Ele estava lá: entrevista de Flávio Tavares sobre o golpe de 1964

Três jornalistas estavam na sessão de emergência do Congresso Nacional, na madrugada de primeiro de abril de 1964.

Um deles era Flávio Tavares, um jovem de 29 anos, que assinava a coluna política do jornal Última Hora.

Ali, em três minutos, atropelando o bom senso e a legalidade, o presidente do Senado, Auro de Moura Andrade, declarou  vaga a Presidência da República e abriu o caminho político para o golpe que, militarmente, já tinha sido deflagrado pelo general Mourão Filho, em Minas.

“Assisti a tudo, mas só agora, 50 anos depois, fui descobrir os elos da conspiração e da articulação do golpe”, diz Tavares no livro 1964, O Golpe, que escreveu para contar essa tenebrosa história.

(Esta entrevista foi publicada na edição especial da Revista JÁ, alusiva aos cinquenta anos do golpe militar que derrubou  o presidente João Goulart e implantou uma ditadura que durou 21 anos)

JÁ – Como foi aquele dia em Brasília? 

Flávio Tavares – Estávamos isolados em Brasília, sem telefone, sem telex… O aeroporto estava fechado desde as nove horas da manhã, não sabíamos de nada. A única fonte era a embaixada americana, que tinha comunicação com o Rio. Então, sabíamos alguma coisa indiretamente.

Da mobilização do Mourão, sabiam?

Da mobilização do Mourão se soube vagamente, pois na verdade ela começou dia 30, com um manifesto lançado pelo governador de Minas, Magalhães Pinto. Unindo o PSD juscelinista com a UDN, ele queria criar um estado de beligerância, para ser reconhecido pelos Estados Unidos. Tanto que antes de divulgá-lo, enviou o texto por telex para  a embaixada americana no Rio. A Casa Branca e o presidente Lyndon Johnson conheceram o manifesto antes dos mineiros.

Um manifesto ambíguo, no estilo mineiro…

Era mineiro a tal ponto que o Jango ainda no Rio recebeu telefonema de um deputado do PTB de Minas se congratulando: “O Magalhães lançou um manifesto pelas reformas”. É que  no final do texto, ele fala nas reformas. Esse manifesto deixou o  Mourão furioso, porque ele queria que fosse incisivo, contra o Jango. Mas o Magalhães, como bom mineiro, deixava espaço para um recuo, caso o golpe não desse certo.

E quando o Jango chegou a Brasília?

Quando o Jango chega em Brasília no fim da tarde do dia primeiro de abril,  já em fuga, fui de fato o  único jornalista a estar com ele. Estávamos no Planalto eu e Fernando Pedreira, do Estadão, mas o Estadão era radical contra o Jango, chamava-o de “presidente totalitário”…  o Pedreira logo saiu. Tinha também uma repórter do Correio Braziliense, era comunista, amiga pessoal do Jango… Ficamos eu e essa moça, Maria da Graça Dutra, entramos no gabinete, o Jango estava arrumando uns papéis e falou: “Vou instalar o governo no Rio Grande do Sul. Nomeei o general Ladário para o III Exército…”

Mas o general Ladário Telles ainda nem tinha chegado a Porto Alegre…

Sim, ele chegou já na madrugada do dia primeiro de abril. Era general-de-divisão, foi comissionado para poder assumir o III Exército e acreditou que o Jango queria resistir.

O Jango falou em resistir?

Na verdade o Jango já saiu do Rio em fuga, ele queria negociar. O Jango não sabia resistir, ele era um grande negociador. Havia um serviço de rádio e por ele o Jango fala com Porto Alegre, com o Brizola. Havia um serviço de rádio do III Exército, que funcionava muito bem e era operado pelo major Álcio. Só que o major Álcio gravava tudo e depois passava para o pai dele, o general Costa e Silva [risos]. Havia também no Planalto um telefone no gabinete presidencial, era uma espécie de “telefone vermelho”, levantava e dava direto com a central telefônica no Rio. Por esse telefone Jango falou com o general Moraes Âncora, comandante do I Exército. Era um homem corretíssimo, legalista. Era asmático, estava com uma crise de asma, falava com dificuldade.  Ainda não havia tomado providência nenhuma, aguardava ordens… O ministro do Exército estava no Hospital, numa posição dúbia… O ministro da Aeronáutica estava em cima do muro e o ministro da Marinha, que mandava pouco, havia recém-assumido…

Ele decide então instalar o governo em Porto Alegre?

Sim, mas fundamentalmente para negociar enquanto o Congresso votaria o impeachment, o que demoraria uns oito dias…

Por que ele hesitou em autorizar a resistência?

Provavelmente porque, num conflito, como aconteceu em 1961, ele seria o menos importante. Os beligerantes é que seriam importantes, o Ladário Telles ou o Brizola… Na verdade, nada deu certo naquele dia. O Jango havia requisitado um Coronado da Varig, um jato intercontinental.  Saiu da Granja do Torto depois de gravar um “Manifesto à Nação” que foi redigido pelo Waldir Pires, pelo Almino Afonso e pelo Tancredo Neves. Só que usaram um gravador caseiro, a gravação ficou péssima, foi impossível reproduzir na rádio. Tínhamos tomado a Rádio Nacional, um grupo de jornalistas liderados pelo deputado José Aparecido, dissidente da UDN. Não adiantou nada.

Aí o Jango vai para a Base Aérea…

Sai por volta da oito, para a tomar o avião.  Só que o Coronado da Varig teve um “mal súbito”.  O velho amigo do Jango, o nosso Rubem Berta, o presidente da Varig, provavelmente se deu conta de que a coisa já tinha virado, ele ia ficar muito mal… Nunca se comprovou, mas foi uma ordem. O Jango embarca e o avião tem uma pane…

Dizem que foi sabotagem…

Não houve sabotagem. Houve um “mal súbito”, como eu chamo.  Então decidem passar para um Avro, porque o Viscount presidencial estava no conserto há 15 dias… e aí não tinha tripulação. Até que o coronel Ernani Fittipaldi, da Casa Militar, assume o comando e decolam. O Avro era um bimotor, lento. Saem às onze e meia da noite de Brasília. O Coronado faria a rota Brasília/Porto Alegre em duas horas. O Avro demorou quatro horas ou mais. Sem telefone, sem informação, pensávamos que o Jango já estava chegando a Porto Alegre e ele estava ainda saindo de Brasília.

Perdeu um tempo precioso...

A capacidade de resistência estava minada. Em Brasília, o Mazzili já estava tomando posse como presidente. O Congresso tinha feito uma artimanha: numa sessão de três minutos, sem debate, nem votação, o Auro Moura Andrade declarou vaga a Presidência da República. O Darcy Ribeiro, como chefe da Casa Civil, tinha feito um ofício ao presidente do Congresso, dizendo que em vista dos acontecimentos o presidente da República o havia incumbido de comunicar que deixara Brasília para instalar o governo em Porto Alegre junto com o seu Ministério, “para proteger-se da tentativa de esbulho”. O Auro nem considerou: “A Presidência da República está acéfala… Declaro vaga a Presidência, com base no do artigo 79 da Constituição… está encerrada a sessão”.  O Zaire Alves Nunes, deputado do Rio Grande do Sul, avançou para bater no Auro: “Seu filho da puta…” Não havia o que fazer… Na saída passo no gabinete do Tancredo Neves, ele diz: “Está tudo terminado”. Como bom mineiro, o Tancredo não era de resistir, pelo contrário…

No palácio do Planalto, como foi?

