O diabólico desmanche do amparo social

Geraldo Hasse

O desmanche da legislação trabalhista e a reforma da Previdência Social são dois aríetes com que o trio de gladiadores Meirelles-Padilha-Temer pretende abrir para o sistema financeiro o mercado das aposentadorias e pensões, que se configura como uma espécie de filé mignon do neoliberalismo à moda brasileira.
Rola nesse terreno uma grana monumental. Basta lembrar que, em abril de 2016, os 250 fundos de pensões ativos no Brasil tinham um patrimônio total de R$ 721 bilhões, ou 12,6% do PIB nacional.  Os maiores fundos pertencem a empresas estatais (BB, CEF, Furnas, Petrobras, Correios etc) e tiveram grande crescimento no século XXI.
No caso do Funcef, da Caixa, o patrimônio saltou de R$ 9,7 bilhões em 2002 para R$ 44 bilhões em 2010, fruto de uma boa gestão dentro de um quadro de crescimento econômico. Outros fundos também tiveram grande valorização.
Foram justamente esses grandes fundos estatais que, trabalhando em conjunto com o BNDES e outras instituições financeiras públicas e privadas, se tornaram potentes investidores em projetos de infraestrutura (usinas, portos, ferrovias e rodovias).
Entretanto, mesmo com o aprimoramento da legislação, os fundos de pensão brasileiros não assumiram a dimensão alcançada pelos similares de países mais desenvolvidos, onde eles operam em parceria/aliança com os chamados “venture capital”, que investem em empresas novas (startups) especializadas em inovação tecnológica.
Além disso, ocorreram escândalos em alguns fundos que sofreram interferências políticas ou deram margem a gestões duvidosas. O caso mais grave deu-se com o Aerus, que deixou na chuva milhares de aeronautas da Varig. No momento, há algumas acusações mais ou menos vagas e interesseiras contra o Funcef.
Para complicar a situação, a crise de 2008 desvalorizou barbaramente os ativos em que os fundos tinham aplicações, provocando perdas consideráveis.
 No caso brasileiro, em abril de 2016 o déficit total era de R$ 55,3 bilhões, com 93 fundos com resultados negativos e 133 com superávits.
Nos EUA, em 2015, já com a crise relativamente amainada, o total de ativos dos fundos públicos correspondia a apenas 69% do total de suas obrigações.
Nesse quadro de crise, o viés liberal do governo pós-Dilma se impôs nos últimos meses, configurando uma mudança radical no panorama dos investimentos públicos e privados.
Não se sabe exatamente o que será proposto, mas tudo indica que os fundos públicos não terão horizonte para crescer, pois o objetivo do ministro Henrique Meirelles (que se comporta como um soberano ajudado por Eliseu Padilha) é abrir espaço para a atuação da iniciativa privada onde quer que haja demandas reprimidas, mal atendidas ou desatendidas.
E aqui podemos ver o tamanho da jogada.
Somando o que movimentam o INSS, os fundos de pensão estatais, os fundos privados de capitalização, as poupanças particulares e o sistema de saúde/seguridade social, temos um giro de R$ 1,5 trilhão a R$ 2 trilhões por ano ou, seja, de 25% a 40% do PIB.
Boa parte dessa grana gigantesca já roda no sistema financeiro privado, que está se lambendo para engolir o prato especial servido pelo governo plantado em Brasília.
Com as mudanças em curso na previdência pública e na legislação trabalhista, só falta mesmo entregar as poupanças dos trabalhadores estatais e particulares.
LEMBRETE DE OCASIÃO
“O governo, no melhor dos casos, nada mais do que um artifício conveniente; mas a maioria dos governos é por vezes uma inconveniência,e todo governo algum dia acaba sendo inconveniente”
Henry Thoreau (1817-1862), filósofo norte-americano

Braskem: as perguntas que não calam

Geraldo Hasse
Já que está em curso uma devassa sobre executivos, parceiros e sócios da Petrobras,  bem que o Ministério Público poderia investigar como, em poucos anos, o onipresente grupo Odebrecht colocou no topo da petroquímica brasileira sua subsidiária Braskem, cujo nome, aliás, foi criado para sinalizar suas pretensões internacionais.
O Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), que diz amém a quase tudo, poderia ajudar explicando porque avalizou a concentração da petroquímica em uma única empresa.
Não se discute a competência técnica do grupo econômico baiano, mas para todos os efeitos (econômicos, históricos e políticos) seria conveniente esclarecer:
A – Como a Braskem conseguiu assumir o controle da central petroquímica de Triunfo, implantada em 1980 no Rio Grande do Sul pela Petrobras, o grupo Ipiranga e alguns sócios menores, com ajuda do BNDES?
A Braskem havia entrado na Copesul por último, como minoritária, depois de ter-se agigantado ao assumir o controle da central de Camaçari na Bahia (também implantada pela Petrobras) e de tornar-se hegemônica na Petroquímica União, fundada em Capuava (Santo André, SP) pelas famílias Geyer e Soares Sampaio.
Em 2007, correu um boato de que a Braskem “ganhou” a Copesul em retribuição a doações às campanhas do presidente Lula. O fato é que a minoritária Braskem, com 27% das ações, assumiu o controle da Copesul ao comprar os 27% da Ipiranga por US$ 4 bilhões.
A Petrobras ficou com 18%, o que sugere uma nova indagação:
B – Por que a Petrobras abriu mão do controle desse segmento estratégico da indústria brasileira, dando origem a um monopólio nacional privado?
E a pergunta que não pode ser sufocada:
C – Até que ponto a corrupção sistêmica descoberta pela Operação Lava Jato no âmbito da Petrobras atuou para transformar o braço petroquímico da empreiteira Odebrecht em “global player” dos negócios petroquímicos?
Todas essas perguntas fazem sentido, já que está bastante difundida na opinião pública brasileira a noção de que o país está sendo submetido a um processo deliberado de internacionalização de sua economia graças a um entreguismo sem freios em setores estratégicos como a construção pesada, a indústria naval, os segmentos de insumos agropecuários, o transporte aéreo, as telecomunicações e outros como especialmente o setor de petróleo-petroquímica.
Daí emanam novas e inquietantes questões:
1 – Até que ponto a Braskem representa de fato o poder empresarial privado brasileiro num setor historicamente disputado por multinacionais como Basf, Dow Chemical, Imperial Chemical Industries, Rhodia, Shell, Standard Oil e Union Carbide, entre outras?
2 – Com a recente fragilização do grupo Odebrecht após as escabrosas revelações da Lava Jato, a Braskem se manterá de pé ou precisará negociar seus ativos em Camaçari, Capuava e Triunfo? Há candidatos à compra dessas centrais?
3 – Ou será que, colocada a ferver na bacia das almas, a Odebrecht venderá ativos no exterior para tentar manter-se na posse de sua trinca de centrais petroquímicas no Brasil?
LEMBRETE DE OCASIÃO
“O lobby é um iceberg com apenas 1% à mostra. Na verdade é um governo invisível”
Millor Fernandes
 

