A história do homem-semente: meio século de vida dedicado à preservação ambiental

Ari Delmo Nilson completou no mês de março cinquenta anos de trabalho como técnico agrícola no Jardim Botânico de Porto Alegre. É um explorador nato. Percorre florestas, campos, banhados, dunas, rios e arroios, sobe em árvores variadas, escala precipícios e encostas atrás de sementes nativas, fundamentais à conservação da biodiversidade rio-grandense.

Por Cleber Dioni Tentardini

Poucos conhecem as matas e os campos no Rio Grande do Sul como o técnico agrícola Ari Delmo Nilson, desde o início deste ano o funcionário mais antigo do Jardim Botânico de Porto Alegre.

Ele ingressou no JBPA em março de 1975 e, desde então, é uma referência na identificação, coleta e germinação de sementes arbóreas nativas, fundamentais à conservação da biodiversidade rio-grandense.

É um explorador nato. Percorre florestas, campos, banhados, dunas, rios e arroios, sobe em árvores variadas, escala precipícios e encostas atrás de plantas, sempre buscando conhecer os ambientes e suas espécies.

Na entrada do JBPA, com as palmeiras no fundo. Foto: Cleber Dioni

Ajudou a plantar uma grande parte da coleção arbórea do JBPA. Está tudo registrado em caderninhos, que ele guarda com orgulho por ter seguido à risca os ensinamentos dos naturalistas com quem conviveu no trabalho desde o início da carreira.

Naquele ano de 1975, os professores naturalistas gaúchos Albano Backes e José Willibaldo Thomé recém tinham assumido diretorias da Fundação Zoobotânica do RS (FZB), criada em 1972 para abrigar o Museu de Ciências Naturais, o Parque Zoológico e o Jardim Botânico.

– Eu tinha 20 anos e, às vezes, realizava alguns serviços nos municípios do oeste catarinense, ali por Chapecó. Minha irmã, casada com o doutor Albano, avisou que ele estava precisando de ajudantes, peguei três ônibus para chegar aqui na Capital, na época essa viagem era uma epopeia, conta.

Morou dois anos com o professor e sua irmã. Nessa época, o Jardim Botânico era uma área de campo com uma parte aberta, e uma portaria. Uma das primeiras tarefas de Ari foi cercar a área. Depois, montou uma base de trabalho junto ao antigo cactário. Começou cuidando dos cactos e, logo, ele e os colegas viram que seria fundamental plantar árvores nativas lá.

Ari com colegas do JBPB na década de 80. É o terceiro (esq. p/ dir.)

Um dos seus colegas por quase 50 anos, Julio Prado recorda que chegaram a produzir 40 mil mudas num ano, entre elas, várias espécies arbóreas ameaçadas de extinção, como o palmito, o pau-ferro e o pau-alazão. Prado, agora aposentado, é filho de seu Julião (falecido), um dos primeiros jardineiros do JBPA e quem organizou os jardins do Palácio Piratini.

Mudas de cactos. Foto: Cleber Dioni

Além do professor Albano Backes, gaúcho de Campina das Missões, e um dos responsáveis pela construção das bases da botânica e da ecologia vegetal do Sul do Brasil, Ari conheceu o primeiro diretor do JBPA da capital gaúcha, o irmão Teodoro Luis (Ramon de Peñafort Malagarriga y Heras), mas logo o naturalista e lassalista espanhol voltou à Europa para continuar os estudos.

– Lembro que, certa vez, ao retornar a Porto Alegre, o irmão Teodoro elogiou o doutor Albano por ter mantido o JBPA como uma unidade de conservação da flora nativa e essa missão eu sempre carreguei comigo, ressalta.

“Conservamos todas espécies de palmeiras ”

Uma hora de caminhada em meio ao verde com Ari é um aprendizado e um exercício de memorização. Exemplares de angico, louro, maria preta, canjerana, guatambú, sassafrás, camboatá, canela, cabreúva, típicos da floresta do Alto Uruguai, todas essas plantas estão disponíveis, identificadas e catalogadas para pesquisadores e a população em geral que quiser conhecer.

– Esse angico vermelho ou curupaí, eu trouxe sementes do Alto Uruguai, fiz a germinação, adaptação e plantio, em 1976. Plantamos palmeiras na entrada principal do Jardim Botânico, algumas sementes eu trouxe da minha terra natal, Marcelino Ramos, afirma.

Todas as espécies de palmeiras nativas constam na área do JBPA, inclusive as que estão ameaçadas de extinção, como coqueiro, jerivá, butiá, buriti e geonoma.

Ari estima que esse butiazeiro no JBPA tenha cerca de 260 anos. Foto: Cleber Dioni

– É difícil precisar a idade de exemplares muito antigos, mas tem um butiazeiro aqui no JBPA com, no mínimo, 260 anos. Eu tive a oportunidade de conhecer os butiazais no Estado, locais com mais de 70 mil butiás, e conversar com as pessoas que mantém as coleções como jardins botânicos particulares. Isso é uma emoção muito grande, admite.

Durante doze anos trabalhou também em uma estação meteorológica no Morro do Coco, em Viamão, de onde pegou muitas sementes. Instalou o viveiro no JBPA ainda na década de 1970 e começou a produzir e comercializar mudas. Mais tarde, foi instalado um Banco de Sementes.

Pesquisadores renomados costumavam visitar o Estado, não sem antes passar no Jardim Botânico para conversar com os pesquisadores. E, frequentemente, Ari era convidado a acompanhá-los. Ele lembra do alemão Martin Grininger, especialista em líquens, cuja vinda se dava em função do Polo Petroquímico, em Triunfo. Cita outros pesquisadores como o botânico e ecólogo Roberto Klein, de Santa Catarina, o geógrafo e ambientalista Aziz Ab’Saber, de São Paulo.

– Vinham em função de projetos de pesquisa. Eu estava na linha de frente, acompanhava como técnico local.

No final dos anos 1980, Ari já era reconhecido como profundo conhecedor das sementes arbóreas nativas e por sua extrema habilidade de escalar árvores, dependurando-se em copas altíssimas com destreza inigualável, causando perplexidade e temor nos seus companheiros (leia depoimentos).

Logo chamou a atenção do repórter Horst Knak, que o batizou como o homem-semente em uma matéria publicada no jornal Zero Hora, em 1986 (26/09): “Além de ser o maior entusiasta da coleta e preparo de sementes de árvores nativas do Rio Grande do Sul em perigo de extinção, Ari também é laçador de jacarés, especialmente do Banhado do Taim, para marcação”, escreveu Knak.

Reprodução de página de ZH 26.09.1986 em matéria assinada pelo jornalista Horst Knac

Ari deu dicas aos leitores daquele diário: “O primeiro passo é a escolha de árvores-matrizes, ou porta-sementes. Qualquer nativa precisa mais de dez anos para dar frutos e a primeira semente usada para multiplicação deve ser sempre do terceiro ano de frutificação. Depois de catado o fruto, ele precisa amadurecer para que a liberação da semente seja mais fácil. Com o Cachimbeiro, a semente se abre naturalmente, a Canafístula vai bem em solo ruim, tem crescimento rápido. A Canjerana possui frutos redondos que se assemelham a bolas de gude. É preciso esperar que murchem após colhidas para abri-las e semear imediatamente. A semente do Guapuruvu possui uma película dura que precisa ser lixada ou até mesmo fervida para apressar a germinação”.

Ele percorreu o Estado acompanhado também do renomado escultor Xico Stockinger, que formou a mais completa coleção de cactáceas do RS.

Recebeu convites para trabalhar em outros estados, mas, como ele diz:

– Não tem jeito, casei com o Jardim Botânico, admite.

Em Cambara do Sul. Foto: Natividad Fagundes

Prestes a completar 70 anos, no final deste mês de julho, o pai do Luis Henrique e da Janaína, e avô da Ana Sofia, de sete anos, mantém uma rotina infalível.

– Acordo às cinco da manhã e às sete horas já estou passando café aqui, o JBPA é um templo pra mim. Tudo o que eu faço é com vontade, emoção, muitas vezes é desgastante, e não tem problema, revela.

Sua mulher, Maria de Fátima Oliveira, gaúcha de Santiago, desconfia que o Jardim Botânico é sua primeira casa.

– Nesses 41 anos de casados, ele sempre foi assim, ligado no 220, está sempre pensando nas tarefas que têm por fazer, claro que sinto orgulho porque ele gosta do que faz e as pessoas reconhecem o seu trabalho, mas quando chega em casa elétrico e continua a mil, tenho que dar um tranco, brinca Fátima.

Colegas destacam perícias do ‘mateiro’

Com um exemplar de pitangão-amargo, em São Francisco de Paula. Foto: Martin Molz

– A experiência que ele conquistou ao longo dos anos é muito singular e valiosa, porque abrange o trabalho com diversos grupos de plantas, a prática das atividades em campo, a habilidade com a germinação, o cultivo, e os manejos das diferentes espécies, a observação do desenvolvimento das plantas em cultivo, além de ter uma compreensão incrível da geografia e da flora do Rio Grande do Sul. Ele participou das coletas e plantios de parte significativa dos exemplares das coleções, presentes em todo o parque e também nas casas de vegetação. Um colega altamente dedicado e entusiasmado, enfim, tenho o privilégio de trabalhar com ele, que é a memória viva do Jardim Botânico de Porto Alegre, destacou a bióloga Natividad Fagundes, botânica no JBPA.

Para o agrônomo Fernando Vargas, especialista em gestão e educação ambiental do JBPA, o conhecimento profundo e amplo torna o colega um técnico de valor inestimável.

– Ari é uma fonte de inspiração pela sua paixão no trabalho. De tanto percorrer os rincões gaúchos em busca de plantas cada vez mais raras, conhece o interior do RS como ninguém. É uma referência para quem deseja encontrar exemplares de plantas em seu habitat original. E foram tantas viagens e coletas que descobriu até uma espécie nova de árvore (Callisthene inundata O.L.Bueno, A.D.Nilson & R.G.Magalh.) que é a consagração de qualquer profissional da Botânica.

Escalando cerro em Caçapava do Sul. Fotos: Natividad Fagundes
Na APABG, em Viamão, com Martin Molz

 

 

 

 

 

Ao lado de um xaxim, em São Francisco de Paula.

 

Arroio Cristalino, São Francisco de Paula. Fotos: Martin Molz

 

 

 

 

O biólogo Martin Molz lembra de expedições realizadas com Ari antes mesmo de serem colegas no JBPA.

