Jorge Barcellos – Historiador, Mestre e Doutor em Educação pela UFRGS.
Publicado originalmente na coluna Democracia e Política do site Estado de Direito.
Conjuntura nacional
A derrota do PT e do PSOL em Porto Alegre, onde nenhum partido foi capaz de conquistar um lugar no segundo turno da campanha eleitoral, caracteriza uma conjuntura nacional de recuo da esquerda e ascensão da direita. No futuro, quando as próximas gerações vierem ao espaço público, frente a uma realidade sem direito algum e sob o domínio do Capital, nossos filhos se perguntarão como perguntou Al Gore na conclusão de seu filme Uma verdade inconveniente “- Em que pensavam nossos pais? Porque não acordaram enquanto ainda podiam fazê-lo?” A questão, colocada pelo filósofo Jean-Pierre Dupuy serve de mensagem endereçada a toda esquerda.
O autor, na obra coletiva “O futuro não é mais o que era” organizada por Adauto Novaes (Editora Senac, 2013), também traz outro exemplo que permite entender o lugar da esquerda no segundo turno, ao lembrar a atitude dos responsáveis pelo Greenpeace em dezembro de 2009, na cúpula de Copenhague, onde se manifestaram pelo mundo em que viviam. Lá, os manifestantes ergueram seus cartazes para dizer aos capitalistas um constrangido “Desculpe-nos. Era possível evitar a catástrofe climática. Mas nós nada fizemos”. Da mesma forma, a esquerda que vê atônica representantes da centro-direita e extrema direita assumirem (estou aqui considerando mais os candidatos do que seus partidos) a disputa do segundo turno em Porto Alegre e já sinaliza votar nulo para decidir o Prefeito da capital, e paradoxalmente, esquece a injunção defendida pelos militantes do Greenpeace em seguida no mesmo cartaz: “Aja agora e mude o futuro”.
Sorte moral
Há um enorme paradoxo no sentido que assume este texto, que é de justificar para a esquerda de Porto Alegre porque mudaria o futuro da cidade se votar sim em um dos candidatos que não lhe passa pela boca do estômago. Para a esquerda, o futuro da capital já está definido, ele está na disputa de dois projetos de direita, e portanto, de atraso para a cidade, seja de Nelson Marchezan Júnior (PSDB) ou Sebastião Melo (PMDB), e portanto, é um futuro que já não é possível mudar, mesmo que ainda não se tornou presente.
Para Dupuy, ao contrário, o futuro nos contempla e nos julga agora, e por isso devemos tentar afetar seja lá o que o futuro seja, mesmo nos piores prognósticos. O autor de “O Tempo das Catástrofes” diz que o conceito de sorte moral é o único apoio que temos para apoiar nossa decisão, quer dizer, se temos uma ação a fazer marcada pela incerteza – é melhor votar no candidato da continuidade ou em quem representa os interesses do grande capital? – então precisamos apostar nos acontecimentos futuros que não podem ser previstos no momento de agir. Isso significa para a esquerda, abandonar a ética racional que julga sua decisão de voto por sua ideologia nas eleições do segundo turno em Porto Alegre.
Redução de danos
Defendo que frente a uma disputa entre Marchezan e Melo, a esquerda não deve deixar-se guiar pela emoção mas reconhecer que estamos diante de um mundo de apostas onde “o futuro é incerto e arriscado” (Dupuy, p. 193). Escrevi sobre as razões que considero o projeto de Marchezan ruim para a Prefeitura no Jornal O Estado de Direito e peço que o leitor retorne a eles (http://bit.ly/2d6pfB3 e http://bit.ly/2cued2U) pois é com base nesta análise que estou aqui defendendo que a esquerda vote em Sebastião Melo como forma de “redução de danos” ao serviço público da capital.
Foto: Pedro França/Agência Senado
Explico-me. Todo o problema para mim reside no fato de que a esquerda deverá julgar se é certo abandonar suas crenças e votar no “menos pior” dos candidatos, que para mim é Sebastião Melo, mas só poderá avaliar isso retrospectivamente, isto é, depois que ele por ventura seja eleito. Quer dizer, para mim, a decisão dolorosa para a esquerda é de defender o voto em Sebastião Melo (PMDB) e não em Nelson Marchezan Jr (PSDB) porque ela só conta com a ideia de sorte moral para apoiá-la em sua decisão diante de um futuro incerto. Infelizmente, diz Dupuy, a sina da sorte moral é a mesma que serviu para Joseph Goebbells, que teria dito:” Nos entraremos na história ou como os maiores homens de Estado de todos os tempos ou como os maiores criminosos”. O que significa em termos práticos sorte moral? Que uma mesma ação, aqui no caso votar no candidato centro-direita em Porto Alegre, será julgada moralmente boa se Melo ceder e atender pautas da esquerda e será julgada moralmente errada se Melo pactuar com a esquerda e a trair.
Porque a esquerda teme apoiar Melo? É como na fábula do filósofo alemão Gunther Anders (1902-1992), citada por Dupuy, onde é contada a história do episódio bíblico do dilúvio “quando o dilúvio tiver levado tudo o que é, tudo o que terá sido, será tarde demais para lembrar porque não existirá mais ninguém”. Não é exatamente esta a situação da esquerda, vivendo com o dilúvio de direita de norte a sul do país, a sensação de que, quando isto tudo terminar, nada mais existirá do que um dia já foi seu? Para Dupuy, o problema dos profetas da catástrofe petista está no fato de que suas criticas não penetram no sistema de crenças da esquerda – ok, a esquerda perdeu o primeiro turno, deve afastar-se (leia-se voto nulo) porque não há mais nada a fazer, este mundo não lhe pertence mais – mas é justamente o “porque não existirá mais ninguém” que exige que a esquerda faça alguma coisa para não “chorar os mortos de amanhã” (Dupuy, apud Anders, p. 196), ou seja, suas vítimas. Ou como noutro exemplo de Dupuy, reiterado pelo filósofo esloveno Slavoj Zizek, assim como há mais de um quarto de século sabemos as consequências climáticas do aquecimento mas pouco fazemos para mudar nosso meio ambiente, da mesma forma sabemos como se comporta o desejo neoliberal mas teimamos em reconduzir a direita neoliberal ao poder.
Encruzilhada da estratégia política
Prefeitura de Porto Alegre
Foto: Rhcastilhos/Wikipedia
O ponto que resta, portanto, é que em politica, a negociação é uma moeda forte para a conquista do poder. Primo Levi afirmava que “as coisas cuja existência parece moralmente impossível não podem existir”, e isso tem um profundo significado para a esquerda da capital , ela precisa reagir a cegueira da evidência de que nada mais há o que fazer: mesmos governos de direita podem ser legitimados pelo voto, o que significa que, ao contrário do que diz Levi, que o que parece moralmente impossível de acontecer, as vezes acontece. Quer dizer, a esquerda está numa encruzilhada da estratégia política. Ela precisa discutir como conquistará nas próximas eleições o poder baseada na única alternativa possível, a frente ampla, já que as iniciativas isoladas mostram eleição após eleição que a esquerda fragmentada não tem forças para disputar sozinha o poder. O quadro foi resumido por Luis Felipe Miguel, autor de Desigualdades e Democracia (Unesp, 2016, leiam!): para ele está mais do que claro que precisamos de uma “frente ampla de esquerda para unificar a resistência no Brasil”. Ela só ocorrerá quando a extrema esquerda reconhecer que precisa do PT para compô-la e que não pode partir sozinha como fez Luciana Genro (PSOL).
Reconhecer os erros
O PT precisa também reconhecer seus erros, que “conciliou demais da conta, chafurdou na lama, incorreu em práticas lastimáveis, foi oportunista, aliou-se a alguns dos nomes mais sujos da política brasileira e, pior ainda, permitiu que alguns deles se tornassem petistas “, e a ausência desse mea-culpa foi o que que produziu o distanciamento do PT das demais correntes da esquerda, opinião de Miguel com a qual concordo. Ela ocorreu porque ainda há “um rastro de ressentimentos mais do que justificáveis”, mas o fato é que o partido ainda tem um importante peso nos movimentos sociais. Miguel também vê com criticas as “aspirações do PSOL de ser o PT do futuro”, o que implica em competição entre as esquerdas, que, no nosso entendimento, foi a grande razão da derrota da esquerda em Porto Alegre. Finalmente, Miguel considera que deve haver aproximação dos dois lados, tanto do PT como do PSOL, que vão ter de “aprender a conversar de igual para igual com as outras forças” , diz. Isso a longo prazo.
No curto prazo, a esquerda tem uma eleição municipal da capital para definir sua posição: se optar pelo voto nulo, para mim, que sou servidor público, estará elegendo o candidato de extrema direita, Nelson Marchezan Jr e tudo o que ele significa para este campo, como arrocho salarial dos servidores, perseguições (como fez com a Cristalvox), parcelamento de salários e terceirização, etc. A esquerda precisa saber que ainda tem responsabilidade pelos próximos quatro anos, que não tem o direito de lavar as mãos, pois deve solidariedade aos cidadãos na próxima legislatura, as “gerações futuras”, de que fala Dupuy e, se não os considera, deve solidariedade ao menos os servidores públicos municipais, que mantém a cidade. Se os servidores estiverem mal, a cidade estará mal. Todo o servidor é um cumpridor do seu dever, mas o servidor é um ser humano e fica mais difícil trabalhar com salários parcelados, retirada de direitos, ausência de reajuste salarial, engessamento de progressões, retirada do difícil acesso e outros direitos garantidos em lei.
Lutar por uma administração menos pior
Isso reflete, queiramos ou não, na qualidade dos serviços públicos na saúde pública e nas escolas. É só olhar a condição dos trabalhadores do Estado. Não se trata de corporativismo do servidor, se trata de defender princípios de justiça numa sociedade democrática e junto aos trabalhadores do município: a esquerda, ao recusar lutar por uma administração “menos pior” acredita que não há reciprocidade entre os eleitores atuais e das próximas eleições, e por isso, pode abandoná-los a sua própria sorte na expectativa de que aprendam a lição do que acontece quando elegem um prefeito de extrema direita. Mas esquece que é a máquina pública está em perigo se Marchezan for eleito! É esta geração de eleitores que está sendo abandonada pela esquerda: por isso a esquerda precisa voltar ao cenário político neste segundo turno, precisa negociar, precisa fazer valer algo do projeto de esquerda mesmo entre os inimigos declarados.