Inter x Noia, a final da década

Geraldo Hasse
Vi-o jogar uma única vez, ao vivo, num sábado à tarde de setembro de 1958, no Estádio dos Eucaliptos. Jogavam Internacional x Floriano, de Novo Hamburgo, e fomos em comitiva, um grupinho do curso de admissão ao ginásio do Roque de Cachoeira. Era nossa primeira viagem à capital e quem nos ciceroneava era um irmão-professor colorado.
A partida terminou em 6 x 1 e o artilheiro colorado marcou cinco gols, municiado por um alemãozinho driblador chamado Sapiranga. Esse ponteiro-direito de cabelo amarelo trabalhava furiosamente no espaço que lhe cabia e, quando se aproximava da pequena área, ouvia o berro impositivo (“Dá!”) do centro-avante postado de frente para o gol. Inesquecível para um guri de 11 anos.
Mais de 50 anos depois, o antigo craque passa por mim na rua e o identifico. Impossível não reconhecê-lo. Magrão, o topete grisalho arrumado na testa e a ginga de ex-atleta. Puxei assunto, disse que gostaria de entrevistá-lo, que achava sua história muito interessante. Ele esboçou um sorriso resignado, mas não mostrou entusiasmo: “Minha história é pública, não há novidades a meu respeito”.
Não era esnobação. Afinal, Larry Pinto de Faria não fora apenas um atleta vencedor, festejado onde quer que andasse. Depois de marcar quase 200 gols pelo colorado, ele fez uma carreira como mandatário do povo junto às altas esferas do poder. Foi vereador, deputado, secretário municipal. Se no futebol jogava pelo centro, na política atuou pela direita. Começou na UDN, terminou na Arena. Uma figura pública que, no entanto, podia passear livremente pelas ruas.
Usando abrigo de esportista, ele caminhava diariamente de casa até o Parcão, reduto triarborizado que sequer existia quando ele chegou a Porto Alegre, emprestado pelo Fluminense, em meados de 1954. No lugar do atual parque, funcionava o Hipódromo dos Moinhos de Vento, ao qual se podia chegar de bonde, subindo do centro pela Independência e a Mostardeiro. Naquele tempo Larry não frequentava o prado porque, nos dias de corrida dos cavalos (em pista areia), ele também tinha de correr no (gramado do) Estádio dos Eucaliptos, sede do SC Internacional.
Correr é modo de dizer. Larry não corria atrás da bola. Ele a chamava e ela vinha. Era impressionante como se adonava dos espaços do campo para exercer a rara arte de fazer gols. Dava a impressão de que era fácil colocar a bola dentro dos três paus. Por isso levou muita pancada dos zagueiros adversários, especialmente de Airton e Ortunho, do Grêmio.
No seu primeiro Gre-Nal, em 1954, marcou quatro na vitória por 6 x 2. Em 1956, fez parte da Seleção Gaúcha que representou o Brasil no Pan Americano. Naquele que foi um dos melhores ataques do Inter, teve ao seu lado Luizinho, Bodinho, Chinesinho e Canhotinho. Eram cinco no ataque, mas só dois recuavam para ajudar o volante, outrora chamado de centro-médio.
Dada sua “escassa movimentação” (expressão do “professor” Ruy Carlos Ostermann, que marcou época como comentarista de futebol), Larry foi chamado de “O Cerebral”. Nascido em Nova Friburgo, afeiçoou-se ao clube gaúcho, arranjou namorada na cidade, casou e ficou para sempre em Porto Alegre.
Agora que o Estádio dos Eucaliptos não existe mais e o prado dos Moinhos de Vento há mais de 50 anos se mudou para o Cristal, um cronista mundano diria que o maior centroavante da história do Inter nunca perdeu o aplomb nem depois que parou de jogar bola.
E sempre foi fiel ao Internacional. Nos anos 60, quando o time viveu um jejum de títulos enquanto o clube construía o BeiraRio, Larry chegou a trabalhar de graça por algumas semanas como uma espécie de consultor técnico. Desistiu porque, mais do que recursos financeiros, faltava harmonia. “Ninguém se entendia”, ele me disse.
Naquela década perdida o time colorado permitiu que o Grêmio fosse heptacampeão, mas nunca correu o risco de cair para a segunda divisão, como acabou acontecendo em 2016 — coisa que Larry não chegou a ver. Ele faleceu em abril de 2016, com 80 e poucos anos.
Se Larry tivesse sobrevivido à pneumonia que o atacou pelas costas, talvez viesse a ver o ex-Floriano ser o campeão gaúcho de 2017. Com seu bom-humor, certamente diria: “O título ficou em boas mãos”. É difícil, mas o Noia merece.