Naquela caminhada da Câmara dos Deputados até o Planalto, às três da madrugada, me veio à cabeça um consolo… Puxa, isso até é bom, porque o Brizola não vai ter mais incompatibilidade, vai poder ser candidato à Presidência…” Ingenuidade nossa, pois o golpe era, mais do que tudo, para impedir a eleição e, mais do que isso, para impedir o Brizola. Engraçado é que, depois eu conto isso para o Brizola, em Montevidéo, e ele diz: “Tu sabes que tive a mesma ideia naqueles minutos iniciais… fiquei tão decepcionado com o Jango que pensei: ‘Pelo menos, agora posso ser candidato”.  Pura ingenuidade…

E a posse do Mazzili, também foi a jato, né?

Fomos para o Planalto, onde ele ia tomar posse.  Na hora alguém disse: “Falta um general”. Aí  saíram para buscar um general… Um grupo de deputados entra no gabinete do Darcy Ribeiro e se deparou com o general Nicolau Fico, que era de Bagé, mas já tinha virado. Darcy estava furioso, expulsa todo o mundo, xingando. Meia hora depois, conseguem o general André Fernandes, chefe do Gabinete do ministro da Guerra, um general apagado, que em seguida vai ser chefe da Casa Civil do Mazzilli, que então toma posse.

A que hora foi dada a posse?

Pouco antes das quatro da madrugada… dez pras quatro mais ou menos.

O Jango chegou a Porto Alegre às 3h15 minutos…

A essa altura o Auro já havia declarado vaga a Presidência… E menos de uma hora depois foi dada a posse. Quer dizer, quando ele chegou ao Rio Grande, estava decidido…

O Auro tinha raiva do Jango, não é?

Isso foi decisivo. O Auro tinha ódio do Jango e com razão. O Jango tinha feito uma grande sacanagem com ele, coisa da honra pessoal. O Jango achava que tinha feito uma grande jogada política, mas…

Foi sacanagem mesmo…

Era típico das manobras do Jango. Ele convida o Auro para ser primeiro-ministro.  O Auro aceita, tem o voto de confiança no Congresso e passa a escolher o Ministério, ministros de confiança dele. O Jango queria influir, mas o Auro não o consultou. O Auro, que era inteligente, sagaz, com aquela história de ser primeiro-ministro… Jango pede a ele que assine uma carta de renúncia, alegando que podia surgir algum problema insolúvel entre os dois. Na ânsia de ser primeiro-ministro, ele aceitou. Uma carta de três linhas: “Por esse meio renuncio ao cargo de primeiro-ministro tal e tal…” O Jango guarda na gaveta. Dias depois, o Auro está no Congresso, já tinha convidado alguns ministros, tinha começado a escolher… O Auro está no gabinete dele no Senado… Há um alto-falante que transmite as sessões… de repente o líder trabalhista, deputado Almino Afonso, pede a palavra e anuncia que o primeiro-ministro acaba de renunciar. Auro fica sabendo que renunciou pelo alto falante.

Uma manobra do Jango?

Ele telefonou para o Almino Afonso. Disse, textualmente: “Me diz… pelo Regimento Interno tu, como líder, podes pedir a palavra a qualquer momento, para uma comunicação?” O Almino diz: “Posso”. “Podes pedir agora?” “Sim…” “Então há uma comunicação urgentíssima… Comunica que o Auro renunciou”. O Almino se espanta: “Como?”. “Pode anunciar, tenho uma carta dele aqui…” Almino vai para a tribuna e anuncia. Foi o Almino quem me contou isso, tempos depois… Então, o Auro tinha um ódio visceral do Jango… Em 1961, quando os militares tentaram impedir Jango de assumir, o Auro foi a favor da posse.  Então, do ponto de vista da honra pessoal, o Auro tinha razão.

O Jango não era dado a deslealdades, não é?

Não, mas essas coisas eram bem do estilo da época. Era uma coisa getuliana, só que o Getúlio Vargas fazia as coisas de uma forma mais astuta.  O Getúlio faria com que o próprio Auro se visse na contingência da renunciar… O Getúlio era o grande espelho de Jango, só que ele não era o Getúlio. Não tinha a experiência do Getúlio, que tinha sido presidente do Rio Grande do Sul, ministro da Fazenda, chefe da Revolução de 30… A experiência do Jango era parlamentar. Sua passagem pelo Ministério do Trabalho foi curta… O Jango era muito moço, tinha quarenta e poucos… Ele morreu com 57 anos, muito novo.

Agora, os erros da esquerda…

Faço essa revisão há muito tempo. O Francisco Julião, por exemplo, foi um dos maiores embustes que este país conheceu. Mantinha uma aparência de simplicidade e humildade absoluta, coisa que ele não era. Era um farsante, um místico de esquerda, convencido de que ia ser o Fidel Castro do Brasil. Isso naquele contexto em que o Fidel era a grande figura não só da esquerda mundial, era a grande figura heróica e humana daqueles tempos. Ele havia vencido uma ditadura odiosa e vencido mesmo, pelas armas. Para ter uma ideia, o Fidel foi aplaudido nos Estados Unidos quando visitou o país. Foi aclamado pela multidão em Buenos Aires. Quando veio ao Brasil foi elogiado até pelo Carlos Lacerda. O Julião queria ser o Fidel brasileiro e foi o grande provocador daqueles anos.

O homem das Ligas Camponesas…

Vou contar um detalhe: em 1969, eu saí do país no grupo dos 15 presos políticos que foram trocados pelo embaixador americano Burke Elbrick, junto estava o Gregório Bezerra, o grande dirigente comunista que organizava os sindicatos rurais no Nordeste. Era pernambucano como o Julião. Quando chegamos ao México, eu digo para o Gregório: “Vamos visitar o Julião”. O Julião estava asilado lá. Aí, noto que o Gregório não quer aparecer do lado do Julião. Ele me diz: “Camarada Flávio, não tenho nenhum interesse em falar com Julião”. Gregório era um homem respeitabilíssimo, era o Velho, tinha sessenta e tantos anos. Depois é que fui saber: o Gregório tinha feito um trabalho sério no Nordeste de organização dos sindicatos rurais. O Julião fazia agitação.  Pegou as Ligas Camponeses, articuladas pelo Pedro Teixeira, um grande líder, assassinado em 1962, e fazia demagogia pura. Só que ninguém sabia… Ele foi eleito deputado federal por Pernambuco, mas foi comparecer pela primeira vez na Câmara no dia 30 de março de 1964, para não perder o mandato por faltas continuadas. Não era conhecido nem pelos guardas da Câmara, que não queriam deixar ele entrar. Chega à tribuna, no meio daquela crise, e fala como um general… Anuncia que 60 mil homens das Ligas Camponesas, armados, estão prontos para se rebelar no Brasil inteiro… Cinco mil só no distrito federal… Na verdade, não tinha nada…

Mas figuras respeitáveis, como o Prestes, erraram também…

É, tem a célebre reunião em Moscou em que ele diz que não havia a mínima chance de golpe, pouco antes do golpe… Depois se soube também que Prestes disse nesta reunião que no Comitê Central do Partido Comunista do Brasil tinha um monte de generais… Essas coisas davam um vigor falso para a esquerda. Eu tenho muito respeito pelo Prestes, pela figura íntegra dele, mas ele foi sempre um sonhador, sempre acreditou nas coisas sem penetrar no âmago das coisas. Na revolução de 30, o Prestes recebeu uma proposta do Getúlio aqui no Palácio Piratini, ele mesmo conta isso… Ele vivia na Argentina e veio clandestino falar com o Getúlio, que oferece a ele a chefia militar da revolução, ele era o grande herói, o capitão Luiz Carlos Prestes, da Coluna. Ele começa a falar, diz que só acredita na revolução socialista, proletária, que não acredita naquela revolução burguesa… Getúlio só ouvindo… No fim, segundo o próprio Prestes, Getúlio  diz mais ou menos o seguinte: “Sua dialética é bela, profunda e convincente, mas a mim não convenceu…”. O Prestes queria outra revolução… preparar o proletariado… nem havia o proletariado, no sentido sociológico.  Havia pobres, sem cultura urbana, sem organização… Então, esses otimismos do Prestes…

