A imprensa e o “efeito contágio”

Por Tiago Lobo

O jornalismo brasileiro vem explorando exaustivamente casos de assassinatos em massa e, dependendo de como isso é feito, pode ser muito nocivo.  

Desde 1985 a American Psychological Association (APA) alerta para o fato de que crianças e adolescentes podem tornar-se menos sensíveis à dor alheia ou sentir-se amedrontados após a exposição a programas violentos na televisão. Em relatório a APA indicava que programas infantis freqüentemente apresentavam até vinte cenas contendo agressões, a cada hora.

Para Donna Killingbeck, pesquisadora da Universidade do Leste do Michigan, nos E.U.A., medidas de segurança como revistas em estudantes, policiamento dentro das escolas e contratação de empresas especializadas, como resposta adotadas após tiroteios e ameaças, geram mais problemas e provocam uma percepção distorcida por parte da população que compreende as tragédias através da mídia.

Isso pode levar a população a superestimar o risco de morte que as crianças e adolescentes correm nas escolas. A conclusão do estudo, publicado em 2001, “The role of television news in the construction of school violence as a “moral panic”” (“O papel do telejornalismo na construção da violência escolar como “pânico moral””) é que estas medidas não têm ajudado a evitar tragédias.

Um ano depois de Killingbeck levantar o debate sobre a mídia e as medidas de segurança adotadas que seriam prejudiciais, três pesquisadores de Harvard concluiram que tiroteios em massa são eventos raros e representam um percentual muito baixo no leque de causas de mortes de crianças e adolescentes em geral, e mesmo de crianças e adolescentes na escola.

David James Harding, Jal Mehta e Cybelle Fox em “Studying rare events through qualitative case studies: Lessons from a study of rampage school shootings” (“Estudando eventos raros através de estudos de caso qualitativos: Lições de um estudo de tiroteios na escola”) chamam atenção ainda para os perigos de percepções distorcidas que podem reforçar a justificativa de medidas extremas ineficientes.

A física Sherry Towers, da Universidade do Estado do Arizona (E.U.A) estudou o “efeito de contágio” de tiroteios em massa e concluiu que a cobertura da mídia nacional acaba aumentando a frequência dessas tragédias.

“Nossa pesquisa examinou se havia ou não evidências de que assassinatos em massa podem inspirar cópias. Encontramos evidências de que os assassinatos que recebem atenção da mídia nacional ou internacional realmente inspiram eventos similares em uma fração significativa do tempo”, disse em entrevista ao site da Universidade do Arizona, em 2015.

Ela compara crimes inspirados em tragédias anteriores a uma doença, onde você geralmente precisa de um contato próximo para espalhá-la e afirma que os meios de comunicação agem como um “vetor” que pode transmitir a infecção através de uma área muito grande. Mas ressalta que pessoas suscetíveis à ideação para cometer esses crimes são bastante raras na população. É por isso que ela conclui que é necessária muita cobertura midiática sobre uma ampla área geográfica para que esse tipo de “contágio” ocorra.
The Intercept Brasil propõe caminho
No dia 23 de março, o The Intercept BR enviou um editorial aos seus leitores via boletim semanal, por e-mail. Assinado pelos jornalistas Tatiana Dias e Alexandre de Santi, o texto “Como derrubamos duas páginas de ódio sem dar audiência para elas” compartilhou um autoexame pela equipe do veículo e, ao mesmo tempo, sugeriu caminhos efetivos para a imprensa lidar com conteúdos de ódio e criminosos que buscam notoriedade.

O Intercept decidiu abrir mão da “notícia” e, de certa forma, se transformou nela: pressionaram Google e Facebook para remover duas páginas que disseminavam conteúdo de ódio e conseguiram.
“disseminar um conteúdo de ódio – ainda que for como denúncia – não é mais importante do que agir para que ele seja removido o mais rápido possível, cobrando responsabilidade de quem deve ser cobrado. Se Google e Facebook não tivessem derrubado os vídeos, publicaríamos uma reportagem denunciando a omissão. Felizmente, não foi necessário. Esperamos que não seja necessária a pressão de um jornalista para que isso aconteça”.

A política editorial adotada pelo veículo pode ser ancorada em um sem número de estudos que concluem que atiradores em massa e propagadores de ódio buscam fama e que a ausência deste debate na cobertura da imprensa nacional é extremamente perigosa. Grandes grupos de comunicação com seus rádios, tvs e jornais repercutiram cada suposta novidade, ou meras especulações sobre Suzano sem observar critérios pré-estabelecidos no código de ética do jornalismo brasileiro e recomendações internacionais para lidar com este tipo de assunto. Ato falho, talvez, mas leviano.

O código de ética do jornalismo brasileiro, documento máximo do profissional da imprensa, deixa claro em seu artigo 2º, incisos I e II que  “a divulgação da informação precisa e correta é dever dos meios de comunicação (…) e que as informações divulgadas “devem se pautar pela veracidade dos fatos e ter por finalidade o interesse público”.

Interesse público é, antes de mais nada, uma norma jurídica e um princípio do sistema constitucional brasileiro que significa que os direitos e garantias individuais de cada cidadão conhecido como “interesse particular”, se somam e formam o que se entende por interesse público.
Celso Antônio Bandeira de Mello, jurista e professor da PUCSP, o define como “a soma de interesses individuais, a ser representado por uma instituição jurídica comum: o Estado, o Poder Público”.

