte foi através dos fluxos de capitais, a primeira articulação efetiva entre países, a partir da coordenação do Banco da Inglaterra, tendo como parceiros os bancos centrais da Europa e dos países periféricos – no caso nosso, do Banco do Brasil cumprindo essas funções.
A cooptação das elites nacionais se dava através de três personagens centrais:
1.      Os capitalistas locais, que já mantinham relações com a banca inglesa.
2.      Economistas portadores das últimas novas da nova ciência, incumbidos de criar a utopia de que a livre circulação de capitais traria a prosperidade geral.
3.      Políticos eleitos, turbinados pelos recursos dos capitalistas e pelas utopias dos economistas.
A globalização viceja fundamentalmente em países democráticos, em que o jogo se decide pela cooptação dos vários agentes de opinião pública: intelectuais, jornais, políticos, advogados.
No meu livro “Os Cabeças de Planilha” detalho melhor esse modelo e a maneira como cooptaram Rui Barbosa, o primeiro Ministro da Fazenda da República.
Com esse pacto instituiu-se o predomínio do capital financeiro, abolindo qualquer forma de controle e regulação de mercados em um longo período que vai das três últimas décadas do século 19 até a Primeira Guerra Mundial.
Permitiu-se a criação de uma gama extraordinária de novas operações de mercado, visando turbinar ainda mais a especulação.
No tempo de Rui Barbosa, já se batizara de “tacadas” as jogadas possíveis com o controle da moeda, do crédito e a liberação do câmbio, que incluíam jogadas em bolsa, concessões ferroviárias escandalosas, operações de crédito com estados e União.
Esse modelo gera uma dinâmica que se espalha por várias economias até implodir o próprio modelo: Força política –> Desregulação de mercado –> Criação de novos instrumentos financeiros –> Geração de bolhas especulativas –> Implosão.
No caso brasileiro, o resultado foi a grande crise cambial do encilhamento, no nascimento da República, que atrasou por trinta anos o desenvolvimento do país.
Segundo passo – o choque de realidade
Aí chega a conta. Sucessivas bolhas especulativas minam as economias nacionais, mas o sistema político não consegue reagir porque, no período de predomínio da financeirização, sufocam-se as alternativas democráticas de mudança de rota.
Os cidadãos são tomados de profundo ceticismo em relação ao modelo político vigente, tanto interna quanto externamente, em relação às instituições multilaterais, em geral criadas para impor o poder do credor sobre os devedores.
As consequências fazem parte da história: Primeira Guerra, marcando o início do fim do modelo; crise de 1929 assinalando seus estertores; as disputas cambiais-comerciais entre nações; o nascimento do comunismo na Rússia (ainda uma economia feudal) e do nazi-fascismo a partir das disputas eleitorais na Alemanha, França e Espanha; a incapacidade da Liga das Nações em arbitrar conflitos nacionais.Na sequência, a consolidação de regimes ditatoriais até o desfecho final na Segunda Grande Guerra.
Os tempos são outros, o desfecho certamente será distinto, mas os sintomas são os mesmos.
Desde 1972, a financeirização passou a comandar as políticas nacionais. A expansão do capitalismo norte-americano turbinou a China, da mesma maneira que o inglês turbinou os Estados Unidos no século 19. Montaram-se os grandes blocos econômicos, abolindo as fronteiras nacionais.
No plano socioeconômico, abriu uma enorme janela de oportunidades, brilhantemente aproveitada pela China e pelos Tigres Asiáticos, relativamente aproveitada pela América Latina.
Países com baixos salários começaram a se industrializar, como chão de fábrica das grandes corporações. E países que não lograram desenvolver uma estratégia eficiente ficaram fora do baile.
Mais que isso, com o avanço das redes sociais e das diversas formas de comunicação global, a expansão do mercado de consumo e dos valores ocidentais, e sua contraposição, nos movimentos fundamentalistas em países de pouca tradição democrática,abrem espaço para um redesenho da geopolítica mundial. Nesse entrechoque de culturas, países inteiros foram destroçados devido ao desmonte de suas instituições. Trocaram uma ordem anacrônica, antidemocrática, pelo caos.
Em fins do século 19, as diversas guerras e crises europeias e do Oriente Médio promoveram um formidável fluxo de migração para os emergentes, beneficiando substancialmente EUA e América do Sul com mão de obra de qualidade superior.
No século 21, o fluxo migratório inverteu, com populações inteiras de nações destroçadas ou que perderam o dinamismo, invadindo o mercado de trabalho dos países centrais, já assolado pelas perdas de direitos, consequência dos ajustes que tiveram que serem feitos para impedir a quebra dos sistemas bancários nacionais.
Os efeitos são visíveis:
1.      Aumento do individualismo e da xenofobia.
2.      Crise dos partidos tradicionais e das instituições internas.
3.      Crescimento dos partidos de direita, estimulados pelas mídias nacionais, que pretenderam cavalgar a onda para ampliar seu poder político, ante as novas formas de comunicação.
É o que explica o referendo britânico.
A integração europeia era defendida pelo establishment político, financeiro, acadêmico. E foi derrotada pelo voto de protesto difuso, no qual se misturaram  a ultradireita xenófoba e a esquerda antiglobalização. Ou seja, a elite perdeu o controle das massas. O regime democrático torna-se disfuncional. E a maneira encontrada para controlar as pressões nacionais – a camisa de força da União Europeia – começa a fazer água.
Os desdobramentos no Brasil
Todos esses episódios têm desdobramentos no Brasil.
De 2008 a 2012 o Brasil se beneficiou da estratégia anticíclica de Lula e da sobrevida da especulação internacional com commodities, que garantiu alguns anos a mais de fartura.
Quando a crise derrubou as cotações de commodities, depois de dois anos de bom governo Dilma perdeu o rumo. Não conseguiu definir uma estratégia econômica, política, ou social, como ocorreu na crise de 2008 com Lula.
A crise derrubou o ânimo nacional e incendiou as ruas, com multidões insufladas pela mídia e compondo uma geleia geral ideológica: contra os impostos e a favor da melhoria da educação e saúde públicas.
A insatisfação foi turbinada pela Lava Jato, pela piora nas expectativas econômicas e pelos problemas com os serviços públicos.Mas não resultou em um conjunto articulado de propostas, encampado por algum partido político ou alguma liderança emergente. Houve apenas a insatisfação generalizada que abriu espaço para a ação descoordenada de grupos oportunistas de diversas espécies, como os grupos de Cunha-Temer, a Lava Jato, a mídia, os mercadistas. E isso em uma quadra da história em que escassearam as figuras referenciais, na política, na Justiça, no MPF, nos partidos e na mídia.
Essa frente entregou o poder de bandeja para uma das organizações mais suspeitas da moderna história política brasileira: o grupo de Michel Temer, Eduardo Cunha, Eliseu Padilha, Geddel Vieira de Lima e Romero Jucá.
A chance de dar certo é próxima de zero, conforme se verá a seguir.