O Brizola também foi um pouco irrealista, em 1962, por exemplo…

Aí, é outra coisa. O Brizola ia ser deputado pelo Paraná, foi convencido… que tinha que ser candidato pelo Rio de Janeiro,  para enfrentar o Carlos Lacerda,  governador do Rio de Janeiro. O problema do Brizola é outro. O Brizola nunca preparou herdeiros.   O Brizola nunca foi corrupto… Foi investigado de todo jeito nunca acharam nada…

Nem herdeiros, nem concorrentes…

Terminou com todos os concorrentes aqui no Rio Grande do Sul: José Diogo Brochado da Rocha, Fernando Ferrari, Loureiro da Silva… a consequência é que na eleição para governador em 1962 não havia um candidato, então o trabalhismo no Rio Grande do Sul foi escolher Egydio Michaelsen, diretor  jurídico do  Banco Agrícola Mercantil (que depois veio a ser o Unibanco), nada representativo do trabalhismo.

E então sofreu uma derrota que foi decisiva em 1964…

As melhores e as piores recordações da minha vida foram com o Brizola… Quando cheguei do exílio, por exemplo, tive uma recepção calorosa no Rio. Quando desembarquei o Galeão, um funcionário me disse: “O Brizola chegou de manhã cedo e está no aeroporto à sua espera”. Ele tinha chegado do México, de uma reunião da Internacional Socialista. Chego e estão lá umas 50 pessoas, a tevê Globo vem me entrevistar. Estou junto ao Brizola e a Neusa. Uma das perguntas que me fazem: “para qual partido vai entrar?” Respondi com uma expressão que ele usava: “Na camisa de força do regime militar, partido nenhum. Meu partido é o jornalismo”. No que digo isso, o Brizola se retira. À noite, vou ao Hotel Everest, onde o Brizola estava hospedado. Havia uma reunião do PTB, ele me diz: “Fica aí, é só o pessoal do Rio…”, e me dá um chá-de-banco. Quarenta minutos depois, ele sai: “Flávio, vem aqui. Tu fizeste nessa manhã algo terrível, tomei como uma agressão. Eu estava ao teu lado,  e disseste que não vais te filiar a partido nenhum. Isso é uma afronta…”  Não admitia posições discordantes…

Os erros da esquerda alimentaram o discurso golpista.

Isso é muito esquemático. Não foi o discurso da esquerda que alimentou ou deu pretexto à conspiração e ao golpe. O que fez o golpe foi a Guerra Fria. Isso hoje está provado.  No dia 30 de julho de 1962, na Casa Branca, Lincoln Gordon convence o Kennedy que o Brasil está sendo comunizado e eles têm que intervir, para evitar uma outra Cuba. Transcrevo todo o diálogo no meu livro.

Mas o discurso da esquerda radical assustou…

Sem dúvida, o discurso do Julião… e do Brizola, também.  Agora, quem atiçou o golpe foi a Guerra Fria. Em 1962, quando Vernon Walters vem ao Brasil como adido militar para preparar o golpe, quem o recebe no aeroporto é o general Ulhoa Cintra, que não se conformou com a solução que levou Jango ao poder. Quem atua como contato com o coronel Vernon Walters e os militares da conspiração é o Ulhoa Cintra. São os derrotados de 1961, engajados na Guerra Fria. O general Golbery dizia que o Jango não poderia ser presidente porque era homem dos interesses da União Soviética no Brasil.

O IPES foi criado três meses depois da posse de Jango…

Foi antes, já em setembro de 1962 ele está em gestação. O general Golbery pede a reforma ainda em setembro e já estava conspirando. Em novembro formaliza, se instala no Rio. O IPES foi o grande instrumento na guerra psicológica. O Golbery auxiliado por um sujeito que hoje é um romancista conhecido, o Rubem Fonseca… Começou a fazer ficção ali, nos filmes que ele fazia para o IPES, que são muito bem-feitos, maravilhosos, tecnicamente falando. O IPES foi o “grande contubérnio”.

Até panfletos com listas de pessoas a serem eliminadas eram forjados…

Tudo inventado, falsificado, para assustar. O IPES foi a grande arma ideológica. Antes, já no governo do Juscelino, funcionava o IBAD, que fazia o trabalho sujo. Uma comissão de inquérito da Câmara de Deputados provou isso. Bancava os caras, isso está mostrado no filme “O Dia que Durou 21 Anos”. Os Estados Unidos, imediatamente, reconheceram os golpistas e estavam prontos a intervir, se necessário.

Foi por saber disso que Jango não quis resistir?

Jango nunca soube. O que San Thiago Dantas disse a Jango é que Minas Gerais seria reconhecida como Estado beligerante… Mas da movimentação da esquadra americana, ele só foi saber em 1976, quando liberaram os papéis reservados.  La Nación, de Buenos Aires, publicou uma nota sobre o livro de Phyllis Parker que revelou isso. Jango ficou sabendo aí, no exílio.

Mas ele havia sofrido pressões…

Sim, muitas pressões… Quando o Jango visita os Estados Unidos, em 1962, o John Kennedy foi esperá-lo na escadinha do avião. Já no helicóptero que transporta os dois até a Casa Branca, Kennedy o questiona sobre a reforma agrária. Jango desfilou em Nova York sob chuva de papel picado, tudo programado, para impressioná-lo. O Lincoln Gordon sugeriu outra coisa: uma visita do Jango à Base Militar de Offutt. Ele foi o primeiro chefe de Estado a ser recebido lá. Um general chamado Thomas Powell começa a mostrar num computador… Ninguém tinha visto antes… mostrava na tela a rota dos  B52 com bomba atômica, voando 24 horas… Em seguida disse: “Vou lhe mostrar uma outra coisa”, e levou Jango para ver o silo subterrâneo onde estava o foguete intercontinental Atlas, a mais poderosa arma do planeta, capaz de eliminar 500 mil pessoas em Moscou, Pequim, ou São Paulo. Jango, com o general Kruel, chega à base sorridente e sai completamente acabrunhado…

Lincoln Gordon foi o grande artífice…

Sim, isso hoje está provado. Reproduzo no meu livro os documentos e gravações que foram liberados depois de 30 anos. Ele e Vernon Walters alimentaram a conspiração, com muito dinheiro inclusive.

 

1964: O golpe, segundo o general que botou as tropas na rua

Noite de 31 de março de 1964.

À uma e meia da madrugada, o general Olympio Mourão Filho desiste de tentar dormir e retoma as anotações em seu diário.

Há quase uma semana se considera pronto para um golpe, mas desconfia que o estão traindo.

Esperava um manifesto do governador de Minas, que seria a senha para colocar as tropas na rua.

Em vez de mandar o texto antes, para ele, o governador entregou o manifesto à imprensa. E o conteúdo não era o que haviam combinado!

“Eu estava uma verdadeira fúria”, anotou. “Meu peito doía de rachar. Tive que pôr uma pílula de trinitrina embaixo da língua”

Olympio Mourão Filho, general de três estrelas, comandante da 4ª Região Militar, uma das principais forças terrestres do Exército brasileiro, estava mesmo descontrolado.

“Idiotas. O Chefe Militar sou eu. Magalhães não terá desculpa perante a história… E o Guedes [Carlos Luís Guedes, comandante militar em Minas Gerais], um falastrão vaidoso que aceitou o papel triste… Fizeram isto, bancando os heróis, porque sabiam que eu era a própria revolução. Do contrário não se atreveriam a dar um passo. Irresponsáveis! Arriscando uma revolução tão bem planejada num momento de vaidade!”

