Marina Silva, uma candidata de alto risco

por Cláudia Rodrigues  
Em entrevista publicada em 24 de julho de 2013 na revista Exame, Marina Silva abriu o jogo sobre seus planos ao jornalista Daniel Barros. Na ocasião, ela estava tentando fundamentar o partido Rede Sustentabilidade, sob a batuta econômica de Eduardo Giannetti da Fonseca e a ideia era ser candidata à presidência. Muita água rolou embaixo da ponte, Marina acabou como vice de Eduardo Campos, do PSB, e em poucos meses o jogo virou. Com a morte trágica do candidato, volta Marina como candidata à presidência, dispara nas pesquisas tirando parte importante dos eleitores de Aécio Neves e causando uma guerrilha ideológica interna entre o que seria ela como candidata da Rede Sustentabilidade e o que vem a ser a Marina representante do PSB.
É uma candidata de alto risco, pode levar muitos votos de quem vive cantando a música de que os políticos são todos iguais, mas um eleitor um pouco mais leitor, ao ler a trajetória política de Marina, vai perceber que se ela não sabia fazer o jogo político quando saiu do PT, indignada contra os transgênicos, contra Belo Monte, aprendeu direitinho assim que entrou no PSB, um partido que quer assegurar melhorias ao agronegócio.
Entretanto, Marina não abre mão de seu discurso ambientalista e nessa área é impossível chupar cana e tocar flauta ao mesmo tempo. Se existe um jeito de contemplar as duas políticas e levá-las adiante, então já há quem faça com maestria: o atual governo do PT, que tem tirado tomate de pedra de ambos os lados. Garante subsídios aos grandes, investe na agroecologia, em pesquisas, na expansão da agricultura familiar, na produção e distribuição de alimentos orgânicos.
A única mágica que Marina poderia fazer na área seria radicalizar para um lado ou para outro, o que ela afirma que não vai fazer, então é alto risco investir em alguém que vai reinventar o mesmo caminho do governo atual, de viver sob pressão de ruralistas e ambientalistas. E se ela tender para os ruralistas? E se ela tender para os ambientalistas e se for apenas um troca-troca de cadeiras, anos de desorganização e instabilidade quando as abóboras já estavam razoavelmente acomodadas na carroça?
Na área da saúde, das discussões sobre gênero e direitos sociais como aborto e legalização da maconha, educação sexual na escola, a candidata de novo é de alto risco. Ela sofre pressão severa dos grupos radicais da ala evangélica. Quando resolve ser mais moderninha, o discurso é de boazinha, aquela coisa “somos todos iguais, mas eu não pegaria uma mulher, somos todos iguais, mas nunca dei um tapa num baseado, de minha parte não cometo pecados, os pecados são dos outros”. Quando é para bancar de fato uma posição, ela foge. Ninguém sabe em que casinha política ela vai se esconder, que camiseta irá vestir para cada caso, cada causa.
Marina é uma candidata de alto risco tanto para eleitores conservadores, que querem ver a sociedade repetindo padrões de comportamento congelado, quanto para eleitores que querem e lutam por mudanças reais com base em leis e garantias, mergulho em processos e promoção de educação pública sob paradigmas laicos que trabalhem preconceitos com pulso firme.
Marina é uma opção de alto risco para os grandes e para os pequenos. A classe média, que está sempre por fora a dar tiros no pé, pode pegar esse bonde de alto risco achando que assim finalmente chegou o seu dia de virar protagonista de novela.
E dará outro tiro no pé, porque Marina vai ter que ‘oPTar’. Se mexer muito nessa regra de três que o PT desenvolveu para ficar no poder, vai ser uma bagunça, começaremos tudo outra vez. Se aceitar o que tem no cardápio neoliberal do mundo tentando adequar e melhorar a vida de quem é pequeno, o que já faz o PT, vai dar no mesmo, mas com mais pressão.
O fato é que apostar em Marina é um tiro no escuro, é alto risco, com o discurso que ela prega, pode fazer qualquer coisa, para um lado e para outro e a última classe que ela atenderá será justamente a de seus eleitores de pensamentos médios e mágicos.

Marina Silva: o mundo de olho no Brasil

Por JOSÉ ANTONIO SEVERO
A eleição de Marina Silva seria a vitória do antipetismo, e a chegada ao governo de uma terceira via, pois levaria junto de roldão o PSDB, que é a versão acadêmica da mesma vertente da antiga esquerda paulista, que domina e divide o eleitorado do Brasil em dois.
Não haveria nada de mais num sistema democrático liberal, pois a alternância do poder não é apenas uma teoria, mas resultado natural e previsível da exaustão de uma corrente majoritária, substituída por outra. Isto já era preconizado pelos cientistas políticos. Só que se esperava isto para 2018 ou 22.
No Império o bipartidarismo alternativo assegurou a estabilidade política do Brasil, que foi uma ilha de jogo político eleitoral na América Latina convulsionada pelas rebeliões armadas, gerando seus produtos costumeiros, as ditaduras mais ou menos caudilhistas, comandadas por generais vencedores de batalhas.
No Brasil, do alto de sua legitimidade monárquica, Dom Pedro II promovia a alternância por decreto. Quando percebia que a corrente governante se exaurira, dissolvia o parlamento, convocava eleições e favorecia a formação de governos ora liberais ora conservadores.
Na República essa alternância não se deu. A mudança de hegemonias sempre foi tumultuada.
Os cafés com leite da República Velha foram apeados por uma revolução, em 1930. A vertente castilhista de Getúlio Vargas só foi cair de fato em 1964. Dutra era caudatário de Vargas e Jânio não chegou a governar. A UDN subiu ao poder pelo golpe de 1964, mas tampouco ficou muito tempo, pois já em 1969, com o AI-5, nada sobrou dos conspiradores que derrubaram João Goulart. Depois vieram os originários da antiga oposição reunida no MDB e fracionada no pluripartidarismo atual.
Marina vai mudar esse quadro, se vencer.
A novidade será que ela traz para o governo uma nova maioria desagregada, unida em torno de teses desconexas e hostis à política convencional. Compõem uma formidável força eleitoral, mas sem representação política. É uma manifestação da democracia de massa, que se esgota no fenômeno eleitoral.
Entretanto, passada a eleição, o regime demanda a representação organizada, que ficará ainda nas mãos das forças derrotadas nas urnas majoritárias, mas maciçamente vitoriosas na eleição parlamentar. O mesmo eleitorado elege dois animais diferentes. Como isto vai funcionar na prática para gerir o estado ninguém pode ainda dizer com certeza.
GOVERNO MARINA
Num exercício de cenário futuro, que se poderia dizer a olho nu? Marina poderá montar precariamente uma base parlamentar com pequenos partidos de esquerda e alguns segmentos religiosos.
Dificilmente atingira um terço da Câmara e quase nada no Senado Federal. Teria, em tese, um governo algemado. A alternativa seria compor uma coalisão no estilo PT/PSDB, ou como dizia José Genoíno, ex-presidente do PT, uma coalização para governabilidade. Então de nada valeria sua pregação. Seria o passo atrás, a traição do eleitorado, tal qual Fernando Collor. Pode ser, isto já vimos.
No entanto, na área internacional, Marina poderá ser a maior estrela do cenário mundial devido ao apoio entusiástico que arrancará de todas as militâncias ambientalistas, pacifistas e defensores das chamadas minorias discriminadas.
Não foi por nada que ela foi convidada pelas autoridades do Comitê Olímpico Internacional para desfilar na abertura das Olimpíadas de Londres.
A presidente Dilma, presente ao evento, quase teve um treco quando a viu marchando entre as celebridades mundiais. É uma boa pista para se previr como ela aparecerá na mídia: ambientalista famosa, figura amazônica, líder de uma potência mundial, a primeira presidente da nova política que deverá dominar o Ocidente neste século XXI.
Lula foi muito famoso e popular mundo a fora, mas ainda era uma expressão do Século XX: operário da indústria, esquerdista moderado e nascido na pobreza. Marina é pobre de família, mas não foi isto que a projetou. Muitos pobres chegaram ao cume no Brasil.
Ela é a herdeira de Chico Mendes, ícone mundial. Também diferente do líder petista, ela tem formação universitária, historiadora e psicopedagoga, formada na Universidade Federal do Acre e pós-graduada na federal e na PUC de Brasília, além de ter iniciado estudos na Universidade de Buenos Aires. Não é pouco. Ela faz parte da elite intelectual.
Como ambientalista ganhou uma dezena de prêmios internacionais de primeira linha. Ela foi chamada pelo New York Times de “Ícone do Movimento Ambientalista Mundial” e uma das dez personalidades brasileira mais influente. É a musa do aquecimento global. Marina será uma presidente com muita mídia. Há que ver como ela conciliaria se eleita, sua fraqueza política interna com essa expressão global. De qualquer forma o mundo está de olho no Brasil.