– A paixão pelas plantas, sobretudo a compartilhada pelas árvores e pelas florestas, sempre nos manteve muito próximos. Ari tem um olho para todos os tipos de plantas, para o diferente, para o raro e o inusitado. Descobriu muitas espécies novas para a ciência. Consegue germinar praticamente todos os tipos de sementes em que coloca as mãos, dedos verdes! Apesar de trabalhar com plantas a vida toda, sabe muito sobre animais nativos e viu espécies que mesmo zoólogos nunca viram na natureza. Toda sua vida profissional foi dedicada em prol do Jardim Botânico, da conservação e da ciência. E segue, destaca o botânico.

O técnico florestal Frederico Schäffer Petry, atualmente fiscal ambiental de Capela de Santana/RS, diz que o ex-colega é uma verdadeira enciclopédia viva da flora gaúcha e nacional.

– Com suas peculiaridades e aquele jeito gaudério inconfundível de lidar com as pessoas, é o melhor colega que alguém pode ter, focado, solidário e orientador. E eu o provocava, chamando de meu estagiário, uma brincadeira, claro, com um mestre.

Com Andréia Carneiro, durante coleta em Caçapava do Sul. Foto: Rosana Singer

Quando chamaram a bióloga Andreia Carneiro para assumir no JBPA, recebeu um incentivo de seu orientador, o professor Bruno Irgang:

– Tu vais gostar, tem o Ari, responsável por muito do que existe lá. Era o homem que andava em cima das árvores com a mesma naturalidade que caminhava, grande conhecedor da nossa flora, dedicado e o melhor companheiro de campo e de churrasco, conta Andreia, diretora do JBPA por quatro anos e meio, hoje licenciada.

Sementes nativas são essenciais à vida

O engenheiro florestal Leandro Dal Ri, analista do Banco de Sementes do Jardim Botânico, lembra que a preservação das sementes nativas, ou quaisquer outras sementes, alimentícias ou não, é importante para salvaguardar a diversidade de espécies e de populações dentro da mesma espécie.

– E os jardins botânicos têm a responsabilidade de conservar em seus bancos de sementes esse capital biológico regional com vistas à biodiversidade e à restauração dos ambientes naturais, porque as sementes nativas são essenciais à vida humana, frisa.

No entanto, Dal Ri adverte que a cadeia produtiva precisa estar operando em condições adequadas, leia-se, as instalações e o quadro de servidores.

– Pessoas experientes como o Ari são fundamentais, mas representam uma parte do processo de conservação de germoplasma, pois não se pode coletar e guardar, tem que ter uma equipe, funcionários e estudantes de graduação e pós-graduação no Banco de Sementes, que além do beneficiamento e registro, fazem a pesagem, avaliação da qualidade fisiológica, teste de germinação, para depois encaminhar parte do lote ao viveiro a fim de produzir mudas e outra parte armazenar em estruturas adequadas.

Sementes de cedrinho conservadas no JBPA.

Germoplasma é o material genético de um organismo, transmitido de uma geração para outra.

O atual modelo do banco de sementes florestais nativas do JBPA foi criado por volta de 1996, mas o armazenamento das sementes começou cerca de dez anos antes, por iniciativa de algumas servidoras.

Mostruário da coleção do Banco de Sementes. Fotos: Cleber Dioni Tentardini
Dal Ri com material usado em educação ambiental do Banco de sementes

– Apesar de nosso Index Seminum (sementes armazenadas) tímido, temos um grande potencial para voltar a ser referência com a possibilidade de troca e doação aos viveiros de unidades de conservação e viveiros municipais e de Ongs, inclusive de espécies com algum grau de perigo de extinção, garante Dal Ri.

Ele cita algumas espécies incluídas na lista vermelha (vulneráveis) de 2014, que se encontram à venda no Jardim Botânico, como o espinilho (Fabaceae Prosopis affinis Spreng), o pau-andrade (Lauraceae Persea willdenovii Kosterm), o araticum-cagão (Annonaceae Annona cacans Warm), a bicuíba (Myristicaceae Virola bicuhyba (Schott ex Spreng) Warb) e o bico-de-pato (Fabaceae Machaerium nyctitans (Vell.) Benth).

Sementes sendo beneficiadas e catalogadas. Fotos Cleber Dioni

A engenheira florestal Maristela Araújo, professora do Departamento de Ciências Florestais, da Universidade Federal de Santa Maria, reforça a importância da coleta e da conservação de sementes de espécies nativas em locais apropriados.

– Um banco de sementes como o do Jardim Botânico de Porto Alegre contribui com a conservação a longo prazo da variabilidade genética das espécies nativas, dentre as quais, algumas ameaçadas de extinção, além de fomentar as pesquisas científicas e atividades de educação ambiental, enfatiza

Maristela mantém pesquisas com sementes há mais de vinte anos na UFSM através do Projeto “Bolsa de Sementes”, para pesquisa e educação ambiental, em parceria com escolas rurais nos estados do PR, SC e RS, e financiamento da Associação de Fumicultores do Brasil.

– Não se trata de conservar por conservar, mas dar sustentabilidade à produção em propriedades rurais produtivas e segurança à nossa população, afirma.

Seu colega na Universidade, o engenheiro florestal Ezequiel Gasparin, lembra que bancos de sementes são desenvolvidos ao longo de muitas décadas, representando a base para conservação de espécies e mitigação de mudanças climáticas, além da produção de mudas visando a recuperação de áreas degradadas ou para fins comerciais.

Gasparin destaca ainda que as sementes de espécies vegetais nativas servem como abrigo e alimento para fauna adaptada a cada região, incluindo os polinizadores de diversas espécies como as utilizadas na alimentação humana.

– A floração das espécies nativas também se “espalha” ao longo dos meses do ano, permitindo várias ocasiões de “florada” para polinizadores diversos, dentre os quais as abelhas, que além de permitir a frutificação de muitas espécies vegetais comerciais, nos fornecem o mel e conservam suas próprias colmeias, explica.

Um museu vivo com cinco mil plantas nativas

O Jardim Botânico de Porto Alegre é um dos cinco melhores e maiores do Brasil. Modelo em conservação da biodiversidade, mantém a classificação A, com o atendimento de todas as exigências estabelecidas pelo Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama) – no art. 6º e respectivos incisos da Resolução 339/2003.

Possui 28 coleções científicas e didáticas, que somam quase cinco mil plantas nativas, incluindo espécies raras, ameaçadas de extinção e endêmicas – estas são encontradas apenas no RS. Há plantas envasadas (plantadas em vasos e abrigadas em casas de vegetação) e do arboreto (plantadas na área do parque). Tem mais de 2.500 exemplares de plantas arbóreas (entre coleções e mudas), cerca de 700 bromélias, 360 cactos e 400 orquídeas. Há plantas vivas com mais de 40 anos. O exemplar 001 de Bromeliaceae está vivo, desde 1982.

Natividad com a coleção de bromélias do JBPA. Fotos: Cleber Dioni Tentardini

Estão preservadas no JBPA aproximadamente 145 espécies ameaçadas de extinção entre bromélias, cactos, orquídeas, palmeiras, diversas famílias de arbóreas e pteridófitas (várias famílias de diversos tipos de samambaias e xaxins). Essas plantas são mantidas em coleções, o que se chama de conservação ex-situ (fora do ambiente original), e são referência para a realização de estudos e também a produção de mudas, sendo base para uma possível reintrodução na natureza.

Identificação das plantas acima: Dyckia-strehliana, Dyckia-reitzii, Cypella-aquatilis, Dyckia-strehliana, Tillandsia-winkler. Fotos: Natividad Fagundes

Quase todas (95%) bromélias ameaçadas de extinção no RS são conservadas no JBPA, além de outras espécies ameaçadas em nível nacional. E, também, as oito espécies de butiá existentes no RS, todas ameaçadas de extinção.

A bióloga Natividad Fagundes, curadora das várias coleções, entre elas as bromélias, explica que o quadro de funcionários reduzido, ainda que seja altamente qualificado, dificulta manter a categoria A, de excelência, do JBPA.

– Se houvesse um corpo técnico-científico maior, isto é, mais compatível com a amplitude das nossas atividades, e também maior investimento e mais divulgação do trabalho e da instituição, o impacto positivo na conservação da biodiversidade e na educação e bem-estar da população seria ainda mais significativo, destaca a bióloga.

Constam nas coleções, por exemplo, entre as espécies ameaçadas de extinção (a popular ‘lista vermelha’), a Dyckia maritima, uma bromélia endêmica do Parque da Guarita em Torres, e a Gomesa venusta (Orchidaceae), orquídea rara no Estado. A Callisthene inundata, descoberta e descrita por pesquisadores do JBPA, uma árvore endêmica da Serra Gaúcha, que ocorre às margens dos rios Taquari e Antas; o Butia exilata, endêmica do RS; a Xylopia brasiliensis, pindaíba, espécie arbórea que só existe no Brasil; e a Muellera torrensis, árvore da família das leguminosas, ocorrente no litoral norte do RS.

Viveiro do JBPA. Cleber Dioni

A bióloga Rosana Singer, curadora das coleções de cactos, orquídeas e de plantas raras e ameaçadas de extinção, dentre outras, diz que há 57 espécies de cactos presentes no JBPA, e destaca algumas espécies com registros na “lista vermelha” da flora riograndense: o cacto Parodia neohorstii, espécie endêmica da Serra do Sudeste, no Estado; o Parodia gaucha, endêmica do Pampa gaúcho; e o Rhipsalis paradoxa, um cacto epífito restrito ao Litoral Norte.

O Brasil possui 85 jardins botânicos, sendo apenas 25 com algum tipo de enquadramento (categoria A, B, C, ou C provisório), e 5 categoria A, conforme a Resolução 339/2003.

No RS, existem dois JBPAs municipais, de Caxias do Sul e Lajeado, um privado, da Unisinos, um ligado à Universidade Federal de Santa Maria, e o de Porto Alegre, o maior.

O JBPA, assim como o Museu de Ciências Naturais, estão sob responsabilidade da Divisão de Pesquisa e Manutenção de Coleções Científicas, da Secretaria Estadual do Meio Ambiente e Infraestrutura. O atual diretor é o biólogo Cesar Rodembusch.

Nos idos de 1950, era um campo de butiás

Criado em 1956, o Jardim Botânico de Porto Alegre só foi aberto ao público em 1958. Era uma chácara de 81 hectares, com um campo de butiás. Hoje não passam de 39 hectares.

Irmão lassalista Teodoro, primeiro diretor do JBPA

O terreno original incluía uma colônia agrícola e a antiga chácara do Visconde de Pelotas, “compreendendo a elevação de um morrinho granítico a 50 metros sobre o nível do mar, vales de alguns arroios à sua periferia, marginados por várzeas de regular extensão”, na descrição do Irmão Teodoro.

