O que explica a crise?

Giovane Martins*
Ainda não chegamos à metade de 2016 e, me arriscaria a dizer, já poderíamos calcular mais notícias sobre escândalos políticos nesta primeira metade do semestre do que em vários momentos parecidos da nossa história. O Brasil, que até pouco tempo era visto como o país do Carnaval e do futebol, agora ocupa as manchetes políticas do Brasil e do mundo quase que diariamente, com novas revelações em escândalos de corrupção – revelações que já foram capazes de levar para a cadeia alguns dos empresários mais ricos do país e de declarar a “quase morte” política (pois no fim das contas só a população tem o poder de declarar a morte política de alguém de forma definitiva) de vários envolvidos nos esquemas.
A crise política que estamos vivendo não começou ontem e provavelmente não terminará amanhã. Provavelmente também não começou em 2013, embora tenha sido neste ano que os primeiros protestos populares de grande magnitude tenham ocorrido durante o período frequentemente denominado de “lulismo”. Uma crise política desta magnitude não surge do nada. Embora na superfície esteja tudo correndo aparentemente bem, é perfeitamente possível que uma profunda sensação de desgosto e um crescente desejo de mudança estejam presentes nas consciências individuais.
Por isso seria um trabalho duro especificar onde começa a crise política que nos afeta, e é um tiro no escuro saber o que virá depois. Qualquer tentativa de se apontar uma causa para explicar o que está ocorrendo agora acabaria com o status de meia-verdade: talvez por isso as correntes ideológicas tradicionais tenham tanta dificuldade para justificar seus diagnósticos. Ao contrário de outros eventos históricos em que era possível delinear claramente onde uma revolta começa e quais são seus pontos de transição, fazer isso hoje é correr o risco de se cair na ideologia, na resposta que já estava engatilhada a priori.
Mas o que torna nossos tempos tão diferentes de outros eventos políticos históricos?
A filosofia, as ciências sociais, a comunicação social e outras áreas que frequentemente se comprometem com o debate político vêm desenvolvendo nos últimos anos uma boa gama de trabalhos a respeito de um novo mundo (ou de uma nova forma de se relacionar com ele) que ainda não entendemos bem – embora nosso contato seja permanente. Estamos na era do ciberespaço, das novas tecnologias da comunicação que a cada dia trazem novos recursos, que mudam a forma como nos relacionamos e tornam a atividade política acessível a qualquer um que tenha um computador ou um smartphone com internet. A clássica relação causa-efeito se torna completamente incerta em um mundo em que vários eventos significativos ocorrem simultaneamente, em que causas que desconhecíamos podem ganhar força em minutos e em que a informação ganha autonomia em relação aos sujeitos – quem precisa procurar informações quando elas aparecem na sua timeline inesperadamente?
Nossa imprensa tradicional, nossa democracia e as nossas instituições estão tendo que lidar com esse conjunto de novos fatores. A liberdade que a democracia nos proporciona, por sinal, é fundamental para que saiamos da crise sem qualquer violência ou derramamento de sangue, como já ocorreu antes nesses 30 anos de democracia. É essa liberdade que permitiu a cultura de participação política que estamos assistindo diariamente. Por mais que se pense o contrário, cada vez mais parece ser o povo o motor político principal, e não as classes médias e políticas.
Meu objetivo nesta coluna será trazer para o debate político alguns desses temas que nos ajudam a entender o momento político que ocorre no Brasil e em outros países do mundo, mas que ao mesmo tempo quase que nos impossibilitam de fazer análises sistemáticas que apontem causas e efeitos claros e distintos sem se cair em respostas velhas para problemas novos. Para isso, conto com a participação do leitor. O debate político, agora, é de todos!
* Giovane Martins é estudante de filosofia da PUCRS, pesquisador bolsista do CNPq e do CEFA – Centro de Estudos em Filosofia Americana.