Estes interesses individuais referem-se ao campo dos direitos constitucionais e adquiridos, como mais segurança nas ruas, 13º salário e etc. Não englobam desejos e anseios abstratos. E aí é que mora a confusão onde se confunde “interesse público” com interesse “do” público. Este último não representa coletividade, mas audiência.

Portanto, outro trecho do texto do The Intercept merece destaque:
“o papel da mídia e dos intermediários que também funcionam como mídia, como Google e Facebook, precisa ser discutido. Se a sociedade valoriza a violência, nós vamos dar a ela o que ela quer ver, exacerbando o ódio? Ou assumir uma postura mais responsável?”, defende o The Intercept BR. 

O código de ética da profissão, novamente, indica em seu artigo 7º, inciso V, que o jornalista não pode “usar o jornalismo para incitar a violência, a intolerância, o arbítrio e o crime”.

O artigo 11º diz ainda que o jornalista não pode divulgar informações “de caráter mórbido, sensacionalista ou contrário aos valores humanos, especialmente em cobertura de crimes e acidentes”.

Portanto, o efeito indireto da cobertura desregrada da imprensa é, de forma não intencional, uma afronta ao seu próprio documento deontológico.
Dont Name Them e No Notoriety
Você deve ter percebido que a série de reportagens “As redes do ódio” não cita o nome de nenhum dos atiradores e isso é proposital.
Decidimos aderir a algumas diretrizes de sites como Dont Name Them (“Não nomeie-os”), e No Notoriety (“Sem notoriedade”) para não darmos, justamente, o que eles queriam: fama, notoriedade, reconhecimento e validação.

Sob autorização do psicólogo Dr. Daniel Reidenberg, diretor-executivo do SAVE.ORG (Suicide Awereness Voices of Education), gerente do Conselho Nacional de Prevenção ao Suicídio dos E.U.A. e secretário geral da Associação Internacional para a Prevenção do Suicídio (IASP), a ONG de Jornalismo e Direitos Humanos Pensamento.org, traduziu um documento, antes disponível apenas em inglês no site www.reportingonmassshootings.org, que oferece recomendações sobre como a mídia pode cobrir um incidente em que uma pessoa (ou um pequeno grupo) atira em vários outros em um ambiente público. Esse projeto foi liderado pelo SAVE e incluiu especialistas nacionais e internacionais do AFSP, do CDC, da Universidade de Columbia, da Força-Tarefa de Mídia do IASP, JED, NAMI-NH, SPRC e vários especialistas do setor de mídia.

Você pode realizar o download, gratuitamente, no link Portuguese (BR) translation.

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Motivação divide especialistas

Por Tiago Lobo

A puberdade masculina dá os seus primeiros sinais entre os 9 e 14 anos: os testículos aumentam, pelos começam a surgir pelo corpo, a voz engrossa e a produção de testosterona (o hormônio masculino) faz com que o sistema reprodutivo, ossos e músculos amadureçam. E também pode mexer com o cérebro.

O consenso na comunidade científica internacional é que o hormônio possui um efeito facilitador sobre a agressão, mas não age sozinho. Presos violentos, por exemplo, possuem níveis mais altos de testosterona que seus pares mais dóceis.

“Pelo o que podemos dizer até agora, a testosterona é gerada para preparar o organismo para responder a competição e/ou desafios à situação de alguém”, explica Frank McAndrew, professor de psicologia no Knox College em Galesburg, Illinois, Estados Unidos, em entrevista a Scientific American Brasil.

“Qualquer estímulo ou evento que sinaliza uma dessas coisas pode desencadear uma elevação nos níveis do hormônio”, relata o professor.

Exposição a violência afeta habilidades sociais

Augusto Buchweitz, pesquisador do Instituto do Cérebro do RS (InsCer) da Pontifícia Universidade Católica do RS (PUCRS), analisou como a exposição à violência afeta o cérebro de adolescentes por meio de neuroimagens (imagens do cérebro). A pesquisa da sua equipe, publicada na revista científica internacional Developmental Science, aplicou um questionário para adolescentes de escolas de Porto Alegre, algumas situadas em bairros com os maiores índices de violência da capital.

Os jovens tinham o cérebro monitorado por imagem enquanto deviam decidir o estado mental de pessoas vistas em fotos onde apenas os olhos eram mostrados. As áreas que envolvem a percepção e a cognição social (a parte da sociabilidade) eram menos ativadas em jovens que tinham um histórico de maior exposição à violência. Nestes jovens, ao mesmo tempo, a conectividade da amígdala (conhecida como o “centro do medo” do cérebro) foi maior. Os níveis de cortisol, medidos por amostras de cabelo, também eram mais elevados nos jovens mais expostos à violência.  

O estudo sugere que a violência pode afetar várias sub-habilidades importantes para a convivência em sociedade, como a empatia.

“Não se pode dizer se isso vai ter efeitos futuros, mas estudos mostram que este tipo de funcionamento atípico pode aumentar o risco para transtornos de humor, por exemplo”, explica o pesquisador em entrevista ao site da PUCRS.

