Os novos pobres

Geraldo Hasse
Saiu no jornal O Globo do Rio um relatório do Banco Mundial sobre o recrudescimento da pobreza do Brasil.
O revés recomeçou em 2015, intensificou-se em 2016 e deve manter-se em 2017 e nos próximos anos, caso não sejam adotadas medidas que levem à recuperação da economia, sem o que não se abrirão novamente as portas dos mercados de trabalho.
Segundo o estudo, que na realidade se baseia em dados da Pesquisa Nacional Por Amostra de Domicílios (PNAD 2015), do IBGE, o número de pessoas vivendo na pobreza no Brasil aumentará entre 2,5 milhões e 3,6 milhões até o fim deste ano.
A diferença de 1,1 milhão entre as duas estimativas depende do comportamento da economia.
Se a recessão continuar, o número de pobres chegará a 20,9 milhões, sendo 9,4 milhões em estado de miséria. Se a economia der uma arribada, os pobres ficarão em 19,8 milhões (8,5 milhões de miseráveis).
Os “novos pobres”, assim chamados porque estavam acima da linha da pobreza em 2015 e já caíram ou cairão abaixo dela neste ano, são na maioria adultos jovens, habitantes (90%) de áreas urbanas e 58,8% deles estavam formalmente empregados até 2015.
É uma situação que se configura como tragédia num país marcado historicamente por gritantes desigualdades sociais e regionais.
O perfil dos “novos pobres” é bastante diferenciado dos “estruturalmente pobres”, aqueles que já viviam em condição de pobreza em 2015 e continuam nessa situação, no conceito formulado pelo Banco Mundial.
A parcela dos “pobres estruturais” é 10% mais velha (média de 41 anos de idade entre os chefes de família), menos escolarizada (17,5% com ensino médio ou mais, contra 37% dos novos pobres), e tem presença importante na área rural (36%), onde as atividades agrícolas vêm mantendo as pessoas empregadas.
Entretanto, graças ao seu perfil (destaque para o melhor nível educacional), os “novos pobres” podem ser mais facilmente alcançados por políticas de geração de renda, acredita o Banco Mundial, que se alia ao Fundo Monetário Internacional no combate às desigualdades econômicas.
Se quiser reduzir a pobreza extrema aos níveis de 2015, base mais recente de dados oficiais sobre renda, o governo terá que aumentar o orçamento do Bolsa Família este ano para R$ 30,4 bilhões no cenário econômico mais otimista e para R$ 31 bilhões no quadro mais pessimista, segundo o relatório do Banco Mundial.
Para 2017, o BF dispõe de R$ 29,8 bilhões, consolidando uma redução de 10% nos últimos dois anos (a última cifra sobre o BF no final de 2014 era de R$ 33 bilhões).
Se o programa não for ampliado, a proporção de brasileiros em situação de miséria subirá para 4,2% este ano no cenário otimista e para 4,6% no pessimista.
Em resumo, o número de miseráveis no Brasil está perto nove milhões de pessoas – o mesmo que a população do Estado de Pernambuco.
Conclusão: enquanto o Brasil vive o primeiro aumento da pobreza após uma década de ascensão generalizada da renda das camadas mais baixas da população, nem o governo nem a sociedade se deram conta de que a crise social se tornou mais aguda nos últimos dois anos.
E tudo indica que a situação vai continuar se agravando, como se a miséria fosse um mal necessário e inerente à história da humanidade. Pelo que se vê nas ruas, as pessoas se comovem mais com um cãozinho sendo maltratado do que com ser humano passando fome, frio ou sede.
Por isso é bom lembrar que aos pobres não falta só comida. Eles não têm habitação decente e carecem das condições mínimas da cidadania: acesso ao mercado de trabalho, a uma instrução melhor, a transporte coletivo de qualidade e bom atendimento de saúde pública. Roupa nova, esporte, lazer e viagens de turismo são fantasias irrealizáveis a curto ou médio prazo.
Se não quiserem catar lixo ou pedir esmola, talvez lhes reste recorrer às drogas, um caminho praticamente sem volta.
LEMBRETE DE OCASIÃO
“Nunca conheci ninguém podre de rico. Mas já vi milhares de pessoas podres de pobre.”
Millor Fernandes (1923-2012)

Missão temerária

GERALDO HASSE
Ao se apossar do poder com um apetite de jejunos e uma imensurável falta de espírito público, o grupo predador da democracia em ação no Planalto não demorou a colocar na agenda uma série de projetos que atingem em cheio a maioria da população brasileira, agora e no futuro.
Os dois primeiros projetos estão quarando ao sol de Brasília e aguardam o momento de entrar em pauta diante de deputados e senadores:
>·        A reforma da Previdência Social está em discussão a toque de caixa no Congresso; fala-se que o governo quer a aprovação em março
>·        A flexibilização da legislação trabalhista, em discussão há anos, já tem maioria de votos parlamentares
Os outros dois projetos malignos rolam nos bastidores e configuram o que outrora se chamava entreguismo e atualmente se considera “integração na modernidade global”:
>·        Alienação da independência energética mediante a venda sem licitação de áreas da maior descoberta da Petrobras: o Pré-Sal
>        Esvaziamento do BNDES, do Banco do Brasil e a da Caixa Econômica Federal, abrindo espaço para a atividade de grupos financeiros privados nacionais e internacionais
Restam dúvidas sobre o que Michel Temer e seus ministros pretendem fazer com os fundos de pensão de empresas estatais e com o FGTS; tudo somado, temos aí um ativo de mais de R$ 1 trilhão.
Para o mal ou para o bem, há ameaças de que intervenha nessa área o Ministério Público Federal, como parte da Operação Lava Jato, que há três anos assombra executivos estatais, políticos e empresários com as investigações sobre propinas em contratos de prestação de serviços.
Somando todos os projetos explícitos e os enviesados, fica claro que o governo Temer está na coordenação do maior esforço jamais feito no Brasil para a alienação da soberania nacional.
Se tiver sucesso, a missão temerária poderá coroar-se com a adoção do dólar como moeda brasileira e a colocação de listras horizontais ianques na bandeira nacional.
Se buscarmos o denominador comum dos projetos adotados como seus pelo governo Temer, veremos que eles atendem a interesses globais associados a organizações empresariais brasileiras, especialmente bancos, federações patronais e redes de comunicação alinhadas com o conceito do estado mínimo – alinhamento mais oportunista do que ideológico, é bom lembrar; enquanto a economia ia bem em anos recentes, as cadeias de mídia estavam alinhadas com o desenvolvimentismo, a inclusão social e outras “bondades” governamentais.
Agora jornais, revistas, emissoras de rádio e TV apóiam medidas antiaposentados, antitrabalhadores e antinacionais que buscam a extinção de direitos consagrados internacionalmente.
Espanta, por outro lado, a falta de reação popular via centrais sindicais, universidades, igrejas e a cidadania em geral.
Também chama a atenção o amplo conformismo do Congresso.
Ameaçada pela Operação Lava Jato, boa parte dos parlamentares adotou como tática de sobrevivência a saída antidemocrática: queima as pontes com seus eleitores, mas salva os próprios  patrimônios fazendo uma aliança estratégica com os financiadores de suas campanhas.
Enquanto isso, a reforma política fica em segundo plano.
Diante desse conjunto de circunstâncias negativas, restaria aos cidadãos o recurso à Justiça, mas que esperança: enredada numa teia de leis contraditórias, a senhora J. é frequentemente forçada a adotar saídas ditadas por conveniências políticas.
Na instância suprema, uma das saídas mais comuns é omitir-se e/ou postergar as decisões. Dessa forma, em último caso, o julgador acaba sendo o Tempo, que vai liquidando inexoravelmente juízes e réus, sem discriminação nem preferências.
O que está acontecendo que ninguém se mexe?
Vai para quatro anos que começou (junho de 2013) a explosão social contra o aumento de R$ 0,20 nas passagens de ônibus urbanos. As manifestações de revolta foram manipuladas por grupos políticos que acabaram criando o caldo de cultura favorável ao impeachment da presidenta eleita, afastada definitivamente em 31 de agosto passado.
De 2013 para cá, mais do que dobrou o número de desempregados formais no Brasil. São agora 12,3 milhões numa população economicamente ativa de 100 milhões. Esse número (12,3 milhões de trabalhadores) não diz tudo, já que contabiliza apenas as pessoas que, segundo a pesquisa do IBGE, procuraram emprego nos últimos 30 dias.
Estão fora da estatísticas os milhares, milhões que não procuram vagas pois já cansaram ou perderam a esperança e se conformam em fazer bicos no mercado informal de trabalho ou se encostaram em algum membro da família.
Há notícias de que no Nordeste aposentados rurais “ajudam” total ou parcialmente uma dezena de parentes, entre adultos e crianças. Nesse sentido, a reforma da Previdência proposta pelo governo significa uma tragédia em dois atos.
Primeiro, vai diluir os benefícios dos que se valem da previdência pública para sobreviver quando já lhes faltam forças para trabalhar.
Segundo, vai privilegiar a previdência privada, fazendo com que a segurança dos aposentados se torne um negócio lucrativo para alguns e arriscadíssimo para milhões.
LEMBRETE DE OCASIÃO
Desde a falência da Varig, causada por uma mistura de má administração privada e leniência governamental, estão na chuva dez mil contribuintes do Aerus, fundo previdenciário dos aeronautas, que brigam na Justiça para receber seus benefícios