É possível, ainda que improvável, que Melo tenha uma personalidade não submissa ao PMDB; é difícil, mas não impossível, que Melo cumpra acordos com a esquerda e incorpore parcela de uma agenda acordada em sua gestão. Melo deu provas de que é um administrador: os servidores da Câmara Municipal , onde foi presidente, elogiam sua administração devido os avanços que implementou e as reformas que fez. Na Câmara, de fato, era um presidente de diálogo e sua posição de vice-prefeito não permitiu essa face emergir na relação com os servidores. Isso reforça a ideia de que o ideal de marketing adotado por sua campanha, de que era verdade qie havia ali um trabalhador. A esquerda acredita que Melo e Marchezan são iguais: eles não são, simplesmente porque suas personalidades são diferentes. Resgatar um autêntico PMDB nas veias de Melo é como encontrar o lado bom de Darth Vader – mas como no filme, no fundo, no fundo, ele estava lá. Melo é o Darth Vader da esquerda.
Foto: Esteban Duarte/CMPA
Nossa questão é que a esquerda deve evitar uma catástrofe maior. Isso quer dizer que a esquerda deve deixar de acreditar que sua luta contra o neoliberalismo e portanto a luta contra os candidatos que encarnam o ideal de mercado não se faz mais neste momento, mas nas próximas eleições? É claro que não! Por exemplo, a esquerda pode incluir em sua agenda, na eventual possibilidade de um apoio, que defendo, além da defesa dos direitos sociais, o projeto de contratação de guardas e outras medidas defendidas ou por Raul ou por Luciana. Pode incluir também a defesa da extinção da INVEST POA, fundação criada no governo Fortunati com o objetivo de investir no mercado de ações, usando para isso o patrimônio da Prefeitura – esta não foi uma das ações mais neoliberais de seu governo? Se Melo concordar em interromper suas atividades por 4 anos, já terá sido uma vitória!
Não há reivindicações com mais peso que as outras, mas há a possibilidade de construção de uma agenda comum compartilhada com setores da esquerda, produto de negociação para condução de Melo ao segundo turno. Redução de danos. Para a esquerda, os interesses políticos de centro-direita e esquerda são iguais, para mim não porque considera o fato de que as personalidades das lideranças importam e por esta razão, ainda que integrantes de partidos de posições semelhantes, podem ser diferentes as gestões. Ao menos, a esquerda tem a obrigação de continuar na mesa do contrato social, a esquerda precisa ter consciência de que o voto do povo na extrema-direita (Marchezan) traz como destino, para mim, a destruição do serviço público municipal como conhecemos, e portanto, impõe-se de forma absoluta lutar contra as consequências. Ainda não terminou o tempo de negociar nestas eleições, e em Porto Alegre, isso significa abandonar a postura passional que impulsiona a esquerda a votar nulo e retornar a mesa de negociações: Melo precisa de votos por esta razão precisa ceder em uma negociação com a esquerda. E ele cederá.
Obrigação de prestar contas
A esquerda perdeu a chance de participar do segundo turno e tem obrigações de prestar contas. Perdeu por seus erros, perdeu pelas decisões estratégicas que tomou. Não é possível colocar tudo no mérito da direita, ou do apoio da RBS, ou qualquer outro veículo. A esquerda colaborou para seu fracasso e tem de prestar contas do que fará de agora em diante. Toda a parábola retrabalhada por Anders sobre Noé e citada por Dupuy quer realçar o luto das mortes que ainda não se produziram, imagem simbólica que serve para falar da política local para as perdas que se seguirão. Ela sugere que ainda é possível a inversão do tempo na política, de que é possível colocá-la no ciclo onde, mesmo com as previsões que se produzem do futuro, da desgraça anunciada, que elas possam não se realizar, mas para isso, não pode “abandonar o barco”. Como no caso de Noé, onde o anúncio da catástrofe serviu para que inúmeros trabalhadores viessem ajudá-lo a construir a barca, o mesmo vale para a esquerda, onde seu seu objetivo é “precisamente motivar uma tomada de consciência e agir para que a catástrofe não se produza”.
Por isso, quando dizemos que a esquerda é capaz de prever a catástrofe que se avizinha com a eleição da direita para Porto Alegre, que a catástrofe é maior com a eleição de Nelson Marchezan Jr do que com Sebastião Melo, é uma pre-visão, no sentido apontado Dupuy: ” ele não pretende dizer o que será o futuro, mas simplesmente dizer o que teria sido o futuro se não se tomasse cuidado”(Dupuy, p. 201). Aqui, isso significa que o futuro imaginado com a vitória de Sebastião Melo é um futuro ruim possível, mas pode ser mais familiar, ao menos para os servidores públicos municipais, do que o futuro prometido por Nelson Marchezan Jr. Se a ação da esquerda for eficaz, o pior futuro não se realizará e isto será um alento: será menor o número de empresas públicas vendidas, será menor o número de direitos dos servidores públicos retirados, etc, etc, o que está no horizonte ideológico ou simplesmente nos….sonhos do candidato Marchezan.
Jogar com o fogo
A salvação da esquerda está em usar a astúcia da visão do destino catastrófico da cidade com a extrema direita. Afastar o pior caminho, retardar seu inicio, desejando escapar por um triz do pior projeto possível, eis a missão da esquerda no segundo turno das eleições municipais em Porto Alegre. Será sábia a esquerda que evitar a emoção do momento e jogar com o fogo: “não nos aproximamos demais dele porque corremos o perigo de nos queimar: também não nos afastamos demais porque ele nos protege, lembrando-nos sem cessar o perigo ao qual ele nos expõe. Em outros termos, como dizia o poeta Hölderlin, o que pode nos salvar é o mesmo que nos ameaça: lá onde cresce o perigo cresce também o que salva”(Dupuy, p. 207).
Autor: comite
As estruturas não descem às ruas
Paulo Timm – Economista
“Se erros foram cometidos devem ser corrigidos e não mais repetidos”
( Ex-senador E. Suplicy, ao comentar sua eleição recente para a Câmara de Vereadores de S.Paulo; foi o mais votado com mais de 300 mil votos)
1. Encerrado o primeiro turno das Eleições 2016 três observações se impõem preliminarmente: primeira, o grande vencedor deste pleito foi a rejeição de 40 milhões de eleitores, entre Abstenções + Nulos + Votos em Branco, ao que aí está, o que é um nítido alerta para a urgência de Reforma Política e Eleitoral; segunda, o PT levou uma surra, talvez mais por rejeição às suas práticas do que pela “revoada liberal”, tanto nas capitais como no Nordeste, devendo alertá-lo para uma renovação no discurso de suas lideranças no sentido de avaliar as razões internas para este refluxo e não apenas acusações a terceiros; terceira: o sistema pluripartidário, tão criticado por dificultar a governabilidade, está consagrado no país.
2. Quanto à derrocada do PT, fato mais marcante do pleito de 2016, não se deve falar nem em alvorada de um novo tempo, nem em crepúsculo da sigla. Nem invenção, nem reinvenção. Apenas percalços. Internamente, será muito difícil este Partido mudar sua dinâmica interna, com a acirrada disputa de correntes, algumas delas francamente principistas quanto ao caráter de “classe” do Partido, voltado ao cumprimento de missão messiânica, e quanto à sua vocação para a construção do “socialismo”. Externamente, no contexto político nacional, o PT, apesar de ter perdido milhões de eleitores e metade das prefeituras que ocupou em 2012, continuará a ser um grande partido. PMDB e PT, aliás, continuarão a ser os dois maiores Partidos no país – e por longo tempo. Quase “irreversíveis”. Se organizaram, ao longo do tempo, no vasto território nacional e detêm, ambos, importantes canais de controle do processo eleitoral. Voto não é apenas um apertar solitário de botão na calada da urna. É uma “rede”, sempre mais ou menos aprisionada à “interesses”. Não é fácil montar e manter isso. Fica aqui a lembrança para que se assista com atenção duas séries no NETFLIX: “Marselha” e “House of Cards”. Tratam do assunto.
3. Quanto aos outros Partidos, o PSDB, segundo em votos e controle de Prefeituras, mas “terceiro” na hierarquia simbólica, até pelo peso de seus grandes nomes, dentre eles o ex-Presidente Fernando Henrique Cardoso, a dupla José Serra/Aécio Neves, ambos ex candidatos à Presidência da República com 50 milhões de votos, e agora o Governador de São Paulo, já está com maior número de eleitores, mas ainda não conseguiu se organizar nacionalmente. O PSOL, em contrapartida, surpresa da vez, pela vitória relativa do deputado Freixo, que disputará, com desvantagem, com Marcelo Crivella o segundo turno na cidade do Rio, ainda é um fenômeno urbano, tipo PODEMOS na Espanha. Deverá até se consolidar como uma alternativa de esquerda mais consistente e sem os pecados do PT, mas, tendo saído de seu ventre, padece de vícios semelhantes, como a disputa interna marcada pela intolerância doutrinária, pela qual perdeu até ex candidata à Presidência em 2006, Heloísa Helena. Mas o PSOL não tem uma liderança popular de massas, não tem visão para a construção de um Projeto Nacional, não tem articulação com movimentos sociais e sindicatos, não tem envergadura no país para ocupar o vazio deixado pelo PT. Pior: terá, no máximo, duas Prefeituras…
4. Uma característica pouco notada destas Eleições Municipais 2016 foi a consagração de um conjunto de partidos com forte expressão eleitoral, além dos tradicionais PMDB – PT – PSDB , que dominam há mais de três décadas a vida pública do país. Ela é o resultado de duas medidas: a flexibilização para a fundação e funcionamento dos Partidos, sem qualquer cláusula de restrição, e do apoio financeiro do Governo, através, não só do generoso Fundo Partidário, cujo Orçamento já beira o R$ 1 bilhão, mas também ao subsídio que dá às emissoras de rádio e TV para custear a propaganda eleitoral obrigatória. O PSD, o PDT, o PSB, o PR , o DEM e o PTB controlarão entre 200 e 400 municipalidades cada um. Outro grupo menor, o PPS, PRB, PV, PSD e PCdoB , em torno de 100. Ora, isso revela uma diversificação partidária muito grande que está combinando opções de caráter ideológico com alternativas de interesses até pessoais. Debita-se à essa diversificação permissiva a ingovernabilidade do país e que agora estará se deslocando para “Prefeituras de Coalização”, agravando o loteamento de cargos e do Estado. Talvez. Mas há que se considerar, também, que este processo é uma porta à abertura de lideranças que, de outra forma, seriam sufocadas pelas oligarquias que dominam os partidos mais antigos e mais fortes. Nesse sentido, ainda que paradoxalmente, a diversificação partidária é uma válvula à democratização da vida pública e, por vias tortas, um dos mecanismo de reforma política no país.