Shakespeare, 450 anos de reinvenção do humano

Por Enio Squeff
Goethe tinha uma opinião muito além de lisonjeira sobre o “Dom Quixote”, de Cervantes; do alto de sua inegável autoridade estimava que se, por ventura, ou quem sabe, por desgraça, toda a literatura ocidental desaparecesse, mas só restasse a obra do espanhol, então, toda a literatura do Ocidente, “estaria salva”.
Talvez excluísse desta consideração William Shakespeare, cujos 450 anos de nascimento são comemorados em 2014. Goethe viveu o bastante e produziu o suficiente para os tempos de romantismo, de que ele também foi participante – mas muito dificilmente os mais jovens artistas de seu tempo, como Hector Berlioz (músico) e Eugène Delacroix (pintor), para citar apenas dois franceses, do século XIX, negariam ao inglês uma parte essencial, não apenas na literatura, mas no pensamento do Ocidente.
Instada certa vez a comparar o dramaturgo português quinhentista, Gil Vicente, com Shakespeare, a professora e crítica brasileira Bárbara Heliodora – maior autoridade talvez na obra do dramaturgo e poeta britânico – negou-se a entrar nesse tipo de cotejo: “Shakespeare – disse – não é um autor a mais, é uma categoria”.
De fato, o romantismo – mais que outra escola ou estilo – parece ter revelado um Shakespeare que, no fim das contas, pode ser adaptado por todos os tempos e por todas as artes. Essa a categoria a que talvez se referisse Bárbara Heliodora, Nas incursões que fez à obra de Shakespeare, o compositor Giuseppe Verdi – nas palavras de Otto Maria Carpeaux – ombreou-se ao bardo inglês pelo menos numa ópera, “Otelo”. Especialmente na cena em que Desdêmona pressente a morte, ou seja, o seu assassínio injusto pelo personagem título, que é movido por um ciúme doentio e culpado, não há como não entrar no clima tristíssimo e definitivamente trágico do drama. Sem Shakespeare, Verdi não comporia a sua, talvez, melhor ópera (o “talvez” fica por conta do “Falstaff”, também baseado em Shakespeare, que Verdi iria criar no fim da vida). Mas a afirmação vale para todos os artistas que nele se inspiraram.
Pode-se interpretar o “Macbeth” do grande cineasta Roman Polanski como a resposta catártica à morte trágica de sua esposa grávida, a atriz Sharon Stone, perpetrada por um assassino psicopata nos EUA na década de 70 do século passado. Catarse, no caso de Polanski, pode ser uma resposta. Mas todos os artistas que se inspiraram em Shakespeare, de um modo ou de outro, assumiram-no, não apenas em seus dramas pessoais, mas na universalidade de sua visão de mundo.
Quem parece ter atentado de perto para esta característica foram, paradoxalmente, os franceses. Hector Berlioz(1803-1869) que escreveria uma “sinfonia dramática”- na verdade um poema sinfônico, baseado no “Romeu e Julieta” – foi, quem sabe, o mais entusiasta deles. Aqui também se pode formular a hipótese de que pelo fato de ter encontrado numa atriz irlandesa, Harriet Smithson, que fez de “Ofélia”numa encenação do “Hamlet”, em Paris, um entusiasmo que se transformou num rumoroso caso de amor, pode ter favorecido sua admiração sem limites por Shakespeare. Mas antes disso, Berlioz, que foi também um grande escritor, já desencava alguns franceses – especialmente Voltaire – por ter ignorado o grande dramaturgo em sua viagem à Inglaterra. É da mesma linha o entusiasmo de Delacroix (1798-1893), um dos mais importantes pintores que antecederam o impressionismo francês. Não bastasse sua admiração explícita pelo grande dramaturgo inglês, não foram poucas as vezes em que se valeu de Shakespeare para suas pinturas e gravuras.
Há toda uma linha de artistas shakespearianos que realmente confirmam a idéia de que Shakespeare é uma “categoria”. Contemporaneamente, há quem se lembre de Inokenki Smotuknovski – não pelo complicado de seu nome – mas por sua atuação memorável numa versão cinematográfica do”Hamlet”russo, filmado por Gregori Kozutsev na década de 60. Outro russo, mas compositor, Dmitri Shotakovitch, foi ameaçado com graves represálias por Stálin, quando adaptou Shakespeare a uma ópera denominada “Lady Macbeth no Distrito de Msensk”: a peça, como é presumível, resgatava a figura sinistra da peça de Shakespeare, mas ambientada num contexto ruinoso em plena URSS. Que Shakespeare se reportasse a uma assassina, tudo bem. Em plena União Soviética, porém, tudo mal. Pelo menos para os zelosos censores do período.
O fato, contudo, demonstra o alcance de Shakespeare – cuja dramaturgia não se limitou à cultura ocidental, muito menos à Europa. Machado de Assis rendeu-se várias vezes à literatura shakespeariana. Não há como desalinhar o grande romancista brasileiro do drama de Otelo para encontrar a gênese de seu “Dom Casmurro”, só para remeter a uma obviedade.
Na linha das categorias, aliás, há que alinhar Shakespeare com todos outros escritores da literatura ocidental do período em que o dramaturgo viveu. Arnold Hauser (1892-1978), que escreveu uma alentada obra sobre a literatura e a pintura do período posterior ao Renascimento, pôs Shakespeare como a expressão típica do maneirismo – uma escola que ele localizava entre o classicismo renascentista e o barroco; e do qual ele extraía o fundamento para sua tese – de que o maneirismo – vale dizer, Shakespeare e Cervantes, mas também El Greco e Caravaggio, para só lembrar alguns – seriam os precursores da arte contemporânea. Por nosso ceticismo, viveríamos um novo maneirismo. Talvez seja isso.
Como nas peças de Shakespeare, os intelectuais, artistas, políticos e homens do povo, que saíram do grande cisma protestante e das guerras religiosas da Europa do século XVII, parecem ter sido exemplarmente “contados” nos palcos do grande dramaturgo inglês. Mas também por ele antecedidos. Compreende-se enfim, o alcance sem tempo nem lugar definidos de Shakespeare. Quando Kurosawa, o genial cineasta japonês, valeu-se do “King Lear” para um de seus filmes – ninguém estranhou. Shakespeare vale para a China ou o Japão atuais, como valeu um dia para a Inglaterra Elizabetana. Os maneiristas – mas especialmente Shakespeare – descreveram o homem ocidental num contexto existencial além do espaço e do tempo na sua descrença desesperada. Inclusive nas seguidas releituras feitas ao longo dos séculos dos dramas de Shakespeare.
Certa vez, Flávio Rangel, num diálogo que tivemos sobre as relações entre a música e o teatro, me lembrou que a interpretação recorrente, tanto no teatro quanto na música, era um desafio permanente a todos os diretores de teatro em todos os tempos. Citou como exemplo máximo o “Hamlet”. Como interpretá-lo no palco? A partir da idéia de um louco alucinado, um lúcido tresloucado pela existência, ou simplesmente um bobo a percorrer os corredores de seu castelo como pintou “Lady Macbeth”, o pintor Eugene Delacroix em uma de suas telas?
Flávio Rangel dizia não haverem “Hamlets”definitivos. Mesmo porque não há um Shakespeare definitivo.
Recentemente alguns especialistas insistiram sobre um aspecto da biografia não muito conhecida do grande escritor: sua vida secreta. Era católico e persistiu como tal até o fim da vida, assistindo missas nas florestas, encenando, assim, dissimuladamente, qual um ator, uma vida dupla num país em que o anglicanismo fundado por Henrique VIII e continuado por sua filha, Elizabeth I, não punha nenhuma dúvida em degolar católicos explícitos, conhecidos então como “papistas”.
O quanto isso foi importante para a sua obra é difícil conjeturar. Mas dias atrás tive a idéia do que são os dramas shakespearianos em todos os tempos e quadrantes da vida. Foi quando soube que o ex-presidente Médici deixou, em manuscrito, a intenção que ele e outros generais tinham de fazer o ato institucional número 5 – que eliminou a liberdade de imprensa e escancarou a ditadura sanguinário de 64, muito antes das manifestações que alguns historiadores pensavam ser a causa do fechamento do Congresso. O general presidente e seus iguais, os oficiais da ditadura, já intentavam um golpe contra a democracia – pura hipocrisia. Sem querer, remeti-me aos personagens pérfidos de Shakespeare – Iago, lady Macbeth, Ricardo III e outros. Ou seja, o grande dramaturgo não reinventou senão a verdade de nossa condição humana.
O que talvez nos consolasse, em parte, pelo menos na justiça restaurada, foi a ideia que me veio, então, à cabeça, na cena final de uma das versões filmadas de Otelo, quando tudo fica esclarecido, e a autoridade que substitui o doge de Veneza, dá a seus comandados a ordem de punirem Iago, por suas calúnias e crimes. Diz ele: “Prendam-no e o torturem para que se arrependa de ter nascido”. Só nisso os nossos tempos talvez discordem dos do grande dramaturgo. Os torturadores e criminosos da ditadura não precisavam ser torturados e mortos – mas bem que poderiam ser presos. Esta medida era algo que o grande Shakespeare não previa em suas tragédias: a prisão e não a morte para os assassinos.
Isso para só falar das tragédias – pois há as comédias. Para este gênero, porém, no Brasil de hoje, talvez pudéssemos encontrar algumas semelhanças resolutamente shakespearianas.
Shakespeare vive.