Os extremos que não se tocam

GERALDO HASSE
A duplicação da taxa de desemprego — de 6% para 12% — em dois anos (2015-2016) está cada vez mais transparente em detalhes explícitos como a multiplicação das placas de ALUGA-SE e VENDE-SE nas fachadas, mas nenhum deles choca mais do que o aumento do número de catadores de lixo o pedintes que cruzam diariamente as ruas das capitais brasileiras.
 Pobre gente caída do trem da economia, ora conduzido pelos maquinistas do PMDB, muitos dos catadores são desempregados (antigos ou recentes) que perderam suas fontes de ganho e se tornaram hóspedes de marquises e dos viadutos — isso quando não têm ânimo para engrossar o caos habitacional com barracos improvisados nas periferias.
Pacíficos uns, revoltados outros, eles configuram o penúltimo elo da corrente da pobreza extrema, nossa velha conterrânea que está de volta às ruas e praças.
Desde os anos 1970 a Música Popular Brasileira se ocupa deles. Em “Desgarrados”, o gaúcho sanborjense Mario Barbará cantou: “Carregam lixo, catam baganas e são pingentes nas avenidas da capital”.
Chico Buarque denunciou numa canção: “Eles comem luz!”.
No Rancho da Goiabada, dedicado aos boias-frias, o compositor Aldir Blanc os comparou a “canibais, lírios, pirados” – em suma, brasileiros miseráveis que andam pelas ruas “dançando a alegoria dos faraós embalsamados”.
Os catadores mais dinâmicos e organizados puxam/empurram gaiolas de pneus de borracha e já na coleta vão separando o lixo em compartimentos diversos – plástico transparente, papelão e latas são os itens mais valiosos.
Os menos preparados empurram carrinhos de compras de supermercados.
 Os mais carentes, se assim se pode defini-los, levam nas costas sacos plásticos com os materiais colhidos.
Sua atividade contribui para o funcionamento da economia nacional, mas eles não sabem disso.
São todos trabalhadores, embora não tenham nenhuma das garantias legais dos formalmente empregados.
Lendo pedaços de jornais, eles catam a notícia de que pinta no horizonte do Brasil um arrocho trabalhista reclamado pelos empresários… Eita Brasil-zil-zil.
Por estratégia ou insônia, há catadores que circulam de madrugada, compartilhando as calçadas vazias com baratas e ratazanas. Uns poucos cedem à tentação de depredar bens públicos.
Se tivessem a destreza dos pichadores entrevistos pendurados nas paredes, talvez tomassem coragem de catar algo realmente valioso. Até para roubar fios é preciso possuir alguma estrutura, um veículo, uma quadrilha e quem compre a muamba. É o que acontece com os ladrões de ovelhas e reses na zona rural.
E isso não é tudo. No rodapé da nossa pirâmide social, encontram-se aquelas criaturas que já deixaram de acreditar na catação como alavanca de uma possível recuperação pessoal.
Esses limitam-se a ficar agachados, sentados ou deitados nas proximidades de supermercados e bancos. Tornaram-se pedintes. “Melhor pedir do que roubar”, diz um deles, que com esse bordão “bonzinho” costuma deixar seu posto com uma sacola cheia de mantimentos doados por pessoas da classe média, dessas que fazem compras a pé e, portanto, carregam poucas sacolas.
Outro diz sempre a mesma frase: “Amigo, me dá um real?”, mas só obtém algum retorno de mulheres – os homens lhe dizem “quer dinheiro, vai trabalhar”.
Um carente, mais humilde e sorridente, pede “uma moeda”. Acaba ganhando. Duas ou três mães rodeadas de crianças atraem a indignação ou a piedade das pessoas. “E o governo? Não faz nada?” Está nos jornais: os albergues públicos não têm vagas. E muitas pessoas não se sujeitam às regras desses estabelecimentos oficiais, que têm horários e normas de higiene.
Para todos esses pingentes do trem Brasil, soa absolutamente non sense a frase “Vai procurar um emprego”, desferida à queima roupa por gente de pavio curto.
Na realidade, os catadores e os pedintes estão muito aquém da possibilidade de arranjar um emprego. O primeiro passo nesse sentido seria ir ao SINE, mas a maioria deles não tem uma roupa limpa para entrar na fila e, de resto, já não sabe onde perdeu a cédula de identidade ou a carteira de trabalho, se as teve um dia.
Os 1 300 moradores de rua de Porto Alegre recenseados em 2014 já seriam bem mais numerosos.
A rua é um rio onde todo dia aparece um catador novato com hábitos insólitos, como o de pular para dentro dos modernos contêineres da coleta mecanizada e jogar para fora os sacos plásticos cheios de lixo.
Assim fica mais fácil fazer a seleção que lhes interessa; não raro, eles vão embora sem recolocar no contêiner as sobras de sua coleta. Repetem os cachorros-assaltantes das lixeiras dos bairros distantes do centro.
Se não encontram a mercadoria esperada, os catadores mais revoltados protestam chutando o contêiner ou ateando fogo no refugo de catações anteriores.
Para eles, que não foram instruídos sobre as diferenças entre lixo orgânico ou reciclável, tudo que jaz dentro de um saco plástico merece ser vasculhado. E assim será até que todo esse pessoal seja reciclado por um programa de recuperação social que compreenda alfabetização e atendimento psicossocial, entre outros cuidados.
Estará no horizonte brasileiro tamanho progresso governamental? A curto prazo, tudo indica que não.
Ao contrário, a atual cúpula governamental não esconde a pressa em desmanchar os alicerces do estado de bem-social construídos no início do século XXI sobre as bases legais estabelecidas por Getulio Vargas nos anos 1930.
Em nome do atendimento aos agentes do Mercado, o governo Temer está trabalhando para reconstituir os padrões anteriores de miserabilidade.
Além de contar com a indiferença dos ricos, o desgoverno sacana conquistou a adesão da classe média, que andou batendo panelas contra o governo eleito, num deplorável espetáculo de mendicância política.
De uma forma ou de outra, minorias barulhentas se uniram para vilipendiar a democracia, aproveitando-se com raro oportunismo do clamor popular contra a corrupção na administração pública.
Jogo sujo de empresários, de politicos, dos marajás do Judiciário e do Legislativo, com a cumplicidade das forças armadas e a bênção ardilosa das grandes empresas de comunicação social – TV, radio, jornais, revistas e agências de propaganda — que parecem obedecer a um comando único: o plim plim neoliberal emitido pelo grupo Globo, seus repetidores e aliados.
Agora, no afã de contentar o Mercado, o governo Temer prepara a tratoragem da legislação que protege os trabalhadores e os aposentados. A batalha será no Congresso, onde está  armada uma maioria comprada com favores de toda espécie.
Os 300 picaretas apontados por Lula em 1990 foram acrescidos de mais algumas dezenas de oportunistas.
Já se fala que é preciso buscar a saída nas eleições de 2018, mas a manipulação das informações, a propaganda enganosa e a ingenuidade popular se juntam para criar um panorama favorável à manutenção de um governo carente de legitimidade.
O parlamento brasileiro virou uma cancela aberta à livre passagem do crime do colarinho branco. A pergunta que paira no ar é: de que adianta eleger-se um presidente digno e confiável se o congresso continuar dominado por negociantes de emendas e vendilhões de votos?
De alto a baixo a população brasileira está cercada por catadores. Nos altos escalões da administração pública, mesmo acuados por investigações policiais, os catadores de propinas lutam para manter o status quo da corrupção. Nas ruas e debaixo dos viadutos, os catadores e demais caídos do trem buscam tirar do lixo a própria sobrevivência.
São os extremos que não se tocam.
LEMBRETE DE OCASIÃO
 “O homem perde muitas coisas
 que às vezes volta a achar;
 mas se perde a vergonha,
jamais torna a encontrar.”
Jose Hernández (1834-1896), autor de “Martin Fierro”, poema épico publicado em 1872 em Buenos Aires