O despudor dos marqueteiros do poder

“Nossas contradições constroem nossas armadilhas”, disse o marqueteiro João Santana, num trecho filosófico de seu depoimento à Operação Lava Jato.
Com essa capciosa afirmação, ele admitiu ser “cúmplice” do esquema de corrupção que permeia as eleições no Brasil. Só não disse quem criou tamanho esquemão, mas isso é desnecessário porque estamos cansados de saber: quem criou o conchavão foi o despudor do “puder”, como dizem os cabras-da-peste do Nordeste ao se referir ao poder.
É um fenômeno que veio de Portugal com as capitanias hereditárias e foi se aprimorando com a ajuda dos ingleses (no século XIX) e dos americanos do Norte (desde o século XX).
Hoje a coisa tem diversas características próprias, sendo uma delas a figura relevante do marqueteiro.
A quem não está familiarizado com o termo, “marqueteiro” é a denominação dada aos profissionais que coordenam campanhas eleitorais.
Misto de publicitário e jornalista, eles concentram tanta informação que chegam a obrigar candidatos a dizer coisas em que não acreditam. Eles são o resultado de uma deformação da sociedade. Não é exclusividade brasileira. Marquetagem é prática global.
Em resumo, salvo uma ou outra exceção, o marqueteiro é um empulhador profissional. Simpático. Sorridente. Geralmente bom contador de causos. Bom vivant. Conhecedor de vinhos. Viajado. Gastador de dinheiro.
Não é de ostentar nem de gritar “sabe com quem está falando?”, pois sabe que tem o poder de orientar seus “clientes”, encomendar pesquisas de opinião viciadas ou não e determinar os temas de campanha.
Alguns têm hábitos relativamente simples como frequentar rinhas de galo ou apostar em corridas de cavalo. Mas sua “cachaça” é o jogo do poder.
Nunca trabalhei em campanhas eleitorais, mas o exercício do jornalismo me colocou a par de uma série de informações sobre os ganhos de pessoas contratadas para trabalhar em comitês eleitorais.
Nas maiores redações dos principais centros do país, alguns repórteres e/ou editores se demitiam para “fazer campanha”. Durante quatro ou cinco meses, trabalhava feito um cavalo para ganhar nesse período o equivalente ao que ganharia em um ou dois anos no emprego desprezado. Era um jogo.
Se a campanha fosse vitoriosa, ele ficava no direito de trabalhar por quatro anos no gabinete do candidato eleito, após o que devia camelar mais uns meses numa nova campanha eleitoral estressante. E assim por diante. Ou não.
Se o candidato não fosse eleito, o profissional tinha de voltar ao ex-emprego (se o aceitassem, o que não era comum) ou caitituar um novo cargo em outra empresa bem capaz de valorizar sua experiência, sua penetração e seus contatos no mundo político.
Uma saída bastante comum era passar a operar numa agência de propaganda que tivesse um departamento de marketing político. Das grandes agências, a maioria fazia o jogo para ter acesso a verbas de campanhas publicitárias oficiais.
Quem não gostaria de ter a conta da Petrobras? Do Banco do Brasil? Da Caixa? Dos Ministérios da Saúde ou da Educação? São rios de verbas publicitárias.
Foi nessa batida que alguns profissionais do marketing político criaram seus próprios escritórios de propaganda eleitoral. Casos de Duda Mendonça e João Santana, para citar os mais notórios. Mas havia nesse metiê figuras pouco visíveis como Luiz Gonzalez e Chico Santa Rita, ambos bem-sucedidos nos bastidores das campanhas eleitorais.
Eles formaram equipes, nas quais afloraram novas cabeças que passaram a trabalhar por conta própria em campanhas estaduais, metropolitanas e até em países vizinhos, onde eram aplicados os mesmos métodos em espanhol.
Esses cobrões habituaram-se, e treinaram pessoas, a encarar candidatos como produtos que poderiam ser manipulados como mercadorias. Merchandising de políticos. Marquetagem. Manipulation, o que inclui a realização de lobbies junto aos grandes veículos de comunicação, cujos dirigentes não são alheios ao jogo do poder.
Até a ditadura militar tinha seus marqueteiros, pois não bastava dispor da força das armas. Mas a especialidade marqueteira – antigamente denominada genericamente como “relações públicas”, com uma derivação modernizante para as “relações governamentais” e/ou “institucionais”, como chegou a constar no expediente de grandes editoras — evoluiu de tal modo que já desde os anos 1970 se concluiu que sem TV um candidato não ganha eleição. Daí então…
Se bem usada, a máquina televisiva coloca na Presidência da República quem ela quer. Foi assim com Collor, para citar um caso exemplar. E pode abarrotar o Congresso Nacional com dezenas de nulidades bem-falantes ou devidamente embaladas pelo marketing eleitoral e regadas por verbas de campanha.
Loucura total: entre abril e outubro, candidatos, marqueteiros e os trabalhadores do comitê correm atrás de dinheiro e de eleitores. Como diz o ditado popular, verba volan, o dinheiro voa. Se entra fácil, sai fácil.
Acontecem desvios mas, ao contrário do que pensa o vulgo, os recursos captados junto a cidadãos e empresários não são automaticamente embolsados pelos candidatos, pois há controles nas cúpulas partidárias e é necessário prestar contas aos tribunais eleitorais, que podem ser tão rigorosos quanto os fiscais da Receita Federal, se o quiserem.
Mas toda campanha é voraz ao exigir dinheiro vivo – além de crédito — para bancar despesas com equipes de filmagem, redação, edição e impressão de material de propaganda. E verbas para o transporte do candidato e equipe. Para alimentação. Hospedagem. Em alguns casos, como os de comícios, é preciso contratar “duplas sertanejas” e o séquito que as acompanha para o mal e para o bem.
E mais: há cabos eleitorais que vendem no atacado os votos do seu curral. Muitos exigem dinheiro e depois cobram recompensas — empregos para seus protegidos. É assim que os poderes executivos e legislativos deste país ficam cheios de pessoas despreparadas, que só ocupam cargos comissionados (os famosos CC) porque algum doutor as nomeou.
Agora vem a pergunta final: como o marqueteiro João Santana e sua sócia Monica Moura puderam pagar à Justiça uma multa de 30 milhões de reais? Certamente não precisaram pedir emprestado a um cliente porque, durante os 20 anos em que trabalharam com marketing político, puderam fazer uma boa poupança.
Seria ingenuidade esperar que o sujeito que fez a vitoriosa campanha de Lula à Presidência tenha resistido à tentação de acumular. O marqueteiro vitorioso fica com o direito de dizer onde devem ser aplicadas certas verbas de publicidade do governo. Há veículos e grupos editoriais que dão bônus a agências que lhes propiciam altos volumes de verbas – é a famosa BV (bonificação por volume), uma forma refinada de tráfico de plim-plim.
Tavez o marqueteiro esteja caindo em desgraça por força do lavajato, mas até agora ele tem sido um semideus da política. Ficou tão poderoso que acabou se tornando vulnerável. E acabou caindo nas armadilhas do excesso de poder. Para o bem ou para o mal, aí está uma bela lição de marketing.
LEMBRETE DE OCASIÃO
“Mais cedo ou mais tarde todo político corresponde aos que não confiam nele”. (Millôr Fernandes)

