Uma tragédia grega em território brasileiro

Talvez uma das questões mais interessantes quando se estuda a cultura e a literatura da Grécia Antiga é a questão da tragédia. Uma tragédia tipicamente grega é quando o herói de uma história se vê diante de um futuro sem opções que não lhe causem algum tipo de dor. A tragédia não é um destino traçado, não é um determinismo sobre o futuro: a liberdade de escolha está nas mãos do herói, que terá que decidir entre duas ou mais opções que lhe trarão algum prejuízo, até mesmo derramamento de sangue.
O Brasil vive agora uma situação claramente trágica no que se refere à política. O herói dessa tragédia é o povo brasileiro: ele quer uma mudança radical, mas o futuro lhe impôs, até o momento, poucas saídas que tragam essa mudança.
Dilma provavelmente não conseguirá mais governar o Brasil. Mesmo se conseguisse, a legalidade da sua eleição de 2014 está em jogo por conta da maquiagem fiscal que foi feita para que tudo parecesse estar bem. Como a própria Dilma diz, ela é uma “carta fora do baralho”.
Temer é o Vice-Presidente perfeito para o governo Dilma. Tão logo ela foi afastada, começou a governar exatamente igual a sua antecessora temporária: nomeação de ministros corruptos, altas taxas de juros que financiam os bancos, anúncios de medidas que não saem do papel, crise na opinião pública, etc. Na última pesquisa divulgada pela CNT/MDA, 62% dos entrevistados apoiam o Impeachment da Dilma, mas apenas 11,3% apoiam o governo Temer – um presidente sem apoio popular geralmente é um presidente decorativo.
A terceira opção à volta de Dilma e à permanência de Temer é a cassação da chapa Dilma-Temer pelo TSE e a convocação de novas eleições em 2018. Mas então em quem iríamos votar? Lula é apontado como favorito ao mesmo tempo em que esbanja um nível altíssimo de rejeição (qualquer coalizão em segundo turno o derrubaria); Aécio Neves é um playboy prepotente e incompetente; Marina Silva é completamente inexpressiva; Ciro Gomes é competente, mas seu vocabulário e a sua ideologia muitas vezes o levam a adotar discursos do século passado (ou retrasado); Bolsonaro, Levy Fidelix e afins podem seduzir algumas camadas da população, mas não têm cacife para vencer no Brasil – não somos um país fascista.
Como única saída, resta reiterar o que já vem sendo feito nas últimas eleições: votar nulo, em branco ou não votar. Nas eleições de 2014 o segundo colocado não foi Aécio Neves, mas sim os não votantes. Enquanto nossa democracia depender da escolha dos candidatos a partir dos partidos, e não da população, a única saída para essa tragédia é continuar avisando a classe política que não queremos o que eles nos oferecem. Ou nos representam, ou que se destruam. Por enquanto, estamos no trágico processo de destruição – por que duvidar que disso sairá algo bom, mesmo que incerto?

Ó Mac´Naima! …É, e é.

(Uma paródia sertaneja de Macbeth)

Paulo Timm – Maio, 2016

Não temas! Advai!
Só um homem   que  não foi parido pelo ventre de mulher
Te fará mal. A cujo.
Disse  Quelemén:
O que foi feito, está feito.
 
Se queres ser o homem que ontem foste  à noite, encara!
O inferno é lúgubre . A noite densa. O punhal  profundo.
“Sê violento, ousado e firme”  . Há-de-o.
Disse ainda Quelemén:
Mas o que foi feito, está feito.
 
O destempero   já não cabe nas fezes  do República
O verbo  já não arrefece a ação.
Nem a  ação aquece o verbo. E que!
Quelemén sabe de tudo
Tudo o que foi feito,  está feito
 
O sangue verte  sobre o sangue cru
Sangue infenso aos ares  perfumados de Belém.
A carne, sim,  cria  carne crua. Os quantos.
Sempre a sina ao longe de Quelemén:
O que foi feito,  está feito
 
Ah! Se eu  pudesse examinar a urina dos acontecimentos
Vem … vem,,, vem carinho!
Hoje. Amanhã, talvez. Ou depois de amanhã. No nunca.
Ó Quelemén! Tu o disseste
O que foi feito , não pode  mais ser desfeito
 
A verdade é esta sombra  contada por mentirosos
Milhões de almas paridas pelo destino
E apenas uma  farta do seu próprio sangue  letal Oressa.
Quelemén! Quelemén!
O que não pode ser consertado não deve preocupar
 
Te entrega covarde!
À punição exemplar do  teu tempo ido
Vai! A pois.
Desconcertado. Preocupar…Deslei…
Nonada

Os sofistas ontem e hoje

Os sofistas foram geniais educadores da polis grega. Eles foram os primeiros mestres e pedagogos da cultura ocidental. Exímios debatedores. Afiadíssimos dialéticos e imbatíveis na arte de argumentar e contradizer. Eles arrebatavam multidões, num tempo de mudança cultural e política que exigia novos ensinamentos no âmbito político, jurídico e moral. Na democracia insipiente da Grécia antiga, em que o direito e a moral já não eram compreendidos como produto da natureza, típico da cultura aristocrática decadente, mas da sociedade, eles se apresentam como os defensores de uma nova ordem ancorada em um único soberano, o homem.
O homem é a medida de todas as coisas, diziam. Se o homem é a medida de todas as coisas, e não deus ou a natureza, então tudo é relativo ao homem e não existe a menor chance se levar a sério uma verdade que pretende ser universal e absoluta. Sem valores perenes, verdades universais e normas jurídicas absolutas, tudo vira uma questão de ponto de vista e de força suficiente para impor o seu ponto de vista, caindo inevitavelmente no ceticismo e no relativismo.
O bem comum, por exemplo, em política, é só uma aparência externa para fazer crer que os interesses próprios, dos mais fortes, tenha legitimidade. Por trás do discurso do bem comum, age-se com interesses escusos e inconfessos e quem é mais expert e mais bem articulado impõe o que para ele ou seu grupo parece ser interesse a todos.
Assim resumida a filosofia dos sofistas, que semelhança há com o que estamos vivendo hoje no Brasil? Estamos ou não reeditando os sofistas? Há laboratório melhor do que o Brasil para a ressurreição dos sofistas?
A disputa, a guerra de posições, o argumento e contra-argumento, a luta incessante de posições opostas, é a regra em política. Em uma sociedade desigual como é a brasileira, é natural que se leve para o âmbito político estatal os interesses em disputa na sociedade civil. A disputa na defesa de interesses é, portanto, legítima.
Na disputa legítima de interesses diversos, há os que defendem os empresários e ruralista e há os que defendem os trabalhadores e sem-terra, por exemplo. Há os que defendem os homens brancos e ricos e há os que defendem as mulheres pobres e os negros. Há os que são contra os homossexuais e há os que defendem os direitos dos homossexuais. Não há como ser diferente. Não há uma posição neutra e universalista em abstrato e nisso os sofistas tem razão.
Mas, não haverá um mínimo de bem comum, de interesse público, de direitos humanos elementares que tanto um quanto outro deveríamos defender? Não há um mínimo comum que não poderíamos recuar sob pena de comprometer a vivência pacífica e justa da sociedade? Ou não dá para almejar vida pacífica e justa na sociedade? Se não há, então a própria política vira uma guerra de todos contra todos como se estivéssemos em um estado de natureza.
Ora, a política é justamente a nossa capacidade de superar a natureza belicosa, interesseira e mesquinha, em nome de valores mais altos formulados por acordos humanos para nos tornar mais humanos.
Há nisso uma pequena dose de idealismo e de utópico, mas não custa sonhar e tentar acordos mínimos de interesse comum. Fora isso, a barbárie piscará seu olho grande e nos atrairá para seus braços logo aí adiante!…

Que direitos? Que humanos? A volta do entulho da ditadura afeta os estrangeiros residentes no Brasil