A bola do jogo político quica na frente de Cármen Lúcia

GERALDO HASSE
  
Nos últimos dois anos, à medida que se aprofundavam as investigações sobre a corrupção de políticos mancomunados com empresários privados e altos funcionários de estatais, três pessoas do Judiciário se tornaram os atores principais da cena brasileira: o chefe do Ministério Público Federal Rodrigo Janot; o juiz de primeira instância Sergio Moro, baseado em Curitiba; e o ministro do Supremo Tribunal Federal Teori Zavascki, relator do processo da Operação Lava Jato.
Ao mesmo tempo em que crescia o trio do Judiciário, saíam do palco, na marra, a presidenta Dilma Rousseff, alvo de um impeachment maroto; e o deputado carioca Eduardo Cunha, ex-presidente da Câmara Federal, preso pela Operação Lava Jato. No lugar dos dois caídos, estão o vice-presidente Michel Temer e o deputado carioca Rodrigo Maia, cujo(s) comportamento(s) não vêm gerando o menor entusiasmo – ao contrário.
Com a morte de Zavascki em acidente aéreo no litoral do Estado do Rio de Janeiro, avulta agora a figura da ministra Carmen Lucia, presidenta do STF. Voluntariosa, ela bem que poderia fazer o que se esperava (e se anunciava) que Zavascki estava para fazer: homologar os depoimentos forçados (delações premiadas, segundo o jargão judicial) de 77 executivos da Construtora Odebrecht que, para se livrar da prisão temporária, denunciaram falcatruas em contratos de obras públicas, favorecendo políticos e partidos. Dizem que são tantos os nomes de políticos citados que talvez se torne mais prático transformar o Congresso em prisão temporária.
É um imbróglio fenomenal que só encontra paralelos em 1964 (derrubada do governo Jango Goulart) e em 1954 (suicídio do presidente Getulio Vargas). Desta vez, há o agravante de que as denúncias de corrupção vêm com nomes, valores e as circunstâncias dos crimes.
Se a primeira mulher eleita presidenta da República não conseguiu segurar a barra, terá Carmen Lúcia coragem de fazer sua parte?
A propósito, qual será sua parte no jogo: homologar as denúncias, segurar a bola, passar a responsabilidade para outro, tentar conciliar os adversários numa mesa de pizzaria ou engavetar os processos?
Teoricamente, ela pode tudo; na prática, tem as mãos amarradas por diversos regulamentos. E, no frigir dos ovos, talvez resolva simplesmente dar ouvidos aos colegas ministros, a assessores, amigos e parentes. Pois os processos que estavam com a equipe de Teori Zavascki são explosivos por envolver cifras monumentais e comprometer altas figuras da república, incluindo o atual ocupante da cadeira principal do Palácio do Planalto.
Diante disso, tem sido natural pensar que o ministro-relator da Lava Jato foi vítima de uma armação criminosa. Sua morte pode ter sido mais uma brincadeira do D., seja ele o Destino ou o Demônio (Deus provavelmente não tem nada a ver com isso).
Não se deve esquecer que no verão, entre o Natal e o Ano Novo ou entre o Ano Novo e o Carnaval, sempre há uma tragédia no Brasil. Assim, pode-se admitir que a morte de Zavascki faça parte dessa quota acidental. Nesse caso é de lamentar que ele tenha saído de cena sem que os brasileiros ficassem sabendo o que ele estava para fazer: ia tocar os processos pra frente ou segurá-los? Era um homem discreto, um típico juiz que “só falava nos autos”. Estaria avaliando as ameaças recebidas?
Se o acidente foi forjado, porém, podemos concluir que não foi “queima de arquivo”, pois os arquivos da Lava Jato estão vivos nos escaninhos do Judiciário. Admita-se então, como hipótese mais robusta de investigação das circunstâncias do acidente, que o avião pode ter sido derrubado para intimidar quem vier a assumir a responsabilidade de avaliar as denúncias feitas pelos prisioneiros da Operação Lava Jato.
Mais uma vez, o Judiciário está no olho do furacão. E agora sob a presidência de uma mulher.
LEMBRETE DE OCASIÃO
Num jogo de futebol numa pequena cidade do norte do Paraná, algumas poucas décadas atrás, o árbitro marcou um pênalti contra o time da casa. Bate-boca, cobra-não cobra, a bola foi colocada na marca fatal. Eis que o chefão do clube mandante se aproxima e desfere um tiro na bola, que “morre” na hora. Fecha o tempo, acaba o jogo.

A chefa da Justiça manda recado. É pra valer?