O ambiente do golpe: o Brasil midiatizado e colonialista e dois filmes atuais

Guilherme Castro*
O ambiente cultural em que prosperou o golpe mostra o Brasil altamente conectado nas mídias de hoje, mas alienado. Um país tão ‘dentro’ do mundo contemporâneo e, ao mesmo tempo, ainda colonialista.
O papel e os efeitos da mídia na crise política brasileira vão além e são mais profundos do que a manipulação direta e generalizada pró golpe das grandes empresas de comunicação. Uma das maiores estranhezas desses dias é perceber nas próprias redes sociais, entre debates e mesmo em manifestações de rua, os efeitos do que está sendo chamado de ‘a bolha midiática’. Os espaços de contato e debates entre diferentes são mínimos, e conversamos sempre entre iguais. A sociedade midiática é radical ao dar forma ao Brasil de hoje: atua um estranho e contemporâneo efeito de impermeabilidade e transparência da diferença. É o que explica o prof. Gelson Santana em Representação e formas da diferença na cultura midiatizada de hoje (2016):  “a experiência do saber desaparece no fluxo incessante de informação” e, complementa, a estratégia é “sermos encapsulados pela midiatização da cultura”. Esses traços sensíveis marcam o Brasil e a crise atual: a espécie de ‘revolução de direita’ que pretendem em pleno 2016 se ampara na ampla massificação e alienação. É presente, por exemplo, que a maioria dos alunos chegue à graduação com quase total desconhecimento da história e da realidade brasileira, por mais próxima que esteja.
A resistência, por isso, é também e sobretudo entender os acontecimentos históricos e ter memória – papel e valor centrais da produção artística. Dois filmes recentes, O mercado de Notícias (Jorge Furtado, 2014) e Que horas ela volta? (Anna Muylaert, 2015), nos ajudam a entender o ambiente cultural e midiático da crise política que o Brasil atravessa.
Expressão do estilo e modo de pensar de Furtado, O Mercado de Notícias mistura documentário, ficção, gêneros e ironias ao tema de fundo: o filme procura desvendar o papel do jornalismo na sociedade brasileira atual. Há duas linhas narrativas principais: a série de entrevistas com grandes nomes da imprensa, e a representação e ensaios da peça teatral O Mercado de Notícias (The staple of News), escrita pelo inglês Ben Jonson, que em 1626 já ironizava e criticava as mazelas do incipiente e recém surgido jornalismo.
O filme O Mercado de Notícias vai ao ponto: qual o poder político e como operam o jornalismo e a grande mídia no Brasil? Narrando casos conhecidos de erros ou manipulações grosseiras da mídia (exemplos do falso Picasso na repartição do INSS, em Brasília, e da Escola Base de São Paulo) e com as entrevistas sobre o dia-a-dia da profissão, o longa traça um quadro em que vigora o mau jornalismo, cujo resultado notável é uma massa de pessoas desinformadas.  A apuração, a difícil busca da certeza, da objetividade e da isenção, o compromisso ético com os envolvidos e com o público, tornam a profissão do jornalismo altamente pulsante no dia-a-dia. Mas essas práticas profissionais, que já eram raras, desaparecem das grandes mídias. Fica evidenciada a crise da profissão.  Quando o jornalismo mercadoria abandona qualquer disfarce e se joga ao golpe, hoje, dois anos após o lançamento, O Mercado de Notícias se torna uma obra essencial, um excelente filme sobre o nosso tempo.
Igualmente revelador, embora de forma muito diferente, é  Que horas ela volta?, de Anna Muylaert. O filme narra a situação de conflito que se cria quando a filha da empregada doméstica Val/Regina Cazé é recebida e se hóspeda na casa dos patrões (a família de Dona Bárbara/Karine Teles). O filme teve grande repercussão porque o público se identifica com as personagens do microcosmo social que a narrativa constrói, muito típico e revelador do Brasil de hoje. Na família burguesa, a empregada doméstica convive no dia-a-dia, numa relação de trabalho que possivelmente só exista nesse país e envolve fortes vestígios do servilismo típico das sociedades coloniais – situação difícil de explicar a um estrangeiro, mas que todos aqui conhecem. Entre os conflitos do filme, a filha de Val, vinda do interior do Nordeste, é inteligente, curiosa, focada, e, por isso, passa no difícil vestibular que faz, em contraste à falta de motivação e infantilidade do jovem filho dos donos da casa. Que horas ela volta? mostra o que talvez seja a maior de todas as novidades trazidas pelas políticas sociais: a possiblidade de ascensão entre classes, e o desgosto que causa nos que se apegam, mesmo que simbolicamente, a privilégios arcaicos.
O filme constrói o ponto de vista raro da cozinha da casa; pelo olhar simples, mas sábio, da doméstica Val, conhecemos o vazio de afetos em que se tornou a família burguesa de Bárbara. É um drama social, profundo e até difícil de digerir, por certeiro na crítica que faz, mas o tom é jocoso, irônico e leve.
A diretora Muylaert apreendeu algo que infelizmente constitui um traço muito atrasado do Brasil. A personagem Bárbara tem o rei na barriga, expressão de uso corrente, que expressa um comportamento típico. Revela um estranho vestígio material do tempo do Império, ainda um pensamento escravocrata, que ficou em nossa cultura com grandes consequências também na política.
Um dos motivos do golpe, a rejeição, por parcela importante, de qualquer ação de Governo que diminua a enorme desigualdade social histórica do país está ligado também a esse traço pré-republicano ainda tão marcante.
O Brasil entrou no contemporâneo, está inteiro no mundo midiático, tomado e fortemente constituído por um novo tipo de sociedade e cultura. Ao mesmo tempo e de modo paradoxal segue colonialista, no âmago. Essa força do passado tenta se sobrepor ao presente.  Que seja espécie de último suspiro, e que a superação do golpe, que acontece sobretudo nas ruas e nas mídias, traga avanços muito maiores na construção da Democracia. Há essa chance.
[avatar user=”X-CDD – Guilherme Castro” size=”thumbnail” align=”left” /]* Guilherme Castro é cineasta e jornalista, professor na ULBRA, e doutorando em cinema na Universidade Anhembi Morumbi/SP. Presidiu o Conselho Estadual de Cultura e a Associação de Cineastas do RGS (APTC-RS).
 
 

Confissões: Quem viver verá

[avatar user=”X-CDD – Paulo Timm” size=”medium” align=”left”]Paulo Timm*
Vai cair (de podre:? de inanição? Não sei)
1. Pela LAVAJATO como símbolo de todo um conjunto de amadurecimento institucional no Estado de controle de contas.
2. Pelos sacolejões internos: Paulinho da Força Newtão, e vem mais., com a FIESP contra a CPMF. Não ha coerência interna mínima. O próximo a bater será o Senador Cristovam.
3. Pelo clamor que se está levantando na opinião púbica em decorrência das mensagem emitidas pelas primeiras IMAGENS.
5. Pela combatividade até inusitada do PT e aliados, feridos como tigres no canto da sala e dispostos a combater ou sumir da cena política brasileira.
6. Porque está mais FORA DA REALIDADE que a própria Dilma em seu labirinto. Não está vendo nada.
7. Porque a crise fiscal no curtíssimo prazo é gravíssima e não saberão ENCAMINHAR isso além da ideia de reinventar a CPMF em plena campanha eleitoral pra Prefeitos. Suicídio.
8. Porque Temer é INDECISO e fraco. Politicamente fraco. Confunde exercício do Governo como construção hegemônica com reunião de petit comitê.
9. Porque são MENOS DO MESMO, que vem sendo rejeitado desde junho de 2013.
10. Porque há ESPERANÇA de que uma nação ansiosa para nascer para “outra coisa”, acabará NASCENDO. A vida, enfim, é sempre mais vigorosa do que a morte. O Império escravocrata morreu. A Republica Velha do bico de pena morreu. A Ditadura Militar morreu. A Nova República do redemocratização controlada acabou de ser enterrada.
Querem mais?
Eis o recado de Camões: ” O Rei fraco faz fraca a sua forte gente” . Mas ela reage. Quer viver…
* Economista, professor (aposentado) da Universidade de Brasilia, Fundador do PDT e candidato ao Governo por este partido em 1982 (GO) e 1994 (DF).