Faixa de Gaza: “Quem é o inimigo?”

Todos têm a sua própria opinião para explicar os massacres cometidos pelo Estado de Israel em Gaza. Enquanto nos anos 70 e 80, se via nisso uma manifestação do imperialismo anglo-saxónico, hoje muitos interpretam-no como um conflito entre judeus e árabes.
Debruçando-se sobre este longo período —quatro séculos de História —, Thierry Meyssan, consultor junto a vários governos, analisa a origem do sionismo, as suas reais ambições, e determina quem é o inimigo.
A guerra, que prossegue sem interrupção desde há 66 anos na Palestina, conheceu uma nova agudização com as operações israelitas “Guardiões dos nossos irmãos”, seguida de “Rochedo de Firmeza” (traduzido estranhamente na imprensa ocidental por “Borda protetora”).
À vista, Telavive —que escolheu instrumentalizar o desaparecimento de três jovens israelenses para lançar estas operações e “arrancar o Hamas pela raiz” afim de explorar o gás de Gaza, conforme o plano enunciado em 2007 pelo atual ministro da Defesa [1] — foi surpreendido pela reação da Resistência. A Jihade islâmica respondeu como o envio de foguetes de médio alcance, muito difíceis de interceptar, que se somaram aos lançados pelo Hamas.
A violência dos acontecimentos, que custaram já a vida a mais de 1.500 Palestinos e 62 israelenses (embora os números israelenses sejam submetidos à censura militar e estejam provavelmente diminuídos), levantou uma onda de protestos no mundo inteiro. Além dos seus 15 membros, o Conselho de Segurança, reunido a 22 de julho, deu a palavra a 40 outros Estados que entenderam exprimir a sua indignação diante do comportamento de Telavive e da sua «cultura de impunidade». A sessão, em lugar de durar as 2 horas habituais, durou assim 9 [2].
Simbolicamente, a Bolívia declarou Israel «Estado terrorista» e revogou o acordo de livre-circulação que o abrangia. Mas, de um modo geral, as declarações de protesto não foram seguidas de uma ajuda militar, à excepção das do Irã e simbolicamente da Síria. Ambos apoiam a população palestina via Jihad islâmica, ramo militar do Hamas (mas não o seu ramo político, que é membro dos Irmãos muçulmanos), e a FPLP-CG.
Contrariamente aos antecedentes (operações “Chumbo Fundido” em 2008 e “Coluna de nuvem negra” em 2012), os dois Estados que protegem Israel no Conselho (os Estados-Unidos e o Reino-Unido), fizeram vista grossa à elaboração de uma declaração do presidente do Conselho de segurança sublinhando as obrigações humanitárias de Israel [3]. De fato, para lá da questão fundamental de um conflito que dura desde 1948, assiste-se a um consenso para condenar no mínimo o recurso de Israel a um emprego desproporcionado da força.
No entanto, este aparente consenso mascara análises muito diferentes: certos autores interpretam o conflito como uma guerra de religião entre judeus e muçulmanos; outros vêem nela, pelo contrário, uma guerra política segundo um esquema colonial clássico.
Que se deve pensar a propósito?
O que é o sionismo?
A meio do século XVII, os calvinistas britânicos agruparam-se em torno de Oliver Cromwell e puseram em causa a fé e a hierarquia do regime. Depois de terem derrubado a monarquia anglicana, o “Lorde protetor” pretendeu permitir ao povo inglês conseguir a pureza moral necessária para atravessar uma tribulação de 7 anos, acolher o retorno de Cristo, e viver pacificamente com ele durante 1.000 anos (o “Milénio”). Para conseguir realizar isto, segundo a sua interpretação da Bíblia, os israelitas deviam ser dispersos pelos confins da terra, depois reagrupados na Palestina e aí reconstruir o templo de Salomão. Nesta base, ele instaurou um regime puritano, levantou em 1656 a interdição posta aos israelitas de se instalarem em Inglaterra, e anunciou que o seu país se comprometia a criar, na Palestina, o Estado de Israel [4].
Tendo a seita de Cromwell sido, por seu turno, derrubada no final da «Primeira Guerra civil inglesa», os seus partidários mortos ou exilados, e a monarquia anglicana restabelecida, o sionismo (quer dizer o projeto de criação de um Estado para os israelitas) foi abandonado. Ele ressurgiu no século XVIII com a “Segunda Guerra civil inglesa”, (segundo a nomenclatura dos manuais de História do secundário no Reino-Unido), que o resto do mundo conhece como a «guerra de independência dos Estados-Unidos» (1775-83). Contrariamente a uma ideia feita, esta não foi uma ação empreendida em nome do ideal das Luzes, que animou alguns anos mais tarde a Revolução francesa, mas sim financiada pelo rei de França e encetada por motivos religiosos ao grito de “o Nosso Rei, é Jesus!”.
George Washington, Thomas Jefferson e Benjamin Franklin, para citar apenas estes, apresentaram-se como os sucessores dos partidários exilados de Oliver Cromwell. Os Estados-Unidos retomaram, pois, logicamente o seu projeto sionista.
Em 1868, em Inglaterra, a rainha Victoria designou como Primeiro-ministro, o judeu Benjamin Disraeli. Este propôs-lhe conceder alguns direitos aos descendentes dos partidários de Cromwell, de maneira a poder apoiar-se sobre todo o povo para estender o poder da Coroa no mundo. Sobretudo, propôs aliar-se à diáspora judia para conduzir uma política imperialista da qual ela seria a guarda-avançada. Em 1878, ele fez inscrever «a restauração de Israel» na ordem do dia do Congresso de Berlim sobre a nova partilha do mundo.
É sobre esta base sionista que o Reino-Unido restabelece as boas relações com as suas antigas colonias tornadas Estados-Unidos, no seguimento da “Terceira Guerra civil inglesa” —conhecida nos Estados-Unidos como a «guerra civil americana», e na Europa continental como a «guerra de Secessão» (1861-65)— que viu a vitória dos sucessores dos partidários de Cromwell, os WASP (White Anglo-Saxon Puritans- inglês para: «Brancos Anglo-Saxónicos Puritanos»-ndT) [5]. Uma vez mais, ainda, é erradamente que se fala deste conflito como uma luta contra a escravatura quando 5 Estados do Norte a mantinham, na altura, também.
Até quase ao final do século XIX o sionismo é, pois, apenas um projeto puritano anglo-saxónico, ao qual só uma elite judia adere. Ele é fortemente condenado pelos rabinos, que interpretam a Torá como uma alegoria e não como um plano político.
Entre as consequências atuais desses fatos históricos, temos de admitir que se o sionismo visava a criação de um Estado para os israelitas, ele é também o fundamento da existência dos Estados Unidos. Portanto, a questão de se saber se as decisões políticas, de conjunto, são tomadas em Washington ou em Telavive tem apenas um interesse relativo. É a mesma ideologia que está no poder em ambos os países. Além disso, tendo o sionismo permitido a reconciliação entre Londres e Washington, colocá-lo em causa é o mesmo que atacar esta aliança, a mais poderosa do mundo.
A adesão do povo judaico ao sionismo anglo-saxão
Na historiografia oficial de hoje, costuma-se ignorar o período dos XVIIo-XIXo séculos e apresentar Theodor Herzl como o fundador do sionismo. Ora, de acordo com publicações internas da Organização Sionista Mundial, este ponto é igualmente falso.