Somos todos campeões na modalidade corrupção

Geraldo Hasse
Mesmo com suas distorções de fundo político-ideológico, a Operação Lava Jato tem sido bastante pedagógica no sentido de revelar a extensão e a profundidade dos arranjos feitos pelos malandros profissionais para fazer a máquina dos negócios funcionar em harmonia com as engrenagens do poder em benefício da chamada turma dos camarotes.
Eles montaram o crime quase perfeito. Funcionou por décadas, do primeiro ao último Cabral. Se foram descobertos é porque alguns protagonistas se refestelaram tanto na sacanagem que deixaram os rabinhos de fora, como nas parábolas sobre os sete pecados capitais.
Quem ainda se lembra deles? Originalmente, segundo a igreja católica, eram sete: avareza, gula, inveja, ira, luxúria, preguiça, soberba. Atire a primeira pedra quem nunca andou por uma das sete casas.
Hoje em dia há outros pecados, como a cobiça, exercida indiscriminadamente por empresários, executivos, atletas, políticos e pastores religiosos, entre outros.
Ademais, mereceriam enquadrar-se como pecados capitais a desfaçatez dos ladrões do dinheiro público e a hipocrisia de tantos mentirosos de ofício e de ocasião. Como diz o slogan da SporTV, da Rede Globo, “somos todos campeões”.
Entre esses, poderíamos apontar o maior dos corruptos: é o achacador, que se prevalece de posições de mando para angariar vantagens para si e para seus amigos. Na cadeia, impedido de achacar pessoalmente, ameaça alcaguetar ex-companheiros. Mau caráter integral.
Todos os dias os jornais trazem indicadores notórios de que não há lugar para a ética no mundo moderno, pois quase todas as personagens citadas no noticiário estão invariavelmente mais preocupadas com os aspectos materiais da vida do que com os valores morais.
De fato, nada pesa mais no jogo do poder do que a força do dinheiro.  Pesa tanto que se tornou o leit motif (motivo condutor) da maioria dos crimes. Se não é o motivador, está presente no cenário como pano de fundo. Por isso, para a maioria das pessoas, a palavra “negócio” traz implícita a ideia de “sujeira”. Dizendo de outro jeito: não há jogada limpa no mundo dos negócios. Por extensão, a política é um jogo essencialmente sujo.
Propina, graxa, mutreta, bola, maracutaia, pixuleco: seja qual for seu apelido, a corrupção não se restringe aos empresários e executivos ou aos políticos e funcionários de ministérios e partidos políticos.
Estamos mais do que cientes de que a corrupção é generalizada: começa na base da cidadania onde eleitores vendem seus votos, passa pelos políticos que prometem mundos e manipulam fundos doados por picaretas empresariais, e chega aos togados que julgam contas de campanhas, absolvendo camaradas e condenando adversários.
Por artes de uma espécie intangível de corrupção, salva-se quem tiver as costas quentes ou desfrutar de foro privilegiado, uma espécie de asilo procurado por bandidos que se protegem com o voto popular – uma modalidade de corrupção que parece estar com os dias contados.
A partir de 11 de abril, com o amplo acolhimento pelo ministro Facchin, do STF, das delações de executivos da Odebrecht, pode ser que as coisas tomem um novo rumo no âmbito dos supremos poderes, onde o jogo se concentra em apenas 11 cabeças cansadas da guerra política.
PROVÉRBIO DE OCASIÃO
“De barriga de mulher, de urna eleitoral e de cabeça de juiz, ninguém sabe o que pode sair”.