No rastro da nova-velha direita e o giro reacionário do senso comum brasileiro – 1

bruno_KQBruno Lima Rocha*
Introdução
Neste primeiro artigo, inicio uma breve série tentando mapear a nova (velha) direita. O objetivo deste e dos textos que seguirão é tentar identificar a origem contemporânea do giro reacionário do senso comum brasileiro e suas similitudes com o conservadorismo dos EUA, e, por consequência, a transferência do léxico, do glossário e das identidades políticas gestadas no interior do sistema político do Império. Entendo que, se identificarmos os focos domésticos e internacionais do pensamento conservador, reacionário, ultraliberal e com laços neofascistas, estaremos aptos a tentar estancar o que venho afirmando como “fedor de linha chilena” tendo vasto crescimento no Brasil.
A ascensão do reacionarismo nos últimos dez anos: a aliança entre neopentecostais e a extrema direita militar e policial 
O Brasil vive um momento de ascensão de ideias conservadoras, a maior parte destas transitando pelo ultraliberalismo, podendo ser rastreada esta linha como equivalente às da direita do Partido Republicano (ou seja, a extrema direita de corte neoliberal) e combinadas com o pensamento conservador, ou do pacto neoconservador. Este que se avoluma nos EUA a partir da vitória de Richard Nixon em 1968, reforçada com a Doutrina Reagan e a desregulação financeira – primeiramente em 1973 e depois, ao longo dos anos ’80 do século XX – e por fim, ganhando dimensões absurdas, durante o primeiro mandato do governo democrata de Bill Clinton (1993-2000). A nova direita republicana já constava na convenção deste partido quando George H. W. Bush (Bush pai) era considerado, para a constelação política conservadora do período, como o menos mentecapto dos pré-candidatos da bolha conservadora para a Casa Branca. Da corrida eleitoral no Império, em 1992, passando pela famigerada reeleição de Bush Jr. Em 2004, até a nova onda de golpes brancos na América Latina temos como identificar a transferência da identidade política estadunidense para nosso país.
No Brasil, somos atingidos pela combinação dos neoconservadores no comportamento – uma espécie de reação contra a ação afirmativa e os direitos de reconhecimento – e a primazia do capital financeiro e a cruzada dos neoliberais contra o pacto keynesiano que atinge o Brasil durante o lulismo. Esta soma, bastante explosiva, tem na classe média brasileira, e em sua classe média alta, um bastião mobilizado através das redes sociais e que pode ter ou não algum contato com o fascismo brasileiro na versão contemporânea.
É como se fosse um jogo com rodadas simultâneas, onde os reacionários no comportamento somam viúvas da ditadura e por vezes se encontram nas pautas programáticas de inspiração totalitária e obscurantista, como a famigerada “escola sem partido”, ou campanha contra a doutrinação nos aparelhos ideológicos de reprodução. Por vezes os ultraliberais se encontram, domesticam as “feras” medievais brasileiras, e noutras, de forma autônoma, operam como “cavalo de batalha” da agenda neoliberal de desmonte das capacidades de intervenção estatal na economia capitalista e na regulação do agente econômico por sobre a vida cotidiana.
Podemos identificar os movimentos ultraliberais como as empresas de marketing digital, a exemplo da empresa líder, o Movimento Brasil Livre (MBL). Tais instituições privadas respondem ao agendamento da Fundação Koch (charleskochfoundation.org) e da Rede Atlas (atlasnetwork.org) e demandam um texto específico, ainda nesta série. Já quanto ao neofascismo brasileiro, este é manifesto pelo líder caricato embora perigoso, deputado federal Jair Bolsonaro (PSC-RJ) e sua aliança com as estruturas do pastor Everaldo (Assembleia de Deus em Madureira) e o deputado federal Marco Feliciano (PSC-SP,que comanda uma matriz autônoma e dono da rede de franquias da fé, o Ministério Tempo de Avivamento). Estes dois operadores político-religiosos de matriz econômica (no mercado da exploração da fé) se aproximam, afirmo, perigosamente, de um programa ultraliberal (vinculando seu programa ao do Tea Party), com as viúvas e viúvos da ditadura – tendo a bandeira do reconhecimento dos torturadores e repressores como “heróis nacionais” – e um culto ao revanchismo da linha dura diante da transição negociada comandada por Ernesto Geisel e Golbery do Couto e Silva.
Ainda mais obscena é sua liderança ideológica, com o ainda mais caricato e lunático astrólogo Olavo de Carvalho. Este pregador virtual, mescla um libelo em defesa da “civilização judaico-cristã” para fortalecer ambas as posturas acima narradas – neopentecostal e de extrema direita policial militar. A pregação anti-esquerda e anti-latinoamericana do “professor” Olavo de Carvalho, produzindo demências por internet a partir do estado da Virgínia (EUA), surpreendentemente traz consigo centenas de milhares de seguidores. Olavo é em si mesmo a síntese desta perigosa caricatura da nova direita brasileira, e sua pregação de “escola sem partido”, onde afirma que a doutrina se diluiu no comportamento pregado em sala de aula ao ponto de sequer ser explicitada. Ou seja, se a acusação for válida, então o comportamento orientado pela técnica a serviço do mundo do trabalho controlado pelo capital, é a única válida. O fascismo social existente nestas afirmações está na moral conservadora, na negação do outro (ausência de alteridade), na afirmação da norma “ocidental” (judaico-cristã, capitalista, conservador, heteronormativa) como valor único e na disposição para gerar o caos para que deste surja um novo sentido de ordem.
Uma consequência tangível do revigoramento das viúvas da linha dura
É este tipo de demência, retroalimentada pelos programas policialescos e editoriais reacionários de TV aberta – comandados por gente como José Luiz Datena e Raquel Sherazade – acaba por ter dois efeitos políticos simultâneos. Um aponta para a redução da maioridade penal e uma defesa da violência estatal sem questionar o falido e corrupto modelo de polícia brasileiro. O outro foi visto de forma estarrecedora na defesa da intervenção militar ou a volta da ditadura. Tais defensores da ditadura afirmam que todo o pensamento de esquerda – mesmo o de centro-esquerda -, em última análise, não seria compatível com a democracia parlamentar e estaria o tempo todo promovendo a luta ideológica para controlar instituições reprodutoras dos aparelhos centrais – como escolas e universidades – e assim aplicar uma visão de mundo centrada na luta social e no coletivismo. A direita considera isso uma espécie de “totalitarismo” e chega a aceitar a possibilidade de que, na ausência de ordem pública, tenhamos uma intervenção militar (o texto constitucional, no seu artigo 142, tem realmente alguma leitura passível de controvérsia). Neste sentido, ao negar a possibilidade de que qualquer pensamento de esquerda possa conviver em democracia parlamentar e na concorrência pelo poder do Estado burguês, há similitude na análise dos ultraliberais e da extrema direita policial e militar. Daí viria à convergência destas duas formas de pensamento na defesa da suposta “escola sem partido” e de absurdos como o “ensino neutro das ciências humanas e sociais”. Se observarmos a movimentação dos apoiadores de Bolsonaro nos campi da UFRGS, estes afirmam que “a universidade não é um espaço para lutar, mas somente para estudar”. Repetem de forma bastante concreta um dos lemas da ditadura, “estudante estuda e trabalhador trabalha”, aplicando uma fórmula de obediência social cuja única forma de mobilidade seria através da acumulação de capital ou na seleção “meritocrática”.
Mesmo observando que não há nenhuma exequibilidade por parte das Forças Armadas em fazer nada parecido como intervenção militar constitucional, há um ponto de convergência. O governo “interino” – no meu entender, golpista – trouxe o retorno dos militares GSI (Gabinete de Segurança Institucional) e o seu comando a cargo do general de exército (da ativa, quatro estrelas) Sérgio Westphalen Etchegoyen. Esta medida, além de apontar um enlace do presidente golpista Michel  Temer com a ala mais reacionária da Força Terrestre na ativa, seria uma espécie de acerto de contas com a Comissão da Verdade. Esta fora uma tímida comissão e cujo relatório final foi bastante criticado por militantes históricos dos direitos humanos. Mesmo assim, ao mencionar o nome do general Leo Guedes Etchegoyen como um dos 377 agentes do Estado diretamente responsáveis por crimes contra os direitos humanos, atiçou o grito de “revanchismo” por seu filho, general da ativa que ocupava desde março de 2015, o importante cargo de chefe do Estado-Maior do Exército.
Ao se manifestar contra a Comissão da Verdade mesmo estando na ativa, o general Etchegoyen abrira um perigoso expediente. Sua indicação para o cargo de ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional termina soando como um reforço das viúvas da caserna, aproximando-os dos militares da reserva que têm discurso de mágoa em relação ao período pós-Anistia.
* Bruno Lima Rocha é professor de ciência política e relações internacionais.
(www.estrategiaeanaliseblog.wordpress.com / blimarocha@gmail.com para e-mail e Facebook)
 