5. É possível se falar em retrocesso da esquerda, à vista do fracasso do PT, nessas eleições, como consequência de uma onda conservadora que varre a América Latina? Depende do que se entende como “esquerda”, tal como o PT a empolgou. Certamente, os brasileiros disseram um rotundo “Não” ao discurso do “Nós contra Eles” do PT que acompanhou a estigmatização da classe média, tão cara ao empreendedorismo, à meritocracia e aos valores republicanos. Contudo, várias pesquisas continuam afirmando que os brasileiros almejam um modelo político-econômico com economia de mercado e forte intervenção do Estado como instrumento de regulação, promoção da cidadania e defesa dos mais vulneráveis, justamente o que os petistas diziam defender. Daí, aliás, os cuidados do Presidente Temer quanto às “Reformas” inseridas no seu “Ponte para o Futuro”, tão proclamadas, mas em rigoroso ponto morto. Não há clima na nação, nem no Congresso Nacional, para aventuras liberalizantes, ao gosto do novo PSDB de João Dória, Prefeito eleito de São Paulo. Sua vitória acachapante na quase totalidade das zonas eleitorais da cidade se, por um lado, consagra a tendência politicamente mais conservadora desta capital frente ao Rio, Porto Alegre e Recife, históricos redutos da esquerda, por outro, sugere a incapacidade do Prefeito Haddad para se firmar na periferia, com seus projetos urbanisticamente avançados. O espaço aberto foi ocupado pela astúcia tucana. E falando nos redutos históricos da esquerda, veja-se: o Rio, mantém sua tradição rebelde, ao levar Freixo para o segundo turno, Recife sustentou o próprio PT no segundo turno e vai disputar com outro candidato de esquerda e apenas em Porto Alegre e outras cidades de maior porte do cenário rio-grandense, percebe-se, mesmo um retrocesso da esquerda. Isso me lembra uma velha queixa dos maragatos, que combatiam em armas os chimangos, arautos da esquerda no Estado do RS, instalados no Palácio Piratini entre 1889 até 1930, inicialmente pela mão de ferro de Júlio de Castilhos, depois de Borges de Medeiros, depois Getúlio Vargas: “Não é por acaso que eles são autoritários…” Lembre-se, entretanto, voltando à cena nacional, que o PCdoB, aliado incondicional do PT, passou de 51 para 80 prefeituras, o PDT, outro aliado, embora mais vacilante, cresceu de 330 para 334, o PSB fez 414, as quais, somadas as 256 vitórias do PT perfazem 1/5 do total das municipalidades do país. O que não é pouco. Não carece de se falar em grande retrocesso da esquerda no país. Além dos resultados eleitorais, aí estão os movimentos sociais em inédito protagonismo, principalmente jovens estudantes. Estamos, sim, diante de uma nova realidade na esquerda brasileira frente à perda de hegemonia do PT e emergência de novos protagonismos aos quais deverá se articular, de uma ou outra maneira, o PPS, em nova rota, a REDE de Marina Silva, embora em declínio, e o próprio PV, sempre cioso de sua maior independência. Isso sem falar na esquerda peemedebista, à la Requião no Paraná.
Conclusão
Passada a “tempestade” destas eleições – surpreendentes em todo sentido – , do impacto do Impeachment de Dilma, d aLAVAJATO, que daqui a pouco serena seu ímpeto deixando uma sequência de sentenciados em suas poltronas sob o controle de meras tornezeleiras eletrônicas, da brutal recessão econômica que o PT ainda se recusa a admitir e de admitir sua parcela de responsabilidade, voltaremos às ” estruturas”, marcadas pela presença, à esquerda, pelo PT e movimentos sociais e, oxalá, novos agentes, ao centro pelo PMDB, suas Prefeituras e amplas classes médias ao longo do país e , à direita, pelo PSDB, apoiado pela grande mídia e grandes fortunas. Elas, as “estruturas”, aliás, como diziam os estruturalistas teóricos em maio de 68, na Paris convulsionada, “não descem às ruas”. Mas estão lá…E se não aprenderem a conviver com um mínimo de civilidade republicana, não construiremos a democracia.
Com a recuperação do bom senso, daqui a pouco estaremos, todos, discutindo a sucessão presidencial de 2018.
Primeiras reflexões sobre as eleições de 2016
Algumas impressões e reflexões sobre o dia de ontem. Chamou-me a atenção o alto número de votos brancos/nulos e abstenções. Tudo leva a crer que de fato estamos nos aprofundando em um processo que traz duas faces: de um lado a criminalização da política, de outro a busca, ainda tateante, de uma nova política. Parte da juventude que foi às ruas em 2013, especialmente os grupos que iniciaram as Jornadas em Porto Alegre, São Paulo e depois outras capitais, representa a insatisfação com a democracia representativa e a velha política dos partidos, devem somar-se a esses jovens os secundaristas que ativamente se mobilizaram ao longo de 2015 e 2016. Nota-se nesta turma toda uma grande paixão política, uma vontade de construir uma ação política com P maiúsculo, mas que ainda não encontrou sua forma mais estável. Foi ao ver tais jovens em ação que fiquei feliz nos primeiros lances de 2013.
Por outro lado, no rastro aberto pelo início das Jornadas vieram as consequências de uma velha política que se disfarça no Brasil, mas que não tem nada de nova (a Revolução de 30 foi uma insurgência contra a “democracia” da República Velha, o discurso da política corrupta e generalizada favoreceu os militares, vistos como não políticos, e foi a ruína de Getúlio, Jango, JK e agora Lula): a construção da imagem de que a democracia é um engodo, de que políticos são dinossauros corruptos, que política, direito e moral devem todos ser a mesma coisa, e que a melhor leitura disto é o modelo de indivíduo atomizado e isolado, assim cada qual que se responsabilize pela própria desgraça. Tal imagem social é aprofundada entre nós pela forte investida religiosa fundamentalista no campo público.
Vejam que além do alto número de votos nulos/brancos/abstenções verificou-se uma grande dificuldade de as situações se manterem (o que atingiu o PT mas também o próprio PMDB). João Dória em Sampa foi eleito sob a aparência de não ser um político, o mesmo aconteceu com Sartori no RS (“meu partido é o Rio Grande”).
Vejo que se prepara cada vez mais no Brasil o terreno para uma Berlusconização do país. Alguém que não seja da política tradicional, que represente para a grande parcela da população, teleguiada pela mídia hegemônica, um salvador da pátria. Ontem foram os militares, hoje podem ser os juízes. Não me admiraria se alguém como Moro ou Joaquim Barbosa for eleito Presidente do Brasil em 2018.
Para as esquerdas, o desafio é duplo. De um lado, deve resistir ao processo de criminalização da política e dos retrocessos sociais que podem vir daí, dos quais o pior, sem sombra de dúvida, é a descrença das pessoas em qualquer trabalho coletivo, comunitário e solidário, restando apenas a razão cínica, calculatória, egoísta e predatória, favorecida pela lógica do salve-se quem puder. De outro lado, a esquerda deve se reinventar, para além da dinâmica partidária, deve novamente ressurgir das bases, dar lugar para as novas gerações e suas novas gramáticas, saber dialogar com essas novas forças emancipatórias, não estabilizadas ou institucionalizadas. A nova unidade de esquerda deve vir desse processo das bases. Dificilmente virá de conciliações quase impossíveis entre os braços partidarizados da esquerda brasileira, mas deve passar também por aí. Este é o verdadeiro trabalho de reconstrução das esquerdas, que no Brasil devem sim trabalhar com o imponderável de 2018, mas sem deixar que este front paralise todo o resto, pois, sinceramente, penso que o “resto” é o que mais importa agora para a retomada de um projeto inclusivo, plural e democrático para o Brasil.
Golpe e religião
João Alberto Wohlfart
Com o golpe aplicado na Presidenta Dilma Rousseff e na caça às bruxas contra o ex-Presidente Lula e contra o PT, há um forte ingrediente religioso que nos ajuda a compreender o que está acontecendo. No Golpe militar de 1964 muitos bispos, padres e cristãos louvaram o ato como uma dádiva divina que salvaria o país do terror do Comunismo. Entre os golpes de 1964 e 2016 há um sutil diferença, pois naquele o inimigo absoluto era o Comunismo, enquanto neste os inimigos absolutos são Lula e o PT. Na caçada ao inimigo absoluto e na tipificação do demônio, a Religião exerce um papel fundamental inteligentemente empregado pelas classes dominantes que aplicaram o golpe.
A Religião é um fenômeno de muitas facetas, além do pluralismo religioso como uma das marcas de nosso tempo. Sabemos da forte presença da Igreja Católica na História do Brasil e da sua incidência decisiva na formação social e cultural do país. A História do Brasil e a formação do ethos cultural brasileiro tem a marca histórica do batismo cristão. Durante séculos, a presença do Catolicismo não tem nenhum aspecto crítico, mas a marca da cruz e da espada assinala a benção divina ao colonialismo, ao neocolonialismo, ao imperialismo, ao machismo, ao racismo e ao patrimonialismo. E é pelo batismo cristão que os índios e os negros não têm alma, são semisselvagens e não se prestam para as mais nobres castas católicas, tais como a santidade cristã e o sacerdócio.