Agora imagine um espaço na internet criado exclusivamente para estimular jovens recém-saídos da puberdade a cometer atentados e propagar o ódio. E imagine se estes jovens forem virgens e vítimas de bullying. O efeito tem se mostrado desastroso.

Receita perigosa

Famílias disfuncionais, má influência, busca de fama e poder: essa é uma receita perigosa (mas não definitiva) segundo os estudos do psicólogo Peter Langman, pesquisador do Centro Nacional de Avaliação de Ameaças do Serviço Secreto dos Estados Unidos e autor do livro “Why Kids Kill: Inside the Minds of School Shooters” (“Por que jovens matam: por dentro das mentes de atiradores em escolas”), que vem dedicando boa parte da vida ao estudo do tema.

O psicólogo Peter Langman dedica boa parte da vida a estudar tiroteios em massa (Foto: arquivo pessoal)

Ele mantém o site School Shooters, que agrega uma base de dados com 150 casos reportados em 10 países desde 1913. São eles: Alemanha, Austrália, Brasil, Canadá, Escócia, E.U.A., Finlandia, França, Suécia e Ukrânia. O site também oferece recomendações para prevenir ataques.
No artigo Rampage school shooters: A typology (“Atiradores de escolas: uma tipologia”), de 2009, Langman analisou 10 casos e classificou estes jovens em três tipos: traumatizados, psicóticos e psicopatas.

Da amostragem analisada três eram traumatizados, cinco psicóticos e dois psicopatas.

Os três atiradores traumatizados vieram de lares desfeitos com abuso de substâncias e comportamento criminoso pelos pais. Todos foram fisicamente abusados ​​e dois foram abusados ​​sexualmente fora de casa.

Os cinco atiradores psicóticos tinham transtornos do espectro da esquizofrenia, incluindo esquizofrenia e transtorno de personalidade esquizotípica. Todos eles vieram de famílias intactas, sem histórico de abuso.

Os dois atiradores psicopatas não foram abusados ​​nem eram psicóticos. Eles demonstraram narcisismo, falta de empatia, falta de consciência e comportamento sádico.

Apesar de ajudar a compreender um pouco a mente dos atiradores, estes perfis estão muito longe de servirem como base para identificar possíveis novos autores, visto que  “a maioria das pessoas traumatizadas, psicóticas e psicopatas não cometem assassinato”, segundo Langman enfatiza.

Ele indica que 82% dos autores desses atentados cresceram em “famílias disfuncionais” e que um “desejo de fama” ou de “se sentir masculino e poderoso” costuma ser a motivação.

Para caracterizar uma “família disfuncional”, ele cita fatores como ausência dos pais, infidelidade, divórcio, dependência química, comportamento criminoso, violência doméstica e abuso infantil.

Langman explica o que ao se juntarem a fóruns online que debatem assassinatos em massa, jovens que se sentem deslocados conquistam um grupo e se unem a uma subcultura na qual podem se sentir especiais, diferentes e superiores à sociedade dominante.

“Quanto mais sentem que não são ninguém / nada, mais são levados a se sentirem poderosos por meio de ideologias de superioridade e ódio”, disse ao repórter.

Para Langman, existem alguns mitos a serem superados: a conexão entre atiradores como vítimas de bullying é imprecisa.

“Não que isso nunca seja verdade, mas seu significado foi muito exagerado”, declarou o pesquisador ao site Monitor on Psychology.

A ideia de que apenas adolescentes solitários cometem estes crimes também merece atenção: Langman encontrou atiradores entre 11 e 62 anos em suas pesquisas, sendo a maioria deles adultos. Muitos atiradores de escolas não estão isolados: diferente da maioria dos casos brasileiros.

Langman revela que meninas podem, sim, puxar o gatilho. Mesmo que isso seja menos comum: com base em uma análise dentro de um período de 50 anos de casos documentados, 95,3% dos atiradores eram homens e 4,7% eram mulheres.

A maioria dos atiradores não possui alvo específico. Dos 48 analisados no livro de Langman, “School Shootters” (“Atiradores de Escola”, ainda inédito no Brasil), apenas um visou um desafeto. Quando existe um alvo, na maioria das vezes, eles são funcionários da escola, professores e administradores. Os próximos alvos mais comuns são meninas.

As motivações para perpetrar um tiroteio em massa formam uma rede complexa e de mapeamento intrincado: “entre os adolescentes, pode ser que um garoto tenha terminado um namoro na mesma época em que é suspenso da escola, em que recebe uma multa de trânsito ou é preso por alguma coisa, mais ou menos na mesma época em que tem problemas em casa ou não”. Langman explica que uma sucessão de “fracassos”, falhas ou retrocessos acontecendo com alguém que é psicopata, psicótico ou traumatizado, gera uma combinação de dinâmicas psicológicas e eventos de vida que colocam as pessoas em um caminho de violência. Entre os adultos, casamentos fracassados, fracassos ocupacionais e, principalmente, dificuldades financeiras são elementos críticos.

Outro dado importante: atiradores com menos de 20 anos geralmente têm algum tipo de influência externa, seja alguém recrutando-os para participar de um ataque ou de um “modelo”.