Revitalização desafia governos há três décadas

Naira Hofmeister
Desenvolver um projeto que reaproxime a população de Porto Alegre da área mais emblemática da Capital do Rio Grande do Sul, o Cais Mauá – região onde a cidade nasceu e que foi o seu motor de desenvolvimento durante anos –, é um desafio que mobilizou prefeitos e governadores nos últimos 30 anos.
Até os anos 60, não havia motivo para pensar em alternativas de uso para o Cais Mauá que – junto com o Cais Navegantes – dava ao porto de Porto Alegre o título de mais rico e movimentado do Rio Grande do Sul.
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Mas a decisão de priorizar o transporte rodoviário – tomada ainda nos anos 50 – aliada à deficiência de calado do Guaíba reduziram as atividades e criaram as condições necessárias para o debate sobre a transformação da área, que é tombada pelo patrimônio histórico e cultural nacional e municipal, em um grande complexo turístico.
Desde os anos 80 foram várias tentativas, mas todas ficaram pelo caminho.
Sucumbiram diante de entraves técnicos, financeiros e até mesmo por disputas político-partidárias – maximizadas pelo fato de a área sofrer interferência das três esferas governamentais: está em solo porto-alegrense, portanto, deve seguir o regime urbanístico determinado pela Prefeitura; foi construída pelo Governo do Estado, que regula a operação da atividade portuária através da Superintendência de Portos e Hidrovias (SPH); mas é zona de interesse nacional e área de Marinha, portanto, responde também à Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq) e à Secretaria de Portos da Presidência da República.
A mais recente iniciativa para dar um novo uso ao Cais Mauá começou em 2007, com um chamamento do governo do Estado – então sob a batuta de Yeda Crusius (PSDB) – para que a iniciativa privada apresentasse propostas de “manifestação de interesse” com projeto de uso e ocupação.
No final de 2010, poucos dias antes de encerrar sua gestão, Yeda assinou o contrato com o único concorrente que apareceu na licitação, aberta poucos meses antes, apesar de haver uma tentativa do Governo Federal de impugnar judicialmente a concessão.
Do projeto previsto para o Cais Mauá pouco se conhece além do esboço feito a partir dos limites construtivos previstos na Lei Complementar 638/2010 – texto, aliás, que tem sua validade questionada por trazer em si uma cláusula condicionante: “Os regimes urbanísticos (…) vigorarão até o dia 31 de dezembro de 2012, sendo assegurados aos investidores que licenciarem e iniciarem suas obras”.
Mais de cinco anos se passaram desde a assinatura do contrato e entre processos judiciais, investigações do Ministério Público e questionamentos da população que cobra transparência no processo, as poucas manifestações do consórcio Cais Mauá do Brasil S.A. são referentes ao adiamento do início das atividades.
O empreendedor não concede entrevistas. O poder público dificulta o quanto pode o trabalho de reportagem, há uma espécie de lei do silêncio sobre o caso.
Com todos os prazos previstos no contrato inicial vencidos, o Cais Mauá é atualmente uma área cercada e vigiada por um grupo de seguranças privados. Entradas e saídas são regradas e limitadas à área onde opera a linha do catamarã.
Este trabalho é uma tentativa de jogar luzes sobre as várias perguntas formuladas pela cidadania ao longo dos últimos anos sobre uma obra prevista para um dos espaços mais queridos e valorizados de Porto Alegre, à beira do Guaíba e de frente para o famoso pôr-do-sol.
Foi financiado graças às doações de cerca de 200 leitores através de uma campanha de financiamento coletivo realizada em novembro de 2015.
Projeto atual aumentou área e reduziu  arrendamento
Quem esteve mais próximo de concretizar um projeto na área foi o ex-governador Antonio Britto (na época PMDB 1995-1998), que lançou o concurso público Porto dos Casais com projeto arquitetônico e plano de negócios, deu início aos estudos de impacto ambiental e chegou a formular um texto para licitar a área à iniciativa privada.
Britto não foi adiante porque não conseguiu licenciar a obra na prefeitura – os técnicos da administração municipal reprovaram a intenção de ampliar o aterro na área próxima ao Gasômetro, pois comprometeria a navegação do Guaíba.
Mas para Felipe Pacheco, um dos integrantes da equipe vencedora do concurso (que era composta pelo veterano Alberto Adomilli e quatro recém-formados: Daniela Corbellini, Eduardo Neves e Patricia Moura, além de Pacheco), o que barrou o projeto foi a rusga política entre Britto, que concorreria à reeleição em 1998, e o PT que comandava Porto Alegre (e assumiria, em 1999, também o Governo do Estado com Olívio Dutra). “Foi ideológico”, lamenta o arquiteto.
Explicações à parte, tanto o processo como o próprio projeto arquitetônico previsto nos anos 90 guardam semelhanças e permitem comparações com a atualidade, capazes de explicar muitos pontos ainda pouco claros da revitalização pretendida.
A mais evidente delas envolve o valor e o tamanho da área arrendada. Enquanto o custo da revitalização nos anos 90 foi calculado em R$ 104 milhões – incluindo a construção de shopping, torres e hotel – o arrendamento da área à iniciativa privada estava avaliado em mais de R$ 6 milhões ao ano.
Tomando como base esses valores, porém atualizados segundo o IPCA para julho de 2010, quando foi lançada a licitação de revitalização do Cais Mauá, o investimento estaria calculado em R$ 260 milhões e o arrendamento em R$ 15 milhões.