O verdadeiro fundador do sionismo moderno não era judeu, mas cristão dispensionalista. O reverendo William E. Blackstone foi um pregador americano, para quem os verdadeiros cristãos não teriam de passar pelas provações no final dos tempos. Ele pregou que estes seriam levados para o céu durante a batalha final (a “ascensão da Igreja”, em Inglês “the rapture”). Na sua opinião, os judeus travariam esta batalha e sairiam dela, ao mesmo tempo, convertidos a Cristo e vitoriosos.
Foi a teologia do reverendo Blackstone, que serviu de base ao apoio incondicional de Washington para a criação de Israel. E, isso, muito antes do AIPAC (o lobby pró-Israel) ter sido criado e ter tomado o controle do Congresso. Na realidade, o poder do lobby não resulta tanto do seu dinheiro e da sua capacidade de financiar campanhas eleitorais, mas mais desta ideologia sempre presente nos EUA [6].
A Teologia do arrebatamento por muito estúpida que possa parecer é, hoje em dia, muito poderosa nos Estados Unidos. Ela representa um fenômeno na literatura e no cinema (veja-se o filme Left Behind, com Nicolas Cage, que será exibido a partir de outubro).
Theodor Herzl era um admirador do magnata dos diamantes Cecil Rhodes, o teórico do imperialismo britânico e fundador da África do Sul, da Rodésia (à qual deu o seu nome) e da Zâmbia (ex-Rodésia do Norte). Herzl não era judeu (no sentido em que não praticava a fé do judaísmo -ndT), e não havia circuncidado o seu filho. Ateu, como muitos burgueses europeus do seu tempo, ele preconizou primeiro a assimilação dos judeus por conversão ao cristianismo. No entanto, retomando a teoria de Benjamin Disraeli, ele chegou à conclusão que a melhor solução era envolvê-los no colonialismo britânico, criando um Estado judaico no atual Uganda ou na Argentina. Ele seguiu o exemplo de Rhodes quanto à compra de terras e na criação da Agência Judaica.
Blackstone conseguiu convencer Herzl a juntar as preocupações dos dispensionalistas às dos colonialistas. Bastava, para isso, encarar a criação de Israel na Palestina e multiplicar as referências bíblicas a propósito. Graças a esta ideia bastante simples, eles conseguiram fazer aderir a maioria dos judeus europeus ao seu projecto. Hoje, Herzl está enterrado em Israel (no Monte Herzl), e o Estado colocou no seu caixão A Bíblia anotada que Blackstone lhe havia dado.
O sionismo nunca teve, pois, como objetivo «salvar o povo judeu, dando-lhe um lar», mas sim fazer triunfar o imperialismo anglo-saxónico envolvendo nisso os israelitas. Além disso, não só o sionismo não é um produto da cultura judaica (no sentido de fé, tradições, costumes etc..), como a maioria dos sionistas nunca foi judaica, enquanto a maioria dos israelenses sionistas não são judeus. As referências bíblicas omnipresentes no discurso oficialista israelense, não refletem o pensamento da parte crente do país e são destinadas, acima de tudo, a convencer a população dos EUA.
Foi neste período que se criou o mito do povo judeu. Até então, os judeus consideravam-se como pertencendo a uma religião e admitiam que os seus membros europeus não eram os descendentes dos judeus da Palestina, mas sim populações convertidas no decurso da história [7].
Blackstone e Herzl fabricaram artificialmente a ideia segundo a qual todos os judeus do mundo seriam descendentes dos antigos judeus da Palestina. Portanto, a palavra judeu aplica-se não apenas à religião dos israelitas, mas designa também uma etnia. Ao basearem-se numa leitura literal da Bíblia, eles tornaram-se os beneficiários de uma promessa divina sobre a terra palestina.
O pacto anglo-saxão para a criação de Israel na Palestina
A decisão de criar um Estado judaico na Palestina foi tomada em conjunto pelos governos britânico e norte-americano. Ela foi negociada pelo primeiro juiz judaico no Supremo Tribunal dos Estados Unidos, Louis Brandeis, sob os auspícios do reverendo Blackstone e foi aprovada tanto pelo presidente Woodrow Wilson, como pelo primeiro-ministro David Lloyd George, na esteira dos acordos franco-britânicos Sykes-Picot de partilha do “Próximo-Oriente”. Este acordo foi sendo progressivamente revelado ao público.
O futuro Secretário de Estado para as Colónias, Leo Amery, foi encarregado de enquadrar os antigos membros do “Zion Mule Corps” (Corpo sionista de transporte com mulas) para criar, com dois agentes britânicos Ze’ev Jabotinsky e Chaim Weizmann, a “Legião Judaica” no seio do exército britânico.
O ministro das Relações Exteriores(Negócios Estrangeiros), Lord Balfour, enviou uma carta aberta a Lord Walter Rothschild comprometendo-se a criar um «lar nacional judaico» na Palestina (2 de novembro de 1917). O presidente Wilson incluiu entre os seus objetivos de guerra oficiais, (o n ° 12 dos 14 pontos apresentados ao Congresso a 8 de janeiro de 1918), a criação de Israel [8].
Portanto, a decisão de criar Israel não tem nenhuma relação com a destruição dos judeus da Europa, sobrevinda duas décadas mais tarde, durante a Segunda Guerra Mundial.
Durante a Conferência de paz de Paris, o Emir Faiçal (filho do xerife de Meca, e mais tarde rei do Iraque britânico) assinou, a 3 de janeiro de 1919, um acordo com a Organização Sionista, comprometendo-se a apoiar a decisão anglo-saxônica.
A criação do Estado de Israel, que foi feita contra a população da Palestina, foi, pois, também feita com o acordo dos monarcas árabes. Além disso, à época, o xerife de Meca, Hussein bin Ali, não interpretava o Alcorão à maneira do Hamas. Ele não pensava que «uma terra muçulmana não pudesse ser governada pelos não-muçulmanos».
A criação jurídica do Estado de Israel
Em maio de 1942, as organizações sionistas realizaram o seu congresso no Hotel Biltmore, em Nova Iorque. Os participantes decidiram transformar o «lar nacional judaico» da Palestina em “Commonwealth Judaica” (referindo-se à Commonwealth com a qual Cromwell havia substituído brevemente a monarquia britânica), e autorizar a imigração em massa de judeus para a Palestina. Num documento secreto, foram especificados três objectivos: “(1) o Estado judeu englobaria a totalidade da Palestina e, provavelmente, a Transjordânia; (2) o deslocamento das populações árabes para o Iraque e (3) a tomada em mãos pelos judeus dos sectores do desenvolvimento e do controlo da economia em todo o Médio-Oriente”.
A quase totalidade dos participantes ignorava, então, que a «solução final da questão judaica» (die Endlösung der Judenfrage) tinha justamente começado, secretamente, na Europa.
Em última análise, ao passo que os britânicos não sabiam como haviam de satisfazer quer os judeus, quer os árabes, as Nações Unidas (que então tinham apenas 46 Estados-membros) propuseram um plano de partilha da Palestina, a partir das indicações de que os Britânicos lhe haviam fornecido. Deveria ser criado um Estado bi-nacional compreendendo um Estado judeu, um Estado árabe, e uma área “sob regime internacional especial” para administrar os lugares santos (Jerusalém e Belém). Este projeto foi aprovado pela Resolução 181 da Assembleia Geral [9] .