“Eu encontrei pelo menos uma dúzia de atiradores que foram atraídos por Hitler e os nazistas. Também poderia ser um modelo fictício: o filme “Assassinos Naturais” foi citado por vários atiradores”. Trata-se de um filme policial satírico de 1994 dirigido por Oliver Stone, com roteiro de Quentin Tarantino. 

Um relatório publicado em 2004, pelo Serviço Secreto dos E.U.A. em parceria com o Departamento de Educação norte-americano, revisou 37 casos envolvendo 41 atiradores entre ataques e tentativas ocorridos em 26 estados de 1974 até 2000. O objetivo do documento “The Final Report and Findings of the Safe School Initiative” (Algo como “O relatório final e os resultados da Iniciativa Escola Segura”), que você pode acessar aqui (em inglês), era compreender o fenômeno e lançar propostas preventivas.

A conclusão do relatório vai de encontro com os resultados das pesquisas de Langman: não há um perfil psicológico ou demográfico característico dos atiradores em escolas. No entanto, o relatório sugere variáveis que podem ser identificadas na maioria dos casos.

As mais significativas são:

  • A dificuldade dos atiradores em lidar com perdas significativas e falhas pessoais
  • A manifestação de comportamentos anteriores que sinalizavam que eles precisavam de ajuda
  • O fato de terem sido ou serem vítimas de perseguições e humilhações de colegas.

Langman defende que idealmente as escolas e universidades deveriam contar com equipes de avaliação de ameaças, multidisciplinares, incluindo administração, corpo docente, forças policiais, saúde mental e, às vezes, representação legal. A principal tarefa dessas equipes seria investigar ameaças de violência e separar falsos alarmes de violência potencial ou iminente.

“Nada é simples aqui, mas os psicólogos estão na melhor posição para entrevistar e avaliar alguém, procurando por evidências de uma personalidade psicopata, questões psicóticas, histórico de trauma e para construir um relacionamento com essa pessoa para avaliá-los”, defende.

Influência do meio e família
A pesquisadora Eva Fjällström, da Luleå University of Technology, ao norte da Suécia, publicou um ensaio em 2007 onde defendeu que, em tiroteios em massa, as famílias não são “causas”, mas têm uma participação importante e determinada responsabilidade: “o que pode parecer ser um ato de loucura pode ser melhor entendido como resultante da ausência de orientação que leva a uma falta de estabilidade e segurança básicas. Amigos solidários e uma família solidária são essenciais para todos os indivíduos, especialmente adolescentes, e as conseqüências, se não houverem tais relações, podem, como vimos aqui, ser devastadoras”, conclui Fjällström .

A dupla Stephen Thompson e Ken Kyle, no artigo “Understanding mass school shootings: Links between personhood and power in the competitive school environment” (“Entendendo o tiroteio em massa nas escolas: ligações entre personalidade e poder no ambiente escolar competitivo”), publicado em 2005, acrescentaram um ponto de vista interessante a esta investigação. Segundo eles a preocupação não deve ser com o perfil psicológico dos atiradores, mas com os perfis dos meios onde os massacres ocorrem e como isso pode influenciar as respostas de estudantes despreparados para estes ambientes.

Outras pesquisas, como a de Gary e Alison Clabaugh, “Bad Apples or Sour Pickles? Fundamental Attribution Error and the Columbine Massacre” (“Maçãs podres ou picles azedo? Erro Fundamental de Atribuição e o Massacre de Columbine”), também de 2005, sugerem que quando psiquiatras e psicólogos a serviço Departamento Federal de Investigação dos E.U.A., o FBI, divulgam os supostos perfis psicológicos dos atiradores, acabam provocando ondas de discriminação e gerando mais tensão em escolas com alunos que passam a ser identificados como socialmente inaptos e assassinos em potencial.

Ódio às mulheres
No Brasil, a maioria dos atiradores odiavam mulheres.
De acordo com o estudo “Meta-Analyses of the Relationship Between Conformity to Masculine Norms and Mental Health-Related Outcomes” (“Meta-Análises da Relação entre a Conformidade com as Normas Masculinas e os Resultados Relacionados à Saúde Mental”, em tradução livre), da Universidade Estadual de Indiana, nos E.U.A, homens com comportamento playboy e que buscam poder sobre as mulheres são mais propensos a ter problemas psicológicos. A análise se ateve a 11 dimensões de masculinidade e reuniu dados de 78 estudos sobre saúde mental e percepções de masculinidade de 19.453 homens analisados.

“As normas masculinas de Playboy e “poder sobre as mulheres’ são as normas mais intimamente associadas a atitudes sexistas”, disse Joel Wong, líder da pesquisa.

“A associação robusta entre a conformidade com essas duas normas e resultados negativos relacionados à saúde mental ressalta a ideia de que o sexismo não é meramente uma injustiça social, mas também pode ter um efeito prejudicial na saúde mental daqueles que adotam tais atitudes.”

Ainda mais preocupante, disse Wong, era que os homens que se conformavam fortemente com as normas masculinas tinham mais probabilidade de ter problemas de saúde mental, mas também menores chances de procurar tratamento.

Simone de Beuvoir já dizia, em seu livro “O Segundo Sexo”, que “o masculino se impõe ao anular o outro (feminino)”. Ela segue atual.