Arte: Andres Vince
Arte: Andres Vince

Porém, o edital de 2010 previa investimento mínimo de R$ 350 milhões – mais do que a inflação do período –, enquanto o arrendamento estava avaliado em R$ 2,5 milhões – esse pagamento foi recalculado em 2011 para R$ 3 milhões ao ano, ainda assim, corresponde à quinta parte do valor de 1996 corrigido pela inflação.
Na contramão do preço pago, a área concedida para a iniciativa privada aumentou. Há 20 anos, eram aproximadamente 140 mil m², enquanto hoje, o consórcio tem nas mãos 181 mil m², quase um terço a mais.
Cada metro quadrado do Cais Mauá custará ao empreendedor menos de R$ 1,40 por mês enquanto o valor médio de aluguel na região, segundo os Dados do Mercado Imobiliário proporcionados pela corretora de imóveis virtual Viva Real, é de R$ 24,00.
Se o valor pago pelo arrendamento é menor, também é verdade que o custo da obra segue aumentando. Um estudo da Faculdade de Administração da PUC-RS do ano passado, encomendado pelo Cais Mauá, previu que seriam necessários R$ 675 milhões em investimentos para colocar o projeto em pé – o empreendedor não confirma os valores porque se recusou a conceder entrevistas para esta reportagem.
“Nossa proposta era menos privatista”
O concurso público organizado pelo Governo do Estado em 1996, com a chancela do Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB-RS), teve 137 equipes inscritas. Alguns arquitetos previram parques públicos para o local, mas os vencedores tinham uma proposta bastante semelhante à atual, com caráter comercial.
“Nosso projeto era o mais qualificado em termos urbanísticos e arquitetônicos e tinha comprovada viabilidade financeira, por isso vencemos”, afirma Felipe Pacheco, que bolou o plano de acordo com o que o Estado havia sugerido: o empreendimento não poderia depender de verbas públicas para se manter.
Nos desenhos que Pacheco ainda guarda em um canudo no seu escritório no bairro Petrópolis, aparece um shopping com dois pavimentos ao lado da Usina do Gasômetro – local onde também seriam construídos um hotel 5 estrelas, um centro empresarial de alta tecnologia (o grande chamariz era oferecer conexão de internet já instalada) e um teatro para a Orquestra Sinfônica de Porto Alegre (Ospa), que seria o único investimento feito pelo poder público.
Assim como a atual proposta, o edifício sede do Deprc (hoje SPH) seria transformado em um hotel e os armazéns estariam divididos entre aqueles que seriam ocupados por atividades culturais (pórtico e A e B), shopping de design e um parque dedicado ao Mercosul. O B3 abrigaria um terminal hidro-ferroviário.
Proposta de 1996 tinha muitas semelhanças com a atual, prevendo shopping, torres comerciais e centro de eventos | Reproducao
Proposta de 1996 tinha muitas semelhanças com a atual, como shopping e torres comerciais | Reprodução

“Na época fomos acusados de privatistas, mas o projeto atual aparentemente restringe bem mais o espaço público que o nosso”, compara o arquiteto.
Os estacionamentos eram subterrâneos e a área onde seriam construídos os prédios novos, entre o Gasômetro e o armazém A7, era toda permeável, com praças e passeios públicos entre uma edificação e outra. Hoje, a proposta é de um shopping ocupando todo o terreno e as vagas para automóveis não serão no subsolo.
Em 1996, a intenção era ainda transformar a Mauá em uma avenida-parque plantando 5 mil árvores. Haveria quatro pistas para automóveis, duas rápidas, no centro, e duas lentas, nas laterais.
A grande diferença em relação ao projeto atual era a solução dada ao muro da Mauá, que seria derrubado. Para substituí-lo, Adomilli projetou um muro móvel na beira do Guaíba. Era a contrapartida principal do projeto, ao custo de R$ 2 milhões – menos de 2% do total do investimento previsto.
Utilizando os cálculos de recursos necessários ao empreendimento feitos pela PUC-RS, os 2% em valores atuais seriam o equivalente a R$ 13 milhões. O consórcio protocolou em abril de 2015 uma proposta de compensações para a cidade que soma R$ 36 milhões.
Modelo shopping-espigões se repete
O projeto de Collares, no final da década de 80, não foi bem recebido
O projeto de Collares, no final da década de 80, foi condenado por atender interesses imobiliários | Reprodução