“O terreno sobre o qual se assenta, diz Teodoro, é parte do complexo cristalino do Escudo Rio-grandense, uma das mais antigas formações da terra, revestida por um manto vegetativo sui-generis, que contém algumas espécies encontradas unicamente aqui.”

Colocação de mudas nativas. Arquivo JBPA

A implantação de um Jardim Botânico na capital gaúcha foi decidida pelo governador Ildo Meneghetti e efetivada pelo secretário de Obras, Euclides Triches, que depois foi governador do Estado.

Na comissão figuravam cientistas, médicos, engenheiros, arquitetos e urbanistas, como Edvaldo Pereira Paiva, Alarich Schultz, padre Balduino Rambo, Curt Mentz, F. C. Goelzer, Ruy B. Krug, Guido F. Correa, Nelly Peixoto Martins, Paulo Annes Gonçalves, Deoclécio de Andrade Bastos, além do senador Mem de Sá e do jornalista Say Marques, um dos idealizadores da Feira do Livro de Porto Alegre.

Foi no período do governo militar, a partir de 1964, que o Jardim Botânico teve suas maiores perdas. Os governadores nomeados doaram partes do terreno do JBPA a várias instituições: o Clube Farrapos, da Brigada Militar; o Hospital São Lucas, da PUC; o Círculo Militar, do Exército; a vila Juliano Moreira, a Escola de Educação Física da UFRGS; e os laboratórios da Fepam, hoje desocupados.

Em 2003, o JBPA foi declarado Patrimônio Cultural do Estado do Rio Grande do Sul, pela Lei nº 11.917. Em 2004, foi publicado o Plano Diretor. Proposta semelhante foi feita pelo então vereador Marcelo Sgarbossa, na época do PT, para tombar o imóvel sede do JBPA como Patrimônio Cultural e Histórico de Porto Alegre, mas nunca foi à votação.

Quilombo da Anastácia, em Viamão, ganha reconhecimento após 15 anos de luta pela terra

Cleber Dioni Tentardini

A Fundação Cultural Palmares, do governo federal, reconheceu, em 2007, o direito às terras do Quilombo da Anastácia, um dos três existentes no município de Viamão.

A sede regional do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) realizou estudos de identificação e delimitação e avalizou a comunidade quilombola, mas faltava a decisão final do Incra em Brasília para que os moradores ganhassem o direito a receber os títulos de propriedade.

A decisão veio no dia 20 de novembro de 2023. Nesse Dia Nacional da Consciência Negra, o Incra reconheceu 29 comunidades quilombolas, incluindo as 16 famílias da Anastácia, que ganharam o direito à propriedade de pouco mais de 64 hectares.

Uma empresa catarinense produtora de arroz no local, no entanto, contestou o laudo, reivindicando a propriedade de parte das terras onde está o quilombo, mas o Conselho Diretor do Incra confirmou o direito da comunidade.

O sociólogo Sebastião Henrique Lima, responsável pelo setor de regularização de territórios quilombolas no Incra/RS, explica que a publicação da Portaria encerrou o processo administrativo.

– A sede regional do Instituto está providenciando um histórico de todo o processo para enviar à Superintendência do Incra, onde será revisado e, se tudo estiver certo, encaminhado à Casa Civil para que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva assine o decreto, detalha Lima.

A partir da desapropriação de parte da área pertencente à empresa agrícola, o Incra registra em cartório o imóvel em seu nome e deposita em uma conta judicial o valor a que tem direito a antiga proprietária.

Quilombo da Anastácia, em Viamão., Foto: Cleber Dioni

MP concluiu inquérito sobre conflitos no uso da água

No decorrer do processo, as famílias da Anastácia sofreram assédios da produtora de arroz Fazenda Embireira Agroflorestal, que descumpriu acordo feito com os moradores para poder captar água na parte da lagoa que está dentro dos limites do Quilombo. A lagoa é uma planície de inundação do rio Gravataí.

“Não pagavam pelo uso da água e ainda fecharam um canal na lagoa, que dá acesso ao Quilombo. Antes recebíamos turistas, vendíamos lanches, inclusive hospedávamos alguns casais, que ficavam encantados com nosso quilombo, queixou-se Berenice Gomes de Deus, uma das lideranças da comunidade.

Berenice é neta de Anastácia de Oliveira Reis, que dá nome ao quilombo, e bisneta de Hortência Marques de Oliveira, que viveu como escrava naquela região da Estância Grande.

Lagoa no Quilombo da Anastácia, em Viamão. Foto: Cleber Dioni
Barragem de plantadores de arroz na lagoa do, Quilombo. Foto: Cleber Dioni

O Ministério Público do Estado, através da Promotoria Regional da Bacia do Gravataí, instaurou inquérito civil para acompanhar os conflitos em uso de área de sobreposição entre o quilombo e a produtora de arroz.

A promotora de Justiça Roberta Morillos Teixeira diz que, à princípio, os moradores negaram interesse em novo acordo porque a empresa não cumpriu com as contrapartidas, mas depois de algumas reuniões, chegaram a um denominador comum.

Promotora Roberta Teixeira. Foto: MPRS

– Paralelo a isso, a Promotoria conduziu investigações por descumprimento das condicionantes do licenciamento pela Fazenda Embireiria e pelas outorgas de uso da água. E acompanhamos também as medidas administrativas da Fepam e da SEMA.

A empresa Fazenda Embireira Agroflorestal foi multada pela Fundação Estadual de Proteção Ambiental Henrique Luis Roessler (Fepam) por construção de canais novos sem licença de operação.

A região onde está o quilombo e a produtora de arroz, a Estância Grande, está dentro da Área de Proteção Ambiental do Banhado Grande (APABG).

Um parecer da equipe técnica e gestora da APABG identificou a área como sendo de extrema sensibilidade ambiental e social, uma vez que segundo o Plano de Manejo, tem porção de área dentro da zona de adequação ambiental e zona de uso restrito do Banhado.

Referente às questões sociais, insere-se entre duas comunidades tradicionais, o assentamento Filhos de Sepé e a comunidade Quilombola da Anastácia.

O documento assinado pelas analistas ambientais da SEMA a bióloga Cecília Schuler Nin e engenheira agrônoma Letícia Vianna, gestora da APA, determinou uma série de condicionantes à Fazenda Embireira sob pena de revogar a autorização emitida pela unidade de conservação para continuar suas atividades.

Quilombo Anastácia – Relatório de Fiscalização

– O empreendedor descumpria o licenciamento ambiental e, por consequência, os alvos de conservação da APA do Banhado Grande, e somado a isso, omitia o conflito com a área do quilombo dentro do processo de outorga, bem como desrespeitava a área dessa comunidade, registrou o parecer.

O novo presidente da associação de moradores do quilombo, Willian Santos, diz que representantes da empresa reuniram-se com a comunidade para que a Fazenda pudesse continuar puxando água da Lagoa da Anastácia e que o canal construído sem autorização, causador das desavenças, seria fechado caso prejudicasse o acesso ao quilombo pela lagoa.

– Com as enchentes, o canal ficou submerso. Mas se houver estiagem e o canal aparecer, a empresa terá que fechar. Mas, realmente, acho que ficou mais difícil até para empresa renovar a outorga a fim de continuar usando água da lagoa, adverte.

os representantes da empresa agrícola não foram localizados pela reportagem.

Willian Santos  (à frente) e amigos na Lagoa da Anastácia em direção ao Quilombo.

Willian é filho de Zadir Eloísa dos Santos, uma das netas da Anastácia. Ele mora em Gravataí e trabalha em Porto Alegre como micro empreendedor no ramo de estética automotiva. Visita seus familiares no quilombo nos finais de semana.

– Além da titulação das terras, temos que lutar por melhorias na infraestrutura na região onde está o quilombo, posto de saúde, transporte público acessível, escola, e promover o turismo, com o retorno, por exemplo do Barco-Escola Rio Limpo que visitava o quilombo, e outras iniciativas, afirma Santos.

Dona Berenice diz das mais de cem pessoas que moravam, permanecem trinta.

– É tudo muito difícil, por isso ficaram os velhos, que não precisam mais trabalhar, diz a líder quilombola.

Quilombo sofre com falta de infraestrutura. Foto: Cleber Dioni

Anastácia era baixinha braba

Dona Berenice é neta da Anastácia de Oliveira Reis, que dá nome ao quilombo, e bisneta da Hortência Marques de Oliveira, que viveu como escrava nessa região da Estância Grande.

– Convivi com a vó até os 25 anos. Era bem baixinha e braba, principalmente com quem judiava dos netos, mas cuidava de todos, conhecia os chás, as simpatias, ninguém precisava ir no médico”, recorda.

Vò Anastácia com os netos nos idos de 1950/Fotos: álbum de família

A artesã lembra das histórias que sua vó contava sobre a Hortência ajudar na fuga de escravos pelo rio Gravataí, principalmente os homens, que eram surrados e assassinados com frequência.

– Ela ajudava a atravessar para o quilombo Manuel Barbosa, em Gravataí, conta a bisneta da Hortência.

Antigos moradores

Tia Chica, filha de Anastácia. Fotos : AMQA
Tia Cida e o neto Jhonatan. Foto: Associação dos moradores
Marcíri, marido da tia Chica, uma das filhas da Anastácia. Foto Associação dos moradores

Os primeiros europeus chegados nos Campos de Viamão no início do século 18 trouxeram negros escravizados.

Alguns registros apontam que o estancieiro viamonense Serapião José Goulart, um dos maiores proprietários de terras do município, dono da fazenda Boa Vista – em cuja sede, no início do século 19, pernoitou o viajante August Saint-Hilaire -, tinha entre seus escravos a Hortência, mãe da Anastácia.

Faltam políticas públicas para os quilombolas

Uma das moradias. Foto Associação dos moradores

Dos 134 quilombos em 69 municípios gaúchos, os quilombos em Viamão estão entre os mais atrasados devido à falta de políticas públicas.

Além do Anastácia, há o Cantão das Lombas, na divisa com Santo Antônio da Patrulha, com 28 famílias em 154,75 ha, cujo processo de regularização está tramitando desde 8 de dezembro de 2021, e do Capão da Porteira, na divisa com o município de Capivari.

O biólogo Jorge Amaro, primeiro vereador quilombola, eleito pelo PP no município de Mostardas, morou mais de vinte anos em Viamão e conhece bem a realidade das comunidades.

Embora os quilombolas de Mostardas tenham sido reconhecidos há muito mais tempo e estão organizados em associações e dispõem de muita infraestrutura, os de Viamão não estão inseridos sequer nas políticas públicas de auxílio aos moradores.