Sem esperar pelo resultado das negociações, o presidente da Agência Judaica, David Ben Gurion, proclamou, unilateralmente, o Estado de Israel, imediatamente reconhecido pelos Estados Unidos. Os árabes do território israelense foram colocados sob lei marcial, os seus movimentos foram restringidos e os seus passaportes confiscados. Os países árabes recém-independentes intervieram. Mas, sem exércitos devidamente constituídos, foram rápidamente derrotados. No decurso desta guerra, Israel procedeu a uma limpeza étnica e forçou, pelo menos, 700.000 árabes a fugir.
A ONU enviou como mediador, o conde Folke Bernadotte, um diplomata sueco que salvou milhares de judeus durante a guerra (2ª guerra mundial). Ele descobriu que os dados demográficos, fornecidos pelas autoridades britânicas, estavam falseados e exigiu a plena implementação do Plano de Partilha da Palestina. Ora, a Resolução 181 implicava o retorno dos 700. 000 árabes expulsos, a criação de um Estado árabe e a internacionalização de Jerusalém. O enviado especial da Onu foi assassinado, a 17 de setembro 1948, por ordem do futuro primeiro-ministro, Yitzhak Shamir.
Furiosa, a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou a Resolução 194, que reafirma os princípios da Resolução 181 e, além disso, proclama o direito inalienável dos palestinianos a voltar para suas casas e a ser indenizados pelos prejuízos que acabavam de sofrer [10].
Entretanto, Israel, tendo prendido os assassinos de Bernadotte, tendo-os julgado e condenado, foi aceite no seio da Onu com a promessa de honrar as resoluções. Mas, tudo isso não passava de mentiras. Logo após os assassinos foram anistiados, e o atirador tornou-se o guarda-costas pessoal do primeiro-ministro David Ben Gurion.
Desde a sua adesão à Onu Israel não parou de violar as resoluções, que se acumularam na Assembleia Geral e no Conselho de Segurança. Os seus laços orgânicos com dois membros do Conselho, dispondo do direito de veto, colocam-no à margem do direito internacional. Tornou-se um Estado offshore, permitindo aos Estados Unidos e ao Reino Unido fingir respeitar ambos o direito internacional, enquanto o violam a partir deste pseudo-Estado.
É absolutamente errado pensar que o problema colocado por Israel só envolve o Médio-Oriente. Hoje em dia, Israel atua militarmente em qualquer lugar do mundo, sob a capa do imperialismo anglo-saxônico. Na América Latina, foram agentes israelenses que organizaram a repressão durante o golpe contra Hugo Chavez (2002) ou o derrube de Manuel Zelaya (2009). Em África, eles estavam presentes, por todo o lado, durante a guerra dos Grandes Lagos, e organizaram a prisão de Muammar el-Qaddafi. Na Ásia, eles dirigiram o assalto e o massacre dos Tigres Tamil (2009), etc. Em todos os casos, Londres e Washington juram não ter nada a ver com tais assuntos. Além disso, Israel controla muitos meios de comunicação e instituições financeiras (tal como a Reserva Federal dos Estados Unidos).
A luta contra o imperialismo
Até à dissolução da URSS era óbvio para todos, que a questão israelita destacava-se na luta contra o imperialismo. Os palestinianos eram apoiados por todos os anti- imperialistas do mundo – até os membros do Exército Vermelho japonês — que vinham bater-se ao seu lado.
Atualmente, a globalização da sociedade de consumo, e a perda de valores que se lhe seguiu, fez perder a consciência do caráter colonial do Estado hebreu. Somente os árabes e muçulmanos se sentem postos em causa. Eles mostram empatia com o sofrimento dos palestinos, mas ignoram os crimes de Israel no resto do mundo, e não reagem aos outros crimes imperialistas.
No entanto, em 1979, o aiatola Ruhollah Khomeini explicava aos seus fieis iranianos, que Israel não era senão como uma boneca nas mãos dos imperialistas e o único verdadeiro inimigo era a aliança dos Estados Unidos e do Reino Unido. Por ter enunciado esta simples verdade, Khomeini foi caricaturado no Ocidente e os xiitas foram apresentados como heréticos no Oriente. Hoje em dia, o Irã é o único Estado no mundo a enviar maciçamente armas e conselheiros para ajudar a Resistência palestina, enquanto os regimes sionistas árabes debatem amavelmente, por vídeo-conferência, com o presidente israelita durante as reuniões do Conselho de Segurança do Golfo [11].
Thierry Meyssan
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[1] «A extensão da guerra do gás no Levante», por Thierry Meyssan, Al- Watan/Rede Voltaire , 21 de julho de 2014.
[2] « Réunion du Conseil de sécurité sur le Proche-Orient et l’offensive israélienne à Gaza » (Fr-«Reunião do Conselho de Segurança sobre o Próximo-Oriente e a ofensiva israelita na Faixa de Gaza»-ndT), Réseau Voltaire, 22 juillet 2014.
[3] « Déclaration du Président du Conseil de sécurité sur la situation à Gaza » (Fr-«Declaração do Presidente do Conselho de Segurança sobre a situação na Faixa de Gaza»-ndT), Réseau Voltaire, 28 juillet 2014.
[4] Sobre a história do sionismo há que reportar-se ao capítulo correspondente, («Israel e os anglo-saxões»), do meu livro A Terrível impostura 2, manipulações e desinformações, Edition Alphée, 2007. Os leitores encontrarão lá numerosas referências bibliográficas .
[5] The Cousins’ Wars : Religion, Politics, Civil Warfare and the Triumph of Anglo- America, Kevin Phillips, Basic Books (1999) (Ing-«As Guerras dos Primos: Religião, Política, Guerra Civil e o Triunfo da Anglo-América, por Kevin Philips»- ndT).
[6] Veja especialmente American Theocracy (2006) (Teocracia Americana), de Kevin Phillips, um notável historiador que foi conselheiro de Richard Nixon»
[7] Uma síntese dos trabalhos históricos sobre este assunto: Comment le peuple juif fut inventé (Fr-«Como o povo judeu foi inventado»-ndT), por Shlomo Sand, Fayard, 2008
[8] A formulação do parágrafo 12 é particularmente enigmático. Assim, durante a Conferência de Paz de Paris, em 1919, o emir Faisal evocou-o para reivindicar o direito dos povos anteriormente sob o jugo otomano à autodeterminação. Ele ouviu responder que teria uma escolha entre uma Síria colocada sob um ou sob vários mandatos. A delegação Sionista argumentou que Wilson se tinha comprometido apoiar a Commonwealth(comunidade) judaica para grande surpresa da delegação norte-americana. Em última análise, Wilson confirmou, por escrito, que se devia entender o ponto 12 como um compromisso de Washington para a criação de Israel e a restauração da Arménia. «Os quatorze Pontos do Presidente Wilson», Rede Voltaire, 8 de janeiro de 1918.
[9] « Résolution 181 de l’Assemblée générale de l’Onu » (Fr-«Resolução 181 da Assembleia Geral da Onu»-ndT), Réseau Voltaire, 29 novembre 1947.
[10] « Résolution 194 de l’Assemblée générale de l’Onu » (Fr-«Resolução 194 da Assembleia Geral da Onu»-ndT), Réseau Voltaire, 11 décembre 1948.
[11] “O presidente de Israel falou perante o Conselho de Segurança do Golfo em fins de novembro”, Tradução Alva, Rede Voltaire, 8 de Dezembro de 2013.
Thierry Meyssan Intelectual francês, presidente-fundador da Rede Voltaire e da conferência Axis for Peace. As suas análises sobre política externa publicam-se na imprensa árabe, latino-americana e russa. Última obra em francês: L’Effroyable imposture: Tome 2, Manipulations et désinformations (ed. JP Bertrand, 2007). Última obra publicada em Castelhano (espanhol): La gran impostura II. Manipulación y desinformación en los medios de comunicación (Monte Ávila Editores, 2008).