Um interino vulnerável moral e penalmente
A notícia de Temer recebendo Eduardo Cunha reservadamente no Palácio Jaburu, por si, seria motivo de impedimento de Temer. O presidente interino conversando reservadamente com um parlamentar cujo cargo foi suspenso por suspeita de corrupção, apontado em vários desvios e proibido de frequentar a Câmara, justamente para não conspirar contra a Justiça. Certamente a conversa não girou sobre o Brexit nem sobre a atual campanha do Vasco da Gama. E só foi oficialmente divulgada após os vazamentos sobre o encontro sigiloso.
Para o interino se expor dessa maneira, mostra uma relação nítida de interesses.
A qualquer momento, Temer poderá ser fuzilado por uma das seguintes alternativas:
1.      Uma delação de Cunha ou de outros membros da quadrilha.,
2.      Uma denúncia da Procuradoria Geral da República.
3.      Vazamentos de informações pelos jornais e redes sociais.
Será possível ao país conviver com um interino com tais vulnerabilidades, com uma biografia polêmica, uma companhia suspeita e tendo nas mãos a mais poderosa caneta da República?
Um interino sem dimensão política
Dilma entendeu a dimensão da crise, mas não teve competência para enfrentá-la. Temer sequer logrou um diagnóstico consistente sobre o cenário atual. É surpreendente que, em algum momento de sua vida, criasse fama de intelectual. Suas declarações públicas não conseguem ir além dos ecos da imprensa,.
A maneira como se escora em Cristovam Buarque é deprimente. Alardeou aos quatro ventos o grande elogio recebido de Cristovam, que disse que só votaria pela volta de Dilma se ela mantivesse Henrique Meirelles e a equipe econômica. Ou seja, o aggiornamento de Cristovam não foi apenas em relação ao PT, mas à própria social democracia e à função do Estado que um dia fizeram parte de sua biografia.
Cristovam é uma espécie de Eugenio Bucci do Senado, equilibrando-se permanentemente entre extremos através de declarações rasas de um equilibrismo vazio.
A receita da lição de casa – os sacrifícios impostos aos cidadãos – funcionou quando podia se invocar o fantasma da hiperinflação. Qualquer sacrifício seria legítimo, pois todos eles visariam impedir a volta do fantasma.
O momento é outro. Têm-se uma população que experimentou períodos de bonança, conquistou direitos, incluiu-se no mercado e não aceita retrocessos. Para ela, Temer acena com mudanças radicais na Previdência, cortes nos gastos sociais com educação e saúde, aparelhamento da máquina pública com o que de pior a fisiologia política criou, a corrupção endêmica, profundamente enraizada na atuação política do grupo que empalmou o poder.
A democracia sem votos
É nessa sinuca que se desenvolve a tese da democracia sem votos, um sistema controlado pelas corporações públicas, pelo Ministério Público Federal e Tribunais superiores, pelos Tribunais de Contas associados à mídia.
É por aí que se entende a geopolítica norte-americana, de aproximar-se das estruturas dos Ministérios Públicos e Judiciários nacionais. Aliás, como bem lembrou Dilma na entrevista à Pública, a interferência externa não é agente central do golpe, que é fundamentalmente coisa nossa.
Será impossível se aplicar as teses neoliberais a seco. Nem encontrar políticos de discurso claro e vida limpa para conduzir o desmonte do Estado social sem ter o que mostrar pela frente.
Olhando todas essas peças do jogo, há movimentos que tenderão a crescer exponencialmente:
1.      Contra o golpe, ganhará fôlego a tese da constituinte exclusiva para a reforma política, suprapartidária, tendo como bandeira comum a crítica à crise de representatividade do Parlamento e dos partidos.
2.      Como aprimoramento do golpe, inicialmente a tentativa de tucanização de Temer, esbarrando na dinâmica da Lava Jato, de criminalizar também as lideranças tucanas até agora poupadas. Todos fazem parte do mesmo balaio.
3.       Como saída alternativa, o impedimento da chapa Dilma-Temer seguido de eleições indiretas visando consagrar alguém fora da política tradicional para completar o trabalho.
4.       Como lance final, maneiras de inviabilizar as eleições de 2018, pela óbvia impossibilidade de vencer eleições montado na velha lição neoliberal de desmonte das conquistas sociais.
Artigo publicado originalmente no site GGN – O jornal de todos os jornais.
http://jornalggn.com.br/noticia/o-xadrez-da-rainha-da-inglaterra-e-do-interino-do-jaburu

Hipóteses sobre a etapa atual do impeachment e um caminho para a saída da crise

A ampla divulgação, pela grande mídia corporativa, de denúncias envolvendo integrantes do primeiro escalão do governo interino de Michael Temer e também a divulgação do pedido de prisão de altos dirigentes do PMDB, Renan Calheiros, presidente do Senado, Romero Jucá, ex-ministro do planejamento, e de José Sarney, ex-presidente da República e do Senado, deixaram aturdidos os analistas políticos e, principalmente, os cidadãos comuns que procuram entender os rumos da política nacional.
Por que motivos a grande mídia, que tudo fez para desgastar o PT e suas lideranças e para criar o clima que possibilitou o afastamento, ainda temporário, da presidenta Dilma Rousseff, agora se apressa em divulgar, em amplas manchetes, os descalabros do governo Temer e de seus integrantes, incluindo acusações que atingem o próprio presidente interino?
Por que motivos o Procurador Geral da República, Rodrigo Janot, que já havia pedido investigação sobre as alegadas propriedades do ex-presidente Lula da Silva e também sobre suas possíveis ações em benefício de grandes empreiteiras brasileiras no exterior, o que contribuiu em muito para desestabilizar o governo de Dilma Rousseff, depois de ter conseguido o afastamento do presidente da Câmara, Eduardo Cunha, pede, agora, a prisão de figuras chaves do governo de turno?
As evidências disponíveis para a interpretação do jogo político em curso indicam que a articulação jurídico-parlamentar-midiática é muito maior, mais profunda e mais complexa do que tirar Dilma Rousseff e o PT do governo e, de quebra, impedir que Lula da Silva seja candidato em 2018. Há, pelo menos, duas hipóteses a serem analisadas para compreender os fatos, ambas reveladoras de que há um intenso processo de disputa no interior das forças que promoveram o impeachment e que desestabilizaram o país.
A primeira delas, mais simples, é a de que o PSDB, os procuradores federais, juízes e delegados que integram a Força Tarefa da Operação Lava Jato, mais o Procurador Geral da República, Rodrigo Janot, e, ainda, parte do STF estejam aliados e disputando com Temer a posse do poder. Para destituir Dilma, eles teriam se aliado a Michel Temer e a Eduardo Cunha, em um primeiro momento. Cumprida a primeira etapa do processo, teria chegado a hora de afastar o presidente interino e conquistar o governo.