Por Félix Gonzalez e Denise Jardim
No dia 3 de março passado, a professora Maria Rosaria Barbato, da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais foi intimada pela Polícia Federal (PF) para dar explicações sobre a sua participação em “atividades partidárias e sindicais” pelo fato de ser estrangeira.
O que extraímos desse episódio sobre nosso ambiente atual e sobre os debates acerca da defesa da democracia e cidadania?
Para os brasileiros, o fato parece tornar óbvia uma certeza: estrangeiro não é nacional e, portanto, não é cidadão. Mas observando com mais calma o encadeamento de fatos que culminam nesse indiciamento, é importante reconhecer sinalizações de retrocessos em diferentes âmbitos.
Em primeiro lugar, a PF aplicou à docente o artigo 107 da Lei 6815/1980, mais conhecida como “Estatuto do Estrangeiro”, assinada por João Figueiredo nos estertores da ditadura, e que reza assim:
“O estrangeiro admitido no território nacional não pode exercer atividade de natureza política, nem se imiscuir, direta ou indiretamente, nos negócios públicos do Brasil, sendo-lhe especialmente vedado: (…)  organizar desfiles, passeatas, comícios e reuniões de qualquer natureza, ou deles participar”
Tal estatuto foi ressuscitado das gavetas da PF nos momentos de efervescência política que o país está vivendo. Com motivo das passeatas contra o golpe parlamentar que sofreu a legítima presidente, a Federação Nacional dos Policiais Federais (Fenapef) advertiu através de nota aos meios de comunicação, publicada no dia 16 de abril, que “estrangeiros que participarem de atos políticos podem ser detidos e expulsos do país”, conforme o mencionado Estatuto. Deve-se considerar que a FENAPEF representa os servidores da PF, sem ser órgão oficial governamental.
Poderia ser uma postura óbvia se não soubéssemos que desde 2010, a PF sob coordenação do Ministério da Justiça, esteve diretamente envolvida em políticas orientadas para o combate ao tráfico de pessoas e, para tanto, envolvida com a efetivação de documentos internacionais de proteção aos direitos humanos, evocando em diferentes arenas públicas o Tratado de Palermo que, no âmbito das políticas internacionais que o Brasil é signatário, visa coibir o trafico de bens e mercadorias com a ressalva importante de incorporar um tratado que visa tratar as vítimas do tráfico de pessoas como verdadeiras vítimas e não como partícipes de crimes. Por, ao menos, cinco longos anos, a PF construiu em seus quadros os núcleos de enfrentamento ao tráfico de pessoas e mobilizou a observação de formas de encaminhamento condizentes com tais documentos em consonância com as críticas de ativistas dos Direitos Humanos.
Por isso, a criminalização da professora Maria Rosária Barbato aparece como um episódio de várias camadas. Uma delas exige romper a imediatez da evocação da lei contra o estrangeiro, como se a própria PF desconhecesse e não estivesse envolvida em debates outros sobre uma atuação que deve ter cuidados com seu afã por indiciamentos e tipificação de criminosos, em especial, quando relacionado a pessoas estrangeiras.
Uma segunda camada diz respeito ao que sinaliza para um estrangeiro qualquer na atualidade. A notícia trouxe preocupação e constrangimento aos muitos cidadãos estrangeiros, principalmente os residentes permanentes, que moram no Brasil pelo tolhimento a sua liberdade de expressão e, principalmente, porque essa Lei fere a carta magna, a Constituição Federal, que garante no seu artigo 5º a igualdade de direitos entre estrangeiros e brasileiros:
“Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País (…)” uma série de direitos, entre eles  “a manifestação do pensamento” e a “liberdade de associação”, além da liberdade sindical e o direito de reunião.
Embora juridicamente possa ser facilmente comprovada à incompatibilidade entre uma Lei, emanada da ditadura, com a Constituição vigente, um estrangeiro que participe de atividades associativas, políticas, sindicais ou simplesmente de uma passeata ou um comício, pode ser detido, constrangido, humilhado e até ameaçado de expulsão.
Quem é a professora Maria Rosaria Barbato? Professora contratada desde 2010, e concursada desde 2013 na UFMG. Portanto, não se trata de um estrangeiro que pode ser posto em suspeição por fragilidades de seus processos de inserção laboral no Brasil. Ela trabalha em uma universidade pública. Estaria ela mais resguardada do que outros estrangeiros? Por isso não deveria se preocupar? De fato, sinalizar com o indiciamento de uma pessoa que, a princípio parece tão resguardada não é “em si” um drama pessoal digno de ocupar a mídia no final de semana. Mas, é algo que sinaliza para outros, aqueles que se vejam mais frágil, e poderiam entender que se “até” uma pessoa regularizada sofre indiciamentos, o que sobra para os demais mortais? Se a mensagem pura e dura foi somente, e tão somente isso, já é um caso grave, pois o “entulho” autoritário está se fazendo valer da “suspeição”, e do jogo de cena em que uma federação, uma sociedade civil de direito privado que é uma organização sindical, faz uma leitura dos direitos políticos de qualquer estrangeiro (ou qualquer um), sinalizando que esses podem ser subtraídos.
Essa é uma chantagem que vem sendo disseminada. Nessa camada, aprendemos com o caso da professora um jogo de suspeição que vem se disseminando para os estrangeiros e que conhecemos em outros campos da vida nacional, criminalizando relações solidárias como “conluio” e buscando coibir o debate na arena pública.
A esperança para corrigir esses equívocos e se livrar desses entulhos ditatoriais está em projetos de lei: o PL 5293/2016, de autoria do deputado federal Jean Wyllys (PSOL-RJ), propõe criar o Conselho Nacional de Imigração e atualizar o atual estatuto, argumentando que a participação de estrangeiros em sindicatos, organizações não governamentais, partidos políticos e outros movimentos sociais é desejável e republicano, como ocorre em países democráticos. Em tempos de paz, não cabe aplicar estatutos que à sua época nasceram da visão paranoica dos ditadores argumentando intervenção estrangeira e ameaça à segurança nacional. Os estrangeiros não podem ser alvo de punições ou proibições diante da sua participação em qualquer manifestação, reunião, passeata, conferência, ato ou atividade política ou social pacífica. Além desse PL, existe o PL 2516/2015, do senador Aloysio Nunes Ferreira (PSDB-SP) que pretende ser uma nova lei de imigração no Brasil. O texto diz que “ao imigrante é garantida, em condição de igualdade com os nacionais (…) direito de reunião para fins pacíficos; direito de associação, inclusive sindical, para fins lícitos”.
O problema persiste porque esses projetos de lei devem demorar em serem analisados e aprovados pelo Congresso Nacional. Desde 2012, culminando em 2013 na I Conferência Nacional sobre Imigrações (COMIGRAR), que contou com a presença ativa da PF, o debate sobre uma nova lei imigratória receptiva a princípios relativos aos direitos humanos vem sendo realizado e, nesse momento, uma súbita amnésia toma conta das instituições. Até lá, os estrangeiros estão em uma corda bamba jurídica com seus direitos de manifestação ameaçados.
A professora Maria Rosaria Barbato, ademais, é uma especialista em direito e dedica-se ao tema do tráfico internacional de pessoas. Nada mais paradoxal! Era por aí que a PF estava renovando seus quadros e discursos de atuação nos recentes anos! Nessa última camada do problema que levantamos, por certo, ela teria muito a nos dizer sobre a dificuldade de lidar com o mundo das leis no Brasil, dos operadores das leis e daqueles que hoje, na prática, atuam com imensas “falhas” de memória. Instituições que revertem sua história recente de engajamento no debate com a sociedade organizada sobre a obsolescência do Estatuto do Estrangeiro, e que ampliaram sua inserção em debates sobre os direitos humanos dos imigrantes, estariam retornando ao uso da recursividade jurídica para colocar em suspeição nossos direitos políticos sob a retórica da soberania nacional.
De toda forma, é um a luta que demonstra os tempos que estamos vivendo, e que tempos!

Sobre os autores

Félix GonzalezFélix Gonzalez 
Professor Titular UFRGS.
 