GERALDO HASSE
Até que enfim a ministra Cármen Lúcia, atual chefa do Supremo, pediu aos membros do Judiciário que se empenhem no esvaziamento das prisões, lotadas por 600 mil presos, 40% dos quais trancafiados sem processo em consequência de três fatores principais: o crescimento da criminalidade, a diligência do aparato policial e a morosidade do sistema judicial.
À combinação dessas causas aliam-se outros ingredientes explosivos como a crise econômica, a corrupção no interior das penitenciárias e a influência do tráfico de drogas ilegais em todas as instâncias do poder. Tudo isso, junto, gera uma mixórdia dos diabos, aquecendo o caldeirão que se põe a ferver aqui e ali, ora nas ruas, ora num presídio, ora num palácio governamental.
Eis que vem a suprema juíza e lança ao seu exército o desafio: vamos acelerar os processos de modo a reduzir o volume de presos quase pela metade. Será possível? Vamos pagar para ver como se comportarão os milhares de juízes espalhados por todo o território nacional. O fato é que, se cada um deles tirar de cana um preso por dia, no final do ano a população carcerária terá caído pela metade. Na prática, pode não ser tão simples assim.
A libertação de presos que já cumpriram pena é um dever ético dos juízes. Soltar os presos provisórios ou temporários/preventivos também é obrigação da Justiça. Isso vale para pobres e ricos. E aqui vem um senão: talvez o apelo de Cármen Lúcia caia no vazio, pois o Judiciário não é lerdo à toa. Independentemente dos vícios corporativos, ele administra um sistema cheio de idas e vindas, cursos e recursos, avanços e recuos, tudo de acordo com uma infinidade de leis criadas em nome do Direito – e em nome do Direito não se faz Justiça.
Não é por acaso que há juízes se unindo a procuradores no afã de prender sem provas e condenar sem culpa comprovada nos altos escalões da economia e do governo. É exatamente por isso que o sistema judicial, junto com as redes policiais e o esquema penitenciário, desfruta de pouca credibilidade junto à sociedade, que não se conforma ao ver tantos militantes da Justiça enredados numa teia que se confunde com as redes mantidas pela Corrupção ou, seja, o Dinheiro.
É animador ver a juíza suprema cutucar o sistema, incitando-o a exercer seus deveres e prerrogativas, mas devemos admitir que esse é apenas o primeiro passo no caminho de uma Justiça realmente redentora.
Sabemos que grande parte dos crimes que abarrotam as cadeias é cometida sob efeito de drogas e/ou tendo por motivação disputas por pontos de venda ou áreas de distribuição disso ou daquilo.
Daí se entra num mundo absolutamente surreal: afinal, se as drogas alteram a percepção das pessoas, levando-as a cometer infrações à lei, onde está o problema: nas leis, nas pessoas ou nas drogas? Ou será a busca insana do Dinheiro que transtorna todos?
É de duvidar que Cármen Lúcia ou qualquer um dos seus 10 colegas do Supremo, os desembargadores dos estados e os juízes em geral tenham uma avaliação desse problema ou se disponham a se aprofundar no tema em busca de uma saída planejada.
Até agora, com raras exceções, os togados preferiram manter-se acomodados sob o manto das leis. A maioria não passa dos discursos bem intencionados. Todo início de ano as faculdades de direito convidam sumidades jurídicas para aulas magnas que não mudam uma vírgula sequer nas decisões judiciais. Na própria hierarquia do Judiciário se encontram procuradores e juízes e até funcionários com sensibilidade e disposição para mudar a rotina do Mal, mas a maioria se mantém inerme por medo ou preguiça, só fazendo o feijão-com-arroz de sempre.
Nos poderes executivos, a maior compreensão do problema está mais nos profissionais da saúde do que nos setores policiais ou penitenciários, onde uma parcela dos funcionários faz vista grossa diante do poder do tráfico.
No Legislativo, um ou outro galo sobe na tribuna para cantar, mas já nos acostumamos com as bancadas ágeis na defesa de interesses corporativos e lerdas no aprofundamento de questões cruciais – a maior delas é a saúde física e mental da população, item que depende do nível da educação e por aí vamos até trombar com a desigualdade social, mãe da miséria e da violência. Ou, seja, está tudo junto, sendo as drogas – do álcool ao crack – o denominador comum de grande parte das situações que levam às cadeias e aos hospitais, ao absenteísmo no trabalho e à evasão escolar. .
Assim chegamos à conclusão irrecorrível como uma sentença do STF: não adianta combater o tráfico de drogas, pois quem o sustenta é a demanda dos consumidores. O uso de drogas legais ou ilegais, leves ou pesadas, é questão de saúde, não caso de polícia. Estamos a enxugar gelo.
Após o primeiro lance da ministra Cármen Lúcia, quem terá coragem de encarar o Dragão?
LEMBRETE DE OCASIÃO
“O dinheiro fala. Mas bom mesmo é o dólar, que fala todas as línguas.”
Millor Fernandes