A Filarmônica de Israel e Bombardeios sobre Gaza

Enio Squeff
As cordas da Filarmônica de Israel já foram consideradas as melhores do mundo. O estatuto de Israel como país civilizado passava necessariamente pela grande música e não foram poucos os grandes regentes do mundo, entre eles o inesquecível Arturo Toscanini – o maior entre os maiores da primeira metade do século XX – que subiram ao pódio da orquestra, também pela honra de a regerem. Difícil prever o que tais músicos diriam da ofensiva de Israel pela Faixa de Gaza num dos massacres mais assustadores de um país que nem por isso se julga menos civilizado.
Um deles, o argentino israelense Daniel Barenboim, igualmente um grande pianista e regente, já expôs a sua inconformidade com o tratamento que Israel vem dispensando aos palestinos. Muitos israelenses o consideram um “traidor”. Nem por isso, entretanto, apesar da polêmica, o governo de Israel julga que deva qualquer explicação à civilização pelo que está fazendo.

Maestro Daniel Barenboim
Maestro Daniel Barenboim

A alegação, como sempre, vai na rasteira da política norte-americana da qual Israel é caudatária: nada do que Israel faz, não se faz à imagem e semelhança das ações inauguradas no mundo como a doutrina “made in USA” de combate ao terrorismo – seja o que for que se entenda por tal.
O comentarista internacional Emir Sader disse há dias na TV Brasil que era impossível tratar a mediação do conflito da Faixa de Gaza, pelos Estados Unidos, como coisa realmente séria. De fato, o tempo que os EUA concedem a Israel para um cessar fogo, vem sendo contada menos pelos dias ou pelo horror provocado no mundo, do que pelo número de árabes mortos.
Parece haver um consenso de que a razzia israelense tem de ser dura o suficiente para mostrar que os pogroms contra os árabes são meticulosamente programados com o Império. O castigo tem que ser cruel e inesquecível para que a afronta de qualquer resistência dos palestinos nunca se repita.
Um massacre programado e prorrogável até o limite do genocídio? Pode ser.
Sob a alegação da extirpação do terrorismo, os EUA mataram dezenas de milhares de iraquianos – que não tinha nada a ver com o chocante atentado às Torres Gêmeas. Valeu, no entanto, pelo exemplo. Nunca se terá qualquer justificativa para que o Hamas mate indiscriminadamente civis israelenses. Mas sua ameaça latente será sempre uma justificativa para que Israel enterre qualquer veleidade de país civilizado.
E faça as vezes de país terrorista, por sua vez, “preventivamente” digamos, matando milhares de palestinos da Faixa de Gaza. Que, se não têm nada a ver com o Hamas, quem sabe devam ser mortos por ostentarem os mesmos nomes de alguns deles, ou pior, a cor amorenado dos árabes: “Se não foste tu, foi teu pai”: é isto que o lobo diz ao cordeiro na fábula de La Fontaine, não é mesmo?
Há uma relutância – deve-se reconhecer – normalmente inspirada no medo global aos Estados Unidos, em condenar a ação do Estado Hebreu. Aqui e ali, uma ou outra voz tenta uma desculpa. A de que Israel precisa se defender chega às raias da imbecilidade: imaginem as polícias do Rio, de São Paulo ou de Porto Alegre a bombardear favelas e vilas para livrá-las dos bandidos.
Todos concordam que é um absurdo. Mas, no fundo, é exatamente a mesma coisa. Ah, dizem alguns defensores de Israel – lamentavelmente, morreram algumas crianças (em Gaza já são centenas): paciência, que se vai fazer? Israel tem o direito de defender as suas.
Mas a morte de crianças não justifica a morte de outras. Ou justifica?
Outra tese – essa mais estapafúrdia, confere à indústria bélica a culpa pelo conflito. O Hamas, com seus foguetes busca-pés, alimentaria parte da indústria que, por sua vez, cumularia os israelenses de armas de destruição em massa – mas tudo dentro da lógica de que, quanto mais destruição, melhor. Israel, com mais dinheiro, provindo principalmente dos EUA, levaria mais armas, as mais sofisticadas – quanto ao Hamas, com seus traques, ficaria patente que são todos celerados. Eles venceram, as eleições em Gaza, ao que se diz, legitimamente.
Mesmo assim, não duvidariam um só instante de deixarem que seus filhos, mulheres, irmãos e irmãs morressem sob os bombardeios israelenses – ou seja, uma estultice. Mas assim como alguns rabinos de extrema direita insistem em que os palestinos gostam de expor seus parentes aos alvos das bombas de Israel, há quem retome as teses genocidas dos nazistas. E tudo para argumentar que Israel tem de ser destruída a qualquer preço.
Não parece haver o que argumentar enquanto a ideia de civilização não for prevalente. Uma coisa é certa. Enquanto Estado, com a sua bela Filarmônica, para ficar apenas na grande música, cabe a Israel cumprir as leis que a direita fascista de seus atuais dirigentes teima em ignorar e que tem a respaldá-los justamente os Estados Unidos, um país que, por sua vez, bem que poderia mostrar que suas portentosas instituições culturais são índices de civilidade e não de mero marketing. Ou propaganda “para inglês ver”.
Elias Canetti, judeu, um dos maiores escritores contemporâneos, parece ter entrevisto o que Israel e todos os países que se julgam acima da humanidade, podem fazer e fazem. E em nome, não da sua preservação, mas da sanha de alguns de seus dirigentes. Em sua trilogia autobiográfica, conta Elias Canetti, de um judeu vienense que ele considerava acima de tudo um homem justo e bom. E que, ao saber que na primeira Guerra Mundial os aviões começaram a ser usados para bombardeios, teria exclamado: “ E as cidades, meu Deus, que será das cidades?”
Os Estados Unidos mostraram, em primeira mão, o que o pior pesadelo não poderia engendrar, ao destruírem, sob bombas atômicas, as cidades de Hiroshima e Nagasaki. Talvez não tivessem feito mais do que os nazistas e os ingleses fizeram, respectivamente, com Londres, Berlim, Dresden e Leipzig. Mas os israelenses não estão fazendo menos, ao bombardearam criminosamente a Faixa de Gaza.
Em tempo: nunca o Brasil foi tão digno quanto no episódio em que chamou seu embaixador de Israel ao Brasil. O governo de Israel que vocifere à vontade pela afronta. Mas não contará com o Brasil na passividade vergonhosa do resto do mundo, com os atos criminosos perpetrados por sua cúpula dirigente. É uma boa nova, digna de um grande país.

Suassuna: Matuto danado de bom

Crônica de Marcius Cortez
Onde está o escritor Ariano Suassuna? Está vivo em suas obras literárias, aulas-espetáculos, vídeos e entrevistas.
Onde está a pessoa Ariano? Está inteirinho nas páginas dos folhetos da literatura de cordel.
A última vez que estive com ele, foi na casa de Boris Schnaiderman no bairro de Santa Cecília, em São Paulo. Ariano estava na capital paulista para o comício de encerramento da campanha de um candidato à Presidência da República, que terminou perdendo as eleições.
Zélia veio com ele. Era o mesmo Ariano das reuniões do pessoal do Gráfico Amador que estava ali (sempre que podia, ele afirmava que seu guru foi José Laurênio de Melo, poeta pernambucano).
Pois bem, no meio da conversa, um aluno de Boris declarou que não acreditava em Deus e pra quê o pistoleta foi falar isso? Ariano incorporou o Auto da Compadecida e gesticulando que nem o cumpádi Grilo e que nem o cumpádi Mazzaropi contou um causo que havia acabado de acontecer com ele:
Na tarde do dia anterior fora rezar na Catedral da Sé quando apareceu um homem grandão que se aproximou do altar do Espírito Santo. O caningado da moléstia falou assim para a Santa Divindade: “se tu existe mesmo me dê uma chapuletada pra eu cair no chão”. Ariano olhou para a esposa, ao seu lado: ”se prepara aí, Zélia”. Mal acabou de falar, o bebum se estatelou no chão. “Tá vendo, vai brincar com Espírito Santo que tu leva uma cacetada no coco!”
Não preciso dizer que a conversa se animara. Depois do sertanejo Ariano contar que o poeta Sebastião Uchoa Leite, presente na reunião, tinha uma tia que nunca tomou água na vida, liberou o papo.
Então, vencendo minha timidez, aresolvi debulhar uma do Conde João Alfredo Cortez, meu tio. Introduzi o assunto com uma pergunta: “a gente vê cachorro, gato, galinha, bezerro e até cavalo atropelado pelo meio da estrada, mas por que será que nunca a gente vê bode atropelado”?
A questão devia ser muito profunda porque calou um silêncio no ambiente. Boris, Jerusa e Bastião, diga-se de passagem, não deram bolas para essa alta filosofia. Mas Ariano mostrou-se interessado. Então eu desfiz a charada: “o bode é o único animal que quando vai atravessar a rua olha para os dois lados”.
O autor do Romance d’A Pedra do Reino não só concordou comigo como desatando o novelo sapecou uma infinidade de histórias de bodes e cabras. Valeu por um doutorado. O ucraniano Boris, tradutor de Dostoievski, Tolstói, Tchekhov e Maiakovski, adorou as bodadas.
Aula-espetáculo
Intérprete de um povo, não é isso o que se valora num escritor? Pois bem, em matéria de alma brasileira é raro encontrar um espelho transparente e verdadeiro como o desse navegador das terceiras margens do rio.
Vi Suassuna na Flip em Paraty. Na palestra para os participantes do evento literário e também para a população da cidade graças aos telões instalados nas praças públicas. Devo dizer que a aula-espetáculo continuou no dia seguinte.
Na peixaria, o limpador de camarão repetia as histórias que o poeta falara. Na lojinha de material fotográfico, “seu” Oziel, o balconista, disse que ia à biblioteca pegar os livros do escritor. Na padaria, a moça que comprava leite e broas, declarou que também tinha o hábito de prosear com Nossa Senhora. Ora, ora, se isso não for literatura, o que diabo é literatura?
A arte deve estar onde o povo está. Ariano tornara-se uma figura pública porque ele ia de encontro às pessoas, o criador de bodes de Taperoá, Paraíba, prezava o contato direto.
Tive o prazer de vê-lo no Marco Zero do Recife, participando de um comício gigantesco. Dra. Cristina Fittipaldi, minha irmã médica, me contara que o escritor perdera um filho e que, portanto, vivia um drama pessoal.
Muito bem, esse homem, com toda a dor que sentia naquela hora, estava lá no palanque. Valha-me ó Deus de todos os búzios, aquilo foi uma psicanálise selvagem, foi um tal de chorar e de rir que o mar que fica ali por perto, tremeu.
Ligeirinho, meio inocente, mas malicioso que só a peste, faz que não sabe nada, mas sabe tudo, cê tá indo, ele tá voltando, tinhoso, temente de deus e do diabo, louco pra conversar, parece que tá concordando com você, mas no fim você vê que ele próprio tem a sua opinião, não troca seis por meia dúzia porque sempre gosta de levar uma vantagenzinha e pra moças bonitas é perito em palavras floridas.
É o Jeca Tatu, é o Pedro Malazarte, o Chicó, a Maria Bonita, o Corisco, o Antônio Conselheiro, a moça que virou cobra, o cabra que presenciou a chegada de Lampião no inferno, o dono do cine do pavão maravilhoso, o Rei Dom Sebastião, enfim de todos eles, mas também de Ariano Vilar Suassuna, matuto danado de bom. Desse, o Brasil sentirá falta.