 
 
 
Denise JardimDenise F. Jardim
Professora Associada UFRGS.
 
 
 
 
 
 

Os significados da violência do governo Sartori

A ação do governo José Sartori sobre os estudantes que ocupavam a Secretaria da Fazenda e os atos praticados contra o jornalista da Já Editores mostra o quanto o Estado é o ator social mais violento. Quer dizer, o Estado, detentor do monopólio da violência, quando praticou atos contra estudantes e a imprensa, não pode ter suas ações consideradas legítimas, ao contrário, devem ser criticadas como arbitrárias. Primeiro porque a violência de Estado só é legitima quando está no limite de construções jurídicas e práticas que a limitem, no caso, o Estatuto da Criança e do Adolescente, que garante a presença de Conselheiro Tutelar e a Constituição Federal, que garante a liberdade de imprensa, que a prisão do jornalista contraria. Quer dizer, o Estado só pode ser detentor da violência se ela for sempre, uma violência contida. Segundo, os fatos revelam que o governo Sartori adotou a lógica de repressão pura e simples dos movimentos sociais, o que significa, que trouxe para o interior do Estado uma lógica do plano externo para a administração interna, a lógica da guerra, que é bastante diferente da lógica da resolução dos conflitos internos.
Para os marxistas ortodoxos como para os neomarxistas, o Estado é sempre um instrumento violento porque é expressão de dominação, no caso, da classe burguesa no poder. O exercício da violência, nesta visão, é sempre para proteger posses econômicas e manter à distância as camadas exploradas. Mas o que o governo Sartori conquista ao manter a distância e reprimindo estudantes? Minha resposta: o questionamento sobre um projeto de governo que se baseia no desmonte das políticas públicas de educação. De fato, a atenção dada as possibilidades de privatização de diversos campos e estruturas do estado acena para uma aliança, que o governo quer esconder, entre o projeto neoliberal e partido no poder. Xavier Crettiez, em sua obra “As formas da violência”(Loyola, 2011), chama a atenção para a ideia seminal de Trotsky, de que “Todo Estado está fundado na força”: da mesma forma que a aliança entre fisco e exército no passado permitiu o enriquecimento do Senhor por meio da imposição a todos os súditos de um recolhimento de impostos, agora, sucessivos parcelamentos salariais e negativas de reajuste como no caso dos professores atualizam a estratégia de que o governo só pode governar se explorar uma classe, no caso, a dos servidores públicos.
A questão evolutiva, de um estado que monopoliza a violência interna, realizada pela função da polícia, com a lógica da administração da violência externa, realizada pela administração da guerra, confunde estas duas dimensões, tratar o espaço interno público como espaço de guerra, e o que o governo Sartori dissemina é o sentimento de insegurança, modifica a economia psíquica de seus cidadãos, que agora tem como característica, ao menos nos serviços públicos e no âmbito escolar, um aumento do medo, ao mesmo tempo que veem no Estado que tem o compromisso de os proteger, o recuo das dimensões de honra e coragem – só um covarde bate em estudantes. Quer dizer, ao mesmo tempo que o governo Sartori recusa a afirmação de que é um governo violento – ele foi a imprensa dize-lo -, ele sanciona ações violentas contra jovens na capital. Crettiez lembra a famosa fórmula de Julien Freund: “O Estado verdadeiramente forte é aquele que consegue dissimular a força nas formas, nos costumes e nas instituições, sem ter de exibi-la incessantemente para ameaçar seus membros ou intimidá-los” (FREUND, J. L’Essence du politique. Paris, Dalluz, 2004).
Por que a referência ao Direito e a norma não foi suficiente no caso dos estudantes que ocuparam a Secretaria da Fazenda, mas o foi no caso dos professores que ocuparam o CAFF? É que o consenso dos grupos envolvidos foi diferente em cada caso: no primeiro, os estudantes revelaram uma total perda de fé na política, na possibilidade de atendimento das reivindicações pelo Estado; no segundo, os professores foram capazes de depositar fé nas promessas do mesmo Estado. Mas é esta recusa a legitimidade do Estado que chama a atenção, a recusa do cumprimento de uma ordem judicial, a recusa de cumprimento de uma ordem de saída do espaço público: ele revela a recusa de uma identidade, a recusa do reconhecimento da autoridade do Estado. Ele revela a descoberta feita pela sociedade de que a legitimidade do Estado como monopólio da violência é, ao final, uma ficção jurídica, de que não tem sentido. Ele o deixa de reconhecer como instância de valor.
Quando o Estado pratica atos de violência que a população considera ilegítima, ele atrai a desconfiança da sociedade para si. Quando brigadianos batem em alunos ou professores, o que se tem é não é a produção da ordem, mas a produção da desconfiança. Para o cidadão, que vê tais atos, o Estado perde sua legitimidade simplesmente porque vê que o Estado não reconhece o individuo como pessoa portadora de direitos: não foi simplesmente bestial retirar estudantes da Secretaria da Fazenda a base de gás de pimenta? Sob nenhum aspecto foi uma violência regrada e controlada, como exigem as democracias, ao contrário, foi uma violência típica de situações de guerra.
Trata-se de compreender o que significa o termo “manutenção da ordem”. Surgido com a III República Francesa, a regulação pacifica das ruas foi uma exigência da questão operária, forma de substituir a fúria camponesa pelo ritual da passeata pacificada. As passeatas modernas nascem, afirma Crettiez, da necessidade de legitimar a democracia pelo afastamento da agitação popular. Exige-se uma gestão democrática dos conflitos, e daí, diversos agentes são criados com o objetivo não de aniquiliar o inimigo, mas reconduzir o cidadão “momentamente extraviado” à ordem republicana. A negociação com organizadores de manifestações vem antes do uso de agua, gás ou outros mecanismos de repressão.
Desde os movimentos de Maio de 68, a expressão “manutenção da ordem” era a filosofia baseada no distanciamento dos protagonistas do conflito, justamente o contrário do visto nas cenas que difundiram-se na internet do momento de retirada dos manifestantes. Quer dizer, o que é base do Estado Democrático de Direito, o uso da violência legítima não se realizou. O governo não consegue reconhecer que não há lugar para violência ilegítima porque ela abala a confiança do cidadão no seu Estado. Por isso, a adoção de formas não negociadas, formas adotadas para forçar os estudantes a abandonarem o espaço público assemelha-se a formas do terrorismo: não foi o que sentiram os estudantes, o uso da força como forma de tortura? Não foi relatado inclusive um abuso sexual à uma estudante nas redes sociais? Esse tipo de abuso no entanto, nunca é feito sem planejamento, o Estado sabe que pode obter um resultado mais rapidamente do que aquele conquistado mediante a legalidade. É uma opção o uso da violência.
Claro que muitas vezes, o uso da violência pelo estado não é premeditada, mas provém de um contexto que escapa aos agentes de Estado. Pelo menos é essa a visão passada pelas lideranças policiais, no caso de abusos. Pode-se acreditar nela? É claro que não! São ações nas quais falta discernimento pelas corporações encarregadas da repressão policial, daí o uso desproporcional do uso da força; ações onde é visível, pelas atitudes das forças policiais, da obstinação furiosa visível na intensidade da violência que muitas vezes pode ser encarada como válvula de escape inconsciente dos próprios policiais, vítimas de rebaixamento de salários ou de certa perversidade de alguns indivíduos no cargo, etc; finalmente, são ações que revelam a onipotência do Estado, raro nas democracias, onde a corporação policial faz uma ação completamente sem fundamento legal ou jurídico.
O governo Sartori, por esta razão, oscila entre a manutenção da ordem e a repressão. Pode-se notar a duplicidade do discurso, entre um governador que afirma respeitar os estudantes e um aparelho policial cuja ação é imediatamente repressiva. É verdade que o modus operandi dos novos movimentos sociais é problemática, ao retirar a centralidade de uma autoridade da gestão dos movimentos sociais. Mas o Estado deve encontrar uma forma de se relacionar com movimentos de múltiplas lideranças. Foi o que se viu quando uma fração dos estudantes, sob o orgumento de autonomia, resolveu, após um acordo que se entendia geral, invadir a Secretaria da Fazenda. Esta é uma realidade que exige ao Estado criar novas formas de administrar os conflitos. A comunicação entre o Estado e a sociedade não pode ser resumida a força, ela precisa mais uma vez ser renovada. Caso contrário, estudantes, sociedade e Estado estarão cada vez mais distantes dos objetivo constitucionais porque incapazes de chegar a termos de acordos comuns para a conquista de direitos e expressão de reivindicações.