Fiocruz, um exemplo de resistência ao golpismo

Geraldo Hasse

As listas tríplices de nomes para cargos públicos são formadas pelo voto democrático, daí a tradição de que o primeiro nome seja sempre respeitado pelos governos.
No caso da Fundação Oswaldo Cruz, o ministro da Saúde só não fraudou a ordem da indicação graças à revolta da maioria dos funcionários da centenária instituição de pesquisa do Rio.
Colocada em primeiro lugar na lista tríplice com 60% dos votos, a socióloga Nísia Trindade Lima foi confirmada na presidência.
Funcionária de carreira com obra respeitada por sua abrangência e profundidade, Nísia Trindade Lima é autora do livro UM SERTÃO CHAMADO BRASIL (Revan, 1999), que faz uma brilhante releitura das relações históricas entre o litoral urbanizado e os vazios populacionais do interior do Brasil. É um livro que analisa e interpreta as obras de grandes autores nacionais como Euclides da Cunha, Gilberto Freyre, Sergio Buarque de Hollanda, Antonio Candido e Darci Ribeiro, entre outros. No entanto, é trabalho pouco conhecido que merece ser difundido para conhecimento de estudantes, jornalistas, sociólogos, historiadores e economistas.
O texto que segue, intitulado A Conquista do Sertão, é um dos capítulos de um livro inédito sobre a ocupação agrícola do cerrado, bioma que representa 22% do território nacional, no qual vem se dando o mais recente choque entre a chamada civilização litorânea e a dita cultura caipira- primitiva-rural. Publico-o em homenagem à nova presidente da Fiocruz.
A Conquista do Sertão
Para os primeiros habitantes do Brasil, estabelecidos principalmente no litoral do nordeste e do sudeste do país, avançar rumo ao oeste sempre foi a suprema aventura. Caminhar “para dentro” significava desafiar o perigo, correr riscos, sujeitar-se a doenças desconhecidas e…criar um país. Nessa caminhada constante para o interior, os brasileiros tomaram efetivamente posse de um novo território. Quinhentos anos depois, a aventura ainda parece longe do fim. “O deserto é o senhor da colônia”, escreveu o historiador Frederick J. Turner, tentando explicar a corrida dos pioneiros para o oeste norte-americano. 
Os aventureiros modernos contam com máquinas sofisticadíssimas, mas a conquista definitiva ainda está por se fazer. No miolo do Brasil abrem-se novos caminhos e inauguram-se novas cidades – tudo numa velocidade sem precedentes na história da humanidade. Uma das atividades mais primitivas dos seres humanos, a derrubada de matas para a implantação de lavouras é documentada via satélite por organismos internacionais, sob protestos veementes dos ambientalistas, apavorados com a devastação do planeta. Os brasileiros, financiados por consumidores de outros países, são os protagonistas centrais de uma das últimas e decisivas aventuras da humanidade na conquista de espaço para sobreviver e produzir alimentos.
O Brasil contém hoje a maior reserva de terras agricultáveis do planeta. Ela fica no cerrado, a última fronteira virgem antes da amazônia, pulmão da Terra. Juntos, esses dois imensos ecossistemas constituem as maiores reservas de água doce do mundo. Manejando o fogo, tratores, sementes transgênicas, computadores e satélites, os brasileiros jogam aqui não apenas o seu futuro, como povo, mas o futuro da humanidade, talvez.
Não é apenas o oeste geográfico que está em jogo. No imaginário brasileiro há todo um oeste mítico desenhado como metáfora ao longo dos séculos. Repete-se aqui o fascínio ianque pelo oeste como espaço para a grande corrida da sobrevivência. O cerrado, ex-sertão, ora temido, ora ignorado, é o território do contraditório: na busca da realização individual, milhões de pessoas esmeram-se na prática das mesmas técnicas agrícolas e mercantis, sujeitando-se aos ditames do Mercado, o verdadeiro senhor das colônias modernas.
Ao confundir-se com um horizonte ilimitado, o ex-sertão do Brasil Central representa hoje um espaço livre que precisa ser ocupado de qualquer maneira, a qualquer preço, não importando muito a qualidade da ocupação ou a sustentabilidade do modelo adotado. Estimulada pela demanda mundial, essa corrida cega, sem freios, transformou-se num movimento coletivo que se realimenta incessantemente da falta de perspectivas no litoral e das tradicionais promessas do sertão. Aqui o sucesso pessoal é medido por sinais externos como a extensão das fazendas, a capacidade de armazenagem dos galpões ou a largura dos pneus das camionetas. O que será dos brasileiros se fracassarem nessa aventura?   
BANDEIRISMO
Um dos mitos fundadores do Brasil, a conquista do sertão está presente no imaginário brasileiro desde as primeiras lutas pela independência, no final do século XVIII, quando os mineiros liderados por Tiradentes tentaram articular a revolta popular contra a exploração portuguesa. Não admira que o esforço para conhecer o país e dominar o território tenha contribuído para o surgimento de uma consciência nacional.
Diversos pensadores estudaram a contradição litoral x interior, mas ninguém foi mais fundo nessa investigação do que a socióloga carioca Nísia Trindade Lima. Em “Um Sertão Chamado Brasil” (Revan, Rio, 1999), ela afirma que a consciência de que havia uma distinção entre os dois espaços apareceu no início do século XIX. Não se tratava de uma simples diferenciação geográfica. Desde suas origens mais remotas, a dicotomia litoral x sertão tinha conteúdo crítico, pois já se percebia a distância cultural entre ambos.
No litoral, sob influência da imigração peninsular, houve desde o início uma civilização conservadora, “de empréstimo”, segundo Euclides da Cunha; nos sertões, ao contrário, formou-se uma civilização mais aberta e original, conservadora também, mas portadora de uma cultura genuinamente americana, fruto do embate direto com a natureza. No interior e não no litoral estaria o cerne da nação brasileira. Daí a busca incessante da integração, ou de um encontro-resgate.
Os principais agentes dessa fusão cultural teriam sido os bandeirantes, líderes de históricas incursões aos sertões ignotos. No início eles agiam por encomenda do império português, depois moveram-se também por iniciativa própria e sempre demonstraram um peculiar espírito de pioneirismo. Na busca de ouro e pedras preciosas, percorreram vastos espaços, mas não os ocuparam realmente. Vilas e cidades construídas para apoiar o garimpo e a mineração não lograram a auto-suficiência senão após o fim da febre do ouro, quando parte da população se convenceu de que precisava buscar a saída na agricultura e na pecuária. Esse processo de colonização, bastante lento, foi executado pela pata do boi e as tropas de burros. Definitivamente, a partir de 1800, o antigo papel dos caçadores de esmeraldas passou a ser exercido por agricultores, criadores de gado e tropeiros.  
No entanto, a inteligência brasileira demorou a dar-se conta da contribuição dos bandeirantes em geral para a criação de uma consciência nacional. Por muito tempo os intelectuais nativos tatearam no escuro, construindo ídolos de barro. Por exemplo, em certo momento do século XIX, quando esteve em voga a poesia indigenista de Gonçalves Dias, tentou-se entronizar o índio como símbolo da nacionalidade, mas esse apelo nativista esgotou-se com o sucesso dos Guarani – o romance de José Alencar e a ópera de Carlos Gomes. Mais tarde, registrou-se a tentativa de idolatrar o caboclo sertanejo, mas o tiro saiu pela culatra, resultando num estereótipo negativo — o Jeca Tatu, de Monteiro Lobato. Quanto aos modernistas promotores da Semana de Arte de 1922 em São Paulo, até hoje não se sabe muito bem o que queriam — fora aparecer, exibir-se, protestar.
No trabalho dos intelectuais brasileiros, lembra Nísia Trindade Lima, a valorização do bandeirante como elemento-chave na formação da identidade nacional tornou-se recorrente a partir da pregação de Vicente Licínio Cardoso (1890-1931), sociólogo e engenheiro que procurou desconstruir a idéia (colonial, na sua opinião) de que a história do Brasil transcorrera toda ela na costa, como reflexo da tradicional relação com Portugal e a Europa.
É verdade que tanto no Rio como em outras cidades costeiras boa parte da população vivia de frente para o mar, à espera do que vinha de Europa, mas uma parcela minoritária do povo encarava a incorporação dos sertões como indispensável à formação da identidade nacional. Nasceu assim uma tensão que estaria viva até hoje, transparecendo, por exemplo, na forma como os nacionalistas brasileiros vêem a conquista/preservação da amazônia e do cerrado — o que resta do sertão. 
Em seu estudo sobre a dicotomia litoral/sertão, Nísia Trindade Lima destaca a importância dos livros de viagens e dos relatórios de missões científicas para a descoberta do país e a consequente formação de uma consciência nacional. Depois do ciclo das bandeiras tradicionais, essa corrida ao interior intensificou-se no início do século XIX com a chegada de cientistas europeus como Spix, Martius e Saint-Hilaire, cujos relatos se tornaram famosos. Entretanto, antes e depois dos pesquisadores ambulantes, diversos estudiosos brasileiros ou identificados com a causa brasileira promoveram uma busca instintiva de razões e pretextos que permitissem ao país sobreviver sem vínculos de dependência a um padrão/patrão europeu. Paralelamente a esses esforços de pesquisa científica, realizava-se uma corrida espontânea por parte dos exploradores dos recursos naturais do território. 
Até hoje não se alcançou a autonomia desejada mas, à medida que se interiorizou, a identidade brasileira, originalmente “carangueja”, foi mudando de feição, num processo que se renova ao sabor das trocas entre esses dois pólos da geografia econômica nacional: enquanto a cultura urbana vai impondo seus valores às populações rurais e suburbanas, a cultura sertaneja deixa sua marca no comportamento dos habitantes das cidades. Tanto tempo depois, prevalece hoje o consenso de que a brasilidade não está nesse ou naquele tipo isolado, mas na mistura, na miscigenação. Nesse sentido, a fusão do litoral com o sertão seria fundamental para dar origem a um Brasil organicamente americano, autônomo e feliz.
NACIONALISMO
Os autores mais identificados com a idéia do sertão como cerne da nacionalidade foram principalmente Euclides da Cunha, Alberto Torres, Monteiro Lobato e Roquette Pinto. Eles se situam no eixo central de um nacionalismo que serviu de estímulo e inspiração a iniciativas governamentais como a campanha pelo saneamento rural nos anos 1910, a Marcha para o Oeste na década de 1930 e a construção de Brasília nos anos 1950, sem contar expedições mais ou menos avulsas – como a Coluna Prestes, nos anos 1920; ou a Missão Rondon, desde o início do século XX — organizadas para conhecer a realidade do interior remoto.
 
