EUGENIO SINGER / Negligência com ambiente e indígenas afeta investimentos

No momento em que a crise deflagrada pelo novo coronavírus cria gravíssimo impacto planetário de múltiplas consequências, alguns fatos de especial relevância causam inédita preocupação, pelo poder que têm em interferir nos já difíceis e imprevisíveis rumos do desenvolvimento humano, social e econômico global no futuro pós-pandemia. Distintas dimensões da crise entrelaçam-se no Brasil, fazendo convergir problemas anteriores e aqueles deflagrados pela Covid-19. Isso tem repercussões ambientais e sociais de alto risco para o País, seu povo e instituições, bem como para a humanidade.
Afinal, é inegável que o Brasil, por suas características geopolíticas, diversidade cultural e incomparável patrimônio ambiental, é um dos pilares das transformações dos conceitos de desenvolvimento que se observam em escala global, pautados na sustentabilidade socioambiental e no respeito aos direitos humanos. Por isso, independentemente do esforço de autoridades, centros de pesquisa, universidades, comunidade de saúde e sociedade civil em atender às urgências da pandemia e em preservar a capacidade de recuperação da nossa economia, cabe alertar sobre alguns pontos que podem ter efeitos desastrosos no futuro próximo do País e na sua inserção nos esforços globais de soerguimento:

Grupos empresariais de diferentes nações e ramos de atividade manifestaram seu desconforto com os rumos que vem tomando a destruição da Floresta Amazônica, com aumento expressivo do ritmo e do volume do desmatamento. É crescente a fragilização das condições de investimento no País. Este problema decorre das sinalizações efetivas, dadas por instituições e personalidades de governo, por meio de palavras, ações e omissões, de um afastamento dos preceitos ecológicos. Trata-se de postura em sentido contrário dos protocolos de ação consolidados no mundo inteiro, que reconhecem a necessidade e a urgência inarredável de respeito e defesa do meio ambiente como bem estratégico coletivo e não mais como objeto de uso predatório e centrado em interesses produtivos mais imediatos. É crescente a parcela da sociedade global que reconhece na conservação rigorosa e de base científica dos recursos naturais e dos bens da natureza um ativo de imenso valor, preponderante para o crescimento econômico sustentável.

Outra questão a ser considerada é que a pandemia e seus efeitos devastadores mostram-nos que a retomada das atividades e das esperanças individuais não deve pretender apenas recompor o desenho previamente existente no qual espelhávamos nossas vidas, nossas sociedades, nossa economia e nossas interações locais, nacionais e globais. A recuperação exige pensamento estratégico. É decisivo dar um passo à frente, dialogar com as reflexões e respostas positivas e inovadoras hoje gestadas no mundo todo. Dessa forma, é incompreensível e causa perplexidade que o Brasil não se dedique a inserir fortemente a Amazônia preservada como parte fundamental de seu cacife para a conjuntura necessariamente diferenciada que surgirá da Covid-19. Mas, o que vemos é o aumento expressivo e persistente do desmatamento, a fragilização dos órgãos de fiscalização com expertise na área ambiental e a redução significativa das punições impostas aos infratores.

Também é pesarosa a situação de risco extremo a que estão submetidos os povos indígenas em todo o País, sobretudo na Amazônia. À escalada da pressão de atividades ilegais de mineração e desmatamento em suas terras, mesmo as já demarcadas, soma-se agora a ação devastadora do novo coronavírus. Mesmo diante de tais ameaças concretas, esses brasileiros não vêm recebendo a atenção diferenciada que sua situação de maior vulnerabilidade exige. Em contraste com o esforço voluntário da sociedade civil brasileira e internacional para socorrê-los, é nítida a participação tímida dos órgãos governamentais na sua proteção, mesmo diante dos números que indicam um impacto que pode ser fatal para várias etnias.

Entendemos ser indissociáveis as duas questões aqui destacadas, ou seja, a proteção ao meio ambiente e os direitos indígenas. A destruição de uma acarretará graves danos à outra e vice-versa. E ambas são conquistas que estão na base do pensamento crítico e analítico que nos leva a rever padrões de valores que fundamentam a vida em sociedade e, principalmente, a arejar o pensamento empresarial sobre seus compromissos para além da realização econômica. Hoje, de maneira nítida e abrangente, tais princípios passam a fazer parte intrínseca da vida das empresas, dos critérios de mercado, de investimentos e de viabilidade de parcerias. Não se trata de ideologia, mas de constatar o efeito virtuoso de trazer o futuro para os cálculos do presente e, assim, não o inviabilizar.