Manifesto pela Democracia de Professores do Instituto de Letras da UFRGS

“Ponía el dedo en una llaga que demasiados deseaban disfrazar de cicatriz”.
Ariel Dorfman, La muerte y la doncella
O vigor de uma sociedade democrática está refletido na integridade de
suas instituições. A Universidade, instituição vocacionada para o exercício da
razão, não poderia abandoná-la neste momento por que passa nossa frágil
democracia. O motivo é simples: não há conhecimento fora da razão. E como
não há consciência fora do conhecimento, nem liberdade sem consciência, o
abandono da razão, tal como nos é solicitado por um governo que insta seu
povo a trabalhar sem pensar, nada mais é que a renúncia à liberdade. A
Universidade que abrir mão da razão, da consciência e da liberdade terá se
convertido em algo distinto de si mesma. Terá perdido a identidade.
Uma das marcas características dos regimes autoritários é a dissolução
de identidades. Essa dissolução está a serviço de outra igualmente perversa: a
dissolução da percepção das diferenças. Os incontáveis gestos políticos do atual
governo no sentido de eliminar uma série de programas destinados a diminuir
desigualdades sociais são a expressão manifesta de uma visão autoritária e
excludente, segundo a qual vivemos todos sob as mesmas condições. Não
vivemos. As condições de vida do operário que recebe vale-refeição ou do
professor que recebe o piso nacional não são iguais às de um banqueiro a quem
o Estado paga juros sobre juros, nem às do juiz que recebe auxílio-moradia do
mesmo Estado – que deveria proteger os vulneráveis. Um Governo que ignora
essas diferenças e as prioridades correspondentes, tratando a todos de igual
forma, não governa para o bem-estar social.
Neste momento da vida brasileira, em que o comando da nação foi
tomado de assalto por um grupo ativamente empenhado na promoção de um
retrocesso sem precedentes desde o restabelecimento de nossa democracia, nós,
professores do Instituto de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do
Sul abaixo assinados, desejamos tornar público nosso mais absoluto repúdio ao
governo provisório, que se instalou a partir da derrubada de uma Presidenta
democraticamente eleita pelo voto popular.
A Universidade, ambiente sensível à rarefação das condições materiais e
morais para a experiência da razão, e de tudo que dela decorre como produto
social, não pode e não deve se calar diante de um governo que, por tudo a que
temos assistido, é o resultado de uma conspiração destinada a salvaguardar
interesses particulares, que nada têm a ver com aqueles que devem nortear os
rumos da nação brasileira. O silêncio da Universidade seria a renúncia a sua
identidade humanista, amparada no exercício da consciência e da cidadania e
comprometida com a defesa da pluralidade e da diversidade.
Ciente, e temeroso, do papel da Universidade, o governo provisório não
tem poupado esforços no sentido de atacar os avanços capitaneados pelo
ambiente acadêmico na esfera da ação social. Naquilo que afeta de modo mais
expressivo a sensibilidade daqueles que atuam na área de Letras, as extinções
dos Ministérios da Cultura e da Ciência, Tecnologia e Inovação são as facetas
mais evidentes de um projeto comprometido com o aniquilamento da ciência e
da cultura em suas acepções mais amplas. Vale mencionar ainda o
desmantelamento de importantes iniciativas do governo anterior, como a ampla
discussão com professores e pesquisadores em Educação sobre a Base Nacional
Comum Curricular, articulação fundamental entre governo e universidades na
busca da excelência de ensino no País. Outra frente comprometida com o atraso
tem sido a base parlamentar de apoio ao governo provisório, responsável pela
submissão de um conjunto de projetos de lei que ferem brutalmente a liberdade
de cátedra, numa evidente tentativa de tornar a escola e a academia espaços de
reprodução mecânica de conteúdos, incapazes de promover a formação de
cidadãos verdadeiramente inteligentes e críticos, tão inconvenientes aos
regimes autoritários, como o que ora se instala de modo ilegítimo na direção do
País.
Na visão dos professores que subscrevem este documento, o cenário
apenas esboçado neste manifesto é preocupante. Estamos vivendo um
momento crucial para a manutenção da democracia no Brasil, em que é
necessário refletir sobre os rumos que a nação começou a tomar a partir de uma
ruptura injustificável. As consequências do silêncio e da inação, neste momento,
podem custar caro à nossa democracia, que, apesar de suas fragilidades
inegáveis, vinha se consolidando como um espaço para o jogo negociado de
interesses dos atores que compõem a sociedade brasileira.
A deposição de uma Presidenta eleita, com base em um argumento
jurídico especioso, falacioso, capaz de incriminar a maior parte de nossos
gestores públicos, o subsequente desmonte de todas as políticas sociais de
atendimento às camadas menos favorecidas e as decisões que visaram à
desarticulação de ações de governo no campo da educação, ciência e cultura,
importantes para toda a sociedade, não deixam dúvida: o impeachment da
Presidenta Dilma Rousseff constituiu rompimento inaceitável, que urge
desfazermos, sob pena de permitirmos a perpetuação de um governo que, tanto
pelo método de ascensão quanto pelo ideário manifesto por suas ações, já
tornou evidente seu descompromisso com o bem-estar social, com a soberania
nacional e com a democracia.
Assinam este documento:
Ana Tettamanzy, Anamaria Welp, Ana Zandwais, Antonio Barros de Brito
Filho, Antonio Marcos Vieira Sanseverino, Arcanjo Pedro Briggmann, Beatriz
Gil, Carlos Augusto Bonifácio Leite, Carmem Luci da Costa Silva, Claudia
Luiza Caimi, Cleci Regina Bevilacqua, Cléo V. Altenhofen, Denise Regina de
Sales, Erica Foerthmann Schultz, Eunice Polonia, Gabriela Bulla, Gabriel de
Ávila Othero, Gerson Neumann, Ginia Maria de Oliveira Gomes, Homero
Vizeu Araújo, Ian Alexander, Ingrid Nancy Sturm, José Carlos Baracat Júnior,
Karina Lucena, Leonardo Antunes, Liliam Ramos da Silva, Lúcia Rottava,
Luciene Simões, Luisandro Mendes de Souza, Luís Augusto Fischer, Luíza
Milano, Márcia Montenegro Velho, Marcos Goldnadel, Maria Alice Kauer,
Maria Cristina Leandro Ferreira, Marta Ramos Oliveira, Natalia Labella,
Patrícia Chittoni Ramos Reuillard, Paulo Coimbra, Guedes, Rafael Brunhara,
Rita Teresinha Schmidt, Robert Ponge, Rosa Maria de Oliveira Graça, Rita
Lenira de Freitas Bittencourt, Sandra Loguércio, Sandro Rodrigues da Fonseca,
Sergio de Moura Menuzzi, Tanira Castro, Ubiratã Kickhöfel Alves, Valdir
Flores.