As privatizações e os direitos da maioria

Geraldo Hasse
A crise econômica instalada no país tornou mais aguda a disputa por espaços em todas as atividades, da política à economia.
Vem desse contexto a sensação de que os responsáveis pelo governo não se pautam pela ética senão na aparência. Prevalece o egoísmo, conforme o provérbio: “Farinha pouca, meu pirão primeiro.”
Por isso, ao acompanhar o debate sobre as reformas disso e daquilo, já sabemos que não chegaremos a um bom termo porque falta legitimidade aos detentores do Poder. Eles sabem que precisam fazer o serviço rapidamente pois dispõem de pouco tempo.
Muitos ocupantes de cargos públicos, por voto ou concurso, negligenciam a obrigação moral de agir com lisura, como se esquecessem que estão numa vitrine não vitalícia.
Em função pública, quem não agir direito deve pagar muito mais caro do que um particular. Essa é uma máxima da vida republicana que precisa prevalecer. Se não for assim, como vai se construir uma cidadania consciente?
O interesse público tem sido solapado diariamente por atos e medidas em prol de interesses privados.
Os direitos da maioria trabalhadora (100 milhões de brasileiros, entre os quais 13,5 milhões de desempregados) estão para ser retalhados pela terceirização ampla dos contratos de trabalho.
Ao aprovar essa medida, a Câmara dos Deputados deu um salvo-conduto para os famosos “gatos” (intermediários) que atuam no mercado de trabalho no campo e na cidade.
A reforma da Previdência, pior ainda: em nome de uma modernização marota, arma-se um grave retrocesso numa área em que o Brasil progrediu bastante na luta para garantir assistência aos idosos e aos desvalidos em geral.
Não se pode esquecer que a previdência social precisa ser pública, isenta das taxas de administração e lucratividade que caracterizam os fundos privados.
A previdência, a saúde, a educação, a segurança e o transporte devem ser obrigações do Estado, que só deixará à iniciativa privada um espaço complementar, nunca o principal.
Está provado, na prática, que o viés privatista mutila os direitos comunitários.
É o que vemos no modo como a iniciativa privada trata o meio ambiente, os recursos naturais, os trabalhadores e até o patrimônio histórico.
LEMBRETE DE OCASIÃO
“A contradição é a fonte de toda a vida. Só na medida em que encerra em si uma contradição é que uma coisa se move, tem vida e atividade. Só o choque entre o positivo e o negativo permite o processo de desenvolvimento e o eleva a uma fase mais elevada. Quando faltam forças para a desenvolvimento e para o agravamento da contradição, a ideia ou a coisa morrem em virtude dessa contradição, sem nada de novo engendrar.”
Hegel (1770-1831), o pai da dialética moderna

Hora do PT matar a mosca azul

Geraldo Hasse
Depois do aluvião de denúncias levantadas pela Operação Lava Jato nos seus primeiros dois anos e meio, soubemos recentemente que não foram apenas petistas que prevaricaram, mas membros de praticamente todos os principais partidos brasileiros. Portanto, a começar pelo PT, impõe-se um saneamento geral para higienizar a vida partidária no Brasil.
Para clarear o panorama, precisamos recordar que, logo em sua fundação em 1980, o PT criou uma fórmula original da sobrevivência partidária: estabeleceu uma mensalidade para os filiados e uma contribuição compulsória para os militantes eleitos para cargos públicos. Cada mandatário tinha que dar ao partido 30% dos seus honorários.
Para coroar seu sucesso como partido de massa, só faltava ao PT filiar um número próximo de um milhão de sócios. Essa era sua meta explícita. Sob o comando do deputado José Dirceu, o partido passou a fazer filiações pela internet. Consta que chegou a 700 mil sócios.  Uma espécie de Coringão ou Flamengo entre os partidos.
Além dos pioneiros adeptos do socialismo democrático (“sem medo de ser feliz”), o partido passou a contar com levas de adesistas de última hora, alpinistas de ocasião, carreiristas sem vergonha e oportunistas loucos para ser governo.
No final do século XX, com apenas vinte anos de existência, o PT havia conquistado centenas de mandatos de vereador, prefeito, deputado, senador e governador. Cada um desses eleitos tinha direito de nomear um número considerável de pessoas para cargos de confiança, os chamados CCs, que também deviam dar o seu quinhão para o sustento da estrutura partidária.
Foi nessa convivência forçada entre os revolucionários de primeira hora e os recém-chegados famintos pelo poder que o PT perdeu a pureza original. Frei Betto escreveu um livro dizendo que seus amigos petistas se deixaram picar pela mosca azul do poder.
Alguns acreditam que o vacilo se deu durante a redação da Carta ao Povo Brasileiro, assinada por Lula em 22 de junho de 2002, portanto, alguns meses antes da eleição que colocou o ex-operário do ABC no Palácio do Planalto.
O pragmatismo petista no exercício do governo do Brasil rendeu a metáfora do presidente violinista: enquanto segurava o instrumento com a mão esquerda, Lula acionava o arco do violino com a direita (a troca de mãos não alterava o resultado final, considerado bom para pobres e ricos).
Sucesso de crítica e de público, o concerto petista foi bem até que, por ambição demasiada, erro de cálculo, soberba ou falta de melhor alternativa, o PT achou por bem (ou por mal?) fazer como os outros partidos no exercício do poder.
Aparentemente, não precisava ser assim, pois se todos os petistas seguissem a norma de contribuição ao partido, o PT poderia viver sem depender de doações de empresas interessadas em favorecimentos.
Tudo indica que o toma lá-dá cá começou na campanha eleitoral e se aprofundou perigosamente no jogo do(s) partido(s) no Congresso, sem o que não seria possível aprovar programas, projetos e políticas de interesse da maioria da população – e também de setores empresariais.
Deu no que deu. Mesmo sem provas, a Justiça condenou o chefe do partido José Dirceu a mofar na cadeia por conta do Mensalão, nome moderno de uma prática ancestral na administração pública do Brasil. Também foram condenados dois tesoureiros do partido. Há quem diga que José Dirceu é um preso político condenado por sua “extrema periculosidade”.
Em consequência das evidências dos delitos, o PT perdeu grande parte de sua credibilidade e a presidenta Dilma Rousseff foi tirada do Planalto por uma conspiração de políticos, procuradores e jornalistas com aval do Supremo Tribunal Federal.
Nas eleições de 2016 o PT perdeu um monte de votos e de cargos. Se fosse uma empresa, estaria no vermelho e sua diretoria seria substituída.  Por ser um partido, a democracia interna é sufocada pelas camangas de cúpula.
De uma forma ou de outra, o PT contribuiu para a degradação política ao fazer acordos e alianças com escroques, farsantes, traidores e pilantras protegidos por membros da baixa, média e alta magistratura.  Por isso, após a Operação Lava Jato, é indispensável passar um bombril nas panelas do partido e promover a volta ao caminho inicial, sem medo de ser feliz.
Até agora, quem andou mais próximo dessa prática foi o ex-governador gaúcho Olívio Dutra. Adepto da limpeza, ele é aplaudido onde quer que vá em Porto Alegre, mas provoca desconforto na cúpula nacional do partido.
LEMBRETE DE OCASIÃO
“Há outro caminho possível. É o caminho do crescimento econômico com estabilidade e responsabilidade social. As mudanças que forem necessárias serão feitas democraticamente, dentro dos marcos institucionais. Vamos ordenar as contas públicas e mantê-las sob controle. Mas, acima de tudo, vamos fazer um Compromisso pela Produção, pelo emprego e por justiça social. O que nos move é a certeza de que o Brasil é bem maior que todas as crises. O país não suporta mais conviver com a ideia de uma terceira década perdida. O Brasil precisa navegar no mar aberto do desenvolvimento econômico e social. É com essa convicção que chamo todos os que querem o bem do Brasil a se unirem em torno de um programa de mudanças corajosas e responsáveis.”
 Luiz Inácio Lula da Silva no final da Carta ao Povo Brasileiro em 22 de junho de 2002