Para que isto seja possível, alguns peessedebistas poderiam até ser defenestrados, como por exemplo Aécio Neves, um dos campeões de citações nas delações premiadas envolvendo empreiteiras que atuaram na Petrobras, para que outros tucanos, talvez Geraldo Alckmin ou José Serra, tenham chance de disputar e vencer em uma nova eleição a ser realizada ainda neste ano, por meio do voto popular, ou no ano que vem, por meio do voto dos parlamentares – pois de acordo com Constituição, se a presidente Dilma e seu vice Temer forem destituídos durante a primeira metade do mandato para o qual foram eleitos, ocorrerão novas eleições populares; se, no entanto, a destituição dupla ocorrer na segunda metade do mandato, as eleições serão indiretas.
A segunda hipótese de análise, mais ousada e mais nebulosa, é a de que a articulação em curso inclua apenas a já chamada República de Curitiba, ou seja a parcela de procuradores federais e delegados da PF integrantes da Força Tarefa da Operação Lava Jato, mais Rodrigo Janot e parte do STF, deixando de fora o PSDB e seus próceres. Na possibilidade de esta interpretação ser a correta, este conjunto de personagens estaria atuando para promover uma “limpeza geral” dos atuais quadros políticos nacionais e um desmonte completo das instituições políticas atualmente existentes no país.
Neste caso, as acusações aos políticos e os seus vazamentos, bem como os afastamentos, as prisões e as destituições continuariam com toda a força, não poupando integrantes de nenhum partido político e de nenhuma instância do governo Federal. Não apenas Lula da Silva, Dilma Rousseff, Eduardo Cunha, Renan Calheiros, José Sarney, Michael Temer e os integrantes de seu governo interino seriam investigados, processados e talvez presos, mas também Aécio Neves e, ainda, José Serra e Geraldo Alckmin e, ousadia suprema, chegaria a Fernando Henrique Cardoso. Até mesmo Marina Silva, que vinha se mantendo impune até há poucos dias, estaria sujeita a punições por fraudes e propinas utilizadas no financiamento da campanha eleitoral de seu antigo companheiro, Eduardo Campos, e dela própria.
A falta de informações confiáveis impede que se possa antever até onde poderá ir a chamada República de Curitiba. Sua força advirá apenas da aliança construída com a grande mídia corporativa e alimentada pelos vazamentos seletivos de depoimentos e acusações realizados em momentos estrategicamente planejados ou existirão aliados mais poderosos, possivelmente de fora do país? É sabido e foi amplamente noticiado que grande parte dos integrantes da força tarefa da Lava Jato e delegados da PF receberam treinamento no FBI, por força de convênio firmado durante o governo FHC e ainda vigente, e os procuradores federais brasileiros mantêm estreitas relações com seus congêneres norte-americanos. Além disso, a proximidade de Rodrigo Janot e Sérgio Moro com a justiça dos EUA é tão grande, que eles têm prestado informações confidenciais a respeito da Petrobras no processo movido contra ela por investidores internacionais que se julgaram prejudicados pela diminuição dos valores de suas ações na bolsa de Nova Iorque.
Cabe lembrar, ainda, que a Petrobras e o Pre-Sal, que garantirão ao Brasil a posse da quinta maior reserva petrolífera do mundo, foram os alvos da espionagem realizada pela NSA, agência nacional de espionagem norte-americana, sobre a presidenta Dilma Rousseff e todo seu staff palaciano. Escândalo que veio a público em 2012 e que estremeceu as relações entre o Brasil e os EUA, fazendo com que a presidenta brasileira cancelasse encontro anteriormente agendado com o presidente daquele país.
Qualquer que seja a hipótese verdadeira dentre as duas aqui consideradas, o fato concreto é que o país enfrentará um enorme desafio para reconstruir suas instituições ao final do tsunami político em curso.
Na Itália, onde ocorreu ação jurídico-midiática semelhante à que ocorre no Brasil hoje, com a Operação Mãos Limpas, durante os anos de 1992/1996, o saldo final foi desastroso. As máfias, que se pretendiam expurgar do país e da política, assumiram diretamente o poder por meio da conquista dos espaços políticos deixados vagos no Parlamento por força das cassações e prisões. Sílvio Berlusconi, dono do maior conglomerado de mídia do país, envolvido em casos de sonegação fiscal e associado aos segmentos políticos e empresariais mais retrógrados do país, foi eleito Chefe do Conselho de Ministros (Primeiro Ministro) e exerceu o poder durante nove longos anos. Ainda hoje, passados já 20 anos do encerramento do processo, os representantes das novas máfias continuam exercendo grande influência na política italiana.
No Brasil, a desestruturação política das instituições do Estado e das empresas nacionais responsáveis pela construção das plataformas submarinas de exploração de petróleo e pelo desenvolvimento do submarino e do projeto nuclear brasileiro, entre outras ações estratégicas, tem sido tão intensa e tão profunda que exigirá muito tempo e muito esforço para ser superada.
Está em curso o desmanche das instituições políticas e o enfraquecimento das únicas empresas nacionais aptas ao desenvolvimento de tecnologia de ponta e com capacidade de concorrer no mercado internacional, decorrente da forma como foram feitas as ações de combate à corrupção executadas por integrantes da Procuradoria Geral da República e do Poder Judiciário brasileiro.
A partir do início do governo interino, passaram a ser desmontadas também as políticas sociais, que garantiram a inserção de milhões de pessoas principalmente ao mercado de consumo, ao ensino e à saúde públicos, e a política de inserção internacional do país em uma posição de protagonismo entre as nações em desenvolvimento.
No espaço político, mesmo que Eduardo Cunha e Renan Calheiros sejam destituídos definitivamente de seus cargos e de seus mandatos e até mesmo presos, as bancadas BBB (da Bala, da Bíblia e do Boi), que reúnem os políticos mais reacionários da política brasileira, aliadas aos deputados e senadores eleitos pelo poder dos recursos de empresas privadas, continuarão dominando as votações na Câmara e no Senado e impondo novas derrotas e novos sobressaltos à governante, em caso de seu difícil retorno.
Além disso, os estragos feitos por Temer e seus aliados durante o exercício do governo interino, tanto nas políticas sociais, quanto na política econômica e, ainda, na política externa brasileira, dificilmente serão revertidos sem que se componha nova maioria parlamentar, só possível com a eleição de novos representantes no Congresso Nacional.
A disputa interna estabelecida e acirrada entre os articuladores e executores do processo de impeachment de Dilma Rousseff, aliada à resistência popular, eclodida em manifestações de repúdio a Temer em todo o país, ao surgimento de movimentos, comitês e núcleos em defesa da democracia e do estado democrático de direito, à baixa aprovação do governo interino, aferida por pesquisas de opinião pública e, ainda, à possível divulgação de uma carta, por meio da qual a presidenta afastada se comprometeria, tão logo reassumisse o cargo, a apresentar proposta de consulta popular sobre sua permanência ou a realização de eleições gerais no país, talvez possam influenciar o voto de um número suficiente de senadores para reverter o processo de impeachment.
Em qualquer um destes dois cenários – a permanência da presidenta ou a realização de eleições gerais no país – para reverter as medidas de desmonte do Estado efetuadas pelo governo interino, promover uma ampla reforma política e institucional e, com isto, dar início a um processo de reconstrução do país, será necessária a constituição de uma ampla frente política.