Depois da explosão, acalma-se: “Acendi o cachimbo e pensei: não estou sentindo nada e, no entanto, em poucas horas deflagrarei um movimento que poderá ser vencido porque sai pela madrugada e terá que parar no caminho. Não faz mal…”

Em seu plano original, Mourão previa sair de Juiz de Fora, no início da noite, com 2.300 mil homens. Cobriria os 200 quilômetros até o Rio de Janeiro em cinco ou seis horas. Antes de clarear o dia, tomaria de surpresa o prédio do Ministério da Guerra e o Palácio das Laranjeiras, onde estaria ainda dormindo o presidente João Goulart. Depois começava a caçar os comunistas.

Há uma semana “estava pronto”, mas vinha sendo retardado por artimanhas do governador Magalhães Pinto que, mineiramente, temia “se envolver numa aventura”.

Agora está decidido: “Vou partir para a luta às cinco da manhã… Ninguém me deterá. Morrerei lutando. Nosso sangue impedirá a escravização do Brasil”.

Depois se acalma novamente: “E o mais curioso de tudo isto é que, passada a raiva (já estou normal, bebi água e café) não sinto nada, nem medo, nem coragem, nem entusiasmo, nem tristeza, nem alegria. Estou neutro.”

Anotou alguns nomes num papel e, quando o relógio marcou cinco horas, chamou a única telefonista de plantão na central de Juiz da Fora: “Quero prioridade absoluta e rápida para as ligações que vou pedir. Estou mandando a PM ocupar a Estação e a senhorita não diga palavra a ninguém”.

Considerou-se em ação: “Eu já havia desencadeado a Operação Silêncio”, anotou.

Mourão, ainda embuído da Operação Popoye, ouve o governador mineiro Magalhães Pinto, “chefe-civil da revolução”. Com eles, o general Carlos Muricy. No primeiro telefonema, tentou alcançar o tenente coronel Everaldo Silva, que estava de prontidão no QG, “o telefone estava enguiçado”. Tocou, então, para o major Curcio e mandou desencadear a “Operação Popeye”, o plano militar que ele, Mourão, havia traçado e ao qual batizara com o apelido que lhe haviam dado no quartel pelo uso constante do cachimbo.

Em seguida, convocou os coronéis Jaime Portela e Ramiro Gonçalves para que se apresentassem imediatamente no quartel (nenhum dos dois apareceu).

A seguir, ligou para o almirante Silvio Heck, comandante da Marinha, golpista de primeira hora: disse que estava partindo em direção ao Rio, para depor Goulart.

O próximo foi o deputado Armando Falcão, para que avisasse Carlos Lacerda, governador da Guanabara, o mais notório inimigo do presidente.

Falcão, assustado, ligou para o general Castello Branco, que era o líder militar da conspiração e que evitara sempre se envolver com Mourão.

Castello, que não tinha tropas, tentou falar com Amaury Kruel, o comandante do II Exército, a maior força militar do país. “Isso não passa de uma quartelada do Mourão, não entro nessa”, disse Kruel, quando foi alcançado por emissários. Kruel ainda era amigo de João Goulart.

Nesse meio tempo, Castello recebeu uma ligação do general Antonio Carlos Muricy, outro conspirador sem comando.

Muricy diz que foi chamado a Minas por Mourão, “que está rebelado”. Castello aconselha que vá “para prevenir qualquer bobagem”.

Enquanto isso, Mourão segue anunciando o golpe por telefone. Ao final de sua rajada de chamadas, fez questão de registrar que “estava de pijama e roupão de seda vermelho”. E não esconde o “orgulho pela originalidade”: “Creio ter sido o único homem no mundo (pelo menos no Brasil) que desencadeou uma revolução de pijama”.

Subiu um lance de escada até o quarto onde estava seu hóspede e cúmplice, o desembargador Antonio Neder, “que dormia como um santo”.

Gritou: “Acabo de revoltar a 4ª Divisão de Infantaria e a 4ª Região Militar”. O amigo “entre espantado e incrédulo”, perguntou: “Você agiu certo? Tem elementos seguros?”.

Mourão desdenha : “Vocês, paisanos, não entendem disso”. Eu estou certo, pode crer”. Na verdade não tinha certeza de nada, nem mesmo se conseguiria tirar suas tropas do quartel.

Entrou no banheiro, fez a barba e leu alguns salmos da Bíblia, como fazia todos os dias. “Eu era um homem realizado e feliz. Não pude deixar de ajoelhar-me no banheiro e agradeci a Deus a minha felicidade, havia chegado a hora de jogar a carreira e a vida pelo Brasil!”

Abriu o chuveiro, banhou-se calmamente. Só então vestiu o uniforme de campanha e foi tomar café com Maria, sua mulher (“Não consigo me lembrar se o Neder tomou café conosco”, diz ele nos registros que fez dias depois).

A notícia de um golpe militar se espalhava rapidamente pelo país, mas o comandante do levante ainda não saíra de casa.

“A insurreição estava envolta numa nuvem que se parecia ora com uma quartelada sem futuro ora com uma tempestade de boatos”, registra Elio Gaspari.

Por volta das dez horas, ainda sem saber direito o que realmente estava acontecendo, o general Castello Branco saiu de seu apartamento, em Ipanema. Foi para o Ministério da Guerra, no centro, onde tinha seu gabinete de trabalho, no sexto andar.

De lá ainda insistiu com o general Luis Guedes, comandante da 4ª Divisão de Infantaria em Belo Horizonte, e o governador Magalhães Pinto para que detivessem Mourão. “Senão voltarem agora serão esmagados”.

Guedes, em suas memórias, tentou associar-se à ousadia de Mourão, dizendo que àquela hora também já estava rebelado, mas a verdade é que até aquele momento Mourão estava sozinho.

Mourão registra, desde o primeiro encontro entre ambos, a frase que Guedes repetia: “Quem levantar a cabeça primeiro, leva pau”.

O governador Magalhães Pinto, a quem Guedes seguia, desenvolvia um plano que permitisse recuos. Sua intenção era declarar Minas Gerais em “estado de beligerância”, contra o governo federal.

Esperava obter o reconhecimento dos Estados Unidos e, então, forçar João Goulart a renunciar. Seria instalado um mandato tampão até as eleições de 1965 , quando ele, Magalhães, seria o candidato imbatível – o libertador que afastara o perigo comunista.

O manifesto que lançou no dia 30 de março, escrito pelo mineiríssimo Milton Campos, defendia reformas de base e era tão cauteloso que o deputado federal Wilson Modesto, do PTB de Minas, leu a íntegra por telefone para Jango e o presidente respondeu: “Diga a Magalhães que está muito bom estou de acordo com ele”.

Tanques e jipes do II Exército descem para o Vale do Paraíba. O golpe venceu. As ações do general Guedes, àquelas alturas, se limitavam à Prontidão da Polícia Militar, força estadual, e a consultas ao cônsul dos Estados Unidos em Belo Horizonte, para saber se os americanos estavam dispostos a ajudar com “blindados, armamentos leves e pesados, munições, combustíveis, aparelhagens de comunicações…”. Para “mais tarde”, precisaria de “equipamento para 50 mil homens”.

Enquanto isso, Mourão enfrentava dificuldades para levar as tropas à rua. O comandante do 10º Regimento de Infantaria, coronel Clóvis Calvão, não apoiava o levante. Mourão contornou o impasse dando férias ao coronel.

Dois outros coronéis e o comandante da Escola de Sargentos de Três Corações, também rechaçaram a ordem de botar a tropa na rua e foram para casa.