Ao longo da história do Brasil a Religião Católica teve presença invisível e decidida para a afirmação e consolidação da sociedade patriarcal machista. A atual classe dominante deve agradecer à religião por tão grande dádiva e que contribuiu decididamente para inscrever no interior da sociedade brasileira tal estrutura. Tem tudo a ver a antinomia entre a casta sacerdotal cristã e a massa escrava com a atual casta do judiciário e o ódio da classe dominante da Democracia e do Povo. Durante os séculos de História Brasileira a Religião Cristã imprimiu na sociedade uma profunda convicção segundo a qual a estrutura social é formada a partir da vontade pura e soberana de Deus, portanto imutável. Em função desta influência, ainda não conseguimos quebrar o modelo social patriarca que se se formou historicamente segundo a vontade divina.
Durante o período da ditadura militar a postura da Igreja Católica muda radicalmente. Impulsionada pelo Concílio Vaticano II e pelas Conferências latino-americanas, formam-se significativas lideranças populares e a Igreja Católica passa a ocupar-se de temas como a transformação social, a justiça social, a reforma agrária, a presença na política, a dívida externa etc. Durante algumas décadas, a ação da Igreja foi inseparável da ação política da conscientização das massas diante das estruturas dominantes. Durante as décadas de 70, 80 e 90, a Igreja saiu da sacristia, não se preocupou tanto com a salvação das almas e vinculou a evangelização à ação de transformação social. Nestes tempos, a presença da Igreja teve um viés social, ético e político decisivos para a formação da consciência e politização das massas. Numa ação que teve como carro-chefe as comunidades eclesiais de base, os círculos bíblicos e a ação política, o catolicismo lançou profundamente as suas raízes na base social, o que criou as condições para um efetivo caminho de transformações sociais. Este processo teve como desdobramento político a fundação do PT e a eleição de Lula para a Presidência da República, em 2002. O trabalho de base também contribuiu para a abertura democrática do país e dos principais eventos que o constituíram.
As décadas de 70 e 80 foram especialmente férteis de uma base intelectual libertadora e emancipadora. Tiveram intensa efervescência a Teologia da Libertação, a Filosofia da Libertação, as Pedagogias Crítico Sociais e Dialéticas, em intelectuais como Paulo Freire e Ernani Maria Fiori expressam a fecundidade do período. Mas, dentro da Igreja Católica, aconteceu uma reviravolta radical na monarquia romana com a eleição de um patriarca polonês ao papado, quando chegou ao comando da Igreja Católica um polonês vindo da reação ao Comunismo. A ação deste Papa foi duríssima, no silenciamento de centenas de intelectuais católicos, no radical enfraquecimento do viés político da ação da Igreja, na romanização, na centralização e unificação da doutrina, na reviravolta ortodoxa e ultraconservadora da religião.
Entre os monarcas absolutistas João Paulo II e Bento XVI o catolicismo viveu quase 35 anos de ditadura, com a imbecilização e mediocrização de seus fiéis e a condenação de muitos de seus intelectuais. No Brasil, percebeu-se o progressivo enfraquecimento do viés político da evangelização da Igreja e a sua volta à grande disciplina e à sacristia. O modelo de Igreja construído por estes dois patriarcas contribuiu muito para desqualificar a ação política e para rotular autoritariamente os integrantes das esquerdas de comunistas. Nos últimos tempos os padres e os políticos comunistas quase desapareceram… Na atualidade, a presença da Igreja Católica na sociedade brasileira é caracterizada por um significativo grau de moralidade e credibilidade social, mas com insignificante presença no processo de transformação social.
O acentuado ritualismo litúrgico e devocionismo do catolicismo brasileiro cedeu espaço para as religiões neopentecostais repletas de fiéis. Isto é evidente e visível pela chamada bancada evangélica do congresso nacional e na inexistência de uma bancada católica no mesmo parlamento. O progressivo recolhimento católico nos espaços sagrados das sacristias e das igrejas corresponde com a ocupação destes mesmos espaços pela religiões neopentecostais atualmente presentes de forma intensiva nas bases sociais e nas instâncias políticas. Atualmente, estas religiões estão ramificadas nas instâncias políticas de todas as esferas da federação, em vários partidos políticos, em vários setores da economia e em vários órgãos estatais. Líderes religiosos são donos de meios de comunicação, fazendas, empresas, com incidência decisiva nos rumos da economia e da política. Preocupante é o viés ultraconservador que as religiões atualmente proporcionam para a sociedade, um ingrediente decisivo para o domínio neoliberal.
A ramificação da religiões para dentro da sociedade, na atualidade, é comparável com a circulação do sangue por todas as partes do corpo. Talvez, na atual configuração da conjuntura brasileira, a religião não é um componente da superestrutura da estrutura econômica, como pretendia Marx, mas infraestrutura da estrutura social e econômica. Ela proporciona uma visão ultraconservadora necessária para a legitimação do modelo econômico neoliberal e dos interesses econômicos das elites que mandam no país. A religião não proporciona uma visão de mundo sistematizada e uma intelectualidade esclarecida, mas estende a santidade sacerdotal às castas do judiciário, do ministério público federal, das câmaras federal e estaduais e em todas as esferas da política. Passa decisivamente pela religião a formação de uma casta social autodenominada “homens de bem”, uma classe de perfeitos que se inspiram na bíblica e na “justiça”, para se justificar diante da sociedade.
Numa situação paradoxal diante da sociedade secularizada, a forte incidência religiosa resulta na formação de uma casta sacerdotal social, de homens perfeitos e de bem, e condena ao ostracismo uma grande maioria social. Neste universo encontram-se os negros, os índios, o MST, os trabalhadores, os homoafetivos, as mulheres, os nordestinos etc. Com facilidade, estas classes se transformam em réus dos procedimentos tipicamente judiciais e as suas organizações são criminalizadas. Com o golpe, como os parâmetros de Justiça e de Direito foram jogados na lata de lixo, sobrou uma casta sacerdotal que condena os infratores, destacadamente os de esquerda e os comunistas.
Na atualidade, a tendência religiosa neopentecostal não apenas caracteriza uma determinada confissão religiosa, mas ela está infiltrada em todas as religiões. Como a pregação está baseada na prosperidade material, e como no Brasil houve uma significativa ascensão social, estas religiões encontram um terreno fértil para a seu desejado sucesso na sociedade. A prosperidade material que aconteceu nos últimos anos não é dada aos governos que promoveram as políticas para que isto fosse possível, mas muitos acham que é uma dádiva divina. Por outro lado, a Igreja Católica, mesmo presente em todo o território nacional, atualmente não tem força para fomentar um processo efetivo de transformação social.
Está muito claro que a ditadura que vivemos atualmente é muito pior que aquela que se instaurou em 1964. Dentre as muitas diferenças, uma nos parece fundamental. É claro que naquele contexto os religiosos católicos apoiaram o golpe como uma dádiva divina e como uma vitória contra o grande demônio do comunismo. Mas expressivas lideranças católicas se deram conta da farsa, denunciaram a ditadura e implantaram uma intensa força popular para a conquista da liberdade. Na ditadura atual, contrariamente, o conjunto das religiões se transformou na grande aliada. As forças mais conservadoras do país estabeleceram o casamento entre os seguidores da bíblia e o neoliberalismo, entre religião e capital, entre homens de bem e a direita raivosa.
No atual contexto do golpe não há vozes proféticas provenientes das religiões, especialmente da católica. Grande parte dos católicos não têm consciência esclarecida dos fatos e louvam os golpistas, repetindo, em grande intensidade, o discurso dos meios de comunicação. Como foi perdida completamente a base social crítica dos anos 70 e 80, e com ela o viés político do catolicismo, os cristãos estão perdidos e mediocrizados no senso comum religioso e na ignorância política. Na contramão da sociedade secularizada, que se torna indiferente à religião e a critica como uma espécie de alienação social, encontramo-nos numa sociedade profundamente religiosa que usa o sentimento religioso como uma poderosa ferramenta para encobrir a lógica capitalista de exploração.
O fenômeno religioso em geral, e nela se incluem todas as religiões, têm influência decisiva na formação da “moralidade” social. É o moralismo dos homens de bem, dos homens perfeitos, dos moralizadores da sociedade, contra os condenados sociais. O nome destes condenados não precisa ser colocado aqui, que pode ser resumido na larga base social dos historicamente excluídos. Alguns eventos que envolvem o golpe, dentre os quais o fatídico 17 de abril quando o nome de Deus foi amplamente invocado, mostram que a nossa sociedade é historicamente teocrática. A histórica estrutura teocrática da sociedade é legitimadora do patriarcalismo, do neocolonialismo, do machismo, do escravagismo, do imperialismo capitalista, do maniqueísmo social. Na atualidade, há poucos sinais na religião que apontam para a sua potencialidade humanizadora, crítica e transformadora, mas ela sempre é usada para sustentar ditaduras e encobrir formas de exploração. No Brasil da história e da atualidade, há uma radical proximidade entre a intensa religiosidade e o estrutural patriarcalismo.
Ao ver claramente o papel que a religião está exercendo no atual contexto de golpe e de ditadura, nada mais significativo que invocar o conhecido ditado proferido pelo velho filósofo Karl Marx: “a religião é o ópio do povo”. Está claro que no contexto atual nenhuma religião está focada na libertação e na transformação social, como a Igreja Católica nos anos 70 e 80. O tipo de consciência religiosa e de fé das religiões atuais nada mais representa que uma legitimação do golpe e do projeto ditatorial que vivemos. O misticismo religioso é o que o sistema econômico e os ditadores precisam para silenciar o povo e legitimar os seus interesses.
Comunicado do SEMAPI: Fundação de Economia e Estatística, o conhecimento gaúcho sob ameaça
Saiu na imprensa corporativa que o governo do Sartori estuda a extinção da Fundação de Economia e Estatística (FEE). Esse absurdo deve ser cogitado por desconhecimento do que a FEE faz e de sua capacidade técnica para contribuir com o estado e com a sociedade. Por esse motivo, o SEMAPI traz a todos os seus associados e à sociedade de maneira geral mais informações sobre o trabalho da Fundação.
