A Câmara dos Deputados aprovou na quarta-feira passada (9/2) Projeto de Lei (PL) 6299/02, conhecido como “PL do Veneno”, que flexibiliza a lei vigente dos agrotóxicos (7.802/1989), que proíbe o registro no país de produtos que possam causar câncer, mutilação, gerar malformações congênitas – ou mutagênicos – que afetam a molécula de DNA –, entre outros problemas de saúde.
O “PL do Veneno” centraliza no Ministério da Agricultura as tarefas de fiscalização e análise desses produtos para uso agropecuário. Atualmente, é necessário o aval de diferentes órgãos para que um novo produto seja aprovado, entre eles a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e o Ministério da Saúde.
Também prevê a concessão de registro temporário se o prazo não for cumprido. Atualmente, devido à complexidade da análise dos riscos e à falta de testes em humanos, os pedidos de registro podem demorar cerca de sete anos para terem um parecer definitivo.
Com o projeto de lei, aprovado na forma do substitutivo do relator, deputado Luiz Nishimori (PL-PR), caso o pedido não tenha parecer conclusivo expedido no prazo de dois anos, o órgão registrante será obrigado a conceder um registro temporário (RT), para agrotóxico novo, ou uma autorização temporária (AT), para aplicação de um produto existente em outra cultura para a qual não foi inicialmente indicado.
O Rio Grande Sul é duplamente atingido porque, em julho de 2021, o plenário da Assembleia Legislativa aprovou o PL 260 2020, enviada pelo governador Eduardo Leite (PSDB), que altera a Lei nº 7.747 de 22 de dezembro de 1982. A mudança mais polêmica é o fim da exigência, pelo Estado, de que produtos agrotóxicos provenientes de importação tenham seu uso autorizado no país de origem, mantendo-se a exigência do registro junto ao órgão federal competente bem como do cadastro nos órgãos competentes estaduais.
O PL de Eduardo Leite atende principalmente aos interesses dos exportadores de soja, ao liberar agrotóxico proibido no país de origem. O registro do produtor fica por conta da Lei Federal nº 7.082/89, que dispõe sobre a pesquisa do agrotóxico, a experimentação, a produção, a embalagem e a rotulagem, o transporte, o armazenamento, a comercialização, etc., e que corre o risco de ser revogada.
O posicionamento do governo Eduardo Leite, favorável aos interesses dos exportadores de soja, não é novo. Nos últimos anos, a deriva de 2,4-D (ácido diclorofenoxiacético), agrotóxico utilizado em áreas de plantio de soja, atingiu produção de uva (vinho), tabaco, oliva, maçãs, pêssegos, ameixas, mel e hortaliças, provocando perdas significativas. Deriva é a porção do agrotóxico aplicado que não atinge o alvo desejado, podendo se depositar em áreas vizinhas, com potencial de impacto no ambiente. Por isso, a diversificação de culturas do Rio Grande do Sul está ameaçada. Mesmo assim, a deriva continua liberada.
Senado sem pressa
Devido às mudanças aprovadas pelos deputados, o Projeto de Lei 6299/02, do Senado, volta àquela Casa para nova votação. O PL 6299/02 terá trâmite “sem nenhuma especificidade” no Senado e será apreciado segundo critérios técnicos, declarou o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, em entrevista coletiva ao fim da sessão deliberativa da quinta-feira (10).
Ele acrescentou que, independentemente da colocação desse projeto na lista de prioridades do governo federal, sua tramitação dependerá da avaliação dos senadores. “Certamente esse projeto será colocado na reunião de líderes, e os líderes vão poder opinar a respeito da prioridade deles. É o próprio andamento do projeto aqui na Casa”, disse.
A fala de Pacheco e as diversas críticas do meio acadêmico, entidades civis e ONGs importantes deixam claro que não será fácil passar o “PL do Veneno” no Senado em ano eleitoral. Até o conservador jornal O Globo fez um editorial condenando a aprovação do “PL do Veneno”.