Nada disso influiu no apetite do general. À uma da tarde, ele foi para casa almoçar e não dispensou sequer a sesta. Nessa hora, já se movimentavam forças para atacá-lo a meio caminho do Rio.

“Na avenida Brasil, principal saída do Rio e caminho para Juiz de Fora, marchavam duas colunas de caminhões. Numa iam 25 carros cheios de soldados, rebocando canhões de 120 mm… Noutra, em 22 carros ia o Regimento Sampaio, o melhor contingente de infantaria da Vila Militar. De Petrópolis, a meio caminho entre o Rio e Mourão, partira o 1º Batalhão de Caçadores” (Gaspari).

“Tinham-se passado oito horas desde o momento em que se considerara insurreto. Salvo os disparos telefônicos e a movimentação de um pequeno esquadrão de reconhecimento que avançara algumas dezenas de quilômetros, sua tropa continuava onde sempre estivera: em Juiz de Fora.” (Gaspari)

Fardado, de capacete, Mourão, auto-intitulado Comandante em Chefe das Forças Revolucionárias, foi fotografado no meio da tarde, no QG da 4ª DI. Mas aos jornalistas ainda negava que estivesse rebelado.

O general Antonio Carlos Muricy, que Mourão chamou para chefiar a vanguarda da tropa que desceria em direção ao Rio, só foi chegar a Juiz de Fora às 18 horas.

Os recrutas de Mourão começam a se deslocar em direção ao Rio de Janeiro. Ao inspecionar as forças de que dispunha, Muricy comprovou que mais da metade eram recrutas mal preparados e a munição dava para poucas horas.

“Ele não é bem visto no Exército e provavelmente não liderará uma conspiração contra o governo, em parte porque não tem muitos seguidores. É visto como uma pessoa que fala mais do que pode fazer”, dizia um informe da embaixada americana.

A maioria dos 60 generais em atividade naquele momento, achava que Mourão não conseguiria tirar os soldados do quartel. Lacerda lhe disse isso diretamente. O general Muricy, que ele convidou para comandar a vanguarda de suas forças em direção ao Rio, disse-lhe: “Você está louco? Acha que pode fazer uma operação dessas com soldados meninos com um mês de treinamento!”

Seis meses antes, quando Mourão chegou a Minas para assumir o comando da 4ª Região Militar, o governador Magalhães Pinto, depois da primeira conversa que tiveram, comentou: “Este general que veio comandar a Região ou é agente provocador do governo ou é louco, quer fazer uma revolução logo!” O general Costa e Silva, a quem  Mourão procurou várias vezes, sempre esquivou-se. “Não temos nada”.

Para o historiador Hélio Silva, Mourão era um “homem bom, sofredor, pitoresco, capaz de assomos de cólera”.

O embaixador americano soube da rebelião por volta do meio dia do dia 31 de março. Imediatamente avisou Dean Rusk, chefe do Departamento de Estado. Ele não tinha Mourão em boa conta, mas ponderou: “(…) pode ser a última boa oportunidade para apoiar uma ação contra Goulart”.

A segunda vitória de Mourão aconteceu já na madrugada do dia primeiro de abril, quando o Regimento Sampaio, a mais bem treinada e equipada força militar do Rio, saiu para atacá-lo. Ao alcançar a dianteira das tropas rebeladas, em vez de atirar, os oficiais simplesmente aderiram ao golpe. Os calejados “tarimbeiros” do Regimento Sampaio abraçaram os “soldadinhos meninos” de Mourão. “Eles passaram-se quando tudo parecia indicar nossa derrota”, anotou o general em seu diário.

Pouco depois, quando se deslocava para assumir a vanguarda das tropas que se dirigiam ao Rio, soube pelo rádio do carro que não havia mais resistência. O golpe vencera e o general Costa e Silva havia assumido o Comando Supremo da Revolução, por ser o general mais velho em atividade.

Não lhe restou mais que ir ao QG e apresentar-se ao novo comandante. Costa e Silva dormia e atendeu-o de cuecas. Ele quis reclamar, Costa colocou a mão em seu ombro: “Mourão, foi tudo resolvido na base da hierarquia ( …) Não se preocupe, velho, isso vai dar certo”. E recomendou-lhe ficar mais uns dias no Rio antes de regressar com as tropas. “Achei razoável , de vez que Costa e Silva não contava com quase nada, não dispunha de tropa. Minha obrigação era ficar e garanti-lo”. Ele  já era carta  fora do baralho.

Conspiração começou em Santa Maria

Mourão conta em suas memórias que “acordou para o perigo comunista” em janeiro de 1962. Ele recém chegara a Santa Maria, no Rio Grande do Sul, para assumir a 6ª Divisão de Infantaria.

Num jantar, testemunhou uma conversa do governador Leonel Brizola com o general Osvino Ferreira Alves, comandante do I Exército, brizolista, que passava suas férias em Santa Maria…

“Ficamos conversando no jardim interno. Foi aí que percebi que os dois acreditavam que eu pertencia ao lado político deles. Abriram o papo. Fiquei horrorizado com o que ouvi”.

Desde agosto de 1961, quando Brizola frustrou a primeira tentativa de golpe com o movimento da “Legalidade”, o  país vivia sob o regime parlamentarista, manobra para esvaziar o poder de Goulart.

Nessa conversa em Santa Maria, segundo Mourão, Brizola falou de seus planos para apressar o plebiscito para voltar ao presidencialismo, da campanha pelas reformas de base, elegibilidade dos sargentos, extensão do voto aos soldados e analfabetos… Nada mais do que a plataforma publicamente defendida por Brizola, que tinha pretensões à Presidência.

Para Mourão foi a explanação de “um vasto plano de subversão em todo o Brasil”.

Naquela noite, quando chegou em casa, Mourão anotou em seu diário: “Nada tenho contra João Goulart. Acho-o até um homem bom e simpático. Mas ele não porá fogo no Brasil”.

A partir daí ele entra num processo de conspiração delirante, movido por uma ideia fixa: Jango e Brizola, aliados aos comunistas, preparavam um golpe para implantar uma república sindicalista.

A saída era um golpe antes. Além de aliciar adeptos entre a oficialidade, procura também lideranças do meio civil.

“Em Santa Maria articulei-me com o prefeito da cidade, médico Miguel Sevi Viero e com o bispo Dom José Sartori que era um revolucionário entusiasmado”.

No dia 15 de janeiro de 1962 , foi a Porto Alegre falar com o presidente da poderosa Farsul, Antônio Saint Pastous, que o apoiou.

Em setembro de 1962 foi convidado para um encontro na casa do bispo para expor suas ideias e planos a um seleto grupo de líderes políticos: o governador Ildo Meneghetti, o senador Daniel Krieger, o deputado Peracchi Barcelos e o secretário de Meneghetti, João Dêntice.

Krieger anota em seu livro de memórias que “aquele foi o primeiro contato de civis com militares” para uma conspiração contra Jango.

Em Porto Alegre teve um colaborador entusiasta no jornalista Tadeu Onar, que o colocou em contato com lideranças e autoridades. Conseguiu até uma audiência com o arcebisbo, D. Vicente Scherer, que o ouviu mas evitou se comprometer.

Em março de 1963, Mourão foi para a 2ª Região Militar, em São Paulo,  “primeiro comando de prestígio”.

Logo tinha um grupo, com o qual conspirava: “Reuníamos, em geral nas quartas-feiras, depois que eu vinha do meu passeio na Praça da Sé. Fazia isto muitas vezes nos dias quentes, sem paletó, com um terno surrado, sem gravata e uns sapatos velhos… Sumia no meio do povo…”

Filho de um advogado, que foi deputado e líder político em Diamantina e na região Norte de Minas, Mourão era uma figura polêmica desde os temos da Escola Militar, quando era um cadete magrinho (49 quilos) e se sentia marginalizado pelos colegas, os quais invariavelmente desprezava. “Eu fui sempre desconhecido, vivia entocado, ninguém me dava a menor importância”.