Sem a constituição de uma grande e ampla frente, na qual partidos políticos, movimentos sociais, sindicatos e as novas organizações surgidas à margem das anteriores ajam em conjunto e tenham o mesmo peso nas decisões, de forma semelhante à Frente Ampla Uruguaia, o fôlego da resistência será curto e a força reunida será insuficiente para que se possa superar a crise atual.
Uma Frente Ampla, como a que vem sendo proposta por alguns movimentos, núcleos e comitês de resistência ao golpe e de defesa da democracia, só vingará se for assumida pelos partidos e líderes políticos de esquerda e centro-esquerda, acolhendo os partidos de centro e todos os liberais democratas que se mostrarem dispostos a participar da luta pela reconstrução das instituições políticas brasileiras.
Os partidos políticos de esquerda e de centro-esquerda, até agora pelo menos, não deram mostras de estarem dispostos a construir uma frente ampla deste tipo. A Frente Brasil Popular continua com muitos dos antigos vícios hegemonistas dos partidos que a compõem. A Frente Povo Sem Medo, ainda não contaminada por práticas oligárquicas, posto que recentemente fundada, não conseguiu sequer a adesão da totalidade dos dirigentes do PSOL, muitos deles ainda simpáticos ao processo de impeachment de Dilma Rousseff.
Vejam-se, além disso, as articulações para as candidaturas das eleições municipais a se realizarem em outubro, nas quais cada partido tenta impor o seu candidato. De modo geral, não há renovação sequer de nomes, quanto mais de propostas e de posturas. Sendo assim, enquanto as oligarquias partidárias de esquerda não reavaliarem suas práticas, dificilmente vingará a possibilidade de composição de uma verdadeira Frente Ampla Democrática.
Será preciso uma enorme pressão dos movimentos recém surgidos na cena política brasileira, para fazer os militantes e dirigentes partidários entenderem que ou eles se renovam ou todos nós teremos muito pouca chance de mudar o jogo e de reestruturar o país no rumo da construção de uma efetiva democracia social em um tempo não muito dilatado.
Programas de frentes amplas têm que ser construídos em conjunto com os parceiros e nunca a priori, por apenas um ou por um pequeno grupo de forças políticas que tome a dianteira. Cada um dos integrantes precisa ter peso semelhante na formulação das propostas e, ao final, liberdade para aceitá-las ou não. Se algum dos possíveis parceiros se colocar como liderança e tentar definir isoladamente que rumos e que limites estabelecer, estará comprometida, desde o início, a frente agora proposta, pois, mais uma vez, haverá alguém ou um partido assumindo ou tentando assumir uma posição de hegemonia sobre os demais.
Só quando cada um dos movimentos, núcleos, comitês e partidos políticos realmente comprometidos com a democracia e a construção de um país socialmente mais justo se dispuserem a caminhar juntos sob estas bandeiras, teremos uma chance concreta de converter o processo de desmonte político-institucional, social e econômico em curso em um amplo, profundo e salutar processo de reconstrução e reestruturação nacional.

Discurso político da mídia

No imaginário popular, a informação trazida pela grande mídia, seja escrita seja rádio-televisiva, caracteriza-se pela objetividade e neutralidade. A própria mídia reafirma reiteradamente o caráter deontológico de sua atuação.
No entanto, a realidade é bem diferente. Todas as sociedades, inclusive a brasileira, são compostas de classes com condições de vida, interesses econômicos e visões de mundo antagônicos. Nelas, os aparelhos políticos servem predominantemente para permitir que setores economicamente dominantes mantenham seu poder, o que implica a possibilidade de subalternizar e explorar outras classes. As grandes empresas, essencialmente dedicadas ao lucro e que vendem informação, servem para manter essa “ordem constituída”.
Porém o lucro dessas empresas, que advém, sobretudo, da venda de publicidade e propaganda, repousa essencialmente na audiência. Audiência que representa igualmente uma imensa massa de eleitores e consumidores potenciais cujas consciências precisam ser moldadas. Para tanto, a mídia necessita apresentar os fatos de modo tal a convencer a maioria dessa massa de auditores, telespectadores e leitores da pertinência de certos fatos e de certas ideias.
Para atingir esse objetivo, toda a grande mídia, esse verdadeiro “poder não eleito”, tende a usar mais ou menos as mesmas técnicas: seleciona as notícias; enfatiza certos fatos em detrimento de outros; prestigia acontecimentos, discursos, eventos – dando-lhes muito espaço – ou, ao contrário, minimiza-os, apresentando-os sob forma de flashes intercalados com notícias de menor interesse, etc.
Mídia e linguagem
Nesse combate político, cultural e ideológico, a linguagem em geral [imagens, mímicas…] e a linguagem verbal em particular têm um papel central. Entre os recursos linguístico-discursivos usados, um dos mais relevantes – e que engloba muitos outros – é o fato de ela produzir e reproduzir uma linguagem e um discurso “de massa”, empobrecido, no qual, sobretudo, palavras semanticamente complexas são usadas apenas com um de seus conteúdos referenciais. Na televisão especialmente, isso se dá até mesmo em programas de variedade ou de esporte.
Além disso, a mídia consegue, através da nomeação, criar fatos (as guerras de conquista de territórios e de matérias-primas passam a ser guerras humanitárias) e categorias sociais (os rebeldes no Iraque ocupado pelos EUA, congêneres dos partisans, résistants, partigiani da luta contra o nazi-fascismo na Europa, passaram a ser chamados de terroristas). Nomeando, ela cria sentimentos de aversão em relação a certos setores sociais. Ao chamar, sistematicamente, alguns moradores de bairros pobres que cometem ou são suspeitos de cometer atos ilícitos, de sujeitos, indivíduos, elementos, ela aproxima-os dos marginais, ladrões, foras da lei, dentre outros. Ao contrário, quando exponentes das classes dominantes cometem delitos, continuam sendo chamados de deputados, senadores, juízes, executivos, diretores, etc. Retomando Bourdieu, em alguns contextos de enunciação, as palavras “fazem coisas, criam fantasias, medos, fobias ou, simplesmente, falsas representações” . (BOURDIEU, 1996, 19).
Isso pode culminar, em situações de forte contraste social, político e econômico, em um poder da mídia tão grande que a “atualidade argumentativa passa a ser essencialmente tributária das escolhas feitas pelos meios de comunicação dominantes.” (SCHEPENS, 2006, 1). Tivemos um exemplo paradigmático disso quando a mídia brasileira, com raríssimas exceções, promoveu e defendeu com unhas e dentes o impedimento da presidenta Dilma Roussef, eleita em final de 2014, com 54% dos votos. Nesse caso, a atualidade argumentativa criada pela mídia, e mais especificamente pela Rede Globo, deu-se através da imposição da palavra inglesa impeachment, que refletiria uma ação prevista pela constituição brasileira, em contraste com a realidade objetiva, descrita de modo mais pertinente pela palavra golpe.