– A Prefeitura e outras entidades têm que ajudar. A UFPEL e a FURG, por exemplo, oferecem cotas universitárias para quilombolas, e auxiliam na moradia, alimentação, transporte, então porque outras instituições de ensino em Viamão, Porto Alegre, não podem contribuir também, questiona o vereador.

Ausência de trajetórias

A antropóloga Vera Rodrigues da Silva abordou o Quilombo da Anastácia na sua dissertação de mestrado, apresentada em 2006, no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, da UFRGS. O título: “De gente da Barragem” a “Quilombo da Anastácia”: Um Estudo Antropológico sobre o Processo de Etnogênese em uma Comunidade Quilombola no Município de Viamão/RS.

Suas pesquisas sustentaram a titulação das terras para os descendentes de negros escravizados daquela localidade.

Antropóloga Vera Rodrigues da Silva

– Comecei a pesquisar no final dos anos 1990, e estavam em discussão duas ações afirmativas nas universidades públicas brasileiras: as cotas raciais e os direitos territoriais das comunidades quilombolas.

– Isso sempre me incomodou nas trajetórias negras, que é justamente a ausência de trajetórias. Na mídia, na ciência, de um modo geral, parecem que as pessoas negras brotam do chão, não tem ancestralidade, raiz, história. Então, esse foi meu tema na monografia de graduação. E no mestrado, em 2006, já havia a expectativa de titulação das terras, e isso levaria segurança jurídica aos quilombolas, porque havia espoliação, apropriação ilegal de terras, como eu ouvi dizer: “as cercas andam na madrugada”. Mas como estávamos numa época em que a política pública se desenvolvia no país, a pergunta era: como uma política pública de direitos quilombolas se desenvolve no “estado mais branco do Brasil”?

Anastácia nasceu em 1896, portanto era livre (Lei do Ventre Livre é de 1871 e determinava que os filhos de escravas nascidos posterior àquela data eram livres). Já, a abolição da escravidão em Viamão ocorreu em 1884, anterior à Lei Áurea, de 1888.

Nos idos de 1870, dentre os 1.028 habitantes de Viamão, 749 eram negros, cerca de 70% do contingente populacional. (Fonte: MONTI, Verônica. “O Abolicionismo: 1884 sua hora decisiva no RS”, 1985). Hoje, 44% de 250 mil habitantes são considerados negros.

Dos 106 processos no Estado, apenas um tem a titulação integral do território

Quilombo Cantão das Lombas, na divisa de Viamão com Santo Antônio da Patrulha, tem 28 famílias em 154,75ha, cujo processo de regularização está tramitando desde 2021. Foto: Cleber Dioni

“Há 106 processos abertos para regularização de quilombos na superintendência do Incra no Rio Grande do Sul. Apenas quatro comunidades foram tituladas, mas mesmo assim, destas, em três a titulação do território é parcial, pois aguardam a conclusão das ações desapropriatórias. O Título de Domínio emitido pelo Incra é coletivo, em nome da associação de moradores.

O Quilombo Casca, em Mostardas, por exemplo, com 85 famílias, tem pouco mais da metade (51%) da área de 2.300 hectares concluída.

Os demais são Família Silva, em Porto Alegre (12 famílias, em 0,65 ha – 35%), o Rincão dos Martinianos, em Restinga Seca (55 famílias, em 98,5 há – 27%), a Chácara das Rosas, em Canoas (20 famílias em 0,36 há – 100%).

O Rincão dos Caixões, em Jacuizinho (22 famílias em 226,16 ha). ainda está em fase de desapropriação. O Incra está na posse do território e a comunidade está usufruindo integralmente a área, mas ainda não foi titulada.

O maior quilombo com processo em andamento no Estado é o Morro Alto. Desde 2011, 456 famílias reivindicam 4.564,4 hectares nos municípios de Maquiné e Osório.

Em Viamão, duas das três comunidades quilombolas estão com processo em curso, o da Anastácia e o Cantão das Lombas, 28 famílias em 154,75 ha, com processo em tramitação desde 8 de dezembro de 2021.

Nove quilombos gaúchos foram incluídos em uma Portaria no Diário Oficial do governo federal, mas as comunidades ainda não receberam os títulos das terras. São eles: São Miguel (Restinga Seca), Manoel Barbosa (Gravataí), Arvinha (Coxilha e Sertão), Cambará (Cachoeira do Sul), Mormaça (Sertão), Palmas (Bagé), Limoeiro (Palmares do Sul), Areal Luis Guaranha (Porto Alegre), e dos Alpes (Porto Alegre).

Censo 2022: Brasil tem 1,3 milhão de quilombolas

Dados inéditos sobre população quilombola no país foram divulgados em julho deste ano de 2023 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), resultado do Censo 2022.

Segundo matéria da Agência Brasil, o país tem 1,32 milhão de quilombolas, residentes em 1.696 municípios.

Os quilombos Kalunga, em Goiás, e Erepecuru, no Pará, são os maiores do Brasil. O primeiro envolve 54 comunidades, com 888 famílias, em uma área de 261,99 mil hectares, e o segundo, vivem sete comunidades, com 154 famílias, em uma área de 231,6 mil ha.

O total de títulos concedidos é de 322, em 206 territórios, envolvendo 356 comunidades, 21.093 famílias e 1,090 milhão de hectares de área titulada, dos 1,513 milhão de ha reconhecidos. Significa que 72% da área reconhecida foi titulada.

Na divulgação da publicação Brasil Quilombola: Quantos Somos, Onde Estamos?’, em Brasília, o presidente em exercício do IBGE, Cimar Azeredo, considera que os números inéditos sobre esse grupo populacional são uma verdadeira reparação histórica de injustiças cometidas no passado.

“São essas populações que mais precisam das estatísticas, desses números. A gente precisa saber quantas escolas, quantos postos de saúde, coisas relacionadas à educação e tudo o que essa população quilombola precisa, como a titulação [de terras]. Os dados que estão sendo apresentados hoje, pelo IBGE, se tornam, praticamente, uma reparação histórica”. Cimar Azeredo adiantou que, brevemente, o IBGE vai apresentar informações básicas sobre pessoas indígenas e moradores de comunidades e favelas.

A representante da Organização das Nações Unidas no Brasil, Florbela Fernandes, destacou que o levantamento e a divulgação de dados sobre a população quilombola no Brasil tem um simbolismo enorme a todo o país. “A inclusão de um quesito específico para a população quilombola [no censo] representa um marco de reparação histórica importante e que serve de investigação de referência para outros países da diáspora africana”.  “Essa é a primeira pesquisa oficial para coletar dados específicos sobre a população quilombola. Após 135 anos da abolição da escravidão no Brasil, finalmente, saberemos quantos quilombolas são exatamente, onde estão, e como vivem”, comemorou Florbela Fernandes.

Feiras ecológicas da José Bonifácio recebem, no sábado (07), Regina Tchelly, da Favela Orgânica

A Feira de Agricultores Ecologistas (FAE) e a Feira Ecológica do Bom Fim (FEBF), em parceira com a Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável, recebem no próximo sábado, dia 7 de setembro, Regina Tchelly, chef de cozinha e empreendedora social, fundadora da Favela Orgânica.

A programação, a partir das 8h30, contará com uma caminhada guiada pelas feiras ecológicas da avenida José Bonifácio, seguida pelo lançamento da Cartilha Exigibilidade do Direito a estar Livre da Fome e uma roda de conversa, no “areião” da Redenção, entre as duas feiras.

A chef, que atua principalmente nas comunidades da Babilônia e Chapéu da Mangueira, no Rio de Janeiro, ensina como aproveitar o alimento de forma integral, sem desperdício, em uma gastronomia simples e criativa. Além disso, o projeto Favela Orgânica também combate a fome.

– Eu queria fazer algo que pudesse modificar a nossa relação com os alimentos. Me dava muita agonia ver tanta comida não aproveitada. Isso ficou na minha cabeça e em 2011 eu desenvolvi um projeto, em uma agência na época, que pudesse trazer benefício às favelas e à cidade, diz Regina

Essa cartilha faz parte de um projeto da Aliança, cujo núcleo gestor do Rio Grande do Sul trabalhou por 18 meses com foco no direito humano à uma alimentação adequada e saudável, levando em consideração todos os direitos que foram impedidos durante o processo de desmonte das políticas públicas através do antigo governo federal.

– A vinda de Regina Tchelly foi para trazer toda essa teoria na prática, por ela dialogar com os públicos alvos, com uma didática muito legal e trabalha tudo que está escrito na cartilha: alimentação adequada e saudável; aproveitamento integral dos alimentos, agroecologia e pancs, afirmou a agricultora Fran Bellé, estudante de nutrição e membro da Aliança.

(Com informações de Simone Otto, assessoria de comunicação da FAE)

Prefeitura quer debater com moradores do Petrópolis adoção compartilhada de praça

Um dia depois de entregar à Prefeitura um manifesto contra à adoção da praça Mafalda Veríssimo por parte da Empresa Plaenge, na terça-feira, dia 2, o movimento comunitário Petrópolis Vive foi convidado pela Secretaria Municipal de Parcerias a discutir a possibilidade de uma adoção compartilhada do espaço de lazer com a construtora e o Centro Infantil Ser Criança.

A empresa paranaense Plaenge é alvo de protesto dos moradores e ongs ambientais há dez dias, após derrubar um guapuruvu de pelos menos sessenta anos e outras árvores no seu canteiro de obras da rua Felipe de Oliveira, onde vai construir um prédio de alto padrão.

A repercussão negativa culminou num evento cultural realizado no último domingo de junho na praça Mafalda, famosa por sua caixa d´água, e um abaixo-assinado que recolheu mais de 300 assinaturas.

Um dos integrantes do movimento comunitário Petrópolis Vive, Marcelo Roncato,  considerou uma vitória parcial dos moradores.

– Esse convite deveria ter sido feito bem antes, para os  moradores e frequentadores opinarem sobre a adoção da praça, até porque existe a lei municipal 12.583 onde consta que as adoções podem ser feitas por pessoas físicas. Portanto, queremos participar, sim.

A adoção inclui serviços de capina, recolha de lixo, paisagismo, manutenção de equipamentos, entre outros.

Movimento comunitário do Petrópolis lança manifesto contra a adoção de praça por construtora

O “Manifesto de Contrariedade à Adoção da Praça Mafalda Veríssimo por parte da Empresa Plaenge” foi enviado na terça-feira, dia 2, à secretária Municipal de Parcerias, Ana Maria Pellini, e à Diretoria de Áreas Verdes, da Secretaria Municipal do Meio Ambiente de Porto Alegre.