A dialética do ódio no discurso dos brasileiros

O fascista não preserva o outro. Ele repete o quanto odeia aquele que não pensa como ele com a violência de quem poderia matar. E mata. Ideias matam. Pensar no outro como alguém que não tem valor e é descartável, é matar! No Brasil, a dialética nas opiniões políticas, de direita e de esquerda, se diferencia justamente nesse ponto, de como enxergam e colocam o outro. Ou como determinam o lugar do outro. O outro que sou eu, quando sei que todos somos iguais e temos o mesmo valor, está no discurso da esquerda. O outro que é inferior, descartável, não humano, povoa o discurso da direita. São duas formas diferentes de articular, na fala, as relações humanas. Principalmente porque em nosso país, precisamente no atual momento político, a esquerda assume uma postura democrática e não totalitarista em sua maioria e, de forma antagônica, a direita assume opiniões cada vez mais conservadoras, totalitaristas e antidemocráticas. Misantropia é a palavra que vem ao meu pensamento quando ouço o atual discurso da direita. Ódio, também. Compaixão, como em Schopenhauer, ou na Amizade (de Epicuro), ouço no discurso da esquerda. Humanismo… São duas dialéticas diferentes que situam o eu e o outro. Não, esquerda e direita não é somente uma escolha partidária. É uma escolha filosófica. Que define, na forma como se refere na fala, o lugar que o outro ocupa, o lugar em que está a pessoa humana e social. O lugar de quem se fala e de quem fala, numa reciprocidade. Ser, como existência, se constrói nessa dialética. Poderia ser um devaneio romântico de minha parte se o que descrevi não estivesse na fala. Está. Carrega-se ali esta verdade, a verdade de cada um. Basta analisar o discurso atual de ambos os lados, na efervescência política em que vivemos. Do lado das políticas ultraconservadoras da direita, o ideal de homem correto, predominantemente na aparência, branco, heterossexual e produtor de capital, erigido num profundo moralismo de cunho religioso, constrói a imagem do cidadão que se procura forjar. Ao forjar este cidadão, no imaginário, o “cidadão de bem”, cria um nicho, um lugar para todos aqueles que não merecem nossa consideração, sendo excluídos e desvalorizados. Dá-se esse processo no horrendo fenômeno Bolsonaro e sua personificação da intolerância, ódio e violência. Está nele o discurso fascista citado anteriormente e em seus seguidores, concordantes indubitáveis, que se assemelham, se identificam. Esse estilo, sendo eufêmico, não se percebe no discurso político dos representantes da esquerda brasileira. A necessidade de, em seu discurso, colocar o outro numa posição de valor, define sua postura perante o ser humano, que não inferioriza o outro nem o elimina. Usam predominantemente a dialética da união, ou do amor, com respeito a alteridade, de forma a priorizar, claramente, nossa necessidade de coexistir em uma sociedade.
A inserção da dialética do ódio na cultura
O homem conquista pertencência e pertinência quando se sente inserido na cultura. A cultura construída pela fala e pelo imaginário é dinâmica, sofrendo constante renovação. No contexto atual, a mídia tem determinante influência na construção do imaginário da cultura, como um interlocutor influente e inquestionável. Por meio da fala e da imagem determinam o papel do indivíduo. Determinam aquele que odeia e aquele quem se odeia, por exemplo. O discurso de ódio, que insere a dialética do ódio na cultura, precisa de um vetor, a mídia, e encontra na audiência um ótimo hospedeiro. Hospedeiro este que, além de alterar a si mesmo, dá continuidade à disseminação do ódio, infectando outras pessoas em uma cadeia catastrófica. O propósito de barrar essa disseminação do ódio pode ser encontrado no discurso da esquerda e não é difícil de se identificar. Quando falam de respeito aos homossexuais, mulheres, negros, povos indígenas e a importância do reconhecimento dos direitos destas pessoas, combatem diretamente o discurso de ódio. Aos que duvidam, convido-os a acompanhar alguma das manifestações contra o golpe que vêm ocorrendo.
Escolher é possível
Ódio Mafalda
Diante deste entendimento, da verdade que aflora no discurso, podemos esperar que as pessoas possam escolher qual discurso querem propagar. Há uma escolha importante nisso. Escolhe-se quem sou eu, quem é o outro e, inevitavelmente, quem somos. Assume-se desta forma uma posição social que pode colaborar para a coexistência humana, quando se escolhe a dialética do amor, ou não, quando se prefere a dialética do ódio. Podendo enxergar essa diferença, basta escolher. Perdoem minha saída reducionista: amamo-nos ou nos odiamos?