Maria da Conceição Tavares sai em defesa da política econômica

Se faltava uma referência para tirar o debate econômico do atoleiro da campanha eleitoral, aí está o artigo da professora Maria da Conceição Tavares do site brasildebate.
O título é provocativo: “Onze anos de estratégia certeira de desenvolvimento econômico e social”.  Mas o texto é substantivo e vai totalmente na contramão da enxurrada de críticas à política econômica do governo.
Com metodologia e indicadores reconhecidos nos organismos internacionais, Conceição detalha os avanços nas áreas economica e social. O quadro  estatístico que ela montou é esclarecedor
No ambiente pré-eleitoral, provavelmente vai ser ignorado ou desqualificado como propaganda petista. Seria um importante ponto de partida para um debate mais centrado sobre o futuro de um modelo que por mais que tenha dado certo, hoje dá sinais de esgotamento.  (E.B.)
Artigo da professora Maria da Conceição Tavarez/brasildebates
A estratégia de desenvolvimento econômico e social dos governos do PT mantém-se a mesma desde 2002, com amplo sucesso, em particular nos avanços sociais, na distribuição de renda e no emprego.
Os investimentos realizaram-se em três frentes de expansão: produção e consumo de massas, infraestrutura econômica e social e atividades intensivas em recursos naturais (agrobusiness e Pré-Sal).
Foi também adotado um conjunto de políticas industriais e tecnológicas destinadas a potencializar o fortalecimento dos encadeamentos produtivos e a inovação tecnológica, sendo que esta última alcançou 1,2% do PIB, em 2013.
Os indicadores econômicos relativos à evolução no período 2002–2013 mostram os seguintes resultados: expansão do PIB / per capita de 2,4% a.a., estabilidade na taxa de inflação em torno dos 5% a 6% a.a., e forte queda na relação dívida interna / PIB de 60,4% em 2002 para 33% em 2013.
A oferta de crédito sobe de 23,9% a.a. no início do período para 51,3% a.a. em 2011-2012, e as reservas externas crescem de U$ 35,8 bilhões no período de 1999–2002 para U$ 361,8 bilhões no período de 2011–2013.
As políticas de salário mínimo e de Previdência Social contribuíram fortemente para a diminuição da concentração de renda, permitindo que o índice de GINI caísse de 0,59, em 2002, para 0,53 em 2013.
O gasto com políticas sociais no Orçamento da União cresceu de 12,7% do PIB em 2002 para 16,8 em 2013.
A ocupação cresceu de 75,3 milhões em 2002 para 91,8 milhões em 2012, ultrapassando largamente a meta fixada na campanha do primeiro governo Lula.
A melhoria dos indicadores sociais pode ser vista na tabela seguinte.
Destacam-se entre os indicadores sociais a forte subida do salário mínimo e a redução do nível de desemprego até próximo do pleno emprego. É também notória a diminuição de famílias em condições de extrema pobreza.
A estratégia básica de desenvolvimento econômico dos governos do PT deve ser mantida e aprofundada para superar a atual conjuntura de desaceleração do crescimento e manter os atuais níveis de emprego.
http://brasildebate.com.br/o-desenvolvimento-brasileiro-recente/#sthash.2gyXdq0Y.dpuf

Borges: não gostava de futebol nem reclamava da ditadura

Por Enio Squeff
Apesar da satisfação por sua obra – é ela quem faz o artista respirar e justificar a própria existência – Jorge Luis Borges deve ter experimentado não poucos momentos de angústia com seu país, a Argentina.
Sua visão política, ele mesmo dizia, limitava-se à ética individual: reclamava dos peronistas que, quando Perón assumiu como ditador, o perseguiram de todas as maneiras.
Mas se omitiu quando do assassínio em massa de seus compatriotas por uma das piores ditaduras militares que se instalaram na América Latina nos últimos anos.
Os genocidas argentinos diziam-se, claramente, anti-peronistas e é previsível que isso os tornasse menos criminosos para Borges: várias vidas por uma reabilitação pública, depois da execração peronista – seria isso?
Se Borges continuou a ser admirado por muitos intelectuais, inclusive na Argentina, não se safou do juízo de seus compatriotas: o que Borges reclamava dos argentinos – de serem individualistas e omissos perante a própria comunidade – ele mesmo parece ter incorporado como um procedimento normal.
Fugiu do presente como um nefelibata que sonha com as nuvens douradas de um passado glorioso e que criou um mundo paralelo, simplesmente genial, mas que nem por isso o livrou da acusação de ter dado as costas a seus compatriotas.
Fosse na Alemanha pós guerra, talvez Borges não se livrasse de uma citação em Nürenberg – o que, para seus admiradores, seria também uma tragédia.
Num de seus inúmeros diálogos com vários intelectuais, Borges disse que tinha dificuldade de partilhar da opinião de Schopenhauer, que não acreditava na história como um fim.
Achava que, mesmo que a história não interferisse na obra de arte e vice-versa, seria inadmissível que pudesse não ter algum sentido. Sob o ponto de vista ético, por exemplo, ele defendia que ela, a história, haveria de ter uma resposta convincente.
Foi, exatamente na ética individual, entretanto, que ele falhou. Não se posicionou, clara e inequivocamente, contra o massacre perpetrado pelos militares argentinos.
E isso não lhe deve ter sido compensador, pelo menos ao saber que muitos, principalmente os parentes e conhecidos dos assassinados ( mais de trinta mil), passaram a abominá-lo desde então.
Digamos, com todo o exagero possível, “uma glória feita de sangue”.
No entanto, parecer impossível contar a história da literatura ocidental sem uma menção especial ao grande escritor argentino.
LER E RESPIRAR
Borges deve ter conhecido o livro “Auto-de-Fé” ( tradução do ‘gaúcho’ Herbert Caro) de Elias Canetti. É uma obra que lhe diz respeito em boa parte.
Conta a história de um bibliófilo encerrado em sua biblioteca que se mete, involuntariamente, em confusões de todo o tipo e que, ao cabo de muitas aventuras que o aproximam de um Dom Quixote mais trágico do que satírico, deixa-se queimar com seus mais de vinte mil livros.