O documento é assinado por Marcelo Rates Roncato, morador da rua Souza Doca, cuidador e frequentador da Praça Mafalda Veríssimo, e representa o movimento comunitário Petrópolis Vive que, no último domingo, dia 30 de junho, realizou um evento cultural na praça e recolheu 300 assinaturas contra a iniciativa do Poder Público Municipal.

Eis o manifesto:

Somos favoráveis à adoção da praça Mafalda Veríssimo pelo CENTRO INFANTIL SER CRIANÇA, coordenado pela Professora Suzana Fogliato, que há 32 anos é vizinha da Praça e desenvolve a consciência ambiental de seus alunos, formando melhores cidadãos e vizinhos, por meio de práticas sociais e ecológicas que serão replicadas em nossa sociedade.

Coletivamente, afirmo que somos completamente contrários à adoção da praça pela empresa paranaense PLAENGE, pelos motivos descritos a seguir:

Questionamos a auto declaração da “Prefeita da Praça”, arquiteta Caroline Ávila, que nem mesmo compareceu ao ato de posse como prefeita na Praça Nações Unidas em 01/07/2023, assim como nunca publicou ou divulgou seu nome e contato junto aos frequentadores da praça, neste último ano. Também questionamos como a suposta “Prefeita” estaria prestando serviços à empresa paranaense PLAENGE, configurando um possível “Conflito de interesses” entre seu suposto cargo de “Prefeita” e relações comerciais, conforme imagens anexas a este documento.

A Família Veríssimo, vizinha e frequentadora que empresta o nome da esposa do escritor Érico Verissimo para a Praça também se pronunciou contrária à tentativa de contato da PLAENGE com a Família

Não houve participação de entidades civis ou moradores ligados ao bairro para opinar sobre a referida adoção, tanto que tivemos manifestações populares, estas sim, contrárias a esta ação autocrática, porém após o fato consumado, já que a intenção e ação de adoção não foi divulgada anteriormente.

Entendemos que a lei 12.583, de 9 de agosto de 2019, instrui e permite que a sociedade civil possa tomar conta de equipamentos públicos, sem o aporte e “ajuda” que a PLAENGE oferece como adoção, pois parece, principalmente, querer limpar a sua imagem depois da falta de diálogo com moradores do bairro.

Convictos da arbitrariedade da decisão tomada e objetivando futuras tomadas de decisão mais justas e paritárias, concluímos com a afirmação de que os moradores e frequentadores da Praça Mafalda devam fazer parte de um Conselho junto aos eventuais adotantes e a PMPA, mantendo uma gestão partilhada entre estas organizações da sociedade, pois, por tudo o que foi acima reportado, o histórico envolvimento espontâneo da vizinhança, ao longo de décadas com a Praça Mafalda, não pode ser negado e tem tido papel significativo nos seus rumos e no seu cuidado.

– O movimento de moradores Petrópolis Vive, que há mais de 20 anos se organizou para defender os interesses sociais e culturais deste bairro em várias frentes bem sucedidas, foi surpreendido com a medida unilateral da Prefeitura e ficou perplexo com as ameaças sofridas por funcionários CCs do DMLU que queriam a suspensão do nosso evento no domingo, quando realizados atividades e um abaixo-assinado que recolheu mais de 300 assinaturas, e com a visita de soldados da Brigada Miliar fortemente armados, o que nunca registramos em 15 edições do evento comunitário, afirmou Roncato.

Segundo ele, o movimento comunitário lutou pela manutenção e conservação da histórica Caixa d´água, construída em 1927 pela loteadora para a fixação dos primeiros moradores. A mesma foi inventariada como bem cultural da cidade e através de ação junto ao MP/RS, a promotora Annelisse Steigleder exigiu a conservação da mesma pelo DMAE, responsável até hoje por sua manutenção.

A Caixa d´água histórica, através de autorização do Arquivo Histórico Moisés Velhinho, é de uso compartilhado com os moradores e utilizado como ponto de Cultura do bairro, onde já foram feitas exibições de cinema no seu interior e outras exposições como charges sobre Luís Fernando Verissimo, ilustre vizinho da Praça Mafalda.

Participou da Campanha pela manutenção e aquisição da CASA da ESTRELA pela Prefeitura, na gestão de José Fortunati, que se tornou a sede, por concessão de 30 anos, da Associação de Escultores do RS.

O Movimento de moradores PROTEJA PETRÓPOLIS, por sua vez, participou ativamente na constituição e sucessivas revisões do Inventário dos Imóveis a serem preservados no bairro, levando em conta os conjuntos urbanos em torno de dois núcleos: A Praça Mafalda Veríssimo e a Casa da Estrela (em consonância com as duas Áreas Especiais de Interesse Cultural delimitadas no bairro pelo Plano Diretor).

A partir de 2016, quando do aniversário de 80 anos do escritor Luís Fernando Verissimo LFV, foi iniciado o projeto VIVE PETRÓPOLIS em parceria como o curso de Museologia/UFRGS. Como resultado dessa parceria, já contamos com 15 edições do referido Projeto, promovendo a cultura através de apresentações musicais, circo, artesanato, dança, coral todas registradas e mais a gravação em vídeos de depoimentos de moradores do bairro. Nosso evento também teve participação no filme VERISSIMO, gravado pelo diretor Angelo Defanti que está em cartaz em rede nacional.

Através do projeto acima descrito, foi dada visibilidade à praça e com o apoio da antiga SMAMS foi concretizada a adoção compartilhada em 2018 pelas empresas DE LAZZARI MOBILIÁRIO URBANO e BENDITA PLANTA PAISAGISMO, cujo projeto paisagístico tem se mantido e de fato é o projeto mais duradouro e apreciado pelos usuários, por isso queremos que seja mantido. Naquela ocasião, também foi contratado pelos adotantes o artista premiado Kelvin Koubi que grafitou um mural com figuras de animais e plantas do ecossistema brasileiro, que persiste em excelente estado, em harmonia com o projeto paisagístico.

Velocidade do Guaíba na enchente comprova que ele é um rio, diz pesquisador

Cleber Dioni Tentardini

Nos dias 5 e 6 de maio deste ano, no pico da enchente, uma equipe de pesquisadores dos Institutos de Geociências (IGEO) e de Pesquisas Hidráulicas (IPH), da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, mediu a velocidade da corrente de água no Guaíba, próximo à Usina do Gasômetro, em quatro metros por segundo, e uma vazão de mais de 30 milhões de litros por segundo, ou 30 mil metros cúbicos por segundo.

Um dos coordenadores do trabalho, o geólogo e professor Elírio Toldo Júnior, disse que só no rio Amazonas encontrou aquela velocidade. O normal, quando um rio está correndo muito, é de um metro por segundo.

A equipe da Universidade voltou às águas do Guaíba no dia 13 de junho. Técnicos, professores e um aluno embarcaram equipados para coletar amostras, verificar sedimentos e medir a vazão e nível das águas em um trecho de 800 metros, do mesmo ponto próximo à usina até a Ilha da Pintada.

O jornal JÁ acompanhou o trabalho e conversou com o professor Elírio, sobre as implicações de os órgãos públicos continuarem monitorando o Guaíba como um lago, e não um rio.

Rio ou lago Guaíba, qual a relevância dessa discussão?

Isso faz toda a diferença. Desde as leis que regulam a ocupação das cidades, manejo ambiental, extração de areia, por exemplo, até as medidas de controle das águas. O lago tem menos proteção ambiental. Do ponto de vista econômico, o lago é melhor porque pode construir próximo às margens.

Quais são as evidências de que o Guaíba é um rio?

Nos últimos anos, vem se falando muito na imprensa que o Guaíba é um lago. Mas quem sustenta essa tese não apresenta evidências da circulação lacustre, ou bidimensional, que ocorre apenas na superfície da água, de margem a margem e de Norte a Sul. Essas são as duas dimensões de um lago. Até hoje nunca li alguma publicação científica que aponte o funcionamento do Guaíba como lago. A circulação lacustre é controlada pelo vento. A forçante é o vento. Isso foi colocado no papel de forma inconsequente, sem sustentação alguma, conclusões de gabinete.

Os estudos que fizemos em vários pontos do Guaíba mostram que a circulação é tridimensional, de margem a margem, de Norte a Sul e da superfície até o fundo. Esse escoamento é fluvial tanto no Gasômetro como na Ponta do Dionísio ou lá na Ponta Grossa e em outras sessões do Guaíba. Todas apresentam o mesmo padrão de circulação fluvial. Registramos isso com instrumentos. A vazão é a mesma nos diferentes pontos, o que muda é a velocidade das águas, de acordo com a distância entre as margens. Na frente do Gasômetro, onde essa distância é menor, cerca de 800 metros, as águas passam mais rápido.

Não existe água parada no Guaíba?

Parece estar parada entre os canais, justamente onde se nota mais poluição. É que a troca da água no Guaíba é de uma semana, em média. Durante as enchentes, foi menos de um dia. Se fosse lago, seria muito mais demorado porque a forçante seria o vento, como ocorre na Lagoa dos Patos. No Guaíba, é a gravidade que acelera a troca. Do Navegantes até Itapuã, o Guaíba tem a declividade de dois metros. Imaginar o Guaíba como um lago, com águas paradas, já teria se tornado uma gigantesca fossa, com acúmulo de esgoto cloacal. Ele só não é tão poluído por causa da renovação das águas. O canal que atravessa o fundo do Guaíba controla o escoamento das águas. O problema é que o esgoto está sendo empurrado para a Lagos dos Patos e, depois, para o oceano.

O Guaíba é um local de trânsito das águas e dos sedimentos da chuva que cai no Planalto, por exemplo, então, essa água vai ficar pouco tempo no Guaíba. Nós medimos nos dias 5 e 6 de maio, durante o pico das enchentes, o volume de água descomunal cruzando o Guaíba: foram mais de 30 milhões de litros por segundo. A média de vazão aqui é entre 1 e 2 milhões de litros por segundo. Portanto, o Guaíba não é um reservatório de água, mas um curso hídrico.

Nas cataratas do Iguaçu, o rio Iguaçu é semelhante ao tamanho da bacia do rio Guaíba. Lá tem 82 mil km² e a mesma região climática. E o máximo já medido de vazão foi de 24 milhões de litros por segundo. O Guaíba só não tem as cataratas porque as características do terreno são diferentes.

Se a superfície d’água no Guaíba apresenta declividade, basta manter apenas uma régua fixa para monitorar o nível de água?