Hipóteses sobre a etapa atual do impeachment e um caminho para a saída da crise

A ampla divulgação, pela grande mídia corporativa, de denúncias envolvendo integrantes do primeiro escalão do governo interino de Michael Temer e também a divulgação do pedido de prisão de altos dirigentes do PMDB, Renan Calheiros, presidente do Senado, Romero Jucá, ex-ministro do planejamento, e de José Sarney, ex-presidente da República e do Senado, deixaram aturdidos os analistas políticos e, principalmente, os cidadãos comuns que procuram entender os rumos da política nacional.
Por que motivos a grande mídia, que tudo fez para desgastar o PT e suas lideranças e para criar o clima que possibilitou o afastamento, ainda temporário, da presidenta Dilma Rousseff, agora se apressa em divulgar, em amplas manchetes, os descalabros do governo Temer e de seus integrantes, incluindo acusações que atingem o próprio presidente interino?
Por que motivos o Procurador Geral da República, Rodrigo Janot, que já havia pedido investigação sobre as alegadas propriedades do ex-presidente Lula da Silva e também sobre suas possíveis ações em benefício de grandes empreiteiras brasileiras no exterior, o que contribuiu em muito para desestabilizar o governo de Dilma Rousseff, depois de ter conseguido o afastamento do presidente da Câmara, Eduardo Cunha, pede, agora, a prisão de figuras chaves do governo de turno?
As evidências disponíveis para a interpretação do jogo político em curso indicam que a articulação jurídico-parlamentar-midiática é muito maior, mais profunda e mais complexa do que tirar Dilma Rousseff e o PT do governo e, de quebra, impedir que Lula da Silva seja candidato em 2018. Há, pelo menos, duas hipóteses a serem analisadas para compreender os fatos, ambas reveladoras de que há um intenso processo de disputa no interior das forças que promoveram o impeachment e que desestabilizaram o país.
A primeira delas, mais simples, é a de que o PSDB, os procuradores federais, juízes e delegados que integram a Força Tarefa da Operação Lava Jato, mais o Procurador Geral da República, Rodrigo Janot, e, ainda, parte do STF estejam aliados e disputando com Temer a posse do poder. Para destituir Dilma, eles teriam se aliado a Michel Temer e a Eduardo Cunha, em um primeiro momento. Cumprida a primeira etapa do processo, teria chegado a hora de afastar o presidente interino e conquistar o governo.
Para que isto seja possível, alguns peessedebistas poderiam até ser defenestrados, como por exemplo Aécio Neves, um dos campeões de citações nas delações premiadas envolvendo empreiteiras que atuaram na Petrobras, para que outros tucanos, talvez Geraldo Alckmin ou José Serra, tenham chance de disputar e vencer em uma nova eleição a ser realizada ainda neste ano, por meio do voto popular, ou no ano que vem, por meio do voto dos parlamentares – pois de acordo com Constituição, se a presidente Dilma e seu vice Temer forem destituídos durante a primeira metade do mandato para o qual foram eleitos, ocorrerão novas eleições populares; se, no entanto, a destituição dupla ocorrer na segunda metade do mandato, as eleições serão indiretas.
A segunda hipótese de análise, mais ousada e mais nebulosa, é a de que a articulação em curso inclua apenas a já chamada República de Curitiba, ou seja a parcela de procuradores federais e delegados da PF integrantes da Força Tarefa da Operação Lava Jato, mais Rodrigo Janot e parte do STF, deixando de fora o PSDB e seus próceres. Na possibilidade de esta interpretação ser a correta, este conjunto de personagens estaria atuando para promover uma “limpeza geral” dos atuais quadros políticos nacionais e um desmonte completo das instituições políticas atualmente existentes no país.
Neste caso, as acusações aos políticos e os seus vazamentos, bem como os afastamentos, as prisões e as destituições continuariam com toda a força, não poupando integrantes de nenhum partido político e de nenhuma instância do governo Federal. Não apenas Lula da Silva, Dilma Rousseff, Eduardo Cunha, Renan Calheiros, José Sarney, Michael Temer e os integrantes de seu governo interino seriam investigados, processados e talvez presos, mas também Aécio Neves e, ainda, José Serra e Geraldo Alckmin e, ousadia suprema, chegaria a Fernando Henrique Cardoso. Até mesmo Marina Silva, que vinha se mantendo impune até há poucos dias, estaria sujeita a punições por fraudes e propinas utilizadas no financiamento da campanha eleitoral de seu antigo companheiro, Eduardo Campos, e dela própria.
A falta de informações confiáveis impede que se possa antever até onde poderá ir a chamada República de Curitiba. Sua força advirá apenas da aliança construída com a grande mídia corporativa e alimentada pelos vazamentos seletivos de depoimentos e acusações realizados em momentos estrategicamente planejados ou existirão aliados mais poderosos, possivelmente de fora do país? É sabido e foi amplamente noticiado que grande parte dos integrantes da força tarefa da Lava Jato e delegados da PF receberam treinamento no FBI, por força de convênio firmado durante o governo FHC e ainda vigente, e os procuradores federais brasileiros mantêm estreitas relações com seus congêneres norte-americanos. Além disso, a proximidade de Rodrigo Janot e Sérgio Moro com a justiça dos EUA é tão grande, que eles têm prestado informações confidenciais a respeito da Petrobras no processo movido contra ela por investidores internacionais que se julgaram prejudicados pela diminuição dos valores de suas ações na bolsa de Nova Iorque.
Cabe lembrar, ainda, que a Petrobras e o Pre-Sal, que garantirão ao Brasil a posse da quinta maior reserva petrolífera do mundo, foram os alvos da espionagem realizada pela NSA, agência nacional de espionagem norte-americana, sobre a presidenta Dilma Rousseff e todo seu staff palaciano. Escândalo que veio a público em 2012 e que estremeceu as relações entre o Brasil e os EUA, fazendo com que a presidenta brasileira cancelasse encontro anteriormente agendado com o presidente daquele país.
Qualquer que seja a hipótese verdadeira dentre as duas aqui consideradas, o fato concreto é que o país enfrentará um enorme desafio para reconstruir suas instituições ao final do tsunami político em curso.
Na Itália, onde ocorreu ação jurídico-midiática semelhante à que ocorre no Brasil hoje, com a Operação Mãos Limpas, durante os anos de 1992/1996, o saldo final foi desastroso. As máfias, que se pretendiam expurgar do país e da política, assumiram diretamente o poder por meio da conquista dos espaços políticos deixados vagos no Parlamento por força das cassações e prisões. Sílvio Berlusconi, dono do maior conglomerado de mídia do país, envolvido em casos de sonegação fiscal e associado aos segmentos políticos e empresariais mais retrógrados do país, foi eleito Chefe do Conselho de Ministros (Primeiro Ministro) e exerceu o poder durante nove longos anos. Ainda hoje, passados já 20 anos do encerramento do processo, os representantes das novas máfias continuam exercendo grande influência na política italiana.
No Brasil, a desestruturação política das instituições do Estado e das empresas nacionais responsáveis pela construção das plataformas submarinas de exploração de petróleo e pelo desenvolvimento do submarino e do projeto nuclear brasileiro, entre outras ações estratégicas, tem sido tão intensa e tão profunda que exigirá muito tempo e muito esforço para ser superada.
Está em curso o desmanche das instituições políticas e o enfraquecimento das únicas empresas nacionais aptas ao desenvolvimento de tecnologia de ponta e com capacidade de concorrer no mercado internacional, decorrente da forma como foram feitas as ações de combate à corrupção executadas por integrantes da Procuradoria Geral da República e do Poder Judiciário brasileiro.
A partir do início do governo interino, passaram a ser desmontadas também as políticas sociais, que garantiram a inserção de milhões de pessoas principalmente ao mercado de consumo, ao ensino e à saúde públicos, e a política de inserção internacional do país em uma posição de protagonismo entre as nações em desenvolvimento.
No espaço político, mesmo que Eduardo Cunha e Renan Calheiros sejam destituídos definitivamente de seus cargos e de seus mandatos e até mesmo presos, as bancadas BBB (da Bala, da Bíblia e do Boi), que reúnem os políticos mais reacionários da política brasileira, aliadas aos deputados e senadores eleitos pelo poder dos recursos de empresas privadas, continuarão dominando as votações na Câmara e no Senado e impondo novas derrotas e novos sobressaltos à governante, em caso de seu difícil retorno.
Além disso, os estragos feitos por Temer e seus aliados durante o exercício do governo interino, tanto nas políticas sociais, quanto na política econômica e, ainda, na política externa brasileira, dificilmente serão revertidos sem que se componha nova maioria parlamentar, só possível com a eleição de novos representantes no Congresso Nacional.
A disputa interna estabelecida e acirrada entre os articuladores e executores do processo de impeachment de Dilma Rousseff, aliada à resistência popular, eclodida em manifestações de repúdio a Temer em todo o país, ao surgimento de movimentos, comitês e núcleos em defesa da democracia e do estado democrático de direito, à baixa aprovação do governo interino, aferida por pesquisas de opinião pública e, ainda, à possível divulgação de uma carta, por meio da qual a presidenta afastada se comprometeria, tão logo reassumisse o cargo, a apresentar proposta de consulta popular sobre sua permanência ou a realização de eleições gerais no país, talvez possam influenciar o voto de um número suficiente de senadores para reverter o processo de impeachment.
Em qualquer um destes dois cenários – a permanência da presidenta ou a realização de eleições gerais no país – para reverter as medidas de desmonte do Estado efetuadas pelo governo interino, promover uma ampla reforma política e institucional e, com isto, dar início a um processo de reconstrução do país, será necessária a constituição de uma ampla frente política.
Sem a constituição de uma grande e ampla frente, na qual partidos políticos, movimentos sociais, sindicatos e as novas organizações surgidas à margem das anteriores ajam em conjunto e tenham o mesmo peso nas decisões, de forma semelhante à Frente Ampla Uruguaia, o fôlego da resistência será curto e a força reunida será insuficiente para que se possa superar a crise atual.
Uma Frente Ampla, como a que vem sendo proposta por alguns movimentos, núcleos e comitês de resistência ao golpe e de defesa da democracia, só vingará se for assumida pelos partidos e líderes políticos de esquerda e centro-esquerda, acolhendo os partidos de centro e todos os liberais democratas que se mostrarem dispostos a participar da luta pela reconstrução das instituições políticas brasileiras.
Os partidos políticos de esquerda e de centro-esquerda, até agora pelo menos, não deram mostras de estarem dispostos a construir uma frente ampla deste tipo. A Frente Brasil Popular continua com muitos dos antigos vícios hegemonistas dos partidos que a compõem. A Frente Povo Sem Medo, ainda não contaminada por práticas oligárquicas, posto que recentemente fundada, não conseguiu sequer a adesão da totalidade dos dirigentes do PSOL, muitos deles ainda simpáticos ao processo de impeachment de Dilma Rousseff.
Vejam-se, além disso, as articulações para as candidaturas das eleições municipais a se realizarem em outubro, nas quais cada partido tenta impor o seu candidato. De modo geral, não há renovação sequer de nomes, quanto mais de propostas e de posturas. Sendo assim, enquanto as oligarquias partidárias de esquerda não reavaliarem suas práticas, dificilmente vingará a possibilidade de composição de uma verdadeira Frente Ampla Democrática.
Será preciso uma enorme pressão dos movimentos recém surgidos na cena política brasileira, para fazer os militantes e dirigentes partidários entenderem que ou eles se renovam ou todos nós teremos muito pouca chance de mudar o jogo e de reestruturar o país no rumo da construção de uma efetiva democracia social em um tempo não muito dilatado.
Programas de frentes amplas têm que ser construídos em conjunto com os parceiros e nunca a priori, por apenas um ou por um pequeno grupo de forças políticas que tome a dianteira. Cada um dos integrantes precisa ter peso semelhante na formulação das propostas e, ao final, liberdade para aceitá-las ou não. Se algum dos possíveis parceiros se colocar como liderança e tentar definir isoladamente que rumos e que limites estabelecer, estará comprometida, desde o início, a frente agora proposta, pois, mais uma vez, haverá alguém ou um partido assumindo ou tentando assumir uma posição de hegemonia sobre os demais.
Só quando cada um dos movimentos, núcleos, comitês e partidos políticos realmente comprometidos com a democracia e a construção de um país socialmente mais justo se dispuserem a caminhar juntos sob estas bandeiras, teremos uma chance concreta de converter o processo de desmonte político-institucional, social e econômico em curso em um amplo, profundo e salutar processo de reconstrução e reestruturação nacional.