A conquista do sertão brasileiro teve vários impulsos e um dos mais fortes esteve associado à construção de estradas de ferro entre 1870 e 1920. A morte de milhares de trabalhadores na abertura dessas estradas despertou os cientistas brasileiros para a necessidade de tratar de doenças endêmicas como a malária, o mal de Chagas e a esquistossomose. Por isso Nísia Trindade Lima chega ao ponto de situar os higienistas liderados por Oswaldo Cruz, Carlos Chagas e Belisário Penna como uma espécie de novos bandeirantes – dispostos não a escravizar índios e capturar escravos fugidos, mas a libertar brasileiros da doença, da fome e da miséria. Ela lembra especialmente a viagem do médico Julio Paternostro ao vale do Tocantins no período 1934/38: seu relatório causou um choque ao comparar a vida das comunidades rurais tocantinenses à de populações de séculos passados.  
 
É claro que as medidas oficiais em prol das populações do centro do país não correspondiam apenas a impulsos de fora para dentro; algumas dessas iniciativas eram também uma resposta a pressões originárias do próprio litoral superpovoado, onde muita gente via no interior desabitado uma saída para as periódicas crises nacionais. Além disso, procurava-se atender às brutais carências dos habitantes dos sertões, isolados pelas longas distâncias.
 
Embora desde o início do século XX os bandeirantes já tivessem sido apontados como líderes intrépidos da conquista do território nacional, a construção de seu mito ganhou impulso no final dos anos 1930, durante a ditadura de Getulio Vargas. Os intelectuais franceses que fundaram a escola de sociologia de São Paulo encorajaram o estudo do bandeirismo, ao atribuir-lhe um papel de vanguarda. Com isso não só agradaram a seus patrões, membros da elite paulista, mas deram um mote à ditadura estadonovista, carente de heróis.
 
Um dos que melhor souberam cantar o bandeirante como líder nacional foi o poeta paulista Cassiano Ricardo, geralmente identificado como direitista. Mais à esquerda, o sociólogo paulista Antonio Candido, em seu clássico Os Parceiros do Rio Bonito, reconhece que o caipira herdou do bandeirante o laconismo, a rusticidade, o nomadismo e a capacidade de adaptação ao meio sobrevivendo com o mínimo. 
 
Graças a esses e outros estudos, tornou-se mais ou menos consensual atribuir ao ímpeto bandeirante a extensão das fronteiras do Brasil além da linha imaginária traçada em 1494 pelo Tratado de Tordesilhas, pelo qual os reis de Espanha e Portugal dividiram entre si a América do Sul. Nesses vastos territórios situados no miolo do Brasil plantou-se paulatinamente uma réplica do modelo econômico institucionalizado no litoral sob o governo luso (até a independência), por influência inglesa (até a república) e mediante o patrocínio ianque (na maior parte do século XX).
 
EMPREENDEDORISMO
 
Não importa sob a tutela de quem se realizou, o avanço sobre os espaços virgens do interior teve desde sempre um caráter missionário, como se a exploração das florestas e a posse da terra contivessem uma promessa de libertação. Ao confundir-se com um horizonte ilimitado, o Brasil Central sempre prometeu redenção aos aventureiros que ousaram adentrá-lo, perseguindo o mito do enriquecimento. Como um determinismo histórico, parece estar disseminado no inconsciente coletivo brasileiro que é preciso levar adiante a ferro e fogo o trabalho pioneiro de desmonte ambiental e conquista territorial iniciado pelos bandeirantes.
 
O mito do heroísmo bandeirante continua presente no imaginário brasileiro moderno e se reproduz no elogio constante aos empreendedores que desafiam os riscos mais primitivos e transformam os ambientes naturais, gerando progresso e implantando os valores da civilização capitalista nos meios mais distantes – hoje no cerrado e na amazônia. Não é por acaso que entre os tipos mais admirados do Brasil contemporâneo se destacam os derrubadores de florestas, os abridores de estradas, os construtores de barragens, os criadores de cidades e os campeões da agricultura. Não raro, esses tipos se tornam ministros ou disputam cargos legislativos ou executivos. Fazem parte da história recente do país o dirigente industrial Antono Ermirio de Moraes, líder do grupo Votorantim, e o agrônomo-fazendeiro paulista Roberto Rodrigues, lider do cooperativismo brasileiro.
 
Também não foi por simples coincidência que na virada do século XX ganhou destaque a figura do sojicultor Blairo Maggi, um migrante que trocou o Sul minufundiário pelas terras sem fim do Mato Grosso. Já em meados da década de 1990 ele foi apontado como o rei da soja em lugar do empreiteiro-banqueiro Olacyr de Moraes. Festejado pelos políticos, Maggi tornou-se suplente de senador antes de eleger-se governador do Estado do Mato Grosso em 2002. Consciente de que a deficiência logística é o calcanhar de Aquiles do cerrado, ele fez da construção de estradas uma prioridade e chegou a candidatar-se à presidência da República como profeta de um Brasil neoliberal. Não chegou lá, mas há seis meses se tornou ministro da Agricultura de um governo que não teme desmantelar conquistas democráticas em favor de um modelo malogrado de capitalismo selvagem. De alguma forma o banditismo bandeirante continua vivo no espírito empreendedor de alguns brasileiros dispostos a favorecer o enriquecimento de poucos em prejuizo de muitos.

LEMBRETE DE OCASIÃO

“De todo modo, não me parece superada a ideia de uma ciência que se dedique a pensar o Brasil. Esta sociedade de fronteiras móveis, de homens fronteiros, onde talvez seja possível aproximar litoral e sertão.”
Nísia Trindade Lima, no último parágrafo do livro “Um Sertão Chamado Brasil”