Tendências
Após a concretização desse processo anticonstitucional e a posse de um presidente e de um governo interinos, a mídia brasileira serve-se agora de outros recursos para confirmar o fundamento de suas escolhas anteriores e impedir que novas leituras possam ser feitas acerca do governo interino. Esses recursos dizem respeito não apenas ao uso de palavras, mas também a aspectos morfossintáticos, paraverbais – como a entonação – e não verbais – tais como a mímica. Vejamos algumas das tendências de construção desse discurso.
A eufemização, que serve para relativizar, ocultar e justificar medidas antissociais, golpistas, ilegais, anticonstitucionais e antipopulares do governo interino, assim como dos setores econômicos que os apoiam. Assim, o que está em curso não seria uma reforma trabalhista, mas uma modernização trabalhista, com uma diversificação profissional do trabalhador, conforme anunciado na maior parte dos grandes veículos. A manchete do jornal O GLOBO de 17 de maio anunciava que “Temer vai propor flexibilizar jornada de trabalho e salário”, justificando essa medida no subtítulo “Reforma trabalhista daria mais força às negociações coletivas”, quando sabemos que é exatamente o contrário que está sendo proposto.
A nova conjuntura política e econômica decorrente do golpe institucional contra a presidenta Dilma é positivada e supervalorizada, por meio do uso de palavras com conotação positiva, consideradas “bonitas” pelo sentimento linguístico da maioria. Fala-se em novo governo, retomada econômica, retomada da confiança, aumento dos investimentos, expectativa da sociedade e dos mercados, recuperação do poder de compra, salvação do país, etc.
Os tropeços, irregularidades, ações ilícitas, etc. do governo interino são amenizados e apresentados de modo a torná-los menos transparentes e a confundir o telespectador ou leitor. Logo após a divulgação das conversas comprometedoras entre o então ministro Romero Jucá com Sérgio Machado, o Jornal Nacional da Globo, de 23 de maio, noticiou: “Romero Jucá é levado a se licenciar”. A forma passiva tem como efeito retirar ou diminuir a responsabilidade do sujeito da frase, colocando-o quase numa posição de vítima da ação de outra entidade. E, na sequência, o âncora relatou que Jucá foi elogiado por Temer por sua atuação enquanto ministro, numa tentativa de amenizar a possível culpa do personagem. Ainda durante os poucos minutos em que divulgou a notícia ainda recente da revelação da conversa entre Jucá e Machado, o âncora do JN acentuou a má qualidade do áudio e o fato de a Folha de São Paulo não ter publicado a totalidade da conversa, fragilizando assim o enunciado e fortalecendo o enunciador das “conversas gravadas [que] derruba[ra]m o ministro do planejamento do PMDB”.
Os malfeitos do governo interino são acobertados pela mídia dispersando seu registro em meio a notícias de provável forte efeito sobre a grande massa dos telespectadores ou contrapondo aqueles malfeitos aos de partidos da agora oposição. No mesmo programa de notícias do dia 23 de maio, as revelações da Folha de São Paulo foram rapidamente anunciadas em flashes dispersos, em meio a outras notícias, entre elas a denúncia contra o governador de Minas Gerais, do PT.
Assim como aconteceu com essa última notícia sobre o governador Fernando Pimentel, que quase se sobrepôs à gravação de conversas comprometedoras do ministro do planejamento Jucá, muito mais relevantes no atual contexto político, tende a haver, na mídia, um transbordamento dos tropeços, atuais e passados, da presidenta Dilma, de seus ministros e aliados. Notícias sobre esses erros ou supostos erros invadem todas as instâncias das notícias. O governo destituído, também graças à ação da mídia, como vimos, continua sendo demonizado e desprestigiado, assim como seus membros e seu entorno (CUT, MST, etc.), por meio de palavras negativamente conotadas, inseridas em contextos enunciativos relacionados sobretudo à crise econômica. A mídia focaliza situações difíceis, fenômenos negativos, etc. como exclusivamente decorrentes dos governos do PT. Fala-se, por exemplo, da perda de leitos nos hospitais, durante o governo da Dilma; da queda de confiança, nas últimas décadas; da situação complicada comparada com outros países do Mercosul; do esgotamento de um modelo, etc.
Em muitos casos, o descrédito recai, covardemente, sobre a individualidade dos protagonistas do governo destituído. Durante o processo de impeachment, a revista Isto É (abril 2016) apresentou, numa reportagem que atingiu o auge da misoginia, a presidenta Dilma como uma “histérica”, propensa a “explosões nervosas”, a “surtos de descontrole”, por causa da iminência de seu afastamento (sic), que grita, xinga, ataca, tendo perdido condições emocionais para conduzir o país”.
A política externa dos governos do PT, ainda que não tenha sofrido variações ao longo desses 14 anos, é hoje chamada de política “partidária”, irresponsável”; além disso, muitos dos governos da América Latina com os quais o Brasil mantinha relações são chamados agora de governos esquerdistas.
O que a mídia tem procurado mais escamotear, menosprezar e desqualificar, após o início do processo de golpe institucional contra a presidenta Dilma, são os inúmeros e variados atos promovidos pela população em protesto contra o golpe e, agora, contra o governo usurpador. As técnicas usadas são mais sutis porque, até recentemente, atos públicos a favor do impeachment eram supervalorizados e apresentados como democráticos e populares. As atuais manifestações, apesar de serem mais frequentes, maiores e mais universais, ganham muito pouco espaço na mídia, quando não são literalmente ignoradas. É mais uma vez através da manipulação dos conteúdos referenciais de determinadas palavras que a mídia tem conseguido desqualificar esse movimento multitudinário. A mídia tem desqualificado sistematicamente essas manifestações por advirem de movimentos sociais, especificando tratar-se de sindicatos (CUT), partidos (PT, entre outros) e outras organizações, como o MST e o MTST. É mais uma estratégia para impor à massa de telespectadores e leitores apenas uma acepção do lexema “movimento social”, muito mais amplo, cunhado como foi através da história das ações coletivas de homens e mulheres na defesa de seus direitos, na luta contra as injustiças e os desequilíbrios sociais.
Essa estratégia da mídia não só desqualifica os homens e as mulheres que saem às ruas para protestar, mas menospreza toda a esquerda, assimilando-a a uma grande massa de manobra, alienada, de um partido político ou de organizações específicas. Por outro lado, esses atos são mostrados a partir de ângulos geralmente desfavoráveis e sem jamais entrevistar os participantes e dar a eles a possibilidade de evidenciar sua heterogeneidade, a seriedade de suas reivindicações e a riqueza de seus pontos de vista sobre os fatos políticos em curso.
Do conjunto dessas estratégias de manipulação das informações, o que fica para o telespectador desinformado é uma visão simplista, generalizante, preconceituosa da situação social e política do Brasil.