Tinha desprezo também pelos políticos: “Vil raça danada que vem desgraçando este país.Se pudesse metia-os todos na cadeia”.

Era igualmente inimigo da Escola Superior de Guerra, “escola onde se estuda uma doutrina totalitária importada dos EUA”. Achava os homens da ESG – os verdadeiros articuladores da conspiração (Cordeiro de Faria, Golbery do Couto e Silva, Castelo Branco) – “uns cérebros doentios”.

Obcecado, Mourão Filho fez pelo menos três planejamentos para o golpe, desde que começou a conspirar. Quando ainda estava na 3ª  DI, em Santa Maria, tinha um plano pronto (“Operação Junção”) para atacar Porto Alegre e prender Brizola, que ainda era governador.

Em março de 63, pouco depois de assumir a 2ª Região Militar em São Paulo, escreveu outro plano, com direito a “Departamento de Preparação Psicológica das Massas”, “Seção de Espionagem e Contra-espionagem”, “Serviço de Sabotagem e contra-sabotagem”.

Via-se no poder:

“Já pensei vagamente no que farei ao chegar ao Rio. Tomo o QG no peito e mando buscar o Cordeiro de Farias em casa, passo-lhe o Comando Geral e assumo o Comando das Forças em Operações (…) daremos ordem para que Mazzilli assuma a Presidência da República e formamos uma junta à parte, para tratar dos seguintes assuntos:

a)escolher o candidato, que será civil, para completar o quinquênio;

b) traçar diretrizes gerais para modificar a Constituição, a fim de evitar no futuro o acesso de políticos corruptos e subversivos.

Tinha um plano para mudar o Brasil. Sua reforma tinha oito pontos, entre eles a “inelegibilidade dos atuais políticos, de seus ascendentes e descendentes e colaterais até o segundo grau”, e a criação de uma “Câmara de Planificação”, à base de concurso rigoroso de provas e títulos. “Câmara vitalícia à base dos mais altos salários da República”.

“O movimento se for vitorioso elegerá um presidente civil para completar o quinquênio, ao passo que um Conselho Militar por mim presidido estudará e apresentará as reformas à constituição com mudança da forma de governo”.

Até o fim ignorou a grande trama – que envolveu chefes militares, empresários, a CIA e a embaixada norte-americana – que preparou o terreno para a derrubada do governo reformista de Goulart.

Achava que tinha feito tudo sozinho. “A maior conspiração do Brasil foi feita por mim”, dizia.

Um “golpe comunista”

Planejar golpes parecia uma obsessão do general Olympio Mourão Filho. Quando era capitão ficou conhecido como autor do célebre “Plano Cohen”, uma das maiores farsas da história brasileira.

Era o plano de um golpe comunista, que previa atentados, sequestros e assassinato de autoridades para o assalto ao poder. Com grande estardalhaço, o governo divulgou o “plano terrorista”, “descoberto” pelos serviços de segurança.

Ante a ameaça, o presidente Getúlio Vargas pediu “Estado de Guerra” e o Congresso, atemorizado, aprovou.

Os comunistas foram caçados e encarcerados e Vargas aproveitou o apoio político e popular e impôs uma nova constituição, que eliminava o Parlamento. Foi ditador por oito anos, com todo o apoio das Forças Armadas.

Em 1945, quando o ditador já estava em desgraça, o general Góes Monteiro, chefe do Estado Maior, ex-ministro da Guerra de Vargas, denunciou a farsa e acusou o então capitão Mourão Filho de ser o autor.

Segundo a versão de Góes Monteiro, num dia sem expediente no QG do Estado Maior do Exército, no Rio, Mourão foi flagrado por um colega datilografando o texto do que viria a ser o Plano Cohen.

Mourão não negava a autoria, mas insistiu sempre que se tratava de um texto para estudo, que foi usado sem o seu consentimento.

Na época, Mourão era chefe do Serviço Secreto da Ação Integralista e os integralistas (fascistas) aproximavam-se de Vargas.  O  plano, feito a pedido de Plínio Salgado, teria sido uma contribuição para que o presidente pudesse golpear os comunistas, que lhe atazanavam a vida.

Em seguida, depois de se livrar dos comunistas, Vargas acertou os integralistas também.

(Texto publicado originalmente na revista JÁ)

 

1964: O governo caiu sem resistência

Nas primeiras horas da manhã de 31 de março de 1964, quando chegou ao Palácio Laranjeiras, no Rio,  o general Argemiro Assis Brasil, chefe da Casa Militar da Presidência da República,  foi informado que havia “um levante na guarnição de Minas Gerais”.

Ele passou a informação ao presidente João Goulart, que indagou: “Você acha que isso é verdade?”. O general respondeu: “Acho, porque o general Mourão Filho e o general Luís Guedes estão conspirando há muito tempo”.

Dias antes, o general Assis Brasil havia dito ao presidente que Mourão era “um velhinho que não é de nada”.

Jango ficou fechado em seu gabinete. Saiu pouco depois das nove para visitar o ministro da Guerra, general Jair Dantas Ribeiro, que estava hospitalizado.

O ministro, no hospital, apontou o telefone na mesinha ao lado e tranquilizou o presidente. Estava acompanhando tudo, situação sob controle.

Jango mencionou Polícia Militar na mão do governador Carlos Lacerda, já em movimentos ostensivos pelas ruas do Rio. O general, impassível: “Deste telefone eu resolvo tudo, presidente”.

Manoel Leães, o Maneco, que foi piloto de Jango trinta anos, assistiu à conversa e em seu livro Meu Amigo Jango registra: “Até hoje acredito  que o ministro Jair Dantas Ribeiro estava mancomunado com outros generais golpistas, ao menos para facilitar a deposição do presidente”.

Dia 2 de abril: tropas ocupam pontos estratégicos no centro de Porto Alegre

A intenção de Jango, segundo diversos testemunhos, era substituir  o ministro pelo marechal Henrique Teixeira Lott. Por que Jango não trocou o ministro? “Acho que ele não quis desmoralizar o general, talvez em consideração à sua doença”, diz Maneco. “O presidente João Goulart não quis substituir seu ministro para não desgostá-lo”, registra o historiador Hélio Silva.

O outro homem do dispositivo militar de Goulart era o general Assis Brasil.  Costumava dizer: “Não tem perigo. Comigo é na ponta da faca. Nosso dispositivo é o melhor já armado neste país”.

Assis Brasil disse, depois do golpe, “que nunca houve tal dispositivo militar”.

Eram três da tarde, quando Jango chamou o general Ladário Telles, que estava de férias em Friburgo. A mudança do comando no III Exército estava decidida há vários dias, mas só agora o presidente iria efetivá-la.

Seu plano era colocar o gaúcho Ladário Telles no Rio Grande do Sul, substituindo Benjamin Galhardo, que deveria voltar para o Rio e ocupar o lugar do general Castello Branco, na chefia do Estado Maior das Forças Armadas.

Castello era um dos líderes ostensivos do movimento contra o governo.

Rio: os tanques nas ruas

A caminho do palácio para a reunião com o presidente, o general Telles notou o “movimento desusado” no prédio do Ministério da Guerra: “Dizia-se que, no quinto e sexto andares, 200 oficiais armados preparavam-se para atacar o QG da 1ª Região Militar do I Exército, no terceiro e segundo andares”.

Hoje se sabe que eram sessenta oficiais da Escola Militar da Praia Vermelha, que tinham ocupado quatro andares no prédio, para impedir a prisão de Castello Branco, o líder dos conspiradores.