Quatro refeições por dia

A redução de benefícios sociais tende a alimentar a revolta dos desvalidos
Nesta véspera de Natal, voltou-me à memória uma frase de Lula: ”Eu gostaria que cada brasileiro tivesse o direito de fazer quatro refeições por dia”.
Foi promessa de campanha e virou meta de governo atingida parcialmente com o Bolsa-Família, um programa tão generoso que começou com um nome negativo – Fome Zero.
Ambicioso socialmente e modesto financeiramente, em 2015 o BF consumiu R$ 33 bilhões ou, seja, 5% das despesas com a dívida pública, mas a ninguém do governo ocorre a hipótese de congelar o pagamento de juros e amortizações aos credores.
Ao contrário, segundo a óptica elitista que domina as ações oficiais desde o Brasil- colônia, é preciso enxugar o que se gasta na base para que não faltem recursos nas altas esferas.
Índios fora, escravos esquecidos, imigrantes ludibriados, pobres sem chance de ascensão ou resgate: assim tem sido o Brasil na maior parte do tempo.
Recentemente, bastaram alguns anos de concessões às bases carentes da população para se iniciar um temerário processo antissocial que busca reduzir o papel do Estado na sociedade. Como se o Mercado ou a iniciativa privada fossem assumir as tarefas que nem os governos fazem direito.
O Bolsa Família tem um lado assistencial – o dinheirinho entregue mensalmente às famílias cadastradas; mas seu aspecto mais importante é o vínculo educacional obrigatório de 16 milhões de jovens matriculados em creches e escolas públicas.
Pela primeira vez no Brasil se criou uma fórmula de resgate da miséria pela via escolar. Mesmo com defeitos e problemas, o BF acena com uma saída ao lembrar aos pobres que a única forma de escapar da degradação moral provocada pela miséria é através da aquisição de instrução e saber.
Ajudar os pobres: essa é uma fantasia que não se realiza porque as elites brasileiras não cortam seus privilégios em favor da justiça social.
A gente até entende quando um cidadão isolado se incomoda diante de um pobre que vasculha o lixo ou pede uma ajudazinha pelo amor de Deus. O responsável por uma instituição pública, porém, tem o dever constitucional, não apenas moral e humano, de ajudar os desvalidos.
O Bolsa-Família não é uma esmola, mas uma ajuda cristã em favor de quem está sob risco de perder a autoestima por falta de amparo civil. Sem falar que a merreca do BF se transforma integralmente em consumo, contribuindo para ativar a economia.
A visão egocêntrica das elites está difusa no comportamento da maioria dos empresários, dos políticos e dos integrantes das instituições de governo, especialmente no Judiciário, o mais bem aquinhoado em salários e benefícios indiretos.
Até agora a ministra Carmen Lúcia, presidente do Supremo Tribunal Federal e do Conselho Nacional de Justiça, não traduziu em fatos concretos sua preocupação com a situação dos presídios brasileiros.
Se Carmen Lúcia quer mesmo fazer alguma coisa concreta, que comece por transferir para os encarcerados o auxílio-moradia dos magistrados, que não precisam dessa mordomia, pois têm os melhores salários do serviço público.
São 14 000 magistrados que recebem, cada um, R$ 50 mil por ano a título de auxílio-moradia. Seriam R$ 700 milhões a beneficiar 600 mil presidiários, dando o empurrão inicial a um processo de resgate de uma parcela dos cidadãos brasileiros que perderam não apenas a liberdade, mas alguns dos direitos mais elementares, entre eles quatro refeições por dia.
LEMBRETE DE OCASIÃO
“A quem o pouco não basta, nada basta”
Epicuro, filósofo grego (341-271 a.C.)

Porto Alegre precisa de um plano diretor de arborização

As podas radicais feitas nas árvores da capital pela CEEE, por delegação da Prefeitura, estão ferindo o sentimento dos portoalegrenses afeiçoados ao paisagismo estabelecido em avenidas e ruas da cidade desde os festejos da Revolução Farroupilha (1935), quando as autoridades municipais mandaram plantar diversas mudas (então pequeninas, como todas as plantas jovens) de espécies vegetais de grande porte.
Uma das marcas daqueles tempos festivos são as majestosas palmeiras plantadas nos canteiros centrais de algumas avenidas. Outra, as tipuanas que sombreiam ruas inteiras como a Marquês de Pombal e a Gonçalo de Carvalho. Isso para não falar dos alfeneiros, cinamomos, jacarandás e plátanos espalhados por alguns bairros mais antigos, onde os voluntários da arborização se esmeraram na ocupação dos espaços disponíveis com mudas que, por gosto ou acaso, lhes caíam nas mãos.
Para o bem e para o mal, as árvores crescem, suas raízes levantam calçadas, seus troncos elevam galhos acima dos telhados, folhas e frutos “sujam” os passeios, eventualmente algum galho tomba sobre alguém distraído e a população se divide entre a condenação do mundo vegetal e a piedade sobre os infelizes humanos acidentados.
Deu no que aí está: sem um plano diretor de arborização ou paisagismo, a prefeitura entregou a gestão do acervo arborial à concessionária de energia, que naturalmente encara as árvores como estorvos à normalidade do serviço e fontes de prejuízos.
Os cortes executados pela CEEE atingem todos os espécimes que ousam colocar acima de cinco metros de altura. São mutilações que concorrem para acelerar o fim de  abacateiros, angicos, espatódias, flamboyants,  grevíleas, guapuruvus, ipês, mangueiras, paineiras, plátanos, paus ferro, pinheiros e sibipirunas — árvores efetivamente mais apropriadas para parques e jardins do que para calçadas ou canteiros.
A poda deveria ser uma ação humana inteligente, a favor da vegetação.  Aqui e ali cabem intervenções para corrigir distorções ou evitar acidentes. Na maior parte dos casos, as próprias árvores se desfazem de galhos que não lhes servem. Além disso, as árvores, como os animais, têm limite etário. Raras espécies frutíferas ou ornamentais atingem 100 anos. Aos poucos, vão se deixando aniquilar pelas intempéries. Nessa fase senil, são mais perigosas porque seus galhos são muitos pesados. Se apodrecem ou são derrubados pelo vento, os galhos podem causar danos graves em que estiver por perto. Por isso, é fundamental que os responsáveis pelo paisagismo urbano providenciem a paulatina substituição de árvores-gigantes por espécies cuja altura não exceda seis metros de altura. Se o prefeito Fortunati jogou a toalha, talvez Marchesan chegue com ânimo para mudar o panorama paisagístico da capital. Em quatro anos, com sensibilidade e bom senso, dá para iniciar a reciclagem do verde em Porto Alegre.
Nas calçadas sem postes de fiação, é possível manter por longo prazo espécies vegetais de grande porte. Nos passeios com postes, é recomendável que sejam plantadas, com um adensamento capaz de prover o sombreamento das calçadas, sem risco de acidentes graves com os pedestres, as seguintes árvores: acácia, araçazeiro, bico-de-papagaio, cafeeiro, camelieira, cocão, pata de vaca, bergamoteira, extremosa, hibisco, jasmineiro do Havaí, laranjeira, leiteirinho, leucena, limoeiro, primavera, pitangueira e quaresmeira.
Com essas e outras espécies de pequeno porte, ficará claro que a arborização e a fiação são compatíveis, desde que se tenha critério na adoção de um programa de fomento ao paisagismo consciente.
Já ficou suficientemente provado que ninguém está disposto a enterrar os cabos de transmissão de eletricidade e sinais, como manda uma lei aprovada anos atrás pelos vereadores. Além de incorrer em custos elevados, a troca da fiação aérea por dutos subterrâneos provavelmente acirraria as disputas por espaços entre os concessionários de serviços. Além das tradicionais tubulações de água e esgotos do DMAE, a cidade está recebendo os dutos da Sulgás. Em algumas áreas, há cabos telefônicos mantidos por herdeiros da CRT, que também alugam postes da CEEE para atender usuários de telefone e TV a cabo. Isso sem falar dos sinais de trânsito da EPTC.
Numa cidade à beira de um lago e sujeita a cheias, enterrar toda a fiação aérea seria transferir para baixo da terra a parafernália que se vê nos postes de luz. Melhor deixar como está e as árvores que se adaptem ou saiam do caminho.