A professora do Departamento de Nutrição da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Silvia do Amaral Rigon, em audiência pública da Comissão de Meio Ambiente (CMA) do Senado, em setembro de 2021, lembrou que o Brasil é hoje o maior consumidor de agrotóxicos do mundo. A maior parte é usada em lavouras de soja, milho e cana-de-açúcar nas regiões Sul, Centro-Oeste e em São Paulo. De acordo com a professora, apenas cinco dos maiores produtores respondem por mais de 50% dos agrotóxicos consumidos no Brasil. A professora também chamou atenção para o aumento de suicídios relacionados aos agrotóxicos utilizados na lavoura de fumo na Região Sul.
Dados do Ministério da Economia apontam que o Brasil importou 335 mil toneladas de agrotóxico em 2019. O número representa recorde em uma marca histórica iniciada em 1997 e crescimento de 18% em relação a 2018. Ao todo, a importação desse tipo de produto aumentou 11 vezes desde 2000.
O Brasil encerrou 2021 com 562 agrotóxicos liberados, maior número da série histórica iniciada em 2000 pelo Ministério da Agricultura. Ainda em dezembro, o total de aprovações já tinha superado o recorde de 2020. As últimas liberações de 2021 foram publicadas em janeiro no Diário Oficial da União (DOU). O volume foi 14% superior ao de 2020, quando 493 pesticidas foram autorizados. Os registros vêm crescendo ano a ano no país desde 2016, após a queda da presidenta Dilma Rousseff (PT) e a posse do interino Michel Temer (MDB).
Críticas durante tramitação
A tentativa de mudar a lei já foi alvo de críticas de diferentes entidades ao longo da tramitação do chamado “PL do Veneno”, que inicialmente foi apresentado em 2002.
A Comissão Científica em Vigilância Sanitária (CCVISA) divulgou uma moção de apoio à Anvisa. A entidade manifestou-se contrária ao PL 6.299/2002. Para a CCVISA, mudanças na legislação devem ser feitas “sempre na direção de ampliar e fortalecer, tanto as garantias de acesso a alimentos seguros pela população, quanto a proteção do ambiente da nação brasileira, e nunca ao contrário”.
Além de enfraquecer a regulação no país, o PL coloca o Brasil em desalinhamento em relação às políticas e boas práticas internacionais, o que pode gerar impactos negativos na balança comercial brasileira.
“Hoje assistimos a mais um ataque contra a sociedade. A aprovação do Pacote do Veneno é escandalosa e joga no lixo o pouco de proteção que ainda tínhamos. Esses 301 deputados não governam para a sociedade, que tem constantemente se manifestado contrária e clamado pelo caminho oposto, o da redução do uso de agrotóxicos. Gostaria muito de saber o que esses (des)governantes falariam para seus bisnetos lá na frente”, diz Marina Lacôrte, porta-voz de Agricultura e Alimentação do Greenpeace Brasil.
A Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e a Associação Brasileira de Agroecologia apresentaram um dossiê científico contra o projeto. O material teve apoio da Fiocruz.
Aproximadamente um terço da receita das principais fabricantes de agrotóxicos do mundo vem de produtos classificados como “altamente perigosos”, que têm como destino, em sua maioria, países emergentes, como Brasil e Índia, e países pobres.
O levantamento feito pela Unearthed, organização jornalística independente financiada pelo Greenpeace, em parceria com a ONG suíça Public Eye, mostrou que, em 2018, as vendas desse tipo de pesticida renderam cerca de US$ 4,8 bilhões às cinco maiores companhias do setor.
Aguarda análise do Senado outro projeto de lei que dispensa o registro para a importação de agrotóxicos dos demais países do Mercosul. O autor do PL 4.316/2021 é o senador gaúcho Luís Carlos Heinze (PP-RS).
Com agências de notícias do Senado e Câmara dos Deputados