A audiência com o presidente  durou poucos minutos. Um avião já estava à disposição para transportar Telles a Porto Alegre. Jango determinou também que ele, antes de embarcar, providenciasse a prisão de  Castello Branco.

Pela  hierarquia, cabia ao comandante do I Exército, general Armando de Moraes Âncora, executar a ordem. Ladário, então, transmitiu a ele a ordem do presidente. “Senti hesitação no general Âncora. Várias vezes fiz-lhe ver que o tempo passava e o general Castello se retiraria do Ministério sem ser preso. Somente às 18 horas Âncora chamou Castello. Me pareceu que a prisão seria efetuada…”

Àquela hora Castello Branco não estava mais no prédio do ministério. Saíra em companhia do general Ernesto Geisel e estava escondido num apartamento na avenida Atlântica.

Avenida São João, São Paulo, dia 3: a vida volta ao normal

Acreditando que a prisão seria efetuada, Ladário Telles foi para casa arrumar as malas. Eram 22h55 quando partiu. A bordo ouviu a declaração de Adhemar de Barros, o governador de São Paulo, aderindo ao golpe. Chegou em Porto Alegre a 1h20, mas só na madrugada conseguiu assumir o comando, de onde, se esperava, resistiria ao golpe.

Já era tarde demais.

 

Quando Jango chegou a Porto Alegre, na madrugada de dois de abril, o Congresso já estava dando posse a outro presidente.

O presidente João Goulart chegou a Porto Alegre às 3h15 da madrugada de dois de abril. Desceu do avião fumando e tenso, mas procurou mostrar-se sorridente ao chegar ao saguão do aeroporto, onde o esperavam o comandante do III Exército, general Ladário Telles, o deputado Leonel Brizola, o prefeito Sereno Chaise, o deputado Pedro Simon e outros.

No carro, a caminho da casa do general Ladário Telles, quase não falou. Descansou um pouco e às 8h da manhã saiu na porta da casa onde falou rapidamente aos jornalistas. Disse que iria resistir.

Em seguida reuniu-se com os chefes das unidades do Exército no Rio Grande do Sul para avaliar as chances de resistência.

Há dois dias, ele via seu governo desmoronar. Primeiro no Rio, depois em Brasília e, finalmente, em Porto Alegre. Em Brasília,inclusive, àquela hora  já tinha outro na sua cadeira, o deputado Rainieri Mazzili, entronizado na madrugada pelos golpistas.

O general Telles foi o primeiro a falar e se mostrou disposto a seguir as instruções do presidente, inclusive partindo para o contra-ataque aos golpistas. Jango quis ouvir os outros generais.

O primeiro deles, Floriano Machado, disse que “qualquer resistência seria uma aventura”. Os outros seguiram no mesmo tom.

Apenas Leonel Brizola insistia em resistir, propondo a formação de corpos de voluntários que seriam apoiados por unidades que se mantinham fiéis ao presidente em São Leopoldo, Vacaria, São Borja e Bagé.

Jango atalhou: “Não quero derramamento de sangue em defesa do meu mandato”. E ordenou ao general Ladário: “Tome providências para me dirigir ao aeroporto”.

Jango voou para São Borja, onde se deslocou entre suas fazendas enquanto aguardava concessão de asilo pelo governo uruguaio. Dois dias depois, desembarcava na base aérea de Pando, próximo a Montevidéu. O golpe estava vitorioso.

4 de abril: Jango desembarca em Pando, no Uruguai. Começava o exílio

Ninguém acreditava no golpe

No dia 31,  uma terça-feira,  Porto Alegre amanheceu fria e com chuvisqueiro. O governador despachava no Palácio como se nada estivesse acontecendo. Desde cedo corriam boatos de golpe, mas isso não era novidade. O noticiário morno dos jornais do dia não indicava qualquer anormalidade.

O Correio do Povo trazia na capa um terremoto no Alasca, com manchetes para Camboja, Hungria, Espanha e Rússia. Um destaque local era a crise de atendimento na agência dos Correios, em Santa Rosa.

Outra notícia importante foi o casamento de dona Vanisa Melo com o senhor Theodoro Medeiros, em Santa Maria. O único texto sobre o Brasil era do presidente americano Lyndon Johnson acusando Jango de ter muitos comunistas no governo.

Os jornais da época desinformavam tanto assim porque ou estavam alinhados com os conspiradores, ou totalmente contra, como no caso do tablóide Última Hora – sendo o único da esquerda, cometia o mesmo pecado dos demais de defender apenas um lado.

Anos depois, Breno Caldas, dono do Correio do Povo, admitiria a parcialidade: “A posição do Correio foi favorável diante dos acontecimentos de 64. Cooperamos para sua eclosão. Aqui havia um foco dinâmico da esquerda manobrado pelo governador Brizola. Nós estávamos contra a situação que ele representava. Desta maneira, a revolução de 64 foi para nós bem-vinda, desejada e saudada”.

O resultado óbvio da parcialidade generalizada é que o povão pouco sabia das coisas. Naquele 31, os jornais traziam apenas algumas dicas da tempestade que desabaria sobre a vida política.

Na primeira página do Diário de Notícias a manchete era quase uma mensagem em código do golpe: “Em Minas Gerais, Exército e FAB em rigorosa prontidão”, sem nenhum explicação do contexto.

O mais lido cronista social da época, Ibrahim Sued, deu em sua coluna do Diário apenas uma notinha de política: “O novo ministro da Marinha é um gagá que será joguete nas mãos de Leonel Brizola e sua troupe de comunistas”. Ele fechou a coluna com uma frase romântica, “quem nunca amou, nunca viveu”.

O mesmo Diário trazia uma mensagem de Páscoa do arcebispo Dom Vicente Scherer. Ela sim vinha carregada de política: “Cabe-nos, diletos fiéis, render graças a Deus haver preservado em nosso país a paz pública e a capacidade de resistir às adversidades econômicas e sociais”.

Lendo hoje as declarações dos luminares da política gaúcha da época, seria possível perceber que alguma coisa grave iria mesmo acontecer. Por exemplo, o ex-prefeito José Loureiro da Silva,deu uma entrevista na sede da Ação Democrática Feminina (ADF), reproduzida naquele  dia pelo Correio, criticando “a ocupação de cargos da administração pública por comunistas”.

Ainda no fatídico dia 31, os jornais anunciaram uma possível reunião secreta que deveria acontecer no dia 2, no Palácio Piratini, entre os governadores Ildo Meneghetti (RS), Carlos Lacerda (RJ) e Adhemar de Barros (SP),  três conspiradores da primeira hora.

O Diário trazia uma nota interessante. Nela até se poderia identificar um dos golpistas – coisa que naquela hora poucos sabiam. Ao pé de uma lista de associados da Caixa de Assistência Social dos Oficiais, constava que “o general Humberto de Alencar Castello Branco vai deixar a chefia do Estado-Maior do Exército” – ele, Castello, deixou sim, mas para assumir, quase duas semanas depois, a cadeira de Jango.

Como 31 era terça e segunda os jornais não circulavam, eles traziam notícias do domingo anterior, de Páscoa. Alguns foram cordiais com o prefeito Sereno Chaise, que passara aquele dia visitando obras, e à primeira-dama Terezinha, por entregar 25 mil barras de chocolate Neugebauer para crianças carentes nos bairros da periferia.

Jornais saúdam o golpe

As narrativas daqueles dias variam: muita gente viu muita gente nas ruas, mas a maioria viu só algumas escaramuças no centro. A tal massa, que já começava a se sentir órfã, ainda tentou agitar, com protestos no eixo Borges de Medeiros, rua da Praia, Largo da Prefeitura e Praça da Alfândega nos dias primeiro e dois de abril. Houve repressão e correrias. Alguém deu tiros numa das janelas da CEEE,  não houve vítimas.