A opção dos sucessivos gestores públicos de revitalizar o Cais Mauá investindo o mínimo possível serviu de justificativa para diferentes empreendedores repetirem o modelo shopping-espigões nas últimas três décadas.
Em 1988, embalado na onda do projeto Praia do Guaíba – tentativa de urbanizar com edifícios a orla entre a Usina do Gasômetro e o Parque Marinha do Brasil – o então prefeito Alceu Collares (PDT, 1986-1988) criou o projeto “Cais do Porto: Centro de Comércio, Lazer e Turismo”, que abrangia a área compreendida entre a Ponta da Cadeia, com os prédios da “antiga usina”, do Deprc e os sete últimos blocos de armazéns do Cais Mauá.
Previa o aproveitamento de 1.400 metros de cais, os armazéns seriam transformados em lojas e empreendimentos turísticos, com a construção de um Centro de Convenções e um hotel de luxo. Tinha também a sua contrapartida cultural, com “corredores temáticos” que se conectavam com ruas adjacentes e equipamentos públicos fora do porto.
Sem meias palavras, os engenheiros Hermes Vargas dos Santos e O’Neill de Lima Paz, do Gabinete de Planejamento e Coordenação do Deprc, condenaram a proposta em um parecer: o projeto atendia exclusivamente a “interesses do comércio e dos empreendimentos imobiliários” e era “destituído de valor social”.
Isso porque a justificativa de “devolver o rio à cidade” parecia absurda em um momento em que os parques Marinha do Brasil e da Harmonia (hoje Maurício Sirotsky Sobrinho) não haviam completado dez anos ainda.
“Nos países desenvolvidos, dificilmente a administração pública abriria mão de tal parcela afeta aos recursos hídricos e aos interesses dos transportes em favor de um centro de comércio, lazer e turismo (shopping center) de valor cultural discutível (pressão imobiliária), considerando as diversas necessidades da população da Capital relativas a saúde, segurança, saneamento básico, habitação, transportes, educação e outros”, apontaram.
As gestões petistas na prefeitura tentaram emplacar ideias diferentes: Olívio Dutra (1989-1992) pensou em instalar um restaurante popular e uma escola de alfabetização de jovens e adultos no Cais Mauá, que também poderia receber shows e apresentações teatrais. Dez anos mais tarde, já governador, Olívio quis desenvolver no local um complexo cinematográfico, que tampouco foi adiante.
Em sua gestão municipal (1997-2000), Raul Pont chegou a formalizar no Ministério dos Transportes um pedido para que a gestão do porto passasse a ser municipal – a intenção era revigorar a atividade portuária e estimular a navegação. “Trouxemos especialistas de Barcelona e fizemos um plano diretor para a área, mas não houve interesse do mercado”, lamenta o ex-prefeito.
Falida a tentativa de resgatar o porto, o plano B era cultural-gastronômico: conceder um antigo galpão histórico ao lado do Gasômetro – chamado “Pavilhão das Tesouras” – para o empresário Dado Bier, e dois armazéns para o Banco do Brasil instalar o seu centro cultural.
As tratativas chegaram a avançar, mas houve um incêndio nunca esclarecido que destruiu o Pavilhão das Tesouras – “Ninguém me convence que não foi atentado, sacanagem”, admite Pont – e o negócio com o CCBB também foi abandonado.
Negócio visava financiamento do porto
Arrendamento rendeu R$ 900 mil até hoje e porto ainda é deficitário | Tânia Meinerz
Arrendamento do Cais rendeu R$ 900 mil até hoje; enquanto isso o porto segue deficitário | Tânia Meinerz