A régua da SEMA (Secretaria Estadual de Meio Ambiente), apenas uma para monitorar o nível de água, é um equívoco. Manter um ponto de monitoramento para todo o Guaíba como se fosse um lago, é um negacionismo absurdo. A régua que estava na altura da Rodov0iária inundou, e ficou inutilizada, embaixo da água. Agora tem uma na frente do Gasômetro. A SEMA transferiu a cota do Cais para a Usina, usando o conceito do plano horizontal da superfície d’água. Um erro que a Secretaria não reconheceu até agora. Ora, se a superfície é inclinada, como um ponto apenas vai ser suficiente para monitorar o nível? Isso explica porque algumas regiões da cidade inundaram mais que outras. Um aumento de três metros do nível do Guaíba é bem maior no início do declive do que no final. Então, o nível do Guaíba ficou mais alto na Zona Norte do que na Zona Sul. O desnível entre esses dois pontos é da ordem de dois metros. Essa variável não foi ponderada para avaliação dos impactos das enchentes. Portanto, ele não pode ter a mesma cota de inundação em todos os pontos devido à inclinação da superfície da água. Mas, as autoridades não nos ouvem.

 

 

 

 

 

 

 

Além de lago, se falou que o Guaíba seria um estuário.

O Guaíba só não é um estuário porque a Lagoa dos Patos é de água doce. O Guaíba é um rio em evolução. O rio que completou o ciclo de crescimento, amadurecimento e se tornou um rio das nascentes até a foz é o Camaquã. O Guaíba está crescendo. Esses canais entrelaçados que têm aqui no porto, estão descendo em direção a Itapuã. Quando chegarem a Itapuã daqui a centenas ou milhares de anos, lá será construído um delta como o Camaquã fez.

A proibição ou redução da atividade de extração de areia do rio Jacuí pode provocar assoreamento e contribuir com as cheias?

O Jacuí tem uma mineração de areia histórica. A extração de areia altera a estabilidade das margens, do talude, cria desequilíbrios e retira a identidade do rio, que é o canal. Perde a configuração do canal no formato em ‘v’, portanto mais profundo na parte central. E passa para a configuração em ‘u’. O fundo fica achatado. E isso tem implicações no escoamento, mas não tenho dados para associar isso às inundações nas margens do Jacuí.

E circulam muitos sedimentos?

Há 12 anos, quando começamos a estudar a carga de sedimentos que a Bacia do Guaíba carrega para o mar, do ponto de vista geológico, interessa saber quanto vai de areia. Começamos a investigar o Jacuí porque esse rio produz um volume fenomenal de areia, sempre produziu, milhões de anos. Sempre contribuiu para construção da plataforma continental.

Quando a carga de sedimentos chega na Lagoa dos Patos, ela se dispersa porque não tem mais aquele direcionamento de jato que adquire no Guaíba. Na Lagoa, a taxa de deposição dessa lama é muito alta, cerca de seis metros. Uma parte menor fica no Guaíba, sendo que seu canal está preservado.

O rio Jacuí termina de trazer sedimentos para a zona costeira em Itapuã. As evidências geológicas são incontestáveis. Isso é unânime na nossa equipe de trabalho. Quando a gente começou a fazer as conexões desses rios, na década de 80, iniciamos pela Lagoa dos Patos. E mais recentemente entramos no Guaíba, que é a parte final de um sistema hídrico que leva sedimentos para a zona costeira, a Lagoa dos Patos. Portanto, a intenção de separar o Guaíba da bacia hidrográfica é um problema.

Onde começa a Bacia Hidrográfica do Guaíba?

O local mais distante são as cabeceiras do rio Jacuí, na região de Soledade, Passo Fundo. Ele desce e encontra os rios Taquari, Caí, Sinos e Gravataí. Essa rede de drenagem que chega ao Guaíba tem mais de 80 mil km². Toda gota de chuva vai parar no Guaíba. A Bacia é que controla o volume e o tipo de sedimentos que atravessa o Guaíba. Depende de onde está chovendo. Se chove no Planalto, vai vir uma grande carga de sedimentos, e quando chove na área central e nos afluentes da margem direita do Jacuí, vem menos sedimentos. Devido ao tipo de rocha. Então, aquele conceito de lago, que o Guaíba tem vida própria, não é verdade, ele reflete tudo o que acontece na Bacia.

Em Nota Técnica, cientistas da UFRGS detalham o desmonte da legislação ambiental no RS

Cientistas do Instituto de Biociências da Universidade Federal do Rio Grande do Sul publicaram uma Nota Técnica nesta sexta-feira, 14, onde detalham as modificações do Código Estadual do Meio Ambiente (CEMA), promovidas pelo governador Eduardo Leite e aprovadas pela Assembleia Legislativa do Estado.

Confira aqui. 

Cada artigo da lei antiga é comparado ao seu correspondente na nova lei e as diferenças são comentadas quanto às suas implicações regulatórias e ambientais.

A Nota Técnica Gestão Ambiental Reativa Sem Poder de Reação é assinada pelos professores Gonçalo Ferraz e Fernando G. Becker.

Becker é graduado em Biologia pela UFRGS e doutor em Ecologia e Recursos Naturais pela Universidade Federal de São Carlos.

Ferraz é graduado em Biologia pela Universidade de Lisboa, pós-graduado em Política e Regulamentação Ambiental e doutor em Ecologia e Biologia Evolutiva, pela Universidade de Columbia.

No texto de apresentação, os autores afirmam  que as mudanças feitas no novo Código Estadual do Meio Ambiente (CEMA) parecem obedecer a três princípios: eliminar, enfraquecer, subverter.

O Código alterado eliminou sumariamente partes fundamentais do texto original.

Desapareceram todos os artigos sobre áreas de uso especial, que, não sendo unidades de Conservação, precisam ser definidas e protegidas.

Desapareceram as diretrizes técnicas para elaboração de estudos e relatórios de impacto ambiental, assim como as ferramentas e mecanismos de controle da qualidade do ar.

Por fim, o último artigo do novo CEMA (art. 233) revoga treze artigos e um parágrafo único do Código Florestal do Estado, atentando severamente contra os mecanismos de proteção de florestas. O que não é eliminado, é enfraquecido.

O novo CEMA é particularmente erosivo com o sistema de licenciamento ambiental. A lei brasileira segue uma lógica de licenciamento bastante razoável, em que os empreendimentos passíveis de causar dano ambiental precisam uma licença prévia à instalação, uma licença de instalação e, finalmente, uma licença de operação que é renovada ciclicamente mediante avaliações.

O novo código mantém estas três licenças, mas acrescenta outras três, de definição imprecisa e que flexibilizam perigosamente todo o sistema de licenciamento, apresentando ao empreendedor incentivos contrários à preservação do ambiente do estado.

Chamam-se “Licença Única”, que pode valer pelas três anteriores, “Licença de Operação e Regularização”, para quem começou a operar sem ter obtido licenças prévia e de instalação, e “Licença Ambiental por Compromisso”, a LAC, uma novidade que se obtém por via eletrônica mediante uma “declaração de adesão e compromisso”.

O texto modificado não é claro no que se refere a quais atividades podem ser licenciadas por cada licença. Essa definição fica para depois. Será feita por meio de resoluções do Conselho Estadual do Meio Ambiente (CONSEMA).

A resolução do CONSEMA 372/2018, por exemplo, especifica os tipos de empreendimento e o tipo de licenciamento a que estão sujeitos. Ela pode ser alterada a qualquer momento com modificação da classificação dos empreendimentos.

A subversão da lei vem na linguagem e num sem-fim de pequenos detalhes que, aparentando uma preocupação com a eficiência, na verdade invertem o sentido da lei e comprometem a capacidade do Estado proteger o ambiente e gerenciar o uso de recursos naturais com efetividade.

Por exemplo, o termo “Ministério Público” (MP) aparece três vezes no Código anterior, indicando situações em que alguém tem obrigação de dar ciência de algum procedimento ao MP ou dando ao MP o poder de convocar uma Audiência Pública.

Quantas vezes aparece “Ministério Público” no novo código? Zero.

De forma semelhante, em todos os lugares onde o código original estipulava publicação de alguma decisão no “Diário Oficial do Estado” , o CEMA alterado estipula publicação na “rede mundial de computadores”.

Por fim, numa alteração sutil e reveladora, que passa facilmente despercebida, o termo “Poder Público” foi substituído por “Estado”.

O “Poder Público” é um poder que representa o público e como tal tem de respeitar e proteger o interesse coletivo; aparecia trinta e oito vezes no código anterior. No novo texto é mencionado nove vezes. A troca foi sistemática, exceto nos trechos do CEMA novo que não constavam do Projeto de Lei e foram devolvidos ao texto do código antes da votação em janeiro de 2020.

As omissões, enfraquecimento e modificações de linguagem aqui mencionadas são apenas uma pequena amostra das mais de 150 mudanças introduzidas no CEMA.

Além das mudanças, foram eliminados 59 artigos e inseridos 46 novos que flexibilizam a legislação em favor do empreendedor.

Os autores da Nota Técnica reconhecem que o código anterior “não é a oitava maravilha do mundo”, mas foi fruto de décadas de busca e construção de um conjunto de regras para o bom uso de bens coletivos.

“O novo CEMA representa um desmonte da legislação ambiental, cujas implicações para a sociedade em geral são aumento dos problemas socioambientais, a deterioração ambiental e a diminuição de qualidade de vida”.

Em termos conceituais e de estratégia, as alterações realizadas implicam uma temerária mudança do princípio de gestão ambiental feita pelo Estado: privilegia-se uma abordagem reativa, na qual o poder público só entra em ação após os problemas ambientais ocorrerem, em desfavor de uma abordagem preventiva, de precaução, em que o poder público procura diminuir o risco de que problemas ambientais venham a ocorrer.  “A abordagem preventiva é mais efetiva em cuidar do ambiente, mais barata e menos conflituosa do que uma ênfase predominantemente reativa”.

“A concepção reativa de gestão ambiental também é extremamente arriscada, se considerarmos que diversas mudanças no Código implicam no enfraquecimento dos órgãos ambientais e de sua atuação. Sob um princípio reativo de gestão, a função de fiscalização dos órgãos ambientais deveria ser muito fortalecida, assim como as políticas e ações de recuperação ambiental e reparação de danos. Esperar-se-ia encontrar órgãos bem estruturados para exercer intensa e ampla fiscalização, e programas plenamente funcionais de recuperação ambiental, contando com tecnologia e número de servidores que dessem conta dessas demandas. Seria necessário, também, que as punições fossem exemplares para quem desrespeita as regras. É justamente o contrário do que vem ocorrendo com os órgãos ambientais no RS. O que estamos vendo com o impacto das cheias pode ser tanto percebido como resultado de uma gestão preventiva enfraquecida, como de uma gestão reativa não implementada: como a prevenção contra os eventos extremos tem sido fraca e a abordagem de fiscalização e recuperação é insuficiente, temos um enorme impacto socioambiental, cujo custo de recuperação pode chegar à casa da centena de bilhões de reais (sem contar os prejuízos gerados), e que produz enorme turbulência na vida das pessoas e na economia. As mudanças no CEMA reduziram o caráter preventivo da gestão ambiental e, paradoxalmente, não contribuíram para melhorar sua função reativa”.