Florence CarboniFlorence Carboni – Linguista. Professora do Departamento de Línguas Modernas e do Programa de Pós-Graduação do Instituto de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Patrícia ReuillardPatrícia Reuillard – Linguista. Professora do Departamento de Línguas Modernas e do Programa de Pós-Graduação do Instituto de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

O novo governo (interino) do Brasil e os (des)caminhos da política externa

Diego Pautasso*
O Brasil está numa encruzilhada. Não faz muito, se cacifava para ser protagonista da cena internacional. Liderava, não sem sobressaltos, a integração sul-americana (UNASUL, CELAC, MERCOSUL), intensificava sua presença na África, atuava com desenvoltura junto aos emergentes (BRICS, IBAS), articulava coalizões e cúpulas importantes (G20, Cúpula América do Sul-África e América do Sul-Países Árabes), buscava ativamente um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU e conquistava a condição de sede dos dois mais relevantes eventos esportivos do mundo (Copa e Olimpíadas).
Em âmbito interno, segundo o IBOPE, a popularidade da Presidenta Dilma Rousseff havia alcançado 79% em março de 2013, sendo que 63% consideravam o governo Dilma ótimo ou bom, 29% regular e apenas 7% ruim ou péssimo1. A economia terminou o ano apresentando trajetória confortável (DANTAS; JABBOUR, 2016), com superávit primário do setor público (1,9%); inflação moderada (5,9%), crescimento do PIB (2,5%) e baixo desemprego (5,4%); poder de compra e massa salarial em ascensão; solidez internacional com reservas de 375,8 bilhões de dólares; créditos dos bancos públicos e investimentos em infraestrutura (228,6 bilhões) crescentes; entre outros.
A partir das manifestações de junho de 2013, a situação se deteriorou. Os movimentos foram capturados e impulsionados pela grande mídia, desembocando nas manifestações contra a Copa do Mundo de 2014. O sucesso da organização do evento e a reeleição da Presidenta, garantindo o quarto mandato para a coalizão liderada pelas forças progressistas, cindiram o país. Enquanto o governo cedia e assimilava a agenda macroeconômica do candidato derrotado, ao nomear Levy para a Fazenda, as forças conservadoras e neoliberais aprofundavam a ofensiva. Distanciada a Presidenta de sua base política, a crise socioeconômica se aprofundou e criou as condições para o golpismo – que até convivia com o governo em razão do desempenho econômica e da popularidade. Em âmbito internacional, a diplomacia do governo Dilma mantivera, essencialmente, a mesma linha do antecessor, mas com menor ênfase e significativos acenos a pautas usualmente identificadas com o campo liberal-conservador, como a aproximação com a OCDE e o acordo de liberalização comercial com a União Europeia. Esses movimentos coexistiram com outros de forte valor simbólico, como o cancelamento da visita aos EUA após a revelação de Snowden e a abstenção, na AGNU, a respeito da resolução sobre a integridade territorial da Ucrânia, acompanhando os demais BRICS. Chanceleres com menor protagonismo, o desinteresse da presidência e, depois da reeleição, a crise e a espiral golpista, fez a política externa perder relevância. De todo modo, manteve-se o que chamamos de ‘autonomismo com diferenças de ênfase’ (PAUTASSO; ADAM, 2014).
O PMDB, que já dominava o maior número de prefeituras, governos estaduais, deputados e senadores, além da presidência das duas casas, chegava pela terceira vez à presidência sem voto popular. Apesar da hegemonia política, a um só tempo, o partido criticava o governo do qual fazia parte e apresentava-se como solução política e moral. Assim, o novo governo (interino) de Temer não retomou a confiança, com atestam a popularidade inferior à da Presidenta deposta e o desempenho das bolsas e do dólar, nem logrou a propalada “união” nacional, vide o pipocar de protestos por todos os cantos do país. As principais forças vivas da sociedade, intelectuais, juristas, movimentos sindicais e operários, estudantes e artistas têm realizado sistemáticas manifestações por todo o país.
Ademais, em duas semanas de governo, o ministro do Planejamento e principal articular político, Romero Jucá, seus dois indicados no IBGE e IPEA2 e o ministro da Transparência3, Fabiano Silveira, foram exonerados em razão de escutas que revelavam as maquinações políticas que levaram ao golpe, expondo as vísceras da vida política nacional. Deve-se destacar que as sinalizações do governo vão na direção de política econômica liberalizante e asfixia das políticas sociais, anunciando o recrudescimento dos conflitos de classe.
Em âmbito internacional, notícias na mídia internacional dão conta majoritariamente de que houve um golpe e o governo goza de pouca legitimidade. Nota-se que chefes de Estado não têm ligado para o reconhecimento protocolar do novo governo ou mantido distanciamento, enquanto eurodeputados exigem que a União Europeia não negocie com o governo Temer. Além disso, o secretário-geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), Luis Almagro, reitera que o ocorrido no país foi golpe4; e sua Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) publica comunicado expressando preocupação com “retrocessos” 5. A mesma reação ocorreu por parte do Secretário-Geral da UNASUL, Ernesto Samper, e dos governos da Venezuela, Cuba, Bolívia, Equador e Nicarágua, assim como da Aliança Bolivariana para os Povos de Nossa América/Tratado de Comércio dos Povos (ALBA/TCP). Até o Papa Francisco manifestou preocupação com os ‘golpes brancos’ na América do Sul e o risco de escalada de conflitos sociais em países como Brasil, Venezuela, Bolívia e Argentina6.
Diante desse quadro, as medidas do chanceler interino Serra causam apreensão. Primeiro, as duas notas7 do MRE repudiando as declarações de Samper da UNASUL e dos governos vizinhos revelam o viés da condução da diplomacia para a região. Segundo, a decisão do Itamaraty de instruir embaixadores a combater ativamente a tese do golpe8 é reveladora das percepções internacionais. Terceiro, outra medida sintomática das escolhas internacionais, foram as notícias relacionadas à encomenda de estudo sobre os custos das embaixadas na África e no Caribe9, assim como a disposição prioritária do chanceler interino de participar de reunião da OCDE10. Há, inegavelmente, uma mentalidade colonizada manifesta no silêncio diante de grandes embaixadas em países inexpressivos da Europa e na incapacidade de compreender o sentido estratégico da região e do Atlântico Sul-África para o país, seja em âmbito econômico-comercial e/ou diplomático-securitário.
No discurso de posse, o novo chanceler disse que a diplomacia não mais seria conduzida conforme as “conveniências e preferências ideológicas”. Essa é uma narrativa, contudo, eivada de ideologias, ao supor-se portadora dos interesses da sociedade e do Estado, como destacou o ex-Assessor Especial para Assuntos Internacionais da Presidência, Marco Aurélio Garcia11. A diplomacia é uma política de Estado, com necessários traços de continuidade, mas, sobretudo, é uma política e deve refletir as opções de cada governo. Ademais, enquanto Lula e Dilma nomearam como chanceleres quatro diplomatas de carreira com sólida trajetória no Itamaraty, Temer nomeou um presidenciável líder da oposição. Basta observar as declarações de alguns de seus formuladores, como Rubens Barbosa12 e Rubens Ricupero, para perceber a prioridade por restringir o Mercosul à liberalização comercial, diminuir a ênfase dada ao BRICS e priorizar acordos de livre comércio com o centro do sistema (EUA e UE). Nesse último caso, como diz o ex-ministro Celso Amorim, as negociações podem culminar na entrega de “todas as suas joias” sem sequer receber “bijuterias”13. Em suma, tudo indica que a disposição de buscar – utilizando os conceitos de Vigevani e Cepaluni (2007) – ‘autonomia pela diversificação’ a partir do fortalecimento das relações Sul-Sul, dará lugar ao retorno do alinhamento com os polos centrais.