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Bullying: um em cada dez estudantes é vítima

Por Tiago Lobo

O fenômeno sempre existiu mas não era estudado. Virou bode expiatório perfeito para achar motivos para “explicar” tiroteios em massa. Especialistas refutam a tese.

Um relatório da Organização Mundial de Saúde (OMS) de 2004 concluiu que o Bullying é um problema universal que afeta cerca de um terço de crianças por mês, em todo o mundo. Para cerca de 11% de crianças, este tipo de abuso, praticado pelos seus companheiros, é severo (várias vezes por mês).

No Brasil, um em cada dez estudantes é vítima segundo dados do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa) 2015. A Lei nº 13.185, em vigor desde 2016, classifica o bullying como intimidação sistemática, quando há violência física ou psicológica em atos de humilhação ou discriminação e existe até uma data instituída por meio da Lei nº 13.277 para o Dia Nacional de Combate ao Bullying e à Violência nas Escolas, 7 de abril.

O Diagnóstico Participativo das Violências nas Escolas, realizado pela Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (FLACSO) em 2015, com apoio do MEC, revelou que 69,7% dos estudantes declaram ter presenciado alguma situação de violência dentro da escola. Isso fez com que o bullying fosse incluído na Pesquisa Nacional da Saúde do Escolar (PeNSE) de 2015: 7,4% dos estudantes informaram que já se sentiram ofendidos ou humilhados e 19,8% declararam que já praticaram alguma situação de intimidação, deboche ou ofensa contra algum de seus colegas.

A psicóloga e professora da Pós-Graduação em psicologia da PUCRS, Carolina Lisboa, pesquisa os processos de bullying, cyberbullying, desenvolvimento social e sócio-cognições em contextos virtuais. No estudo “O fenômeno bullying ou vitimização entre pares na atualidade: definições, formas de manifestação e possibilidades de intervenção”, publicado em parceria com os pesquisadores Luiza de Lima Braga e Guilherme Ebert, conclui-se que a participação contínua em episódios de bullying gera distorções nas concepções de emoções e desenvolvimento moral.

Lisboa define o fenômeno como um processo de vitimização entre pares: pelo qual uma criança ou adolescente é sistemática e repetidamente exposta a um conjunto de atos agressivos (diretos ou indiretos), que ocorrem sem motivação aparente, mas de forma intencional. Pode ser protagonizado por um ou mais agressores e é caracterizado pelo desequilíbrio de poder e ausência de reciprocidade. A vítima possui, geralmente, pouco ou quase nenhum recurso para se defender.

O estudo o avalia como um subtipo de comportamento agressivo que gera atos violentos e, na maioria das vezes, ocorre dentro das escolas. E emerge na interação social.

“Como está associado a um processo normativo de formação de identidade e exclusão dos diferentes (na individuação eu vou definindo quem sou a partir de quem não sou), sempre acontece bullying”, afirma Lisboa, ressaltando que não significa dizer que a prática é justificável. Para a pesquisadora o Bullying se mantém por conta do preconceito e juízo de valor agregado a um processo natural de formação de identidade pessoal, passando pelo grupo de iguais.

Os efeitos do bullying variam de acordo com cada vítima: “Uma pessoa pode sofrer bullying e não representar um trauma e pode sofrer um assalto e significar como trauma. Bullying e cyberbullying são violências gravíssimas com impactos negativos”, aponta Lisboa.

Ela explica que as implicações possíveis na saúde mental de crianças e adolescentes passam por baixa autoestima, baixa autoconfiança e autoeficácia, dificuldades de controle de emoções (especialmente de raiva), dificuldades acadêmicas, profissionais, insegurança, agressividade, isolamento, fobia social, uso de substâncias, depressão e ansiedade.

Quando pergunto se o bullying pode levar uma pessoa a cometer um tiroteio em massa Carolina Lisboa é categórica:
“Não vou chancelar essa ideia. Gostaria de deixar claro que não acredito nesta linha de raciocínio. Muitas variáveis influenciam nestas tragédias inclusive histórico de saúde mental pregresso, cultura entre outros. Uma coisa é o bullying e outra é a psicopatologia”.

Apesar de o ambiente escolar ser o palco de maior prevalência de bullying, o fenômeno ocorre em outros contextos, não se restringe a um determinado nível socioeconômico, tampouco a uma faixa etária específica ou gênero

A pesquisadora revela que o que mais aprendeu nos seus estudos é que agressores também sofrem e permanecem na violência com medo de que sejam vítimas no futuro. Eles ficam reféns em um ciclo, e podem não ter intenção de machucar e nem entender que estão machucando, visto que as pessoas têm diferentes níveis de empatia e alguns não são empáticos.

Para lidar com vítimas e agressores, a comunicação familiar é fundamental. Pais devem ir até a escola, estabelecer limites claros e criar oportunidades para favorecer diferentes habilidades que nutram a autoestima dos filhos, favorecendo relações do jovem fora da escola.