A ponte Chapecó-Medellín

O gosto pelo futebol me levou recentemente a acompanhar os jogos da Chapecoense, clube que se apegou com garra ao lugar recém-conquistado entre os 20 integrantes da Série A do Campeonato Brasileiro. Com pouco mais de 40 anos de existência (fundado em 1973), o time ganhou cinco campeonatos catarinenses e no Brasileirão fez o suficiente para disputar a Copa Sul-Americana. Estava a caminho da primeira partida final em Medellínquando o avião em que viajava caiu a cinco minutos do aeroporto local. O jogo foi cancelado. Em seu lugar, a população das duas cidades lotou os estádios de Chapecó e Medellín, formando uma inédita ponte de solidariedade na noite em que a partida seria jogada.
Nunca se viu tamanha corrente de paz e amor.
Chapecó, a capital das carnes brancas e um dos principais polos brasileiros de cooperativismo.
Medellín, o primeiro centro difusor da teologia da libertação cristã (em 1968, na conferência episcopal latino-americana).
Pelo retrospecto, a Chape levaria uma surra do Atlético Nacional, o time mais competitivo do continente, no momento, tanto que é o atual campeão da Taça Libertadores da América. Mas, se perdesse por pouco em Medellín, a Chape poderia reverter o placar no Brasil. Já estava certo que a segunda partida final não poderia ser realizada na Arena Condá, onde só cabem, apertadas, 20 mil pessoas. A disputa fora marcada para o estádio do Coritiba por influência do técnico Caio, paranaense de Cascavel que fazia sucesso em Chapecó depois de ter treinado clubes do Rio, São Paulo, Porto Alegre e do Oriente Médio.
Caio e mais 19 jogadores, além de jornalistas, dirigentes e torcedores, tiveram a carreira liquidada pela queda do avião da LaMia, fretado por 140 mil dólares, mais do que o dobro do orçamento mensal do time de Chapecó, onde se misturavam veteranos e novatos irmanados por um espírito de grande depreendimento, algo que acontece frequentemente na prática dos esportes, sejam pequenas ou grandes as agremiações. Aí está o Brasil de Pelotas dando a volta por cima após um grave acidente de ônibus, anos atrás. O Juventude de Caxias ganhou uma Copa Brasil. O XV de Novembro de Campo Bom andou aprontando numa temporada mais ou menos recente. É o futebol. O esporte. A energia inexplicável dos coletivos.
A ascensão e queda da Chapecoense traz à lembrança o episódio do ano passado, quando a Ponte Preta só caiu na semifinal da Copa Sulamericana. Fundada em 1900 em Campinas, a Ponte nunca ganhou nada mas é um dos clubes mais queridos do Brasil. Possui uma aura popular que se traduz na bandeira alvinegra e no símbolo do seu estandarte – uma macaca brincalhona que vive de dar susto nos times mais representativos das capitais. Já ganhou vários vice-campeonatos, como o paulista de 1977, quando quase montou uma zebra sobre o Corinthians.
Aqui abro um parágrafo para lembrar que o escritor paulista Renato Pompeu (1941-2014) escreveu um romance – A Saída do Primeiro Tempo (Alfa Omega, 1978) – cujo protagonista central é “o espectro da Ponte Preta”. Difícil explicar um livro tão genial. Melhor dar a palavra ao próprio romancista, que abre sua narrativa nos seguintes termos – primeiro parágrafo:
“Noite alta, quase madrugada (…) é a hora em que o espectro da Ponte Preta começa a rondar Campinas. Trata-se de grande mãe preta velha gorda, de saia e blusa branca e manto bordado de seda negra, que sobrevoa como mancha leitosa os prédios e ruas. Está sempre à noite pelos ares da cidade, flutuando como fiapo de algodão. (…) Quando não há ninguém atento, entretanto, o espectro da Ponte Preta paira no ar e penetra pelos cômodos das casas, roçando as testas das pessoas adormecidas e causando mudanças pequenas mas definitivas nos seus sonhos.”
No parágrafo seguinte, um delegado sonha que virou mulher de olhos verdes momentos antes de discursar numa reunião política da burguesia de Campinas, a cidade que serve como cenário do romance em que diversos personagens — professores, executivos, operários, aposentados, moças, senhoras – são afetados pelo toque mágico da negra velha, naturalmente identificada com a alma popular da Associação Atlética Ponte Preta.
Ao longo de 182 páginas, o escritor zomba sutilmente da soberba campineira e desenvolve uma série de episódios mais ou menos hilários, como narrar o Jogo Zero ou discutir a expressão “a bola é nossa”. Ele gasta 70 páginas do livro para elaborar o que chama de “crítica da economia política do futebol”. No final conclui, citando nominalmente a Ponte Preta, seu rival Guarany e outros clubes, que “os times de futebol constituem as bandeiras da consciência do povo brasileiro”.
Recordando esse gol de placa do grande Renatão, eis o que temos no momento: a bandeira da hora é verde-e-branca e pertence à Associação Chapecoense de Futebol, que encontra na solidariedade internacional um forte motivo para retomar sua caminhada.
Segundo a língua caigangue, Chapecó significa “lugar de onde se avista o caminho da roça”.

Um raro livro sobre a prática do fotojornalismo

Se me fosse dada a chance de escrever um livro sobre minha vida de jornalista, eu tomaria como referência A Força do Tempo (Libretos, 184 páginas), de Ricardo Chaves, repórter-fotográfico que atuou a partir de 1970 no polígono Porto Alegre-Rio-São Paulo-Brasília, voltando em 1992 ao ponto de origem – o diário Zero Hora -, onde segue na labuta como editor do Almanaque Gaúcho, seção que lhe permite ir e voltar ao passado a bordo de fotografias antigas, e praticando com perícia a escrita.
É claro que, no tal livro imaginário, eu teria de me contentar em escrever textos mais ou menos saudosistas, e até recordaria ter feito uma ou reportagem com alguns dos melhores fotógrafos brasileiros – Assis Hoffmann, Leonid Streliaev, Marcelo Curia, Tânia Meinerz, Carlinhos Rodrigues e o próprio Kadão Chaves, entre os gaúchos -, mas me faltaria a matéria-prima fotográfica que, no caso de Kadão, constitui a essência deste livro sem precedentes no panorama jornalístico brasileiro. É muito bom que tenha surgido uma obra desta dimensão no momento em que, atrapalhado por uma convergência de novas mídias sem sustentabilidade econômica, o ofício de jornalista atravessa uma baita crise existencial. Kadão é precisamente um dos últimos moicanos a operar – como PJ, não mais como CLT – num veículo sem perspectiva de sucesso, como a maioria dos newspapers.
Nesse livro editado com maestria por Pedro Haase (Quati Produções) e Clô Barcellos (Libretos), o sessentão Kadão esbanja categoria como fotógrafo e se revela um redator preciso e sensível – uma surpresa para todos aqueles que se acostumaram a ver a maioria dos chamados retratistas limitando-se a ler apenas títulos e legendas, sem paciência para atravessar as colunas cinzentas dos textos, porque lhes bastavam as imagens. Na realidade, se ficasse só com as imagens e suas respectivas legendas, o fotojornalista já formaria uma obra respeitável. Com os textos, dá de relho na concorrência.
Ao lembrar os melhores momentos de sua carreira, sem ter esquecido sequer o nome dos motoristas que o levavam às metas, Kadão Chaves se equilibra bem como autor e personagem de um raro documento sobre a história da reportagem fotográfica no Brasil e no mundo. Tamanho comedimento, sem falsa modéstia, pode ser de extrema utilidade como matéria de estudo em escolas de jornalismo. Kadão Chaves fotografou grandes figuras do século XX – Fidel Castro, o Papa, Pelé, Atahualpa Yupanqui, Erico Verissimo e Chico Mendes, entre outros – mas não perdeu a capacidade de refletir sobre as pequenas grandezas e as grandes misérias deste mundo velho sem porteira. Da capa que mostra a fachada de uma relojoaria desativada de Montevideo à contracapa com a cara do próprio photo worker, A Força do Tempo não desperdiça imagens nem palavras.