Elias Canetti
Elias Canetti

O título português “Auto-de-Fé”, diz bem do livro. É uma fábula que, provavelmente, agradasse ao grande escritor.
Mas vestiria a carapuça? Talvez não, alegadamente pelo diferencial de não ser um leitor passivo, como Kien, o personagem sinólogo de Elias Canetti: Borges transformou sua obsessão pelos livros numa criatividade em que cabe sempre a palavra “maravilhoso”. Criou histórias e poemas, baseado em livros. Sua ficção são ensaios sobre a ficção.
Foi o mestre que encarnou a realidade de nosso mundo em que o ler é uma outra forma de respirar. Borges descobriu uma característica do nosso mundo, mais que de outros tempos, quem sabe.
ARQUETIPOS DE LIVROS
São Jerônimo, tido como o maior leitor de seu tempo, lá pelos anos 300 D.C., não imaginaria jamais em se jactar por devorar livros. Borges não fez isso evidentemente. E não foi um Kien. Talvez se pensasse uma criatura de biblioteca – uma espécie de traça ou cupim pensante e, mais que tudo, um produtor de livros a partir de livros.
são  jeronimo 2
Borges pensa como os livros e pelos livros, como os arquétipos de livros. E fez de sua obra uma bíblia no sentido etimológico, onde os personagens são muitas vezes os livros dos livros, mas sempre também os seus personagens.
Mesmo seus heróis míticos – gaúchos analfabetos – são sempre referências literárias. Há um ou mais livros a espreitá-los. São sempre referenciais dentro da literatura.
Aproximá-lo de Gustav Mahler, talvez só o desagradasse pela sua indiferença em face da história da música. Borges sempre apreciou tangos e milongas, mas confessava uma real ignorância em relação à música maiúscula – a que, afinal, tem a ver com grande cultura de que ele, Borges, foi um dos maiores protagonistas em nosso tempo.
TRIBUTO OU CRÍTICA
Mahler, como Borges, também se notabilizou como um criador historicista: toda a sua criação viceja em meio à produção musical de seus antecessores. Foi um compositor que se expressou em torno da própria música, da sua história. Suas referências, mesmo quando cantadas, com poemas, alguns de sua própria autoria, não são fora do estrito campo da música.
Gustav Mahler 2
Difícil, entretanto, que como judeu ( Borges encontrava judeus na gênese do seu nome), Mahler se alienasse das tragédias de seu tempo. E ele não se alienou: o referencial das quatro notas da quinta, em dó menor de Beethoven, que ele acrescenta à sua quinta são, é certo, uma “hommage” a Beeethoven, como diz Leonard Bernstein – mas ele as usa menos como tributo do que como crítica.
É audível que fez da história o tema para a sua música e que, ao se referir a Beethoven, o trágico sobressai no que se sucede às quatro notas conhecidas: o drama que põe em xeque a própria música, como que esplende na impossibilidade do prosseguimento da história, já que, em Beethoven, a música é um protesto com plena ressonância na história, enquanto que, em Mahler é uma dolorosa interrogação que tende a não admitir respostas.
Se fizesse o mesmo, Borges talvez tivesse de se endereçar compulsoriamente à trágica contemporaneidade de seu país nos últimos anos. Mas teria de reavaliar também sua própria trajetória e pensar as feridas ocasionadas pelo peronismo – para ele um período recheado de vulgaridades que o atingiram justamente por seu intelectualismo, seu onipresente respeito à cultura, à grande cultura.
Assim, o que em Mahler é a previsão da hecatombe, inclusive o nazismo – um processo cultural que desembocaria necessariamente na rejeição da tradição em forma de progresso, em Borges se faz como um afastamento parcial do presente. Não houve nada do que ele não quis ver, mas que aconteceu.
DOM QUIXOTE
É tudo, na verdade, muito paradoxal. Se tivesse atentado para o historicismo que marca a cultura ocidental, sua admiração por Cervantes e especialmente por seu Dom Quixote, seria um caminho, quem sabe, que o levaria a superar as feridas da perseguição que sofreu sob o peronismo. E a sua radical rejeição à questão política, da forma que assumiu na Argentina nos últimos anos.
Cervantes 3
Não se pode esquecer que seu admirado Dom Quixote sofre o diabo, mas persiste em seu ideal maluco e santo, de esperar muito dos homens apesar de tudo. Borges não o fez e não o fez conscientemente, aliás. São numerosos seus argumentos em favor da valentia individual do gaúcho, estribado na sua cultura, na sua tradição.
Fica a pergunta se não era, afinal, o mesmo povo ao qual ele não voltou seus olhos mortos; e que contemporaneamente não mereceram dele senão um profundo desprezo – justamente por sua aproximação com o peronismo. É a eles que Borges reserva sua indiferença, enquanto os trata como meras expressões da vulgaridade manobrada.
Pode, enfim, ser apressada a conclusão de que se explicam duas de sua ojerizas. A primeira, pela música de Astor Piazzola. Borges nunca entendeu a sua música – se é que alguma vez entendeu dos tangos mais que as letras. E condenou explicitamente o futebol. Para ele era a expressão da vulgaridade do povo. Fica a outra questão, se alguma vez se inquiriu sobre qualquer coisa que, afinal, seus olhos nunca viram. E que seu intelecto genial jamais abarcaria, justamente por não constar dos livros, de seus amados livros.
 

Mídia: Ariano bom é Ariano morto

Morreu Ariano Suassuna e foi uma justa comoção nacional.
Menino órfão que venceu as cruezas do sertão, grande escritor, pensador, agitador, um gênio.
Faltou dizer que enquanto vivo, o gênio e o espírito de Suassuna foram incômodos.
Ele pregava contra a massificação, contra o lixo cultural que nos impingem os grandes esquemas midiáticos, questionava a globalização que avassala as identidades.
Os meios massivos queriam sua obra de artista embebida na cultura popular, mas não queriam seu discurso de ativista defensor da diversidade e da identidade nacional.
Tratado como passadista, tinha pouco espaço na grande mídia.
Um caso exemplar:
Em 2008, a Camara Riograndense do Livro escolheu Pernambuco como o Estado a ser homenageado na tradicional Feira do Livro de Porto Alegre. Suassuna era secretário de cultura do governo pernambucano, compareceu à Feira, acompanhado de 22 editores e escritores pernambucanos.
Não mereceram a mínima atenção da mídia local.
Na noite do dia 1 de  novembro, ele deu uma  magistral aula-espetáculo  no cais do Porto. Confessou sua admiração pelo Rio Grande do Sul,  sua dívida para com Simões Lopes Neto, contou causos, apresentou grupos de dança e música. Foi aplaudido entusiasticamente  por mais de mil pessoas.
Cobertura mínima, para registrar o fato.
Como retribuição, Suassuna escolheu o Rio Grande do Sul como  Estado homenageado na feira do livro do Recife, no ano seguinte.
O governo do Estado embromou até a última hora, quando disse que não mandaria ninguém por falta de verbas. Foram três representantes da Câmara do Livro livrar a cara dos gaúchos…
Viva Suassuna!
(E.B.)
 
 

Imprensa: sempre lerda na hora de corrigir

Por Luiz Cláudio Cunha
A imprensa sempre critica, sob aplausos gerais, a lentidão da Justiça. Mas merece vaias quando posterga decisões justas que poderiam melhorar a qualidade da informação no país. Juristas e jornalistas se reuniram em outubro, em Porto Alegre, num seminário para discutir o vácuo jurídico criado pela revogação em 2009 da Lei de Imprensa, um entulho produzido em 1967 pela ditadura e removido sem deixar saudades.
Como sempre, houve divisão quanto à recriação de uma nova lei. Os jornalistas continuam contra, enquanto os juízes defendem uma legislação específica para regular a mídia. O principal foco da discordância é o direito de resposta, que os veículos só concedem por instância final da Justiça, sempre mais tolerante com o direito do outro lado ser ouvido, sem demora.
O próprio consultor jurídico da Associação Nacional dos Jornais (ANJ), Alexandre Jobim, admite: “Ainda se percebe uma falta de iniciativa dos meios de comunicação em relação ao direito de resposta”. É uma opinião relevante, já que a ANJ reúne 155 dos mais importantes jornais brasileiros, responsáveis por 90% da circulação de jornais pagos no país, que chegam a 4,3 milhões de exemplares diários.
O jornalista e deputado federal Miro Teixeira (PDT-RJ) dá a receita mais simples e direta: “O melhor que pode acontecer é o jornal aceitar o pedido de resposta por livre e espontânea vontade, porque ali também há informação. O recurso à Justiça só deve ser feito em último caso”. O vice-presidente da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul (Ajuris), Benedito Felipe Rauen Filho, ecoa: “O direito de resposta deve ser imediato, atendido logo após ser solicitado, para que cumpra seu papel”.
As chicanas jurídicas que retardam a resposta de quem se acha atingido pela mídia acabam desgastando os próprios veículos de comunicação, que passam ao público uma imagem de intolerância e prepotência que desconsidera a liberdade de expressão de quem também consome a informação. E, como todos sabem, a imprensa precisa dar e o leitor merece receber a informação mais precisa e verdadeira — sempre.
Capricho sem desculpa
O viés autoritário ainda é forte no país. Respondendo a uma pergunta do jornal Zero Hora sobre a eventual proibição prévia de publicação de matérias, o juiz Teori Zavascki, ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e professor de Direito da UnB, conseguiu vacilar: “É difícil responder.
A regra óbvia é que não deve haver proibição prévia. Mas há situações-limite em que pode ser necessário, como num caso reiterado de racismo e discriminação”. O deputado Miro Teixeira ensina: “É censura deslavada. Primeiro, se publica a matéria. Depois, se for necessário, se postula direito de resposta e indenização”.
Apesar de tanto bom senso, a ANJ concedeu um ano de prazo para os jornais aderirem a um programa de autorregulamentação. É um capricho indesculpável. Basta copiar agora, já, o CONAR que rege a publicidade brasileira, aplicando imediatamente a regulação que protege a informação, os veículos e seus leitores.
A imprensa não demanda tanto tempo, tanta hesitação, para corrigir seus erros.
Uma imprensa que se respeite deve cobrar de si mesma a imediata, inadiável correção que exige dos outros.
O distinto público só terá a agradecer.