A FEE é uma instituição de pesquisa vinculada à Secretaria do Planejamento, Mobilidade e Desenvolvimento Regional do Governo do Estado do Rio Grande do Sul. Por disposição legal, a FEE tem por finalidades básicas: identificar e propor alternativas de desenvolvimento econômico e social ao Estado; estruturar e operar o sistema de contas regionais, proceder a análises conjunturais, bem como realizar estudos e pesquisas, tendo em vista o preparo de indicadores econômicos e sociais; coletar, processar e divulgar dados estatísticos; colaborar na elaboração, na execução e no controle de programas ou projetos governamentais; fornecer subsídios à prática financeira do Estado; prestar serviços e realizar pesquisas de interesse dos setores econômicos e dos consumidores; divulgar informações técnicas e desenvolver outras atividades compatíveis com as suas finalidades.
Nesse sentido, a FEE reúne o mais importante acervo de estatísticas socioeconômicas sobre o Rio Grande do Sul, bem como elabora e divulga, regularmente, indicadores e estudos sobre temas diversos, tais como: agricultura, indústria, desenvolvimento regional, meio ambiente, potencial poluidor das indústrias extrativa e de transformação, políticas públicas, comércio exterior, finanças públicas, política monetária, política fiscal, infraestrutura, inovação, relações de trabalho, emprego e desemprego na Região Metropolitana, PIB Regional, PIB Municipal, estimativas populacionais, Matriz de Insumo Produto, Índice de Desenvolvimento Socioeconômico (Idese), plataforma de exportações, dentro outros. Citam-se, ainda, a elaboração do índice de valor, preço e volume das exportações estaduais e o levantamento sistemático do mercado de trabalho para a Região Metropolitana com base em pesquisa mensal domiciliar.
Reunidos, o banco de dados FEE DADOS disponibiliza ao estado, à sociedade e à academia aproximadamente 800 variáveis socioeconômicas georreferenciadas sobre o Rio Grande do Sul e sobre todos os seus municípios, permitindo cruzamentos entre variáveis, unidades geográficas e período de abrangência.
Na homepage www.fee.rs.gov.br, a FEE disponibiliza gratuitamente um grande volume de dados socioeconômicos sobre o RS e suas análises, recebendo, anualmente, mais de um milhão de acessos.
Além de dados e indicadores, a Fundação publica periodicamente a Carta de Conjuntura, a Revista Indicadores Econômicos FEE, a Revista Ensaios FEE, o Informe PED-RMPA, a Panorama Internacional FEE, a publicação RS Em Números, além de livros e análises setoriais. Recentemente publicou em três volumes o estudo RS 2030, em caráter prospectivo sobre as diretrizes para o desenvolvimento do território do Rio Grande do Sul. Encontra-se no prelo livro que analisa as características e potencialidades de Arranjos Produtivos Locais do estado, bem como um atlas escolar com indicadores do Rio Grande do Sul em linguagem didática e facilitada.
Além disso, a FEE atua em colaboração com uma série de órgãos estaduais no atendimento de demandas por pesquisas e análises sobre a dívida ativa do estado, grandes investimentos no setor de energia, economia do turismo, indicadores de ciclos de negócio, indicadores do agronegócio, política de transparência, planejamentos estratégicos dos Coredes – apenas para citar alguns exemplos em andamento atualmente.
Os concursos públicos realizados em 2010 e em 2014 renovaram o quadro da instituição, com o ingresso de profissionais de alta qualificação. A FEE possui uma equipe multidisciplinar com 12 especialistas, 92 mestres e 37 doutores, especialmente nas áreas de Economia, Sociologia, Estatística, Geografia, História, Relações Internacionais e Ciência Política.
Ainda assim, os custos para manter a instituição caíram 41% em termos reais nos últimos 6 anos. Em parte pelo aumento da produtividade, em parte pela informatização de processos e de pesquisas. Em seu quadro funcional constam pessoas de destaque não só no mundo acadêmico, mas também na administração pública, em todas as suas esferas.
Historicamente, a FEE constituiu-se em um espaço de análise e discussão plural e independente sobre a economia, a sociedade e o desenvolvimento do Rio Grande do Sul, detendo um substantivo acúmulo de conhecimento a respeito do estado – que não é substituível por supostas alternativas presentes no mercado. Sua autonomia garante a capacidade crítica a políticas e ações implementadas.
A Fundação coleta, reúne e analisa informações e indicadores que efetivamente instrumentalizam políticas públicas do Estado e dos municípios, bem como organiza e promove eventos abertos à comunidade, ciente do caráter público de seu conhecimento.
Os estudos da Instituição fornecem subsídios indispensáveis para pensar o futuro da nossa economia e sociedade. Por tudo isso, ao longo de seus mais de 40 anos de existência, a FEE vem-se mostrando uma instituição competente e capaz de aproximar e interligar a produção de dados estatísticos e pesquisas de qualidade, com o objetivo de assessorar o planejamento econômico e social do Estado – beneficiando, assim, a totalidade da sociedade gaúcha.
Convidamos a todos a conhecer de perto a FEE, valorizando e utilizando do conhecimento nela produzido, que é de direito de todo o povo gaúcho.
SEMAPI
SINDICATO DOS EMPREGADOS EM EMPRESAS DE ASSESSORAMENTO, PERÍCIAS, INFORMAÇÕES E PESQUISAS E DE FUNDAÇÕES ESTADUAIS DO RIO GRANDE DO SUL
A moralização dos pobres
Marilia Verissimo Veronese
Doutora em Psicologia Social pela PUCRS. Professora e pesquisadora do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da UNISINOS
As classes médias e altas estão sempre prontas a uma cruzada pela moralização dos pobres. Para elas, existe o bom pobre e o mau pobre: o primeiro é humilde, servil, respeitoso com “os de cima”, aceita trabalhar à exaustão por uma remuneração baixíssima, não reclama da sua condição. Está sempre agradecido/a pelo (pouco) que lhe concedem os mais aquinhoados.
Se ganha roupas que saíram do armário de seus patrões (mais para liberar espaço do que para aquecer alguém), fica agradecido e deixa-os com a sensação agradável de serem boa gente, gente caridosa. Toma o elevador de serviço, exclusivamente, e concorda que mobilidade social só através de muito trabalho duro (sem, obviamente, comentar que trabalha duríssimo a vida toda e a mobilidade raramente vem). Se for religioso e atribuir à vontade de deus a desigualdade social, tanto melhor! E se contar como, na favela ou periferia onde reside, alguns de seus vizinhos são preguiçosos e não gostam de serviço pesado, passam o dia a tomar cerveja fiada no boteco e por isso é que não vão pra frente, ganha o prêmio de “pobre ideal”! Ninguém comenta que ele/a trabalha duro pra caramba e também mora ali, não conseguindo se mudar para mais perto do trabalho. E toma ônibus lotado e demorado todo dia.
As mães de filhos de pais diferentes são apontadas como responsáveis pelo abandono dos homens com quem se envolveram, afinal, “não se deram ao respeito”. Se, desesperada e exausta, ela apela para um aborto clandestino na oitava gravidez e morre de hemorragia, dirão: “Bem feito. Assassina”. Poucos falam do homem que a abandonou, e ninguém comenta que a filha ou esposa do patrão também já fizeram aborto, pagando 5.000 reais na clínica chique do doutor rico que sai nas colunas sociais; para essas, afinal, está liberado. E segue a hipocrisia. As classes abastadas são protegidas por vários privilégios, como uso de sofisticados – e caros – recursos jurídicos para evitar a imputabilidade de crimes*. Não por acaso as prisões estão cheias de pobres. Tolamente, acredita o senso comum que pobre comete mais crime. Tsc, tsc, tsc… a ingenuidade beira a idiotice, às vezes.
Enfim, o bom/a boa pobre entra quietinho/a pela porta dos fundos, limpa a privada da madame e não reclama nunca. Faz hora extra sem receber pagamento extra nem adicional noturno, vai no sábado “quebrar um galho” lavando a louça na festa pela qual receberá pouco e… pronto! Medalha no peito pelos serviços prestados à ideologia justificadora da realidade social baseada numa falsa meritocracia – que na verdade é muito mais por herança do que por esforço. E não me refiro somente à herança em bens ou dinheiro, casas e carros; mas também a herança de um capital social/cultural e de um preparo para “vencer na vida” que começa quando se está ainda dentro do útero materno. Desde então, em classes favorecidas socioeconomicamente, já está sendo planejado para o bebê que vai nascer um futuro, uma formação cuidadosa e segurança afetivo-financeira. Isso tudo será transmitido pelo afeto, no cotidiano, antes da idade escolar. O valor atribuído pelo sujeito a si mesmo – ou suas expectativas em relação ao que pode alcançar na vida – são construídos nesse processo, desde muito cedo, interiorizadas nas disposições profundas de cada um/a (o habitus de Pierre Bordieu).
A outros/as, porém, caberá um lugar desqualificado e desprotegido no mundo, na divisão social do ensino formal e do trabalho. Apesar da abissal diferença entre a qualidade das escolas que frequentarão, haverá quem diga que o sucesso escolar só depende do aluno e do esforço pessoal nos estudos. Começando a trabalhar cedo, sem tempo para aprimorar-se e submetido a uma dura rotina, será mesmo que o pobre disputará com o rico, por exemplo, uma vaga na universidade em igualdade de condições? Eu acredito que a resposta é um rotundo NÃO. Ah, mas “cotas” é discriminação, repetirão solenemente, acreditando-se paladinos da justiça e da igualdade de oportunidades.
Existem exceções? Por certo que sim. Existe mesmo quem não queira trabalhar ou esforçar-se, entre os pobres (e entre os ricos!); assim como existem os heróis que conseguem a mobilidade social pelo trabalho duríssimo e muito sacrifício (caminhou 10 km após o trabalho, à noite, para estudar… carregou pedras, chorou sangue e venceu na vida… e outras histórias, narradas sob som de violinos, que trazem lágrimas aos olhos das gentes de boa-fé que não tiveram de passar por isso). Mas a condição de exceção desses heróis – “o marido da prima da minha vizinha era engraxate e agora é empresário bem-sucedido e blábláblá…” – confirma a regra que rege a reprodução das desigualdades materiais e imateriais. E a imensa maioria deverá seguir seu destino de “vida de gado”, servindo aos interesses dos de cima e sendo cordatos, puros, servis e humildes.