O caso é que em 1999, quando o Porto dos Casais foi engavetado pelo sucessor de Britto, Olívio Dutra, o Cais Mauá ainda operava com cargas, o que só começou a ser modificado no início dos anos 2000.
Esse movimento é importante para entender o projeto atual, porque a decisão de conceder o Cais Mauá à iniciativa privada foi tomada pelo Conselho da Autoridade Portuária (CAP) como forma de sustentar o restante da área de embarque e desembarque, que estava deficitária.
“As receitas auferidas em negócios de revitalização de portos não operacionais tem se mostrado muito interessantes para as autoridades portuárias”, esclarece o diretor da Antaq Fernando Fonseca.
Em busca de recursos para financiar a própria atividade portuária, os integrantes do CAP julgaram que poderia ser um bom negócio entregar o Cais Mauá para a iniciativa privada. Assim, “o porto teria uma fonte de receita para investir em seus equipamentos, dragagens, e uma série de questões operacionais”, conforme registra uma das atas das reuniões do CAP no ano 2000.
Entretanto, cinco anos depois, o arrendamento da área feito no final de 2010 ainda não beneficiou o porto de Porto Alegre, que segue sendo deficitário segundo a Antaq. Durante os três primeiros anos de contrato – que por força de um aditivo posterior à assinatura é considerado em vigor a partir de março de 2012 – o consórcio só precisaria pagar 10% do valor total do arrendamento, ou seja, R$ 300 mil por ano.
Era um estímulo às obras que seriam feitas.
Passado esse período – portanto, a partir de março de 2015 – o empreendedor deveria passar a pagar a totalidade do valor do arrendamento, R$ 3 milhões por ano ou 1,95% do faturamento bruto, que seriam reinvestidos na atividade portuária.
“Adimpliram os 10% até finalizar o terceiro ano. Quando passaria para um valor considerável, fizeram um requerimento e foi concedida a suspensão do pagamento até que saiam as licenças para o empreendimento”, explica o diretor-geral da Secretaria de Estado dos Transportes, Vanderlan Frank Carvalho.
Ou seja, a soma dos pagamentos do Cais Mauá pela concessão da área até hoje ainda não chegou a R$ 1 milhão – foram três parcelas de R$ 300 mil em três anos.
Os conselheiros do CAP bem que avisaram que era importante garantir o pagamento previsto no contrato, caso contrário, o negócio perderia o sentido.
“Se não houvesse essa motivação, a área continuaria a ser operacional, como de fato era”, manifestou o então presidente do CAP em 5 de outubro de 2010, engenheiro Ricardo de Almeida Maia.
“Não era um descarte de uma área que não interessasse mais, pelo contrário, ainda é uma área nobre”, complementou, na ocasião.
É verdade que o Cais Mauá não comportaria atividades portuárias modernas por não possuir a chamada retroárea – onde usualmente são colocados contêineres, que é o que move o mundo do transporte de cargas por hidrovias.
Porém a pedra do Cais Mauá é bastante mais resistente que as dos outros cais porto-alegrenses (Navegantes e Marcílio Dias). Aguenta 40 toneladas e por isso, só no Mauá é possível operar guindastes de solo – navios que atracam em outras partes na Capital precisam ter guindastes embarcados para poder descarregar.
Esse, aliás, foi um dos motivos para os técnicos terem embargado a iniciativa do prefeito Collares, lá nos anos 80. Segundo um parecer anexo ao processo, “dos três cais de Porto Alegre, apenas o Mauá pode operar grandes cargas devido a sua constituição de cais de gravidade”.
Neste texto, o Cais Navegantes é categorizado como “de saneamento” por ser constituído em estruturas leves (estacas), e o Marcílio Dias é destinado a clubes náuticos também por ter estruturas leves (tubulões).
Docas foram anexadas para garantir edifícios
Mesmo no Conselho da Autoridade Portuária (CAP), o projeto de dar outra destinação ao Cais Mauá foi polêmico. A proposta originalmente aprovada pelo órgão permitia o uso para outras finalidades apenas na área compreendida entre a Usina do Gasômetro e o armazém B3, mas foi considerada insuficiente pelo Governo do Estado.
Por isso, em 17 de agosto de 2006, o governo do Estado mandou à reunião do CAP “o homem do Cais Mauá”, Edemar Tutikian, para convencer o conselho a ampliar a área para o empreendimento, abocanhando também as docas.
Na época, Tutikian já era o coordenador da Comissão de Revitalização do Cais Mauá. Ele vinha se dedicando ao projeto desde o início do governo Germano Rigotto (PMDB, 2003-2006), quando foi encarregado de “fazer um inventário de todas as questões do porto” – conforme o secretário municipal de Urbanismo, Valter Nagelstein – embora sua função no governo fosse de diretor do banco de fomento do Estado, a Caixa RS (hoje chamado Badesul).
Tutikian é o homem do Cais porque desde então ele carrega consigo o projeto de revitalização, apesar das mudanças políticas. Quando Yeda foi substituída por Tarso Genro (PT) no Piratini, ele migrou – e com ele o projeto do Cais – para a gestão municipal de José Fortunati (PDT), onde se tornou porta-voz da revitalização.
Naquele agosto de 2006, Tutikian compareceu ao CAP secundado pela secretária de Transportes, Gertrudes Pelissaro dos Santos. Estavam lá para fazer um apelo aos conselheiros para que ampliassem a área que seria concedida à iniciativa privada.
“O projeto que inicia na ponta do Gasômetro e vai até o armazém B3 tem limitações, uma vez que há o tombamento de determinados armazéns”, explicou, introduzindo o assunto.
“Em face às limitações técnicas, pretende-se viabilizar o interesse de empreendedores privados com a disponibilização de novas áreas”: eram as docas 1 a 4, até então utilizadas para atividades de apoio portuário.
A necessidade de deixar disponível a nova área para o futuro projeto do Cais Mauá é evidente: nos anos 90, diante da falta de espaço entre o armazém A6 e a Usina do Gasômetro (onde estavam previstas todas as construções), mesmo com a prevista derrubada do A7, Adomilli e sua equipe precisaram projetar um aterro de 100 mil m³, que interferiria no canal de navegação e traria impactos ambientais.
Na tentativa de aprovar o desenho, os arquitetos chegaram a mexer na altura dos edifícios, reduzindo o número de andares originalmente previstos para não comprometer a volumetria, mas o problema do aterro persistiu.
Logo, era necessário corrigir esse ponto para que o projeto não acabasse tendo o mesmo destino do anterior. A licitação de 2010, portanto, englobaria toda a área desde o Gasômetro até a doca 4. “A área que será agregada viabilizará a exploração econômica do futuro empreendimento atraindo investidores e possibilitando novas fontes para a Administração Portuária”, registra a ata do CAP.
A manobra de inclusão de novas áreas também acabou destinando ao empreendimento a bonita praça Edgar Schneider e o prédio do antigo frigorífico, uma região para a qual os empreendedores previam a instalação de uma unidade educacional de Ensino Superior.
Fogaça barrou prédios altos no Gasômetro
Apesar da inclusão das docas à área do projeto de revitalização, que permitiria construir torres comerciais de 100 metros de altura próximas da rodoviária de Porto Alegre, o primeiro desenho do Plano Diretor para a área previa também prédios ao lado da Usina do Gasômetro.
Foi o ex-prefeito José Fogaça (PPS, depois PMDB, 2005-2010) que vetou qualquer volume que competisse com o patrimônio histórico. Escaldado pelo questionamento da população sobre a mudança dos índices construtivos permitidos para o terreno do antigo Estaleiro Só, que o levou a promover um plebiscito em 2009 – mesmo ano em que se fez o debate no governo sobre as possibilidades de construção no Cais Mauá – Fogaça intuiu o problema.
A cautela de Fogaça não impediu que um grupo de cidadãos se organizasse para combater o modelo proposto, baseado no tripé shopping-espigões-estacionamento, que será capaz de garantir aos investidores, uma receita anual que beira R$ 1 bilhão.
O cálculo foi feito pela Faculdade de Administração da PUC-RS e separa a receita segundo o nicho de negócio.
Arte: Andres Vince
Arte: Andres Vince