Agressividade sempre gera agressividade e somos influenciados por modelos, portanto, Lisboa sugere que “Ao invés de eleger culpados deveríamos pensar em uma cultura não agressiva e violenta em todas as escolas e na sociedade. Sem punições inadequadas e com valorização do amor, da alegria, da solidariedade”.
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Há 20 anos ameaças fermentam na internet

Por Tiago Lobo
No fórum Dogolachan, localizado na primeira camada da Deep Web, uma parte da internet invisível aos motores de busca como o Google, adolescentes intitulados Incels (celibatários involuntários na sua linguagem), trocam informações e pedem dicas de forma anônima. Os assuntos variam desde a compra facilitada de armas, esquemas de bombas caseiras, tipos de ácidos para agredir pessoas, até troca de conteúdo pedófilo e dicas para planejar e cometer atentados terroristas.

Há um espaço, inclusive, que funciona como um confessionário. Um “padre” responde às confissões dos usuários. Um deles pede, por exemplo, ajuda após 9 dias de celibato para se livrar do vício pela masturbação que teria o tornado “impuro”…

O fórum é terreno fértil onde apologia ao crime é rotina. De lá que partiram incentivos para tragédias que mobilizam o país desde o final dos anos 90.

Até novembro de 1999, “tiroteios em massa” não eram uma realidade no Brasil. Isso era tido como um problema da terra do Tio Sam, nada Tupiniquim.

A partir de 20 de abril daquele ano o chamado “Massacre de Columbine” inundou a pauta na imprensa internacional: dois adolescentes mataram 12 alunos  e um professor, feriram outras 21 pessoas para depois se suicidarem em uma escola do Colorado, Estados Unidos. Desde 1996 os adolescentes alimentavam um site onde compartilhavam mapas e estratégias sobre o jogo de tiro “Doom”. No final de 97 já havia conteúdo sobre como construir bombas caseiras e postagens que descreviam o ódio que a dupla sentia da sociedade.

Na noite de 3 de novembro, pouco mais de 6 meses depois de Columbine, cerca de 30 pessoas assistiam ao filme O Clube da Luta na sala 5 do cinema do Shopping Morumbi, em São Paulo. Um estudante de medicina de 24 anos começou a atirar até esvaziar o pente de uma submetralhadora, matando três pessoas e ferindo outras quatro. Ele foi imobilizado quando ficou sem munição e logo em seguida foi detido pela polícia.

Advogados de defesa, na época, tentaram alegar insanidade, o que o tornaria ininputável: alguém que não tem discernimento sobre certo e errado, e possibilitaria o cumprimento da pena em um hospital psiquiátrico. Alegaram também que ele havia sofrido influência de um jogo de tiro, o clássico Duke Nukem: não colou e ele foi condenado a 120 anos e seis meses de prisão.

Um psiquiatra contratado pela família afirmou que o jovem sofria de Transtorno de Personalidade Esquizoide (TPE), caracterizado pelo distanciamento e desinteresse no convívio social e uma gama limitada de emoções em seus relacionamentos interpessoais.

Membro de família da classe média alta de Salvador, o “atirador do shopping” começou a apresentar indícios de depressão e ideação suicida aos 13 anos: queixava-se à mãe que não tinha amigos. Aos 15, durante um intercâmbio nos E.U.A, foi mandado de volta pela família que o acolheu no exterior por conta da sua agressividade e, ao retornar, passou a agredir fisicamente os próprios pais chegando a fraturar a costela de um deles.

Por recomendação médica, foi morar sozinho em São Paulo, para ter “uma vida social independente”. Na faculdade de medicina (seguindo os caminhos do pai), ingressou como aluno brilhante e foi decaindo. Introspectivo e com reações desproporcionais às brincadeiras dos colegas foi ficando sozinho. Um professor o definiria como uma pessoa “apática, diferente”. Nas primeiras férias da faculdade tentou suicídio, depois teve que sair da pensão onde morava por agredir um colega, na sequência ameaçou o porteiro de um apartamento que os pais lhe alugavam e passou a ter alucinações.

Cinco dias antes do crime, resolveu largar a medicação psiquiátrica por conta própria e fazia uso frequente de cocaína. A polícia encontraria 37 papelotes da droga no apartamento do estudante, que não pagava o condomínio havia dois meses.

Três anos depois do julgamento, a pena foi reduzida a 48 anos e nove meses de prisão por uma tecnicalidade da legislação. Hoje ele segue preso, institucionalizado no Hospital de Custódia e Tratamento de Salvador, destinado a doentes mentais.

Logo após ser detido, policiais do 96º DP perguntaram se havia alguma namorada ou amigos para avisá-los da situação do atirador. “Eu não gosto de ninguém”, ele respondeu. A primeira escola

A cidade de Taiúva, a 363 km de São Paulo foi o palco para o primeiro tiroteio em massa dentro de uma escola que o Brasil registra. Às 14h40min do dia 27/01/2003, um jovem de 18 anos armado com um revólver calibre 38 e 105 projéteis invadiu o pátio da sua ex-escola e disparou quinze vezes contra alunos, professores e funcionários. Após ferir cinco estudantes, zelador e vice-diretora, se matou com um tiro na cabeça. Uma das vítimas ficou tetraplégica.

O colégio estadual Coronel Benedito Ortiz, cena do crime, foi frequentado pelo atirador durante toda sua vida escolar. À época a diretora da escola, Maria Luiza Gonçalves Oliveira disse para a imprensa que eram muito amigos e que “ele nunca deu problemas, era educado, sempre andou bem vestido”.