Caso não aceitem ocupar esse lugar e mostrem seu descontentamento de várias formas, legais e ilegais, aí se transformarão nos “maus pobres”. São aqueles que não têm um comportamento “certinho” como descrito acima. Bebem, vão a bailes funks, tem comportamento sexual livre (esse último ponto, como desqualificação, vale especialmente para as mulheres, claro). Não aceitam trabalhar arduamente numa atividade que consome a saúde, remunera mal e exige horas em transportes coletivos apinhados de gente. Não admitem humilhações, reagindo a elas; vão à praia em lugares “de gente de bem”, atrapalhando o lazer destas com sua “feiura de pobre” e o potencial “perigo” que representam. Falam alto, fazem “barraco”, não “se enxergam”. Podem até vender droga para os filhos das elites que adoram se chapar ou mesmo fazer arrastão em Ipanema, no Leblon e outros lugares reservados aos bem aquinhoados da sociedade. Pobre bom é pobre que faz fila pra receber sopão, de cabeça baixa, lá na periferia onde “é seu lugar”.
Mas pobre politizado também pode ser um mau pobre. Caso exija direitos básicos – como acesso à terra, trabalho e moradia e se una a movimentos sociais, – é demonizado pela “ousadia” e chamado de “vagabundo” que quer mamar nas tetas do Estado ou de algum empresário ou fazendeiro rico, “direito”. Curioso que estes últimos, ao receberem polpudos incentivos fiscais por parte do Estado, ao terem suas dívidas perdoadas, ao sonegarem impostos necessários à manutenção dos serviços públicos essenciais, não são tidos como sanguessugas de nada. Ao contrário, teriam “direito” por serem “dos grandes” que “chegaram lá”. Alguém já viu panela batendo para a não reconhecida corrupção presente no rentismo, que corrói o orçamento nacional via juros da dívida e vampiriza a riqueza produzida por todos que é concentrada por poucos?* Não. As panelas só batem quando a mídia corporativa fala em corrupção, especialmente de quem tentou minorar ao menos um pouco a desigualdade que castiga o país há cinco séculos. E que seja bem espetacularizada, para lavar a alma do pessoal rico e fino de camisa da CBF, que pode se achar novamente super honesto.
Nos anos 80 foi cunhado o Termo “Belíndia”: poucos vivendo como na Bélgica, muitos vivendo como na Índia. Aliás, isso me lembra uma história, contada alegremente por um sujeito bon-vivant, em casa de parentes, após uma viagem dele ao belo país asiático. Relatava, encantado, que hospedado em casa de amigos, ao chegarem de um passeio as 4 horas da manhã, com fome, os donos da casa acordaram os empregados para fazerem sanduíches. “Eles estão aqui para isso”, justificaram os patrões. O hóspede abastado adorou, achou o máximo da gentileza e hospitalidade!
Eu só teria a dizer pra ele o seguinte: Quer um sanduíche as 4 da manhã, mané? Vai pra cozinha e faz! Trabalhador tem direito a uma noite de sono para descansar da jornada. Escravidão é uma coisa profundamente imoral e indigna, e quem contribui conscientemente com ela, ou com uma situação análoga, idem. Condições degradadas e humilhantes de existência humana têm quase sempre a participação ou aquiescência das “gentes de bem”, por que será?
E não são só os pobres que têm sua avaliação severa feita por essas “pessoas de bem”. Os gays (LGBTs em geral) também são hierarquizados pela sua atitude diante da sociedade. O bom gay é discreto; “fica na dele/a”; não fala da sua orientação sexual, não reivindica igualdade, não deseja trocar carinhos com o parceiro/a em público, não “ofende” os bons costumes pretendendo formar família, adotar crianças que eventualmente héteros abandonaram ou não puderam cuidar. Caso seja militante, ocupe a esfera pública, demande iguais condições de vida e cidadania, lute por direitos civis e dignidade, pelo direito de vivenciar plenamente sua identidade de gênero e orientação sexual, será demonizado, difamado e, em casos extremos, agredido ou até morto. A expectativa de vida entre os travestis é de 35 anos, dá pra acreditar? Enquanto a média da população brasileira gira em torno de 75 anos! Claro que há aí profundas desigualdades territoriais, de classe, sexo, gênero, origem étnico-racial (em Alagoas, por exemplo, é de 66 anos). Mas 35, nem na república dos Sarney ou dos Collor. Afirmam alguns, convictos – embora sem provas – que não há nada disso, que é só mimimi, que há uma ‘ditadura gay’ em curso etc.
A compreensão dos processos históricos que geram as desigualdades, a solidariedade ampliada (não só para “iguais”, familiares e amigos), a aceitação da igualdade na diferença como valor central, a promoção da justiça e de um projeto mais generoso de sociedade, aberto a tod@s, parecem horizontes distantes demais do Brasil atual. O “laboratório” desse país é visto nas mídias e redes sociais e em vários contextos que frequentamos diariamente.
Pesquisando nesse laboratório real e virtual (que também é concreto), concluo que muitas pessoas que se consideram a nata da sociedade ajudam a reproduzir, nos seus modos de vida, injustiças, segregações, elitismos, falsas meritocracias e muito sofrimento humano. A verdade que lhes escapa é que são sacolé de ki-suco se achando sorvete italiano de alta qualidade, para usar uma metáfora que eles provavelmente entenderiam. Porque sutileza e sensibilidade não é mesmo com eles. E agora a pior notícia: os sacolés podem ser qualquer um/a de nós, “bons cidadãos e tementes a deus”.
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- CATTANI, Antonio. Sofismas da riqueza. In: CATTANI, Antonio; OLIVEIRA, Marcelo (orgs). A sociedade justa e seus inimigos. Porto Alegre: Tomo, 2012.
O golpe dos canalhas
João Alberto Wohlfart – Filósofo e Professor universitário
Consumado o golpe de Estado contra a Presidente Dilma Rousseff, vai se desenhando aos nossos olhos o cenário que está por vir. Trata-se de um conservadorismo neoliberal levado às últimas consequências. Está muito claro que se trata de uma gravíssima ruptura constitucional, a dissolução da Constituição Federal, um atentado à soberania popular e nacional e a implantação de um projeto que o povo não escolheu nas urnas. As consequências do golpe concentra-se num projeto neoliberal ultraconservador cujos componentes elencamos na sequência.
– A podridão das instituições: As instituições foram criadas para cuidar da Democracia, da Constituição e da Soberania popular. Sempre pensamos que fosse assim, mas erramos rotundamente ao embarcarmos na certeza de que elas deveriam ser as vanguardas da nação brasileira agora estraçalhada por um governo golpista e assaltante. O supremo tribunal federal, o congresso nacional, o executivo federal, o judiciário, estão habitados por uma casta sacerdotal de assaltantes da Democracia que entregam o país aos caprichos do grande capital e da financeirização. Nestes poderes e nestas instituições habita uma elite patriarcal machista que dá o tom constitucional e jurídico para a eternização dos privilégios econômicos de uma pequena maioria.
– O fim da Democracia e da Constituição: Os períodos democráticos da História do Brasil são curtos e sempre interrompidos por golpes e ditaduras. Tivemos a graça de viver num período de 31 anos de frágil e jovem Democracia e de uma jovem Constituição que foi brutalmente assassinada aos 28 anos de idade. A garantia da soberania popular, as políticas públicas, o projeto de nação escolhido livremente pelo povo através do voto direto, a Soberania Nacional, a preservação dos recursos naturais, a inclusão social das massas historicamente excluídas foram quebradas pela chamada “ponte para o futuro” e pelo governo usurpador. O golpe se confirma pela profunda ruptura entre os que assaltaram o poder e o povo que não votou neles.
– Uma sociedade patriarcalista e patrimonialista: Desde os primórdios de nossa História nunca aconteceu uma ruptura social e política profunda capaz de estabelecer uma transformação estrutural radical no interior da sociedade. Esta elite sempre dominou e sempre mandou no país, sem abrir mão de um milímetro de seu poder e de seus privilégios. Com as manifestações de 2013, com a eleição do congresso mais conservador de nossa história e com o processo do fatídico golpe parlamentar esta elite ressuscitou com toda a força e está mostrando todas as suas garras. Ela sempre atuou de forma invisível, numa sutil manipulação ideológica, mas agora a violência é explicita e escancarada. O lucro sem medida, a grande propriedade privada e a acumulação patrimonialista são os grandes dogmas.
– A perda dos direitos sociais: Os sinais evidentes do governo golpista consistem em quebrar com os direitos sociais adquiridos ao longo da história com sangue e suor de tantas gerações e de heróis lutadores. Os direitos trabalhistas e previdenciários são alvos de assaltos e cortes, com o rebaixamento da população à vulnerabilidade social. O desmantelamento do SUS é um dos capítulos desta prática golpista. O congelamento dos gastos em saúde e educação, conforme amplamente divulgado, é a faceta mais cruel deste golpe marcado com o selo do assalto das conquistas sociais. Tudo sustentado por uma hipocrisia capitalista neoliberal para a qual os gastos sociais diminuem os lucros das empresas e do capital financeiro.
– A notícia padronizada: Os meios de comunicação social no Brasil estão em mãos de quatro ou cinco famílias bilionárias. Elas manipulam e massificam a opinião pública como elas querem. São o braço direito do judiciário para condenar seletivamente os críticos do projeto neoliberal e proteger os corruptos de investigação e condenação. Os meios de comunicação de massa imbecilizam a população e castram a capacidade de desenvolvimento de um pensamento crítico e emancipador. A incidência dos meios de comunicação no interior da estrutura social é tão intensa que a opinião se restringe a algumas frases de efeito, especialmente dirigidas contra algumas pessoas que defendem princípios democráticos.
– A pirataria das privatizações: A pirataria privatista é a razão principal de ser dos tucanos e da grande direita. Sabe-se que as privatizações serão intensas e abrangentes. Querem entregar as riquezas naturais do país às grandes multinacionais, tais como o Pré-sal, a Petrobrás, as terras, os rios, os recursos energéticos, as florestas, os aquíferos, os espaços aéreos. Diante deste assalto, o povo brasileiro não será mais dono de seu espaço, de seu território, de suas riquezas, de seu patrimônio espiritual e de sua inteligência. O golpe na Presidente Dilma Rousseff não é porque cometeu algum crime, mas porque zelou pela soberania nacional. O golpe foi protagonizado pela podridão da máfia que habita os poderes do Estado, pelos marajás do judiciário, por grandes empresários nacionais e internacionais, pelos meios de comunicação para protagonizar o espetáculo das privatizações.