Enfim, o novo governo Temer, cuja permanência se torna incerta em função desse quadro político e econômico, deverá alterar os rumos da política externa. O possível saldo, contudo, é preocupante, pois a grave crise atual atingiu o país em cheio, acabando por cindi-lo politicamente, desacreditar as instituições, fragilizar setores-chave da indústria nacional (petróleo e construção civil), paralisar a economia e desacreditar sua imagem internacional. Em âmbito internacional, há o risco de o Brasil retomar a diplomacia discreta dos anos 1990, pois seu chanceler vê o Itamaraty como trampolim político e sequer reconhece suas tradições. Resta acreditar no provérbio chinês, ao se deparar com sombrias aflições, que de nuvens mais negras cai água límpida e fecunda…
[avatar user=”X-CDD – Diego Pautasso” size=”original” align=”left” /]* Diego Pautasso é doutor e mestre em Ciência Política, professor de Relações Internacionais da ESPM Sul e UNISINOS, autor do livro China e Rússia no Pós-Guerra Fria, editora Juruá, 2011. E-mail: dgpautasso@gmail.com
 
Bibliografia
AMORIM, Celso. Entrevista “Somos vistos como ponto de equilíbrio do continente. Não podemos perder isso”. In: El País. 23/05/2016. Disponível em: http://brasil.elpais.com/brasil/2016/05/17/politica/1463513447_190209.html.
DANTAS, Alexis; JABBOUR, Elias. Economia, dinâmica de classes e Golpe de Estado no Brasil. In: Texto para Discussão. nº 3, maio, 2016, disponível em: http://plataformapoliticasocial.com.br/wp-content/uploads/2016/05/Artigo-Brasil-Alexis-e-Elias1.pdf. Acesso em 03/06/2016.
PAUTASSO, Diego; ADAM, Grabriel. A política da política externa brasileira: novamente entre a autonomia e o alinhamento na eleição de 2014. In: Conjuntura Austral. vol. 5, n° 25, pp. 20-43.
VIGEVANI, Tullo  and  CEPALUNI, Gabriel. A política externa de Lula da Silva: a estratégia da autonomia pela diversificação. In: Contexto Internacional. 2007, vol. 29, n°2, pp. 273-335.
Notas

  1. Ver notícia no site Último Segundo. Disponível em: http://ultimosegundo.ig.com.br/politica/2013-03-19/popularidade-de-dilma-bate-novo-recorde-e-sobe-para-79-diz-ibope.html
  2. Ver notícia em O Globo disponível em: http://oglobo.globo.com/brasil/apos-saida-de-juca-temer-troca-comando-do-ipea-do-ibge-19411414
  3. Ver notícia em Agência Brasil disponível em: http://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2016-05/ministro-da-transparencia-pede-demissao-do-cargo
  4. Ver notícia em Estadão disponível em: http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,secretario-geral-da-oea-defende-garantia-do-mandato-de-dilma-e-continuacao-da-lava-jato,10000022530
  5. Ver notícia no site da OEA disponível em: http://www.oas.org/pt/cidh/prensa/notas/2016/067.asp
  6. Ver notícia em O Dia disponível em: http://odia.ig.com.br/noticia/rio-de-janeiro/2016-05-25/papa-diz-que-pode-estar-ocorrendo-golpe-branco-na-america-do-sul.html
  7. Ver notícia no site G1 disponível em: http://g1.globo.com/politica/processo-de-impeachment-de-dilma/noticia/2016/05/itamaraty-critica-governos-de-5-paises-por-propagar-falsidades-sobre-brasil.html
  8. Ver notícia em Estadão disponível em: http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,secretario-geral-da-oea-defende-garantia-do-mandato-de-dilma-e-continuacao-da-lava-jato,10000022530
  9. Ver notícia em Folha de São Paulo disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/mundo/2016/05/1771982-serra-pede-estudo-de-custo-de-embaixadas-na-africa-e-no-caribe.shtml
  10. Ver notícia em O Globo disponível em: http://oglobo.globo.com/economia/serra-embarca-para-paris-onde-participara-de-reuniao-da-ocde-19386876
  11. Ver notícia no Estadão disponível em: http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,marco-aurelio-garcia-rebate-serra-e-ironiza-cabecas-iluminadas,10000052419
  12. Ver entrevista na Exame disponível em: http://epoca.globo.com/tempo/noticia/2016/04/rubens-barbosa-acao-do-pt-no-exterior-e-pessima-para-o-brasil.html
  13. Ver entrevista no El País disponível em: http://brasil.elpais.com/brasil/2016/05/17/politica/1463513447_190209.html

No rastro da nova-velha direita e o giro reacionário do senso comum brasileiro – 1

bruno_KQBruno Lima Rocha*
Introdução
Neste primeiro artigo, inicio uma breve série tentando mapear a nova (velha) direita. O objetivo deste e dos textos que seguirão é tentar identificar a origem contemporânea do giro reacionário do senso comum brasileiro e suas similitudes com o conservadorismo dos EUA, e, por consequência, a transferência do léxico, do glossário e das identidades políticas gestadas no interior do sistema político do Império. Entendo que, se identificarmos os focos domésticos e internacionais do pensamento conservador, reacionário, ultraliberal e com laços neofascistas, estaremos aptos a tentar estancar o que venho afirmando como “fedor de linha chilena” tendo vasto crescimento no Brasil.
A ascensão do reacionarismo nos últimos dez anos: a aliança entre neopentecostais e a extrema direita militar e policial 
O Brasil vive um momento de ascensão de ideias conservadoras, a maior parte destas transitando pelo ultraliberalismo, podendo ser rastreada esta linha como equivalente às da direita do Partido Republicano (ou seja, a extrema direita de corte neoliberal) e combinadas com o pensamento conservador, ou do pacto neoconservador. Este que se avoluma nos EUA a partir da vitória de Richard Nixon em 1968, reforçada com a Doutrina Reagan e a desregulação financeira – primeiramente em 1973 e depois, ao longo dos anos ’80 do século XX – e por fim, ganhando dimensões absurdas, durante o primeiro mandato do governo democrata de Bill Clinton (1993-2000). A nova direita republicana já constava na convenção deste partido quando George H. W. Bush (Bush pai) era considerado, para a constelação política conservadora do período, como o menos mentecapto dos pré-candidatos da bolha conservadora para a Casa Branca. Da corrida eleitoral no Império, em 1992, passando pela famigerada reeleição de Bush Jr. Em 2004, até a nova onda de golpes brancos na América Latina temos como identificar a transferência da identidade política estadunidense para nosso país.