A polícia concluiu que o atirador teria cometido o crime motivado por revolta, devido ao bullying que sofria por ter “problemas com peso”. Em 1999, segundo a diretora Oliveira, o jovem conseguiu emagrecer quase 30 quilos.

Filho único de família simples, o pai trabalhava no campo e a mãe dona-de-casa, o atirador de Taiúva era tido como bom aluno, sem problemas com disciplina e sem inimigos. Saía pouco e não tinha namorada.Luto nacional

O caso que teve maior repercussão na imprensa e comoção pública, levando a então presidente Dilma Roussef a decretar luto nacional, teve início na manhã de 7 de abril de 2011.

Um rapaz com 23 anos, ex-aluno da Escola Municipal Tasso da Silveira, no bairro de Realengo, na zona oeste do Rio de Janeiro, invadiu a instituição armado com dois revólveres calibres .32 e .38 e abriu fogo contra alunos deixando 12 crianças mortas (10 meninas e 2 meninos) e 17 feridas. Uma sobrevivente que foi entrevistada pela TV Record logo após o crime revelou que o assassino atirava nas meninas para matar e nos meninos para ferir.

Após ser baleado na perna por um policial, o atirador se matou.

Os investigadores apuraram que a motivação seria vingança por conta do bullying que sofria. O jovem já havia chamado de “irmão”  o atirador que matou 32 pessoas na Universidade Virginia Tech, nos E.U.A., em 2007. Este último venerava os autores de Columbine. O autor do massacre em Realengo também se identificava com o atirador de Taiúva.

Ele chegou a deixar um vídeo onde dizia ter sido vítima de “bullying”. “Muitas vezes, aconteceu comigo de ser agredido por um grupo e todos os que estavam por perto debochavam, se divertiam com as humilhações que eu sofria sem se importar com meus sentimentos”, declarou em a nota suicida. Nela também havia instruções de como deveriam ser feitas a retirada de seu corpo e o sepultamento. Nenhuma pessoa “impura” poderia tocar no cadáver. Análises do computador do jovem mostraram que ele constantemente fazia pesquisas sobre terrorismo e se identificava com Osama Bin Laden.

15 dias após o massacre nenhum familiar compareceu ao Instituto Médico Legal para liberar o corpo do atirador: ele foi enterrado como indigente.

Padrões se repetem

Mesmo com um intervalo de tempo, parece que o efeito de um atentado em massa se desdobra em cascata.

Em setembro de 2011, 5 meses após Realengo, uma criança de 10 anos atirou contra sua professora e, em seguida, cometeu suicídio na escola Professora Alcina Dantas Feijão, no município de São Caetano do Sul, do ABC paulista.  O crime ocorreu às 15h50min, após uma discussão em sala de aula. A arma foi um revólver calibre .38 que pertencia ao pai da criança, um guarda civil. Ambos foram socorridos com vida, mas após duas paradas cardíacas o menino foi declarado morto às 16h50. A professora sobreviveu. Os investigadores chegaram a afirmar que o menino era “manco”, que sofria gozações dos colegas e esta seria a motivação do crime, mas abandonaram a tese.

Em outubro de 2017 um adolescente de 14 anos matou dois colegas e feriu outros quatro ao disparar uma pistola .40 da mãe, que assim como o pai, era policial militar. O crime ocorreu no Colégio Goyases, em Goiânia (GO). Segundo os colegas, o jovem era constantemente chamado de “fedorento”.

Este ano, o ataque ocorrido na escola paulista Raul Brasil, em Suzano, no dia 13 de março, deixou 10 mortos e 11 feridos, por dois jovens encapuzados que abriram fogo nas dependências da instituição. Suspeita-se que os atiradores tenham sido frequentadores do Dogolachan, onde são celebrados como heróis.

Acompanhe as reportagens da série:

Repressão aos crimes virtuais desafia polícia gaúcha

Por Tiago Lobo

Ameaças inspiradas no atentado de Suzano pegaram as forças policiais do RS de surpresa. Desde junho de 2010, com a criação da Delegacia de Repressão aos Crimes de Informática (DRCI), foi a primeira vez que a Polícia Civil Gaúcha teve que investigar possíveis tiroteios em massa no Estado. Com falta de efetivo e investimento em tecnologia, a Civil conseguiu reagir antes que o pior acontecesse.

Com aproximadamente 500 procedimentos abertos, entre inquéritos e termos circunstanciados, a pasta comandada a pouco mais de um mês pelo Delegado André Anicet, conta apenas com quatro policiais entre inspetores e escrivães. Apenas um deles possui formação em área relacionada: sistemas de informação.

A DRCI atua a partir de denúncias. Entre os principais casos estão golpes na internet (estelionato) e extorsão sexual – quando uma pessoa é chantageada por alguém de posse de fotos nuas, por exemplo.

As ameaças pelo estado vieram à tona a partir da repercussão de Suzano. Até então, segundo o delegado e o inspetor Amaral, que está há 3 anos na delegacia, ameaças de tiroteios em escolas não eram uma realidade no RS.

A escalada começou a partir do alerta à Rede Marista. A maioria das ameaças partiram de adolescentes passando trotes. A polícia segue recebendo e apurando denúncias, mas o volume vem caindo.