– A subserviência internacional: Os governos Lula e Dilma proporcionaram para o Brasil uma soberania internacional e uma liderança global que nunca usufruímos nos 500 anos anteriores. Passamos de um país de fundo de quintal, obediente aos ditames do FMI e às grandes multinacionais, a um país soberano e senhor dos seus destinos. As relações bilaterais com a China, com a Índia, com a Rússia, com a África, com o MERCOSUL, com as nações latino-americanas representam uma significativa sistemática de horizontalização das relações internacionais lideradas pelo Brasil. Sabe-se da ruptura do governo golpista com este sistema e a volta da subserviência aos Estados Unidos e ao grande capital é o que nos espera. Depois da conquista histórica de superação da condição de colônia e da inserção soberana do Brasil no cenário geopolítico internacional, nos transformamos em objeto de exploração do grande capital. Pela tendência atual, seremos uma republiqueta de fundo de quintal.
– A precarização do trabalho: Na agenda neoliberal ultraconservadora, os primeiros que pagam o preço são os trabalhadores. Acentua-se a antinomia entre trabalho e capital, onde os trabalhadores são explorados para sustentar a lógica do capital. A especulação financeira como mecanismo de enriquecimento de alguns e de empobrecimento de uma grande maioria, vai ser a sorte dos trabalhadores explorados pela transformação de seu trabalho em lucros dos magnatas do capital financeiro.
– A financeirização da economia: Com o governo usurpador e golpista, o Brasil será epicentro da especulação financeira mundial. A tendência é a fragilização das estruturas econômicas, a degradação do sistema produtivo e a concentração dos recursos nas grandes instituições financeiras e megaempresas capitalistas. Recursos básicos que deveriam circular na economia real são deslocados das necessidades básicas da população e entregues à lógica da especulação como o grande meio de concentração de renda e exploração do povo. O resultado disto será o aprofundamento da crise econômica, o desequilíbrio social e ecológico.
– O imperialismo do capital: Está em cima de nós o grande monstro do capital, cuja ação é invisível aos olhos do senso comum. Parece um deus absoluto e invisível que invade todos os espaços humanos e sociais e reduz tudo à sua lógica. Está pronto para roubar a força de trabalho e esvaziar o trabalhador transformado em objeto de exploração. Está pronto para roubar as nossas riquezas naturais, desintegrar os sistemas ecológicos brasileiros e dissolver tudo na lógica capitalista. É uma espécie de pandemônio com ramificações econômicas, políticas, ideológicas, jurídicas, e que tem no supremo tribunal federal, no congresso nacional, no poder central e no ministério público os seus braços políticos e instâncias de legitimação.
– O fundamentalismo religioso: Hoje encontramos por aí fundamentalismos e conservadorismos dos mais reacionários e autoritários. É a faceta ideológica da ditadura parlamentar midiática. Os arquitetos do golpe estão revestidos da autoridade moral proporcionada pela bíblia e pela prática da religião, passando uma cortina de fumaça por cima do cinismo e da hipocrisia. A escola sem partido e o criacionismo são elementos religiosos e ideológicos deste fundamentalismo difundido para legitimar a nova ditadura. Os fundamentalismos são apoiados pelos Estados Unidos numa nova era de dominação norte/sul, com um doutrinamento místico-religioso para encobrir a sistemática da dominação econômica.
Estes são alguns traços do golpe dos canalhas, dos assaltantes do poder e da Democracia. Esta é a faceta do projeto cujos arquitetos têm ódio do povo e da Democracia. Para impedir absurdos desta natureza, somente com uma intensa e contínua mobilização popular. A direita raivosa conseguiu aglutinar um conjunto de forças que produziu o golpe e há um vasto campo para a imposição de seu projeto cujos componentes básicos foram aqui citados.
Escola sem partido e o sistema de museus
JORGE BARCELLOS
A educação brasileira recebeu a colaboração de diversas instituições que em seu interior criaram ações educativas. Fundações assistenciais, órgãos públicos descentralizados, sociedades de economia mista e principalmente museus, desde a década de 80, tomaram consciência da importância da educação e começaram a ofertar inúmeros programas e serviços, inclusive com traduções para turistas e atividades próprias para portadores de necessidades especiais.
Fundações de Assistência Social e Comunitária, seja em seus centros comunitários ou mesmo em instituições de recuperação de menores, incorporaram educadores em suas equipes; diversos órgãos públicos desenvolveram atividades de formação escolar, seja para criar vivências de aprendizagem sobre a correta destinação do lixo urbano (DMLU) ou os cuidados necessários com a água e o meio ambiente (SMAM) e museus públicos e privados ampliaram iniciativas educacionais com suas exposições. É o que se chama de Educação em instituições não escolares, realizada por centenas de educadores que acompanharam em seu meio o esforço legal que a democratização do pais promoveu com a Constituição Federal, de 1988, e foram capazes de incluir em seus programas e ações objetivos do Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990 e da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, de 1996.
Nesse contexto, educadores de museus colaboraram com a fixação do aluno no sistema de ensino pela produção de ações educativas fora do ambiente escolar incorporadas pelas escolas. E fizeram isso na maior parte das vezes sem qualquer investimento direto do poder público, sem fundo algum governamental a não ser os próprios recursos de suas instituições. Esse trabalho era muito importante para as escolas para aprimorar conteúdos de ensino, mas não era incomum que, frente a inexistência de quadros, muitos diretores tomassem a iniciativa de incluírem em seus programas atividades extra classe, incluindo visita à museus ou apelando para a prestação de serviços de profissionais de instituições públicas para suprir carências de carga horária de professores que não eram contratados pelo Estado.
Em meados de 2016, a ocupação de escolas públicas estaduais promovidas por estudantes que reividicavam melhorias na educação e nomeação de professores terminou por interromper o afluxo de estudantes em muitas instituições públicas. Parte destas reivindicações, como lembra a pesquisadora Russel Dutra da Rosa, pedia o arquivamento do PL 44/2016 que pretende transferir recursos públicos para Organizações Sociais privadas realizarem a gestão escolar, incluindo a contratação de diretores e professores sem concurso público e o PL 190/2015 do programa Escola sem Partido (ESP).
Boa parte dos professores não se deram conta nesta luta que os profissionais da educação que desenvolviam projetos longe do ambiente escolar também eram afetados pelo PL 190/2015. O projeto ESP ataca diretamente o trabalho não apenas de professores das escolas mas educadores de diversas instituições públicas, principalmente de museus, porque visam limitar a liberdade de expressão de qualquer professor. É o caso de muitos museus da cidade, que tem entre sua programação cultural a promoção de exposições de caráter “politico”, versando sobre Direitos Humanos, questões de gênero, etc. Segundo a proposta da lei, estes profissionais de ensino também podem ser afetados: é um erro conceber o projeto “escola sem partido” como um projeto voltado unicamente para escolas, ele quer atingir um tipo de educação critica desenvolvida em diversos espaços. A escola é apenas um deles. Não se trata apenas de afetar o trabalho de professores: ora, nossos museus contam com “monitores” cumprindo papel similar a de um professor pelo qual recebem treinamento, ou mesmo professores formados, geralmente em história, responsáveis pelas visitas. Por ser um espaço educativo, todo o trabalho de museus coloca-se sob o horizonte e alvo do projeto ESP. Diz Rosa: “O movimento atua em todas as esferas do governo, já tendo protocolado quatro projetos na Câmara dos Deputados e um no Senado, no âmbito federal. Na esfera estadual, são 12 projetos protocolados até o momento com um aprovado no estado do Alagoas. E na esfera municipal 2 projetos foram aprovados em Santa Cruz do Monte Carmelo-PR e Picuí-PB.”(Jornal Já, 2/08/2016).
O universo dos museus está em expansão no Brasil. Segundo dados do Ministério da Cultura, compreende 3.025 museus onde cerca de 48,2% possui área educativa própria encarregada de fazer exposições. Isso significa setores e equipes que produzem materiais educativos que podem se tornar alvo do programa ESP: textos de exposição, catálogos, informativos e material didático oferecido por professores e pesquisadores a outros professores. Se o projeto ESP veda conteúdos que estejam em conflito com as convicções religiosas e morais da família, uma exposição como “Os segredos da anatomia”, promovida pelo Museu de História da Medicina em 2015, pode ser considerada ofensiva às convicções morais da família por mostrar o corpo humano; o mesmo poderia se dizer da exposição “22 anos de Nuances”, realizada no Memorial do Rio Grande do Sul em 2013, que jamais poderia ter sido realizada porque tratar da luta pelos direitos LGBT em Porto Alegre, e, segundo os defensores da ESP, ofenderia (sic) as convicções de saúde sexual da família. O que ocorreria com as direções desses museus e seus professores? Seriam notificados extrajudicialmanete e coagidos através de penas e ameaças para a retirada de suas exposições como propõem o site do ESP? Seriam objeto de delação anônima de professores e monitores de museus visando cercear a livre iniciativa de programação de museus? Está claro o caráter fascista de tal iniciativa: eles violam o principio de autonomia tanto do pesquisador como do professor.
A própria forma de interpretar conteúdos de exposição seria posto em questão. O movimento ESP já demonstrou que, em qualquer situação, seu pressuposto é de que o capitalismo não se fundamenta em uma lógica que produz exclusão já que gera empregos. Como então explicar os processos de história dos mais diferentes níveis, seja história politica, econômica ou cultural sem tomar uma perspectiva de análise critica? Nesse sentido, toda a linha do tempo da exposição História do Rio Grande do Sul, do Memorial do Rio Grande do Sul precisaria ser revista. Nenhum pesquisador sério de nossas instituições de memória faz uma exposição sem uma pesquisa detalhada, aproximando perspectivas sociológicas, econômicas e políticas. Na concepção dos defensores da ESP, uma exposição que mencionasse o genocídio de populações indígenas seria considerada doutrinadora, assim como uma exposição sobre Direitos Humanos. Qualquer atividade que promovesse um debate na semana do negro que apontasse as diferenças quanto a taxas de desemprego também seria considerado ideológico.