Marcha à ré nos biocombustíveis

Geraldo Hasse

Toda semana pipocam notícias sobre a venda de ativos da Petrobras — 30 já foram vendidos e há 40 outros na fila de espera, segundo o Tribunal de Contas da União –, mas pouco se fala do desmanche da relação Petrobrás-Agricultura Familiar.
Estabelecida pelo governo Lula, a aliança BR-AF juntou duas políticas – a diversificação energética mediante a adição de biocombustíveis ao óleo diesel e a proteção aos agricultores familiares, que garantem a maior parte do abastecimento alimentar brasileiro.
Se a genial combinação dessas duas políticas era tão virtuosa, por que o governo está tratando de desmanchá-la?
A resposta é dramaticamente simples: a ênfase no social é considerada um despropósito pelos adeptos do pensamento único, aqueles que derrubaram o governo eleito a fim de restabelecer a primazia do capital na exploração dos fatores de produção – mão-de-obra, recursos naturais e insumos intermediários. Enfim, os trabalhadores que se ferrem.
Comprar soja e outros produtos agrícolas, inclusive resíduos vegetais e animais, para fazer combustíveis pode não ser a mais lucrativa das atividades, mas a adição desses subprodutos agropecuários ao diesel mata dois coelhos, ou seja, melhora a renda dos agricultores e ajuda a despoluir o meio ambiente, cujo equilíbrio está comprometido pela queima global de combustíveis fósseis.
O desestímulo à produção de biocombustíveis oriundos da pequena agricultura é um crime a mais na conta do governo Temer — um crime contra a economia popular e uma traição a compromissos ambientais assumidos internacionalmente pelo Brasil.
Não é difícil encontrar na mídia executivos dizendo que é inviável produzir biocombustíveis a partir de mamona ou pinhão manso, duas matérias-primas que não deslancharam no Nordeste, mas cabe indagar: por que o governo não banca por mais uma década ou duas o fomento dessas lavouras típicas da agricultura sertaneja?
Será possível que uma parceria Embrapa-Petrobras não daria conta de um desafio dessa envergadura?
O trabalho da Petrobras junto às bases da agricultura brasileira começou a fazer parte da política econômica em 2003, quando Lula dobrou a aposta no etanol e na indústria de equipamentos para a geração de energia verde. O presidente chegou a liderar uma comitiva de empresários a Havana com a ideia de vender tecnologia e serviços para a agroindústria canavieira cubana.  Também foi a outros países da América Latina e da Africa. Seu carisma e ousadia marcaram a primeira década do século XXI.
Não foi por mera adesão à simpatia de Lula que o presidente norte-americano George Bush Jr. veio ao Brasil. Ele elogiou a política de incentivo ao etanol de cana (que, junto com a queima de bagaço, pesa cerca de 20% na matriz energética brasileira), mas o que queria, no fundo, era garantir uma participação no pré-sal recém-descoberto.
Alguns anos depois, o presidente Obama diria que Lula era “o cara”. Nunca antes neste país um presidente foi tão paparicado pelos ianques, cuja tentação imperialista é indisfarçável.
Quase um ano depois do afastamento da presidenta Dilma (foi em abril de 2016 que a Câmara vendeu a alma num espetáculo deprimente), os programas e as políticas de Lula/Dilma estão sendo descartados pelo governo Temer, que não esconde sua inclinação pró-Washington.
Hora de tomar consciência das mudanças em curso e dos seus reais beneficiários.  O noticiário de TV, rádio e jornal sugere que as coisas estão em vias de melhorar na economia, como apregoam as autoridades. Não é bem assim. Parece que tudo se encaminha para melhorar, sim, a vida dos carapálidas.
Enquanto as reformas previdenciária e trabalhista precisam ser debatidas no Congresso até a aprovação final, o desmanche do “trabalho social” da Petrobrás vai sendo feito no dia a dia, por meio de medidas administrativas baseadas na racionalidade econômica.
O mais recente exemplo é a desativação da usina de biodiesel de Quixadá (CE), uma das 62 usinas autorizadas a produzir biocombustíveis no país. Segundo relatório divulgado em 2015 pela ONG Repórter Brasil, essas usinas recebiam matéria-prima de 84 mil famílias de agricultores.
Segundo se sabe por registros esparsos, há outras usinas paradas ou operando à meia boca. São fortes os indícios de que a BR está abrindo mão da parceria com a Agricultura Familiar.
Só falta vir um chefão da estatal dizer que não é alvo, foco ou missão da NeoBR ajudar os pobres do campo. Claro que nenhum executivo vai se expor assim, porque seria desgastante para sua imagem pessoal e da empresa. Ainda que ninguém ouse dizê-lo, a neoverdade é essa: “filantropia” é atraso de vida.
Pela nova óptica ajustada aos negócios públicos no Brasil, cabe à Petrobras tão somente gerar lucros para seus acionistas no Brasil e no mundo.