Estão listadas as mudanças do CEMA de 2020 Lei Nº 15.434/2020 em relação ao CEMA de 2000 (Lei Nº 11.520/2000), na ordem dos capítulos do CEMA de 2000.

Aquecimento global aumenta risco de expansão da dengue, segundo OMS

Genebra (EFE)

Mais de 5 milhões de casos de dengue foram registrados em todo o mundo em 2023, incluindo 5 mil mortes, informou nesta sexta-feira a Organização Mundial da Saúde (OMS), o que elevou para alto o risco dessa doença, cujo raio de expansão está aumentando devido a fatores como a mudança climática.

O aquecimento global está expandindo o habitat dos mosquitos que transmitem essa infecção viral, explicou em entrevista coletiva Diana Rojas, especialista em arbovírus do departamento de prevenção de epidemias e pandemias da OMS.

Como resultado, metade da população mundial, ou cerca de 4 bilhões de pessoas, corre o risco de ser infectada pela dengue, a doença mais comum transmitida por mosquitos.

“A maioria das pessoas não apresenta sintomas, mas as que apresentam podem sofrer de febre alta, dor de cabeça, dores no corpo, náuseas, etc. Em muitos casos, elas se recuperam em uma ou duas semanas, mas às vezes a situação pode piorar”, analisou.

Rojas também lembrou que 80% dos casos em 2023 (4,1 milhões) foram registrados na América, enquanto as outras regiões mais afetadas foram o sul e o leste da Ásia.

O país americano com mais casos neste ano foi o Brasil (2,9 milhões), seguido por Peru (271 mil) e México (235 mil), enquanto a Colômbia diagnosticou as formas mais graves da doença (1.500, 1,35% do total), seguida pelo Brasil (1.474, 0,05%).

Rojas também alertou que as transmissões locais da dengue estão começando a ser detectadas em países antes considerados não endêmicos, incluindo europeus como Itália (82 positivos em 2023), França (43) e Espanha (três).

“Normalmente, os casos são detectados nesses países por viajantes da América, do Leste Asiático e de outras regiões endêmicas, mas neste ano vimos alguns surtos limitados de transmissão local”, alertou.

Os surtos em países em conflito e em contextos frágeis, como Afeganistão, Paquistão, Sudão, Somália e Iêmen, juntamente com a transmissão de outras doenças, ondas de deslocamento interno e infraestrutura de saúde precária, também foram motivo de preocupação.

A elevação de risco decidida pela OMS busca “maximizar a atenção e a resposta para ajudar os países a controlar os surtos atuais e prepará-los para responder às próximas altas temporadas de dengue”, que geralmente coincidem com períodos quentes e úmidos.

Nesse sentido, a OMS pede aos países membros que fortaleçam os mecanismos de monitoramento de casos, condições ambientais e colônias de mosquitos, e atualizem as diretrizes e melhorem o treinamento dos profissionais de saúde para responder à doença.

A OMS recomenda o uso de repelente de mosquitos para a população em geral, especialmente durante o dia, além da eliminação de áreas com alta presença de mosquitos perto de áreas residenciais nas comunidades.

Erguidos os primeiros aerogeradores da Usina Coxilha Negra, em Livramento

Mais uma importante etapa das obras de implantação do Parque Eólico Coxilha Negra foi registrada pela Eletrobras CGT Eletrosul, no município de Sant’Ana do Livramento (RS).

Foi concluída a montagem mecânica dos quatro primeiros aerogeradores do empreendimento, que contará com 72 unidades. O procedimento envolveu a instalação de nacele, gerador e cubo com as pás nas quatro torres iniciais. Esta etapa consiste no içamento da nacele com seus acessórios, seguido pelo gerador e, por fim, o cubo em configuração estrela com as três pás.

Cada aerogerador pesa 1.320 toneladas, mede 125 metros de altura e cada pá tem 72 metros de comprimento

O peso total de cada aerogerador é de 1.320 toneladas; as torres possuem 125 metros de altura e cada pá tem 72 metros de comprimento.

As obras relacionadas ao sistema de transmissão também evoluem. Na última semana de novembro, foram concluídas as linhas de transmissão que irão operar em 230 kV. As duas subestações coletoras (34,5kV / 230kV) também seguem em estágio avançado: Coxilha Negra 2 (280 MVA – dois transformadores, e um terceiro reserva) e Coxilha Negra 3 (140 MVA), além da ampliação da Subestação Livramento 3 (Sant’Ana Transmissora).

Entre o final de outubro e início de novembro, foi registrada a chegada dos primeiros componentes dos aerogeradores, em Sant’Ana do Livramento. Essa remessa inicial de equipamentos é composta por hubs, geradores e naceles – todos transportados de Jaraguá do Sul (SC), pela fabricante WEG.

Além das estruturas provenientes de Santa Catarina, no dia 14 de novembro, o conjunto com as primeiras 20 pás fabricadas no Ceará, pela empresa subcontratada Aeris, atracou no Porto de Rio Grande (RS), seguindo viagem rumo à Sant’Ana do Livramento.

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Para a viabilização do Parque Eólico Coxilha Negra, foram construídos aproximadamente 100 km de novos acessos, além da revitalização de outros 56 km de estradas rurais municipais.

Durante os diversos estágios das obras, estima-se a criação de 1.300 empregos. Neste momento, as diferentes frentes de trabalho contam com a mobilização em campo de aproximadamente 1.035 profissionais contratados pelas empresas prestadoras de serviços. Cerca de 530 trabalhadores são do Rio Grande do Sul e os demais são provenientes de outros estados.

Alinhado com a Política de Responsabilidade Social da Eletrobras, o processo de contratação de mão de obra é conduzido pelas empresas prestadoras de serviços e prioriza a seleção de profissionais dos municípios da região, por meio de parcerias com centros locais de empregabilidade. Para atender demandas específicas, por tempo determinado, e que exigem qualificação especializada, as empresas prestadoras de serviços contam com quadro técnico próprio flutuante ou realizam recrutamento externo para preenchimento pontual de vagas temporárias de acordo com a evolução das obras.

O Parque Eólico Coxilha Negra terá capacidade instalada de 302,4 MW, integrando três conjuntos de usinas que totalizarão 72 aerogeradores: Coxilha Negra 2, Coxilha Negra 3 e Coxilha Negra 4. O início da operação do empreendimento ocorrerá em 2024.

Quilombo da Anastácia, em Viamão, ganha reconhecimento após 15 anos de luta pela terra

Cleber Dioni Tentardini

O governo federal reconheceu, ontem, dia 20, no Dia Nacional da Consciência Negra, o direito de 29 comunidades quilombolas regularizar suas terras, incluindo o Quilombo da Anastácia, um dos três existentes no município de Viamão: 16 famílias ganharam o direito à propriedade de pouco mais de 64 hectares.

O reconhecimento da área na Região Metropolitana de Porto Alegre veio depois de 15 anos, tempo em que o processo de regularização fundiária tramitou no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – Incra.

Foram realizados estudos de identificação e delimitação, e um relatório técnico foi aprovado pela sede regional do instituto, indicando o direito à titulação.

No entanto, uma empresa catarinense produtora de arroz contestou o laudo, reivindicando a propriedade de parte das terras onde está o quilombo e o recurso teve que aguardar julgamento pelo Conselho Diretor do Incra, em Brasília, que confirmou o direito da comunidade.

A publicação da Portaria encerrou o processo administrativo. A sede regional do Incra-RS precisa enviar um histórico de todo o processo à Superintendência do Instituto em Brasília para revisão e, se tudo estiver certo, é encaminhado à Casa Civil para que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva assine o direito à titulação.

A partir da desapropriação de parte da área pertencente à empresa agrícola, o Incra registra em cartório o imóvel em seu nome e deposita numa conta judicial o valor a que tem direito a antiga proprietária.

Berenice Gomes de Deus, artesã e uma das lideranças, diz que a espera foi longa, mas a luta vale à pena.

– Esperamos agora a titulação, disse.

Berenice é neta de Anastácia de Oliveira Reis, que dá nome ao quilombo, e bisneta de Hortência Marques de Oliveira, que viveu como escrava naquela região da Estância Grande.

Uma rotina de ameaças em 15 anos de espera

Quilombo da Anastácia, em Viamão., Foto: Cleber Dioni

A Fundação Cultural Palmares, do governo federal, reconheceu, em 2007, o direito às terras do Quilombo da Anastácia, um dos três existentes no município de Viamão.

A sede regional do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária avalizou a comunidade quilombola, mas faltava a decisão final do Incra em Brasília para que os moradores ganhassem o direito a receber os títulos de propriedade.

Durante esse tempo, as famílias da Anastácia sofreram assédios e ameaças. Uma empresa produtora de arroz descumpriu acordo feito com os moradores para poder captar água na parte da lagoa que está dentro dos limites do Quilombo. É uma planície de inundação do rio Gravataí.

“Não pagaram pelo uso da água e fecharam um canal na lagoa, que dá acesso ao Quilombo. Antes recebíamos turistas, vendíamos lanches, inclusive hospedávamos alguns casais, que ficavam encantados com nosso quilombo, queixou-se Berenice Gomes de Deus, uma das lideranças da comunidade.

Lagoa no Quilombo da Anastácia, em Viamão. Foto: Cleber Dioni
Barragem de plantadores de arroz na lagoa do, Quilombo. Foto: Cleber Dioni

A empresa Fazenda Embireira Agroflorestal foi multada pela Fundação Estadual de Proteção Ambiental Henrique Luis Roessler (Fepam) por construção de canais novos sem licença de operação.

Quiilombo Anastácia – Relatorio de Fiscalizacao

O Ministério Público do Estado, através da Promotoria Regional da Bacia do Gravataí, instaurou inquérito civil para acompanhar os conflitos em uso de área de sobreposição entre o quilombo e a produtora de arroz.

Promotora de Justiça Roberta Morillos Teixeira. Foto: Rodrigo Martins (SEAPDR/Divulgação)

– A empresa não cumpriu com as contrapartidas e os moradores negaram interesse em novo acordo. Paralelo a isso, a Promotoria tem algumas investigações por descumprimento das condicionantes do licenciamento pela Fazenda Embireiria e pelas outorgas de uso da água. E tem o viés administrativo da Fepam e da DRHS, que vêm tomando algumas medidas, diz a promotora de Justiça Roberta Morillos Teixeira.