Tomando esse dado pode se ter ideia dos valores que estão em jogo para o Estado do Rio Grande do Sul. Além das estimativas de que a operação do complexo gere cerca de 16 mil empregos diretos e R$ 70 milhões em ICMS anualmente, o contrato prevê que o arrendamento passará a ser calculado percentualmente sobre o total da receita bruta do empreendimento quando ela for maior que R$ 160 milhões ao ano.
Neste caso, ao invés de pagar os R$ 3 milhões fixos, o consórcio precisará entregar aos cofres públicos 1,95% do faturamento do negócio. Esse seria o recurso disponível para aplicar na modernização da área portuária ainda em operação em Porto Alegre.
Além disso, após o fim da concessão (em 25 anos ou 50, caso haja prorrogação do contrato), toda a área e as benfeitorias realizadas nela – shopping, edifícios comerciais e estacionamento – passam a integrar o patrimônio do Estado do Rio Grande do Sul.
Matrículas só foram escrituradas depois da licitação
Dossiê Cais Mauá - Parte 1 - Escritura
Disputa judicial impediu que Estado registrasse terrenos em seu nome | Reprodução

Com a chamada desafetação das áreas, concluída no Conselho da Autoridade Portuária (CAP), restava registrar os terrenos em nome do Estado do Rio Grande do Sul.
Só que a área só foi escriturada três meses depois de lançado o edital, quando uma sentença do juiz de direito Antonio C. A. Nascimento e Silva pôs fim a uma ação judicial iniciada pelo próprio governo diante da recusa do Registro de Imóveis da 1ª Zona de Porto Alegre em escriturar a área por não possuir documentação que autorizasse tal atitude.
O Estado argumentava que, sendo terreno oriundo de aterro pago pelos cofres estaduais – lá no governo Borges de Medeiros – era logicamente patrimônio do Rio Grande do Sul. Por outro lado, havia um entendimento de que por ser margem de curso d’água, pertenceria à União.
Foi, portanto só a partir da decisão judicial que o cartório emitiu as matrículas em 30 de setembro de 2010 – a abertura da licitação ocorreu em junho.
Sobreposição de contratos causa limbo administrativo
Consórcio se recusou a assumir áreas enquanto não houver acerto entre operações|Tânia Meinerz
Consórcio se recusa a assumir área enquanto não houver acerto entre operações|Tânia Meinerz

O tema das escrituras do Cais Mauá voltou à pauta no final de 2010, quando a imprensa noticiou que a Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq) estava questionando judicialmente a competência do Estado para promover o arrendamento, na medida em que entendia que a área pertencia à União.
Foi o primeiro de muitos processos que ainda se desenrolam no judiciário gaúcho.
Esse acabou sendo sanado após a posse do governador Tarso Genro (PT 2011-2014), que negociou com o Planalto em condições políticas mais favoráveis que sua antecessora, Yeda Crusius (PSDB).
A conciliação entre as partes foi homologada no ano de 2012 e, em março, houve a assinatura de um termo aditivo para reconhecer a participação da Agência Nacional de Transportes Aquáticos (Antaq) como fiscalizadora do contrato e das obras.
Foi apenas nesta data que a posse da área foi passada efetivamente para o consórcio Cais Mauá do Brasil S.A. e que o contrato passou a valer integralmente.
Entretanto, quatro anos depois, ainda há áreas que não estão sob o domínio legal da empresa formada para revitalizar e administrar o Cais Mauá. Os armazéns da série B3, tombados, e também o C2 e o C3, que ocupam as docas e serão demolidos para a construção das torres comerciais, além do próprio prédio da Superintendência de Portos e Hidrovias (SPH), que será restaurado e transformado em hotel, estão em um limbo administrativo.
O consórcio se recusou a assumir a responsabilidade dessas unidades porque estão ocupadas por atividades que não tem relação com o empreendimento.
SPH, corpo de Bombeiros, e os organismos de regulação do trabalho portuário (OGMO e sindicato) receberão novas sedes, construídas pela concessionária da área. Porém, segundo o Governo do Estado, ainda não há definição dos novos endereços. “Isso faz parte de uma segunda fase do empreendimento, não é necessária a desocupação imediata para o início do trabalho”, justifica o diretor-geral da Secretaria de Transportes, Vanderlan Frank Carvalho.
Já com o terminal de embarque e desembarque de passageiros da Catsul, que tem linhas hidroviárias para a Zona Sul de Porto Alegre e também para Guaíba, o problema é mais delicado.
Há uma evidente sobreposição de contratos, uma vez que a operação das linhas do catamarã também é um negócio regido por licitação na qual consta a obrigação de o Estado ceder um armazém para a função de terminal.
Apesar disso, o diretor-geral reconhece o direito do consórcio Cais Mauá sobre o imóvel, mas acredita em um entendimento entre as partes. “A circulação de usuários do catamarã também é importante para o Cais Mauá. Então é bem possível – ou melhor, com certeza – eles vão conviver bem”, prevê Carvalho.
Só que o consórcio não demonstrou toda essa boa vontade quando, em 2013, questionou a operação não apenas do catamarã, mas também do Cisne Branco e do barco do Grêmio Náutico União (GNU). “Tendo em vista que inexiste no contrato menção à obrigação de manter esse serviço em funcionamento dentro de sua área de arrendamento, requer à SPH esclarecimentos sobre a possibilidade de autorizar a continuidade de embarque e desembarque mediante remuneração acordada entre as partes. Caso não seja possível, entende ser cabível a interrupção imediata do serviço por se tratar de atividade não prevista no contrato”, registra uma correspondência enviada à SPH pelos empreendedores.