A reforma da Previdência

GERALDO HASSE
Começam a pipocar documentos e manifestos contra a reforma da Previdência. Nada mais justo e lógico: a proposta do governo Temer é uma iniquidade que atenta contra os direitos da maioria trabalhadora.
Alegando um déficit não comprovado, quer aumentar o tempo de contribuição, alongar a data das aposentadorias e reduzir os benefícios dos aposentados e pensionistas. Parece um pacto sinistro para aumentar a marginalização social.
Os trabalhadores com seus sindicatos estão abrindo os olhos e se prontificam a combater a reforma da previdência pública, que está se tornando um ponto de união das oposições fragmentadas pelo golpe contra o mandato da presidenta eleita.
Um dos sinais da disposição de lutar começa a traduzir-se na coleta de assinaturas de parlamentares pela convocação de uma comissão parlamentar de inquérito sobre o alegado déficit da Previdência.
Briga difícil que já projeta sua sombra sobre as eleições de 2018, quando o povo deve eleger um novo Congresso e o presidente da República.
Embora conte com a ajuda da mídia chapa-branca, que se agarra no(s) governo(s) no afã de se manter viva em plena transição das tecnologias da comunicação, o grupo de Temer deixa cada vez mais claro que se instalou no poder para ferrar os pobres e beneficiar os ricos, coisa que vem fazendo com o apoio do parlamento, majoritariamente identificado com a plutocracia que financia as campanhas de deputados e senadores.
Mas essa situação cinzenta tende a mudar na medida em que for ficando claro quem foi escolhido para pagar a conta da recessão econômica.
O projeto de reforma da Previdência tem a mesma inspiração elitista da Emenda Constitucional 95, que congelou gastos primários por 20 anos.
Segundo essa visão, filiada ao conceito do estado mínimo, o problema fiscal brasileiro decorre do aumento acelerado da despesa pública primária, ou seja, dos gastos sociais, de saúde, educação, com o funcionalismo, etc.
Enfim, das despesas que são realizadas para atender a esmagadora maioria da população.
O argumento do déficit previdenciário é uma balela, como tem sido demonstrado por diversos estudiosos do assunto. A Previdência Social faz parte do  sistema de seguridade social, formado pela Previdência Social, Saúde e Assistência Social.
Este sistema é superavitário. Além da arrecadação proveniente da folha de salários (com a contribuição de empregados  e empregadores), o orçamento do sistema de seguridade é composto pelo Cofins (Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social), Pis/Pasep (Programa de Integração Social e Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público) e a CSLL (Contribuição Social Sobre o Lucro Líquido).
A receita da Seguridade Social em 2015 foi de R$ 694,97 bilhões e a despesa, de R$ 683,17 bilhões, portanto teve um superávit de R$ 11,8 bilhões.
Isso num ano em que a economia recuou quase 4%. Nos anos anteriores, os superávits foram bem maiores. As sobras eram tão grandes que foi criada a DRU (Desvinculação das Receitas da União), que autoriza o governo federal a usar um percentual do orçamento da Seguridade para outros fins, inclusive no pagamento de serviços da dívida pública.
No ano passado, esse percentual subiu de 20% para 30%. O déficit previdenciário não existe em si, mas pode ser “construído” por meio de manipulação do orçamento.
Além de ignorar esse item fundamental, o governo tentou induzir a sociedade a acreditar que a Previdência estaria na iminência de falir, deixando milhões de pessoas sem receber aposentadorias, pensões e outros benefícios.
Com essa campanha terrorista, o governo “esqueceu” de colocar em seu projeto três ou quatro informações decisivas sobre os bastidores da suposta “crise da Previdência”:
1 – Omitiu-se que, somente nos últimos seis anos, a Previdência Social renunciou a R$ 270 bilhões em receitas embutidas em projetos de investimentos beneficiados com incentivos fiscais. Se o objetivo da reforma é economizar R$ 678 bilhões em 10 anos, como saiu na imprensa, seria mais eficiente eliminar as renúncias, que favorecem as empresas e oneram o Estado, ameaçando a sustentabilidade da Previdência;
2 – Os gastos anuais com juros e amortização da dívida pública ultrapassam o patamar de R$ 500 bilhões, recursos que saem do Tesouro Nacional e ficam girando nas mãos de cerca de 10 mil famílias de super-ricos nativos e estrangeiros, responsáveis pela ciranda da especulação financeira. Uma redução de 1% nos juros pagos pelo Banco Central representa economia anual de pelo menos R$ 50 bilhões, dinheiro que poderia ser investido em infraestrutura ou aplicado em gastos sociais;
3 – A Previdência Social acumula créditos de R$ 426 bilhões de milhares de empresas devedoras, inadimplentes ou caloteiras conscientes. Esse valor, levantado recentemente pela Associação dos Procuradores da Fazenda Nacional, foi ignorado pelo governo em seu projeto de reforma previdenciária. É verdade que são créditos de difícil realização. Em 2016, a Procuradoria da Fazenda Nacional recuperou apenas R$ 4,15 bilhões, o equivalente a 0,9% da dívida previdenciária total. Segundo levantamento feito junto aos 32 mil maiores devedores, um quinto deles não existe mais como empresa. Mas 80% das empresas estão em atividade, muitas delas discutindo os valores na Justiça ou rolando a dívida num dos tantos Refis abertos pelo governo. A maior devedora é a Varig: mais de R$ 3,7 bi. Há também R$ 1,7 bi da Vasp e R$ 1,2 bi da Transbrasil;
4 – O governo “esqueceu” a dimensão social da Previdência: do conjunto de políticas públicas existentes no Brasil, nenhuma é mais eficiente do que a Previdência Social, no aspecto de distribuição de renda. A esmagadora maioria dos benefícios, cerca de 80%, é de um salário mínimo, com elevado efeito distributivo. Em cerca de 71% dos municípios brasileiros os montantes transferidos pelos benefícios da Previdência Social são superiores àqueles repassados pelo Fundo de Participação dos Municípios. Dois terços dos benefícios da Previdência Social são destinados a municípios com até 50 mil habitantes.
Cerca de 90 milhões de brasileiros, incluindo  86% da população idosa, recebem aposentadoria, que geralmente é a renda principal dessas pessoas. Mas de cada aposentadoria dependem mais de um membro da família.
Assim, certamente passa, com folga, de 120 milhões de brasileiros que dependem dos recursos pagos pela Previdência Social. O investimento social com a Previdência, em 2015, chegou a R$ 480 bilhões, para dar condições de sustento para esses 120 milhões de brasileiros. Em termos sociais e democráticos, são números que não se comparam a qualquer cifra relativa às camadas superiores da pirâmide de renda do Brasil.
Obviamente é fundamental debater o futuro da Previdência Social, pois caiu a taxa de natalidade e elevou-se o contingente de idosos. Ou, seja, tende a haver cada vez mais gente “encostada” na Previdência. Mas essa discussão tem que ser feita no interesse da maioria da população e não a serviço dos interesses do capital financeiro, que está na boca da botija, esperando o momento de dar o bote sobre um negócio que representa pelo menos 10% do Produto Interno Bruto, sem contar o que já é movimentado pelo sistema de previdência privada.
 