Porto Alegre, primeiro de abril: quem saiu para saber o que estava acontecendo,
viu a repressão

O Correio do Povo descreveu os protestos do dia primeiro como “atos de desatino de moradores de vilas e estudantes, sentindo-se abandonados à própria sorte”. O jornal saudou o golpe contra “o pólo infeccioso que tem em seu agente o ex-governador Leonel Brizola”.

Legislativo em parafuso

No centro da cidade, qualquer aglomeração era dispersada com violência

A Assembleia Legislativa entrou em parafuso no dia primeiro. Os deputados trabalhistas queriam instalar uma sessão permanente no teatro São Pedro, porque temiam que com o golpe a casa fosse fechada “pelos esbirros do governador Ildo Meneghetti”, como diziam.

No plenário, o deputado Paulo Brossard de Souza Pinto, mais tarde um formidável opositor da ditadura, fez um discurso a favor do golpe: “Felizmente para nós, as Forças Armadas encontraram em seu íntimo a defesa das instituições democráticas e a ordem constitucional que as exprime”.

A resposta veio de Pedro Simon, num duro protesto contra a deposição do presidente. Na Câmara de Vereadores, o presidente Célio Marques Fernandes, mais tarde prefeito nomeado pela ditadura, convocou uma sessão extraordinária – apressava-se para assumir o cargo vago com a prisão de Sereno Chaise, horas depois.

Apesar do feriado bancário e escolar, que esvaziou a cidade, uma massa descrita como “janguista-esquerdista-brizolista-comunista” saiu às ruas, mas não chegou a reunir  mais de três mil pessoas. Policiais do Dops e soldados da Brigada e do Exército dissolviam com violência as aglomerações. A Folha da Tarde saiu pouco depois do meio-dia, já trombeteando a vitória e elogiando o rigor das tropas na manutenção da ordem.

Brizola: “Tomem os quartéis a unha”

O ponto alto da resistência foi o comício da noite do dia primeiro no Largo da Prefeitura. Brizola falou por volta das oito, para duas mil pessoas.

Brizola vinha botando fogo na massa todo dia pelo rádio e repetiu no comício seu mantra:

“Quero iniciar a derrubada destes chefes militares golpistas e traidores. Atenção, sargentos do III Exército. Atenção, sargentos das unidades chefiadas por esses militares golpistas. Atenção, oficiais nacionalistas… O povo pede que os sargentos se levantem, tomem os quartéis e prendam os gorilas… tomem a iniciativa, a unha mesmo, com o que tiverem na mão, tomem as armas desses gorilas, tomem conta dos quartéis e prendam os traidores…”

Dali ele foi para o QG do III Exército usar o rádio para falar com Jango. O presidente estava voando para Porto Alegre e os dois teriam concordado que nenhuma reação seria organizada enquanto ele não chegasse. Mas Jango só chegaria na madrugada do dia 2 de abril, quando já era tarde para a resistência.

“A noite em que chegaram os tanques”

A casa que foi cenário do último ato de Jango no governo ainda está lá.

Foi ali, na esquina da Cristóvão Colombo com a Carlos von Koseritz, que o general Ladário Telles hospedou Jango nas suas últimas nove horas como presidente do Brasil, em 2 de abril.

A casa já foi mais elegante, na época em que o bairro era mais nobre – hoje ela está numa esquina barulhenta, vizinha de um hotel e de um restaurante japonês. Os vizinhos amam sua presença porque um destacamento 24 horas guarda o pedaço.

A tropa se esmera para cuidar do pequeno jardim da frente, com uma burocrática roseira no centro, uma cerca viva de metro e meio de altura e uma discreta guarita.

Naquele dia  2 de abril, a calma das noites da Cristóvão foi quebrada às 4 horas. O professor Francisco Outeiro, vizinho, lembrou anos mais tarde: “Acordei com aquele barulho enorme, estranho e assustador. Meu pai disse ‘são as lagartas dos tanques nos paralelepípedos’. Abrimos a janela e eram mesmo tanques”.

Dia 3 de abril:
já não há mais protestos, mas tanques continuavam estacionados nas ruas

A barulheira também incomodou seu Albino Neitcke,  dono da padaria Vitória, na esquina oposta da Koseritz. Mais tarde, às 7 da manhã, quando abriu a loja, soldados apareceram ordenando que ele afastasse mulheres e crianças.

“Eles ocuparam todas as esquinas com seus tanques”, lembrou seu Albino. “Um deles ficou estacionado no meu jardim”. Outra lembrança: “Minha mulher não deu bola para a ordem e ficou trabalhando, aquele foi um dia de muito movimento”.

No Parque da Redenção, o canhão desperta curiosidade

A marquise da padaria ficou tomada por fotógrafos. “Deputados e outros políticos entravam toda hora na loja para tomar café, comer sanduíches, foi mesmo uma loucura”.

Seu Albino contou que os mordomos da casa do general vieram buscar quantidades extras de pão, manteiga, queijo e salame. “De repente, vi o Brizola sair da casa pela porta da frente, entrar num Fusca clarinho que estava estacionado no portão e descer a rua, ele mesmo dirigindo”.

Os jornalistas e os tanques sumiram para sempre. A padaria Vitória cresceu, continua firme na esquina. Mordomos do general ainda fazem compras ali. No jardim, um pé de cinamomo cresceu onde antes o tanque ficara estacionado.

Legalidade não se repetiu

No início da noite de 31 de março, o governador Ildo Meneghetti tentava saber a exata extensão da rebelião militar, quando foram cortadas as linhas telefônicas do Palácio Piratini. O governador convocou seus auxiliares para uma reunião. Havia chegado uma notícia alarmante: os sargentos haviam tomado um quartel em Bagé, obrigando o comandante a se refugiar em outra unidade.

O governador ficou também sabendo que ia chegar naquela noite um novo comandante para o III Exército, o mais poderoso dos quatro exércitos brasileiros, com jurisdição sobre Rio Grande do Sul, Paraná e Santa Catarina.

A lembrança da Legalidade, menos de três anos antes, fazia do Rio Grande do Sul um ponto estratégico, onde certamente os defensores de Jango tentariam resistir. Mas agora a situação era outra.

A começar pela vitória da oposição a Jango e Brizola, que conseguira ganhar a eleição de 1962 e colocar o conservador Meneghetti, da UDN, no governo do Estado. Brizola estava em Porto Alegre no dia 31 de março. Só que agora ele era um deputado federal, não podia dar ordens à Brigada Militar nem requisitar emissoras de rádio para mobilizar a população em defesa do governo.

Além disso, ao contrário dos seus adversários, que há muito se preparavam para impedir que se organizasse uma resistência ao golpe no Rio Grande do Sul, os aliados de Brizola estavam completamente despreparados.

Mala de dinheiro para pagar a polícia

No dia  2, depois do meio dia, Jango decidiu partir para o exílio.  Não havia mais como resistir.

Foi aí que começaram as trevas. Os golpistas soltaram as rédeas do Dops para prender seus adversários.

Houve um pequeno atraso no cronograma das prisões porque a turma estava com os salários atrasados. Os zelosos policiais se recusavam a prender antes de receber.

“De repente, uma mala de dinheiro apareceu no Palácio da Polícia e todos foram pagos”, lembrou anos mais tarde o então delegado Cláudio Barbedo. Com tal estímulo, um dos primeiros presos foi o prefeito Sereno Chaise – entrou no xadrez vestindo um impecável sobretudo cor de camelo.

(Textos de Elmar Bones e Renan Antunes de Oliveira. Publicado originalmente na Revista JÁ)