O Movimento ESP está construindo o caminho para afetar não apenas o trabalho do professor em sala de aula, mas a programação e a pesquisa de exposições de diversos museus porque já retirou do Plano Nacional de Educação as metas e estratégias de promoção de equidade étnico- racial e de gênero. Se o ESP já chegou a processar o INEP, órgão responsável pelo ENEM por incluir o tema da violência contra a mulher na redação e considerar o critério de avaliação a respeito aos direitos humanos como doutrinação de esquerda, o que resta as instituições museológicas e aos profissionais dedicados em instituições como o Museu de Porto Alegre Joaquim Felizardo ou as atividades de recuperação de menores promovidas pelo CASE POA 1 da da FASE?
A questão é que os educadores que trabalham fora da escola também são protegidos pelo Art. 5 da Constituição Federal: tem direito a livre manifestação do pensamento (inciso IV); tem direito à livre expressão intelectual (inciso IX) e tem direito ao exercício de sua profissão se atendidas as exigências legais (inciso XIII). A ESP critica conteúdos que são necessários a formação cidadã promovidas por várias outras instituições que não apenas as escolas: aspectos de cultura afro-brasileira e indígena são temas frequentes de exposições em museus. Os defensores da ESP estão contra as metas do PNE que buscam a superação das desigualdades educacionais pelo fim da discriinação e defesa da diversidade e dos direitos humanos, justamente temas retratados em diversas atividades dos museus que integram o Sistema Estadual dos Museus do Rio Grande do Sul.
Tanto como nos professores da rede pública, o projeto ESP produz insegurança e desconfiança entre profissionais de educação. Por isso precisamos incorporar na Frente Nacional Escola Sem Mordaça, criada na última quarta-feira na UFRGS, os profissionais de Educação de instituições não escolares, pois num pais onde professores não são livres, nenhum educador o será.
Os tubarões estão de volta
Marino Boeira – Jornalista, publicitário e professor universitário
No passado, as pessoas chamavam de tubarões, os comerciantes que roubavam no peso, colocavam água no leite e “esqueciam” de lançar alguns ganhos em seus livros-caixa. Eram tubarões pouco agressivos, se analisados pelos critérios atuais.
Hoje, eles não são chamados mais de tubarões. São grandes empresários, que dispõe de equipes de advogados e economistas para encontrar brechas nas leis que lhes permitam pagar menos impostos e investir mais nas bolsas do mundo inteiro.
Patrocinam programas de aperfeiçoamento nas empresas, criam fundações com seus nomes para descarregar impostos que não querem pagar, são considerados benfeitores nas suas cidades, mas – muito além dos antigos comerciantes – são grandes tubarões, predadores do dinheiro público.
Como têm grande influência nos meios de comunicação, no parlamento e até no judiciário, em vez de condenados, são muitas vezes condecorados e transformados em exemplos de bons cidadãos.
Embora se conheçam os nomes de muitos deles, apontá-los é sempre um risco porque em torno deles existe uma grande rede de proteção e para defendê-los está sempre a postos um exército bem pago de advogados, publicitários e jornalistas.
Quando morrem, depois de uma longa e bem gozada vida, diferente em benesses do que a da maioria das pessoas comuns, viram nomes de rua e até de escolas e se transformam em exemplos para as próximas gerações.
Mas, como grandes predadores, eles acabam sempre deixando rastros que se tornam visíveis para quem estiver interessado em descobrir.
Segundo o Sindicato dos Técnicos Tributários da Receita estadual, que investiga estes rastros, a sonegação do ICMS no Estado já chegou a 4 bilhões e meio de reais apenas nos oito primeiros meses do ano.
Para que a população possa acompanhar como está sendo lesada, um painel chamado “sonegômetro” foi instalado no Largo Glênio Peres, em Porto Alegre, com a computação do dinheiro que o Estado deixa de arrecadar e que poderia ser usado para aumentar a segurança nas ruas e pagar melhor os professores.
No Brasil, segundo o Sindicato Nacional dos Procuradores da Fazenda, a sonegação já chegou a este ano a 340 bilhões de reais e a tendência é que chega 500 bilhões até o fim do ano.
E quem sonega são sempre os grandes empresários e não mais aquele dono boteco do bairro.
Os alienados que saem as ruas, batendo panelas e protestando contra a corrupção de alguns poucos, esquecem de conferir os números que poderiam orientar melhor sua indignação.
Um deles, de uma fonte insuspeita, o Departamento de Competitividade e Tecnologia da FIESP, diz que o custo médio da corrupção no Brasil, em valores de 2013, foi de 67 bilhões de reais.
É só comparar e ver quem faz mais mal ao Brasil.
Corrupção: 67 bilhões de reais
Sonegação: 500 bilhões de reais
Enquanto isso, Temer e seu Ministro da Fazenda pretendem fechar as contas da União arrochando salários e aumentando a idade das aposentadorias.
Faz sentido, já que um dos objetivos do golpe que levou Temer ao Palácio do Planalto é impedir de vez qualquer ideia que ponha em risco os ganhos dos nossos grandes tubarões.
Estratificação do imposto de renda por faixas de salários mínimos
Róber Iturriet Avila
Pesquisador em Economia da FEE
João Batista Santos Conceição
Bolsista FAPERGS/FEE
Desde as primeiras sistematizações mais acuradas sobre o funcionamento da economia, ainda no século XVIII, preconiza-se que os tributos devem ser proporcionais à renda dos indivíduos. Naquela mesma época, ministros de Estado que propunham tal configuração eram desalojados de seus postos por forças refratárias a essa perspectiva, como ocorreu com Anne Robert Jacques Turgot.
No Brasil Império, houve a primeira experiência de um imposto sobre a renda dos brasileiros. As alíquotas progressivas variavam entre 2% e 10% sobre os rendimentos dos servidores públicos. Somente em 1922, após amplos debates, a proposta de um real e definitivo imposto sobre a renda foi aprovada no Congresso Nacional, passando a vigorar em 1923 (BRASIL, 2016).
O imposto de renda brasileiro nasceu com alíquotas progressivas relativamente baixas, uma mínima de 0,5% e uma máxima de 8%. Como em outros países, houve um processo de ampliação da quantidade de alíquotas e elevação dessas à medida que mais serviços foram absorvidos pelos Estados nacionais e regionais. Em 1961, o então Presidente Jânio Quadros modificou a alíquota máxima de 50% para 60% dos rendimentos. Um ano depois, já no governo de João Goulart, a alíquota máxima subiu para 65%, alcançando o maior percentual histórico. O tributo contava com 14 faixas de alíquotas progressivas, as quais iniciavam em 3%.
Nos governos militares ocorreu o primeiro aceno para a estagnação e, posteriormente, para a redução da progressividade tributária. Uma das medidas desses governos foi a diminuição da alíquota máxima do imposto de renda concernente às pessoas físicas para 55% e depois para 50% dos rendimentos. Outra atitude tomada foi a redução de 14 para 12 faixas de rendas tributadas, número que permaneceu durante a maior parte do regime militar.
A partir da égide da liberalização financeira, na década de 80, assentou-se a concepção de que a renda deveria ser tributada linearmente, ao passo que o capital deveria ser desonerado para atrair fluxos de investimentos. Tais transformações fizeram os impostos sobre a renda e sobre o capital caírem drasticamente.
A Constituição de 1988 ampliou o Estado Social, mas as transformações, do ponto de vista da arrecadação, foram regressivas. Uma das primeiras mudanças foi a redução de oito para duas faixas de imposto de renda. Já a alíquota máxima saiu de 45% para 25%.
Antes de 1995, o País tributava os dividendos de forma linear e exclusivamente na fonte, com uma alíquota de 15%, independentemente do seu volume. Em 1996, com a aprovação da Lei n.º 9.249, a distribuição dos lucros e dos dividendos às pessoas físicas passaram a ser isentas.
A divulgação dos dados de imposto de renda ocorrida recentemente tornou factível a mensuração das disparidades geradas pelo tratamento diferenciado dos rendimentos. Na medida em que os dividendos são isentos de impostos, os segmentos de renda mais elevados da sociedade contribuem proporcionalmente menos ao erário. O gráfico explicita que a base de rendimentos tributáveis de 2013 passa a cair para os indivíduos que receberam mais do que três salários mínimos. Inversamente, os rendimentos isentos passam a se elevar a partir dessa faixa. O pico de isenção de rendimentos em relação à renda é para quem recebeu entre 240 e 320 salários mínimos (R$ 162.720,00 e R$ 216.960,00). Ficaram imunes de impostos 68,81% das receitas desses indivíduos.
Como consequência, o imposto devido em relação à renda cresce até a faixa de quem recebe de 30 a 40 salários mínimos e depois passa a recuar, conforme explicitado também no gráfico. Os rendimentos isentos de 2013 alcançaram R$ 636,39 bilhões, sendo R$ 231,30 bilhões referentes a lucros e dividendos distribuídos, enquanto o imposto devido total de todos os declarantes foi de R$ 115,24 bilhões, ou seja, abaixo do valor dos rendimentos isentos. Cabe destacar que as isenções de dividendos beneficiaram 2,1 milhões de pessoas, dentre elas as 20,9 mil mais ricas do Brasil (0,01%), que possuem patrimônio médio de R$ 40 milhões e que pagaram de imposto 1,56% de sua renda total.
Chama atenção também, nas declarações de imposto de renda, o volume de subsídio existente em relação aos gastos privados com saúde e educação. No mesmo ano em análise, as despesas declaradas chegaram a R$ 69,35 bilhões, 60,18% do imposto devido total, ponderando-se que a dedução não é integral. Adicionalmente, verifica-se que as alíquotas de imposto brasileiras são relativamente menores, seja na comparação com os países desenvolvidos, seja com os demais países da América Latina, conforme exposto na Carta de Conjuntura FEE de maio de 2015.
Com a estratificação da contribuição de imposto de renda por faixas de salário mínimo, fica explícito que as alterações na legislação tributária auxiliam a consolidar um quadro de elevada concentração de renda, com destaque para a isenção de impostos sobre os lucros e dividendos e para o subsídio que o Estado concede aos gastos privados em saúde e educação às famílias mais ricas do País.