LEMBRETE DE OCASIÃO
Enviado ao Congresso em dezembro último e já aprovado na comissão de constituição e justiça da Câmara, o projeto de reforma da Previdência pode ser um “boi de piranha”. Ou, seja, foi lançado ao rio para enganar os habitantes das águas; enquanto a peixarada se empenha em destruir a reforma previdenciária, os vaqueanos do governo tratam de fazer passar a reforma trabalhista, que está no Congresso há anos.
 
 

Para que serve a riqueza

 
 É constrangedor ver pessoas inteligentes repetirem chavões escravocratas
GERALDO HASSE
Uma noite dessas vi a jornalista Miriam Leitão entrevistando na Globo News o economista Arminio Fraga, ex-presidente do Banco Central do Brasil no governo do presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-2002). Fiquei constrangido com a cumplicidade entre a repórter e o sábio das finanças da PUC-Rio.  
Perfeitamente à vontade, a entrevistadora limitava-se a levantar a bola para o Fraga vocalizar platitudes típicas do mercadismo dominante.
Ela não expressava nenhuma dúvida, estava ali apenas para convalidar as opiniões do convidado. Era um jogo de cartas marcadas – tudo combinado para dar publicidade ao famoso “pensamento único”. Uma cumplicidade tão grande que leva os telespectadores a descrer da proverbial “imparcialidade” dos jornalistas.    
O fato é que, na Rede Globo, praticamente todos os entrevistadores são assim, isentos da vivacidade que se deveria esperar de um repórter. Pior: a mega emissora brasileira nos condicionou a esse padrão de reportagem submetida às autoridades monetárias, que se guiam mais por cartilhas do que pela observação dos fatos.
Neste momento, por exemplo, os assuntos dominantes são os juros (altos), a cotação do dólar (em baixa), a inflação (baixando) e o desemprego (crescendo). Nesse quadro conjuntural complexo, não há lugar para discutir algo essencial como uma política de desenvolvimento capaz de promover o bem-estar da maioria das pessoas, o que seria normal numa sociedade democrática.
Para os economistas como Armínio Fraga e jornalistas como Miriam Leitão, o objetivo da economia é gerar lucros para os detentores dos capitais.
Se os empreendimentos não melhoram a vida das pessoas, a culpa não é dos empresários nem dos economistas. A culpa é da conjuntura… Ou, melhor, a culpa é do governo, que deixou a dívida pública virar essa bola de neve que condiciona a política monetária.
Caberia perguntar quem ao longo da história aconselhou os governantes a tomar empréstimos, dar incentivos a empresários e aceitar a absurda sujeição aos investidores internacionais. Os economistas são incapazes de  sugerir um passo “fora da curva”. São submissos por natureza. Seguem os manuais editados pelas matrizes.  
A doutrina da subserviência rola cotidianamente em estações de TV, emissoras de rádio, páginas de jornais e revistas. Nem se pode dizer que a doutrinação seja exclusividade da Globo, pois em outras emissoras e em outras publicações digitais ou impressas há repórteres segurando o microfone para a pregação das autoridades monetárias.  
Está montada e funcionando abertamente uma parceria habilidosa entre comentaristas jornalísticos, economistas do Mercado, assessores ministeriais e parlamentares chegados a ocupar tribunas e dar entrevistas, alimentando o círculo vicioso do noticiário tendencioso.
Muito desse jogo se alimenta de propinas. Na mídia, as jogadas têm nome: jabá ou jabaculê, geralmente mixarias. É constrangedor ver pessoas inteligentes vendendo-se por tão pouco. É humilhante ver pessoas com estudo se submetendo a propagar ideias escravizadoras da maioria.  
LEMBRETE DE OCASIÃO
“Desde o advento da civilização, chegou a ser tão grande o aumento da riqueza, assumindo formas tão variadas, de aplicação tão extensa, e tão habilmente administrada no interesse dos seus possuidores, que ela, a riqueza, transformou-se numa força incontrolável, oposta ao povo. A inteligência humana vê-se impotente e desnorteada diante de sua própria criação. Contudo, chegará um tempo em que a razão humana será suficientemente forte para dominar a riqueza e fixar as relações do Estado com a propriedade que ele protege e os limites aos direitos dos proprietários. Os interesses da sociedade são absolutamente superiores aos interesses individuais, e entre uns e outros deve estabelecer-se uma relação justa e harmônica. A simples caça à riqueza não é a finalidade, o destino da humanidade.”
Lewis Henry Morgan (1818-1881), cientista social norte-americano citado por Engels e Marx em seus estudos sobre a realidade europeia do século XIX