A região onde está o quilombo e a produtora de arroz é a Estância Grande, que está dentro da Área de Proteção Ambiental do Banhado Grande (APABG).

Um parecer da equipe técnica e gestora da APABG identificou a área como sendo de extrema sensibilidade ambiental e social, uma vez que segundo o Plano de Manejo, tem porção de área dentro da zona de adequação ambiental e zona de uso restrito do Banhado.

Referente às questões sociais, insere-se entre duas comunidades tradicionais, o assentamento Filhos de Sepé e a comunidade Quilombola da Anastácia.

O documento assinado pelas analistas ambientais da SEMA a bióloga Cecília Schuler Nin e engenheira agrônoma Letícia Vianna, gestora da APA, determinou uma série de condicionantes à Fazenda Embireira sob pena de revogar a autorização emitida pela unidade de conservação para continuar suas atividades.

– O empreendedor vem recorrentemente descumprindo o licenciamento ambiental e, por consequência, os alvos de conservação da APA do Banhado Grande, e somado a isso, omitindo conflito com a área do quilombo dentro do processo de outorga, bem como desrespeitando a área dessa comunidade, registrou o parecer.

Dona Berenice diz que a situação é muito difícil porque falta infraestrutura

– Não temos escola, posto de saúde perto, transporte público acessível. Reconheceram em parte nossas terras, muito bem, mas estamos abandonados, lamenta.

Dona Berenice neta da Anastácia, no Quilombo da Anastácia, em Viamão. Foto: Cleber Dioni

Das mais de cem pessoas, atualmente, moram cerca de trinta.

– É tudo muito difícil, por isso ficaram os velhos, que não precisam mais trabalhar, diz a líder quilombola.

Baixinha braba

Dona Berenice é neta da Anastácia de Oliveira Reis, que dá nome ao quilombo, e bisneta da Hortência Marques de Oliveira, que viveu como escrava nessa região da Estância Grande.

– Convivi com a vó até os 25 anos. Era bem baixinha e braba, principalmente com quem judiava dos netos, mas cuidava de todos, conhecia os chás, as simpatias, ninguém precisava ir no médico”, recorda.

Vò Anastácia com os netos nos idos de 1950/Fotos: álbum de família

A artesã lembra das histórias que sua vó contava sobre a Hortência ajudar na fuga de escravos pelo rio Gravataí, principalmente os homens, que eram surrados e assassinados com frequência.

– Ela ajudava a atravessar para o quilombo Manuel Barbosa, em Gravataí, conta a bisneta da Hortência.

Antigos moradores

Tia Chica, filha de Anastácia. Fotos : AMQA
Dona Cida e o neto Jhonatan
Marcírio, marido da tia Chica

Os primeiros europeus chegados nos Campos de Viamão no início do século 18 trouxeram negros escravizados.

Alguns registros apontam que o estancieiro viamonense Serapião José Goulart, um dos maiores proprietários de terras do município, dono da fazenda Boa Vista – em cuja sede, no início do século 19, pernoitou o viajante August Saint-Hilaire -, tinha entre seus escravos a Hortência, mãe da Anastácia.

Faltam políticas públicas para os quilombolas

Dos 134 quilombos em 69 municípios gaúchos, os quilombos em Viamão estão entre os mais atrasados devido à falta de políticas públicas.

Quilombo da Anastácia, em Viamão. Fotos: Cleber Dioni

 

Além do Anastácia, há o Cantão das Lombas, na divisa com Santo Antônio da Patrulha, com 28 famílias em 154,75 ha, cujo processo de regularização está tramitando desde 8 de dezembro de 2021, e do Capão da Porteira, na divisa com o município de Capivari.

O biólogo Jorge Amaro, primeiro vereador quilombola, eleito pelo PP no município de Mostardas, morou mais de vinte anos em Viamão e conhece bem a realidade das comunidades.

Embora os quilombolas de Mostardas tenham sido reconhecidos há muito mais tempo e estão organizados em associações e dispõem de muita infraestrutura, os de Viamão não estão inseridos sequer nas políticas públicas de auxílio aos moradores.

– A Prefeitura e outras entidades têm que ajudar. A UFPEL e a FURG, por exemplo, oferecem cotas universitárias para quilombolas, e auxiliam na moradia, alimentação, transporte, então porque outras instituições de ensino em Viamão, Porto Alegre, não podem contribuir também, questiona o vereador.

Ausência de trajetórias

A antropóloga Vera Rodrigues da Silva abordou o Quilombo da Anastácia na sua dissertação de mestrado, apresentada em 2006, no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, da UFRGS. O título: “De gente da Barragem” a “Quilombo da Anastácia”: Um Estudo Antropológico sobre o Processo de Etnogênese em uma Comunidade Quilombola no Município de Viamão/RS.

Suas pesquisas sustentaram a titulação das terras para os descendentes de negros escravizados daquela localidade.

– Comecei a pesquisar no final dos anos 1990, e estavam em discussão duas ações afirmativas nas universidades públicas brasileiras: as cotas raciais e os direitos territoriais das comunidades quilombolas.

– Isso sempre me incomodou nas trajetórias negras, que é justamente a ausência de trajetórias. Na mídia, na ciência, de um modo geral, parecem que as pessoas negras brotam do chão, não tem ancestralidade, raiz, história. Então, esse foi meu tema na monografia de graduação. E no mestrado, em 2006, já havia a expectativa de titulação das terras, e isso levaria segurança jurídica aos quilombolas, porque havia espoliação, apropriação ilegal de terras, como eu ouvi dizer: “as cercas andam na madrugada”. Mas como estávamos numa época em que a política pública se desenvolvia no país, a pergunta era: como uma política pública de direitos quilombolas se desenvolve no “estado mais branco do Brasil”?

Anastácia nasceu em 1896, portanto era livre (Lei do Ventre Livre é de 1871 e determinava que os filhos de escravas nascidos posterior àquela data eram livres). Já, a abolição da escravidão em Viamão ocorreu em 1884, anterior à Lei Áurea, de 1888.

Nos idos de 1870, dentre os 1.028 habitantes de Viamão, 749 eram negros, cerca de 70% do contingente populacional. (Fonte: MONTI, Verônica. “O Abolicionismo: 1884 sua hora decisiva no RS”, 1985). Hoje, 44% de 250 mil habitantes são considerados negros.

Dos 26 processos no Estado, apenas cinco receberam titulação das terras

Quilombo Cantão das Lombas, na divisa de Viamão com Santo Antônio da Patrulha, tem 28 famílias em 154,75ha, cujo processo de regularização está tramitando desde 2021. Foto: Cleber Dioni

Há 26 processos em andamento para regularização de quilombos na superintendência do Incra no Rio Grande do Sul. Apenas cinco comunidades foram tituladas, mas mesmo assim, nem todos os moradores desses territórios reconhecidos receberam os títulos de propriedade.

O Quilombo Casca, em Mostardas, por exemplo, com 85 famílias, tem pouco mais da metade (51%) da área de 2.300 hectares titulada.

Os demais são Família Silva, em Porto Alegre (12 famílias, em 0,65 ha – 35%), o Rincão dos Martinianos, em Restinga Seca (55 famílias, em 98,5 há – 27%), a Chácara das Rosas, em Canoas (20 famílias em 0,36 há – 100%), e o Rincão dos Caixões, em Jacuizinho (22 famílias em 226,16 ha).

O maior quilombo com processo em andamento no Estado é o Morro Alto. Desde 2011, 456 famílias reivindicam 4.564,4 hectares nos municípios de Maquiné e Osório.

Em Viamão, duas das três comunidades quilombolas estão com processo em curso, o da Anastácia e o Cantão das Lombas, 28 famílias em 154,75 ha, com processo em tramitação desde 8 de dezembro de 2021.

Nove quilombos gaúchos foram incluídos em uma Portaria no Diário Oficial do governo federal, mas as comunidades ainda não receberam os títulos das terras. São eles: São Miguel (Restinga Seca), Manoel Barbosa (Gravataí), Arvinha (Coxilha e Sertão), Cambará (Cachoeira do Sul), Mormaça (Sertão), Palmas (Bagé), Limoeiro (Palmares do Sul), Areal Luis Guaranha (Porto Alegre), e dos Alpes (Porto Alegre).

Censo 2022: Brasil tem 1,3 milhão de quilombolas

Dados inéditos sobre população quilombola no país foram divulgados em julho deste ano de 2023 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), resultado do Censo 2022.

Segundo matéria da Agência Brasil, o país tem 1,32 milhão de quilombolas, residentes em 1.696 municípios.

Os quilombos Kalunga, em Goiás, e Erepecuru, no Pará, são os maiores do Brasil. O primeiro envolve 54 comunidades, com 888 famílias, em uma área de 261,99 mil hectares, e o segundo, vivem sete comunidades, com 154 famílias, em uma área de 231,6 mil ha.

O total de títulos concedidos é de 322, em 206 territórios, envolvendo 356 comunidades, 21.093 famílias e 1,090 milhão de hectares de área titulada, dos 1,513 milhão de ha reconhecidos. Significa que 72% da área reconhecida foi titulada.

Na divulgação da publicação Brasil Quilombola: Quantos Somos, Onde Estamos?’, em Brasília, o presidente em exercício do IBGE, Cimar Azeredo, considera que os números inéditos sobre esse grupo populacional são uma verdadeira reparação histórica de injustiças cometidas no passado.

“São essas populações que mais precisam das estatísticas, desses números. A gente precisa saber quantas escolas, quantos postos de saúde, coisas relacionadas à educação e tudo o que essa população quilombola precisa, como a titulação [de terras]. Os dados que estão sendo apresentados hoje, pelo IBGE, se tornam, praticamente, uma reparação histórica”. Cimar Azeredo adiantou que, brevemente, o IBGE vai apresentar informações básicas sobre pessoas indígenas e moradores de comunidades e favelas.

A representante da Organização das Nações Unidas no Brasil, Florbela Fernandes, destacou que o levantamento e a divulgação de dados sobre a população quilombola no Brasil tem um simbolismo enorme a todo o país. “A inclusão de um quesito específico para a população quilombola [no censo] representa um marco de reparação histórica importante e que serve de investigação de referência para outros países da diáspora africana”.  “Essa é a primeira pesquisa oficial para coletar dados específicos sobre a população quilombola. Após 135 anos da abolição da escravidão no Brasil, finalmente, saberemos quantos quilombolas são exatamente, onde estão, e como vivem”, comemorou Florbela Fernandes.