Os autores podem responder por apologia ao crime, ameaça, associação criminosa e até responder por ato terrorista. Mobilizar forças de segurança a partir de um mero trote e provocar alarde e pânico na sociedade também é crime.

O delegado revela, com certa cautela, que de todas as denúncias recebidas até agora, duas eram potencialmente mais preocupantes. Anicet ressalta que mensurar potencial é difícil, mas nestes dois casos os autores teriam meios para perpetrar um ataque – ambos já foram identificados e detidos.

“O caso do colégio Marista foi uma mera ameça, uma Fake News”, revela o delegado.

A apuração de crimes praticados na internet começa com algumas técnicas específicas de coleta de dados e informações. Em dado momento do inquérito ela se torna um trabalho de investigação tradicional.

Atualmente o próprio delegado pode solicitar à plataformas como Facebook, Twitter e outras redes sociais, assim como empresas de telefonia, dados cadastrais de um suspeito. Informações mais detalhadas que permitam o rastreio do endereço de IP de um computador, por exemplo, ainda requerem ordem judicial. O que é visto como um entrave em casos urgentes.

Apesar do efetivo reduzido, a DRCI não age sozinha. Além das delegacias locais da Polícia Civil que atuam nas investigações, ela conta com relatórios do Gabinete de Inteligência Estratégica e da Secretaria de Segurança Pública para fazer cruzamentos de dados e estabelecer, por exemplo, se as ameaças às escolas do estado possuem alguma conexão entre si.

Investigações em andamento, mas pelo tom do delegado não parece ser o caso.

A Polícia Civil do RS ainda não possui tecnologia para rastrear usuários na Deep Web, como no fórum Dogolachan, de onde já partiram algumas ameaças, por isso as investigações contam com a ajuda da população. Denúncias levam aos autores.

Apesar disso o Delegado ressalta que, ao contrário da crença popular, “não é verdade que a Deep Web é irrastreável. Não temos estrutura pra isso no momento, mas é possível”.

O WhatsApp, por exemplo, também não é invisível ao monitoramento da polícia. Ela não pode acessar o conteúdo de trocas de mensagens por conta da criptografia da ferramenta, mas consegue saber quem e quando um suspeito se comunicou com outro pelo aplicativo.

“Acredito que o futuro da criminalidade é digital”, afirma o delegado. Pelo visto o da investigação também: o inspetor Amaral, por exemplo, conta que pediu para integrar a DRCI após alguns anos na Homicídios. Ele realizou uma capacitação via Ministério da Justiça para operação de um software desenvolvido pela polícia Canadense para rastrear conteúdo pedófilo na surface (a internet que todos nós navegamos) e Deep Web.

O caso de maior repercussão nos últimos três anos da pasta foi gerado por desinformação:  “A Baleia azul se tornou potencialmente ofensiva por causa da mídia”, opina o Inspetor.

A exposição da imprensa levou o DRCI a instaurar um inquérito para investigar se havia organização criminosa nesse caso. Suspeitos foram monitorados, identificados e apurou-se que não havia crime.

O “jogo da Baleia Azul” foi um boato que chegou ao Brasil em 2017, com a ideia de que levaria crianças a cometerem suicídio, o que supostamente já havia acontecido na Rússia.

Mas fique tranquilo: tudo não passou de um boato que a imprensa repercutiu sem apurar devidamente. Em audiência pública na Câmara dos Deputados, em Brasília, o presidente da ONG Safernet, Thiago Tavarez, esclareceu que “essa notícia falsa que nasceu na Rússia e chegou ao Brasil de forma sensacionalista e alarmista acabou servindo de gatilho para um efeito de imitação”. Com a “Boneca Momo” (google it) não foi diferente.

Se apenas cinco servidores compõem uma das delegacias mais importantes em um momento de repercussão de tiroteios em massa planejados e incentivados pela Deep Web, o inspetor Amaral relata a sua surpresa ao se deparar com a estrutura da delegacia da mesma pasta no Rio de Janeiro, capital. 30 policiais, plantão 24h, atendimento especializado e estrutura qualificada.

“Eles estão anos-luz na nossa frente”, afirma Amaral.

Além de conduzir investigações, a delegacia ainda presta atendimento ao público: mas nem todas as pessoas que visitam a delegacia são vítimas ou deveriam estar lá… Muitas vezes não há crime: “Qual a legislação aplicável para lançar um site?”, “como deixar meu site seguro?”, “celulares que falam sozinhos” e etc despendem um tempo dos policiais para assuntos que não são trabalho de polícia.

Pergunto aos dois: com o atual efetivo da delegacia de repressão a crimes informáticos é possível dar conta? Eles não hesitam e despejam um “não” com certa frustração.

“Acho que o maior investimento em termos de Polícia e repressão deveria ser em tecnologia e pessoal. O caso Marielle, por exemplo, foi praticamente uma investigação cibernética”, defende o delegado. “Esperamos ter mais gente agora com um novo concurso. A equipe é pequena”.

“Há motivo para pânico?”, pergunto: “as pessoas tem que ter o cuidado de sempre e se suspeitarem de alguma coisa denunciarem”, é a recomendação do delegado Anicet.
Denuncia de ameaças de tiroteios em massa podem ser feitas pelo telefone 08005102828