Finalmente, cabe acentuar o elevado risco de que um estigma antiambiental e contrário aos direitos indígenas afaste o Brasil da interlocução global e do fluxo de capitais. E, certamente, a política ambiental atual, com um nível ponderável de relaxamento dos protocolos básicos de licenciamento, controle e garantia de transparência dos dados sobre desmatamento, aliada ao insuficiente apoio às comunidades indígenas, não é um caminho que possa dar suporte a parcerias duradouras com corporações, instituições e fundos internacionais.

Eugenio Singer, PHD em Engenharia Ambiental, é presidente da Ramboll Brasil e do Conselho de Administração do Instituto Pharos.

VERA GARCIA / Os adversos Brasis da pandemia

O consenso científico mundial sobre a prevenção do novo coronavírus, até que chegue a vacina, inclui três medidas básicas: uso constante de álcool gel para higienizar as mãos, uso de máscaras e o isolamento social. Parte da sociedade, temerosa com a possibilidade de contaminação, tenta seguir à risca essas orientações. Outra parte, negacionista, faz de conta que nada está acontecendo e opta por não aderir aos meios de proteção.

Entretanto, também existe uma grande parte da população brasileira que, por circunstâncias, permanece à margem de qualquer orientação e invisível aos olhos do governo, dos noticiários e da maioria dos seus compatriotas. São as pessoas que vivem nas 13 mil comunidades carentes espalhadas pelo Brasil.

Segundo dados atualizados da Agência Brasil, 89% dos moradores de favelas estão em capitais e regiões metropolitanas. As regiões Norte e Nordeste registraram maior percentual de pessoas vivendo em comunidades, de 5% a 10%. Os Estados do Amazonas, Pará, Maranhão e Pernambuco têm mais de 10% da população em favelas.

A pesquisa revela que há 13,6 milhões de brasileiros vivendo em aglomerados subnormais, privados de saneamento básico, com acesso restrito à água e a condições básicas de higiene. Sem condições financeiras, o álcool gel é artigo de luxo para estas pessoas que convivem de forma muito próxima com familiares e vizinhos, sem qualquer possibilidade crível de fazer isolamento social.

Relatos de alguns moradores de comunidades indicam que não houve isolamento social em nenhuma fase da pandemia, pelo simples fato de que não há planejamento urbano, a partir das normas exigidas de construção e convívio. Onde o governo não entra com sua parte, não há como impor regras.

Os moradores nascem e crescem sabendo que não podem contar com promessas de políticos. Sendo assim, a linguagem, os valores e a noção de normalidade são totalmente diferentes do asfalto. Essas pessoas sobrevivem corajosamente a todos os infortúnios, desenvolvem soluções criativas e são extremamente solidárias. Por outro lado, são mais expostas a doenças físicas e mentais.

Quando as mídias mostram de forma vigilante os muros lotados da Urca ou os transeuntes andando inadvertidamente aglomerados e sem máscara, de certa forma, esquecem ou preferem não mostrar que existem muitos Brasis com regras próprias, submetidos a leis locais (adaptadas às suas condições peculiares) e regidos por modelos mentais forçosamente enquadrados a esses ambientes. E, mais importante, na vigência de uma pandemia, não adianta aplicar regras e limites a uma parte da sociedade, e ignorar que milhões de brasileiros não vão seguir as mesmas regras por total falta de planejamento urbanístico, de políticas públicas de moradia e de profundas desigualdades sociais.

Vale lembrar que essas pessoas prestam serviços importantes à sociedade, em todos os segmentos. Portanto, se o país pretende avançar em índices de desenvolvimento social e humanitário, e conter a pandemia, é fundamental assumir a responsabilidade pelas necessidades dos mais vulneráveis, projetar a mesma indignação ferrenha que sente pelos aglomerados nas praias ou nos bares e à falta de políticas públicas efetivas de moradias populares e dignas para esses 13 milhões de brasileiros.

Por Dra. Vera Garcia, psiquiatra pela UFRJ, com MBA de gestão em saúde pela FGV e observership no Jackson Mental Health Hospital, da Universidade de Miami.