As ilusões da conjuntura e o silêncio das esquerdas

A gravidade da delação premiada de Sérgio Machado deveria ter produzido o efeito de uma bomba termobárica sobre o governo e sobre o sistema político brasileiro. Não teve. Em qualquer país sério, os dirigentes dos principais postos políticos do país teriam sido obrigados a se afastar de seus cargos e estariam presos, inclusive o presidente ilegítimo Michel Temer, Renan Calheiros, Eduardo Cunha, vários ministros e as cúpulas dos principais partidos. Não estão. Se a delação tivesse ocorrido durante o governo Dilma, a mídia teria feito uma enorme escandalização, mas agora não fez. A oposição teria saído a campo para exigir explicações, demissões, afastamentos, renúncias. A oposição de agora mal se pronunciou. Como entender essa situação anômala?
Ocorre que a vitória do golpe foi também a vitória da hipocrisia e do cinismo. Nos ambientes cínicos impera a desfaçatez, não há mais mesuras com a moral e os bons costumes e nem sequer os políticos se importam com as aparências. Nem mesmo os colunistas e analistas políticos de plantão e a grande mídia em geral: todos foram tragados pelo cinismo ao ponto da grande mídia brasileira ver-se desmoralizada junto à mídia europeia e norte-americana.
No ambiente cínico as denúncias já não importam. Tanto faz ser considerado honesto ou corrupto. Os políticos, comTemer à frente, se dão uma qualquer missão autoatribuída e agem em nome dela ignorando as denúncias que os atingem. A grande mídia e boa parte da opinião pública, ambas desmoralizadas pelo monstro que ajudaram a produzir, procuram envernizar a aquilo que não comporta nenhuma aderência a qualquer produto lustroso. Mas tanto faz. Afinal de contas, a Dilma foi afastada e tenta-se dar a esse golpe desastroso para a democracia brasileira a aparência de normalidade.
A aparente inviabilidade do governo Temer produz todo tipo de ilusão na presente conjuntura. A primeira ilusão é a ideia da volta de Dilma. Nem mesmo o PT quer que ela volte. Basta conversar com dirigentes do partido ou mesmo ler as entrelinhas da reportagem da Folha de S. Paulo do final de semana que traz análises dos petistas indicando que não acreditam que as delações de Machado possam ajudar Dilma. As análises estão corretas. Ocorre que Dilma não oferece uma saída para a crise e para a governabilidade e o PT não a quer de volta. Mesmo que mais delações firam de morte o governo ilegítimo, o afastamento de Dilma parece ser um ponto de não-retorno.
Se o governo Temer se inviabilizar, a tendência é a de que o golpe se aprofunde, com a superveniência de um presidente escolhido pelo Congresso no início de 2017. Os golpes não retrocedem. Aprofundam-se. Lembremos que as promessas de eleições feitas por Castelo Branco em 1964 não se concretizaram. Ademais, se o impeachment for aprovado em definitivo, tendência mais provável, Temer tentará virar o jogo com uma reforma ministerial afastando os ministros mais incômodos visando preservar-se. A repressão aos movimentos sociais será a praxe para enfrentar a pressão das ruas.
A possível inviabilidade de Temer vem gerando a segunda grande ilusão: a ilusão do pacto. É preciso perceber que o pacto já foi feito: o pacto conservador das elites através do afastamento de Dilma. A área econômica do ministérioTemer, com Meirelles à frente, é o rosto visível do pacto. Temer é um instrumento desse pacto. Se ele se tornar um estorvo, será removido.
Por outro lado, se o governo Temer é produto de um golpe, como de fato o é, o PT ou qualquer força democrática, progressista e de esquerda não pode pactuar com esse governo ou com as forças que apoiaram o golpe. O lugar dos progressistas, dos democratas e das esquerdas é na oposição ao governo ilegítimo ou qualquer subproduto que ele produza para continuar. Pactuar com essas forças representará uma traição aos movimentos sociais e aos progressistas que protestaram e protestam nas ruas contra o golpe. Será uma traição aos trabalhadores e aos mais pobres que terão direitos decepados e o desemprego crescente. O pacto conservador do golpe visa superar a crise com um brutal corte do delgado colchão de proteção social que se construiu desde a Constituição de 1988, garantindo os altos ganhos do rentismo e dos bancos. Não é outro objetivo da proposta de PEC de Meirelles, que limitará os gastos com o social, mas não o limitará com o pagamento de juros.
Os pactos nunca formam bons para os trabalhadores e para as forças populares e progressistas. Sempre representaram a continuidade da dominação das elites conservadoras. Foram “transições transadas”, na definição de Raimundo Faoro, para manter as mesmas elites no poder sob a aparência de uma falsa mudança. Os pactos expressam a velha e ludibriosa fórmula de produzir uma aparência de mudança para manter tudo como está.
O Solene Silêncio das Esquerdas
Não passou despercebida a reação quase protocolar dos partidos de esquerda – PC do B, PSol e PT – em face das estarrecedoras revelações da delação de Sérgio Machado. Temer foi citado e os partidos de esquerda não exigiram a sua renúncia imediata. Sequer foram ao Supremo Tribunal Federal exigir uma investigação formal de Temer, como fazia a antiga oposição com Dilma. A antiga oposição pediu que se investigasse até os gastos com cabeleireiro. Na verdade, agora, trata-se de um silêncio cheio de alaridos reveladores.
No jogo de acomodações, os partidos citados já encontraram o seu lugar: fazer oposição ao governo e tentar salvar, ao máximo, postos avançados de poder nas eleições municipais deste ano. Para alcançar este último objetivo, no cálculo desses partidos, chegou-se à conclusão de que é mais vantajoso estar em oposição a Temer do que ter a volta deDilma. Mal ou bem é uma estratégia. Se vai dar certo ou não, o tempo dirá. Mas é preciso prestar atenção ao movimento de aprofundamento do golpe. O preço de sua viabilidade é muito alto para ser suportado apenas por cálculos eleitorais.
Outro solene silêncio das esquerdas diz respeito às iniciativas cada vez mais abertas para por um fim à Lava Jato. Iniciativas que vêm do PMDB, do PSDB, do chamado centrão e de analistas e comentaristas da grande mídia. Estes últimos começam a sugerir, de forma enviesada, a tese de que a Lava Jato precisa chegar a um fim. Estão até mesmo definindo um prazo: dezembro de 2016. Não é um jogo simples: precisaria a conivência da Procuradoria Geral da República e do STF. É preciso perceber que o eixo principal da Lava Jato se deslocou de Curitiba para Brasília, de Sérgio Moro para Rodrigo Janot.
O caso da investigação de Lula agora está com Sérgio Moro, que tem se mostrado célere proferindo mais de 100 condenações contra nenhuma do STF. As cúpulas do PMDB e do PSDB estão em Brasília, com Janot e o STF. BastaráMoro decidir alguma condenação contra Lula e a pressão para paralisar a Lava Jato aumentará. O jogo do abafa crescerá. Desta forma, é incompreensível o silencia das esquerdas ante as manobras e pressões contra a Lava Jato. Esse silêncio, que é omissão, tende a se tornar conivência. Poderá colocar no mesmo lado o PMDB, o PSDB, o PT e a rede Globo. Estariam os dirigentes do PT tomados pela Síndrome de Estocolmo?
Artigo originalmente publicado no Jornal GGN, 20-06-2016.
 