No Brasil, somos atingidos pela combinação dos neoconservadores no comportamento – uma espécie de reação contra a ação afirmativa e os direitos de reconhecimento – e a primazia do capital financeiro e a cruzada dos neoliberais contra o pacto keynesiano que atinge o Brasil durante o lulismo. Esta soma, bastante explosiva, tem na classe média brasileira, e em sua classe média alta, um bastião mobilizado através das redes sociais e que pode ter ou não algum contato com o fascismo brasileiro na versão contemporânea.
É como se fosse um jogo com rodadas simultâneas, onde os reacionários no comportamento somam viúvas da ditadura e por vezes se encontram nas pautas programáticas de inspiração totalitária e obscurantista, como a famigerada “escola sem partido”, ou campanha contra a doutrinação nos aparelhos ideológicos de reprodução. Por vezes os ultraliberais se encontram, domesticam as “feras” medievais brasileiras, e noutras, de forma autônoma, operam como “cavalo de batalha” da agenda neoliberal de desmonte das capacidades de intervenção estatal na economia capitalista e na regulação do agente econômico por sobre a vida cotidiana.
Podemos identificar os movimentos ultraliberais como as empresas de marketing digital, a exemplo da empresa líder, o Movimento Brasil Livre (MBL). Tais instituições privadas respondem ao agendamento da Fundação Koch (charleskochfoundation.org) e da Rede Atlas (atlasnetwork.org) e demandam um texto específico, ainda nesta série. Já quanto ao neofascismo brasileiro, este é manifesto pelo líder caricato embora perigoso, deputado federal Jair Bolsonaro (PSC-RJ) e sua aliança com as estruturas do pastor Everaldo (Assembleia de Deus em Madureira) e o deputado federal Marco Feliciano (PSC-SP,que comanda uma matriz autônoma e dono da rede de franquias da fé, o Ministério Tempo de Avivamento). Estes dois operadores político-religiosos de matriz econômica (no mercado da exploração da fé) se aproximam, afirmo, perigosamente, de um programa ultraliberal (vinculando seu programa ao do Tea Party), com as viúvas e viúvos da ditadura – tendo a bandeira do reconhecimento dos torturadores e repressores como “heróis nacionais” – e um culto ao revanchismo da linha dura diante da transição negociada comandada por Ernesto Geisel e Golbery do Couto e Silva.
Ainda mais obscena é sua liderança ideológica, com o ainda mais caricato e lunático astrólogo Olavo de Carvalho. Este pregador virtual, mescla um libelo em defesa da “civilização judaico-cristã” para fortalecer ambas as posturas acima narradas – neopentecostal e de extrema direita policial militar. A pregação anti-esquerda e anti-latinoamericana do “professor” Olavo de Carvalho, produzindo demências por internet a partir do estado da Virgínia (EUA), surpreendentemente traz consigo centenas de milhares de seguidores. Olavo é em si mesmo a síntese desta perigosa caricatura da nova direita brasileira, e sua pregação de “escola sem partido”, onde afirma que a doutrina se diluiu no comportamento pregado em sala de aula ao ponto de sequer ser explicitada. Ou seja, se a acusação for válida, então o comportamento orientado pela técnica a serviço do mundo do trabalho controlado pelo capital, é a única válida. O fascismo social existente nestas afirmações está na moral conservadora, na negação do outro (ausência de alteridade), na afirmação da norma “ocidental” (judaico-cristã, capitalista, conservador, heteronormativa) como valor único e na disposição para gerar o caos para que deste surja um novo sentido de ordem.
Uma consequência tangível do revigoramento das viúvas da linha dura
É este tipo de demência, retroalimentada pelos programas policialescos e editoriais reacionários de TV aberta – comandados por gente como José Luiz Datena e Raquel Sherazade – acaba por ter dois efeitos políticos simultâneos. Um aponta para a redução da maioridade penal e uma defesa da violência estatal sem questionar o falido e corrupto modelo de polícia brasileiro. O outro foi visto de forma estarrecedora na defesa da intervenção militar ou a volta da ditadura. Tais defensores da ditadura afirmam que todo o pensamento de esquerda – mesmo o de centro-esquerda -, em última análise, não seria compatível com a democracia parlamentar e estaria o tempo todo promovendo a luta ideológica para controlar instituições reprodutoras dos aparelhos centrais – como escolas e universidades – e assim aplicar uma visão de mundo centrada na luta social e no coletivismo. A direita considera isso uma espécie de “totalitarismo” e chega a aceitar a possibilidade de que, na ausência de ordem pública, tenhamos uma intervenção militar (o texto constitucional, no seu artigo 142, tem realmente alguma leitura passível de controvérsia). Neste sentido, ao negar a possibilidade de que qualquer pensamento de esquerda possa conviver em democracia parlamentar e na concorrência pelo poder do Estado burguês, há similitude na análise dos ultraliberais e da extrema direita policial e militar. Daí viria à convergência destas duas formas de pensamento na defesa da suposta “escola sem partido” e de absurdos como o “ensino neutro das ciências humanas e sociais”. Se observarmos a movimentação dos apoiadores de Bolsonaro nos campi da UFRGS, estes afirmam que “a universidade não é um espaço para lutar, mas somente para estudar”. Repetem de forma bastante concreta um dos lemas da ditadura, “estudante estuda e trabalhador trabalha”, aplicando uma fórmula de obediência social cuja única forma de mobilidade seria através da acumulação de capital ou na seleção “meritocrática”.
Mesmo observando que não há nenhuma exequibilidade por parte das Forças Armadas em fazer nada parecido como intervenção militar constitucional, há um ponto de convergência. O governo “interino” – no meu entender, golpista – trouxe o retorno dos militares GSI (Gabinete de Segurança Institucional) e o seu comando a cargo do general de exército (da ativa, quatro estrelas) Sérgio Westphalen Etchegoyen. Esta medida, além de apontar um enlace do presidente golpista Michel  Temer com a ala mais reacionária da Força Terrestre na ativa, seria uma espécie de acerto de contas com a Comissão da Verdade. Esta fora uma tímida comissão e cujo relatório final foi bastante criticado por militantes históricos dos direitos humanos. Mesmo assim, ao mencionar o nome do general Leo Guedes Etchegoyen como um dos 377 agentes do Estado diretamente responsáveis por crimes contra os direitos humanos, atiçou o grito de “revanchismo” por seu filho, general da ativa que ocupava desde março de 2015, o importante cargo de chefe do Estado-Maior do Exército.
Ao se manifestar contra a Comissão da Verdade mesmo estando na ativa, o general Etchegoyen abrira um perigoso expediente. Sua indicação para o cargo de ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional termina soando como um reforço das viúvas da caserna, aproximando-os dos militares da reserva que têm discurso de mágoa em relação ao período pós-Anistia.
* Bruno Lima Rocha é professor de ciência política e relações internacionais.
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