Crise política e marxismo

Diante da crise política que vivemos, colocamos a pergunta a respeito do que Marx e o marxismo têm a ver com isto? Já se escutou falar por aí que Marx seria o culpado pela crise que o Brasil atravessa no momento. Parece-nos evidente que Marx tem algo a ver com a crise global do capitalismo internacional, e com a crise brasileira em particular. Sem entrarmos nas distinções entre a filosofia do velho Karl Marx, marxismo e as causas marxistas que se concentram nas conhecidas esquerdas, tais como as questões vinculadas ao trabalho, à organização social, à luta de classes e à exploração do trabalho. Uma distinção entre estes vários aspectos levaria o texto longe demais, o que não é o propósito deste artigo.
A crise política é provocada pela onda conservadora do neoliberalismo cujos ventos voltaram a soprar forte sobre o território brasileiro. Sabe-se que este modelo econômico, fortemente reinstaurado no Brasil com a posse do poder central por um governo golpista e conspirador, tem na privatização da economia, no grande empresariado e na retirada dos direitos sociais os seus dogmas fundantes. Na contramão desta tendência, uma noção social de inspiração marxiana tem na valorização do trabalho, na constituição do sujeito social, na economia solidária e na igualdade social, na coletivização dos bens e na constituição do fundamento universal do bem comum os seus valores fundamentais.
Dada a radical antinomia entre os dogmas do neoliberalismo e os fundamentos sociais da filosofia de Marx, entre o privatismo e os fundamentos sociais de base, Karl Marx e os marxistas aparecem como um bando de demônios inimigos do desenvolvimento econômico e vagabundos que vivem do trabalho dos que detém propriedade privada. Para os neoliberais, a crise econômica é causada pela significativa margem de recursos e de capital aplicado nas questões sociais, numa massa de “vagabundos” que não produzem e que consomem a riqueza dos que trabalham e produzem. Nesta lógica, é preciso retornar ao capital e aos produtores de riqueza tudo o que lhes é de direito, e tirar dos “vagabundos” tudo aquilo que provoca desequilíbrios econômicos.
Facilmente se escuta dizer que Marx não serve de referência para a leitura crítica e interpretação da crise econômica e política que atualmente vivemos. Na contramão desta investida, sustentamos que depois da grande crise econômica que solapou as bases do capitalismo mundial em 2008 e a crise que afeta o Brasil atualmente, têm na filosofia marxista uma de suas bases mais profundas para a sua compreensão. O que vivemos na atualidade, numa simples palavra, pode ser resumido na usurpação do poder político por parte de uma elite capitalista que impõe o seu projeto econômico. O projeto econômico que os golpistas liderados por Cunha e Temer estão impondo ao Brasil é o mesmo que foi duramente criticado por Marx, que faliu em 2008 e que impõe ao mundo uma onda de destruição da natureza, do homem e de si próprio. Assim como denunciou Marx no século XIX, o capitalismo atual está sucumbindo à sua própria contradição interna, cujo preço está recaindo diretamente sobre os recursos naturais do Brasil e sobre o povo brasileiro.
O Capital, obra sistemática de maturidade do velho e barbudo Karl Marx, nos mostra suficientemente que não são os marxistas e trabalhadores os culpados pela crise atual, e que o seu pensamento é referencial para a compreensão de qualquer crise capitalista. Aqui, junto com o velho Marx, denunciamos a ação do governo golpista de fazer recair sobre os trabalhadores e a base social a responsabilidade, fazendo a classe trabalhadora pagar a conta dela. É evidente que o grande capital, cuja lógica Marx esboçou de forma sistemática e metódica em sua obra o Capital (das Kapital), apresenta o grande sujeito do capital que sobrevive à custa do trabalho explorado e da mais valia, expropriando a força física e espiritual do trabalhador. O grande capital somente sobrevive com o trabalho dos trabalhadores, cuja subjetividade é expropriada até as últimas consequências. Acontece sistematicamente aquilo que os golpistas impõem de forma clara: o grande capital expropria os trabalhadores, com a necessidade absoluta do fundamento que ele próprio nega. Os golpistas dizem que os pobres, a classe trabalhadora, os pequenos agricultores, as mulheres e os negros são vagabundos, justamente aqueles “vagabundos” que com o seu trabalho sustentam materialmente a posse material dos ricos e machos golpistas.
Ninguém reconstruiu a estrutura da lógica capitalista como Karl Marx, especialmente em sua obra o Capital. O grande capital, estruturado pelas determinações do capital industrial, do capital financeiro e do capital comercial, caracteriza um círculo de mediação no qual uma determinação do capital determina a outra, e todas se determinam reciprocamente na grande lógica da autodeterminação do capital. Mas o movimento de construção do capital é sustentado pelo trabalho dos trabalhadores, a grande força que coloca o capital em movimento. Os capitalistas, perfeitamente representados pelos golpistas, não gostam dos trabalhadores e negam a própria base que construiu o seu capital. Uma vez precarizado o trabalho, a tendência é de que o capital seja fragilizado.
Marx não apenas reconstrói a estrutura dialética das inter-relações entre as modalidades de capital dinheiro, capital produtivo e capital comercial, como a lógica da grande circularidade do capital global, mas critica outra configuração que consiste na separação entre a estrutura produtiva e a lógica especulativa e financeira. O grande causador da crise é a financeirização do mundo provocada pelas instituições financeiras que recolhem os recursos econômicos da base material da sociedade e os concentram em forma de capital financeiro. Este basta a si mesmo para se multiplicar, no melhor estilo autotélico de um deus absoluto e incondicional. Como alguns poucos se beneficiam desta lógica perversa e lucram com a crise, o sistema econômico material é explorado em seus fundamentos quando a carência econômica é sentida na indústria, no comércio, no consumo quotidiano e no trabalho, a financeirização pulveriza a estrutura material e a sua necessária circularidade de produção e consumo. Marx é um crítico contumaz desta lógica capitalista financeirista na qual o capital dinheiro adquire a configuração autotélica capaz de expropriar a realidade material e a estrutura social.
Pelo viés crítico fortemente marxista, a crise que vivemos evidencia uma radical desestruturação do tecido social pela coisificação das relações sociais fortemente impactadas pela lógica capitalista. Diretamente acompanhado dela, o sistema da natureza está sendo desintegrado, com a destruição dos ecossistemas, com a poluição do ar, das águas, dos rios, do desmatamento, da exploração predatória de recursos naturais, de aplicação de defensivos agrícolas em grande escala etc. O sistema capitalista dogmatizado e endeusado pelos golpistas não apenas desintegra a sociedade e a natureza em seus fundamentos, mas estabelece uma ruptura na relação fundamental entre o homem e a natureza.
Partindo do legado intelectual proporcionado por Marx, criticamos o projeto desencadeado pela elite golpista que está no poder. Este projeto já faliu o Brasil com o governo Fernando Henrique Cardoso na década de 90, quando o Brasil acumulou uma dívida externa impagável, com sucessivos empréstimos junto ao Fundo Monetário Internacional, com um déficit significativo na balança comercial durante os oito anos, e com diminuição do Produto Interno Bruto. O governo golpista está aplicando irrestritamente a cartilha econômica dogmatizada pela tradição neoliberal, que faliu a Europa e os Estados Unidos em 2008 e espalha estruturalmente os efeitos de sua decadência no mundo inteiro.
Apoiados no pensamento de Marx, criticamos radicalmente o modelo econômico representado pelo governo golpista que usurpou o poder. Ele representa um projeto econômico que retira direitos sociais assegurados pela Constituição de 1988. Isto representa uma contradição porque o próprio capital nega a sua força estruturante, o trabalho, destruindo-se a si mesmo. Os golpistas representam um projeto que já faliu o mundo, e está matando a natureza, está desintegrando a sociedade, provoca desequilíbrios econômicos, ecológicos e sociais globais.