Há 20 anos ameaças fermentam na internet

Por Tiago Lobo
No fórum Dogolachan, localizado na primeira camada da Deep Web, uma parte da internet invisível aos motores de busca como o Google, adolescentes intitulados Incels (celibatários involuntários na sua linguagem), trocam informações e pedem dicas de forma anônima. Os assuntos variam desde a compra facilitada de armas, esquemas de bombas caseiras, tipos de ácidos para agredir pessoas, até troca de conteúdo pedófilo e dicas para planejar e cometer atentados terroristas.

Há um espaço, inclusive, que funciona como um confessionário. Um “padre” responde às confissões dos usuários. Um deles pede, por exemplo, ajuda após 9 dias de celibato para se livrar do vício pela masturbação que teria o tornado “impuro”…

O fórum é terreno fértil onde apologia ao crime é rotina. De lá que partiram incentivos para tragédias que mobilizam o país desde o final dos anos 90.

Até novembro de 1999, “tiroteios em massa” não eram uma realidade no Brasil. Isso era tido como um problema da terra do Tio Sam, nada Tupiniquim.

A partir de 20 de abril daquele ano o chamado “Massacre de Columbine” inundou a pauta na imprensa internacional: dois adolescentes mataram 12 alunos  e um professor, feriram outras 21 pessoas para depois se suicidarem em uma escola do Colorado, Estados Unidos. Desde 1996 os adolescentes alimentavam um site onde compartilhavam mapas e estratégias sobre o jogo de tiro “Doom”. No final de 97 já havia conteúdo sobre como construir bombas caseiras e postagens que descreviam o ódio que a dupla sentia da sociedade.

Na noite de 3 de novembro, pouco mais de 6 meses depois de Columbine, cerca de 30 pessoas assistiam ao filme O Clube da Luta na sala 5 do cinema do Shopping Morumbi, em São Paulo. Um estudante de medicina de 24 anos começou a atirar até esvaziar o pente de uma submetralhadora, matando três pessoas e ferindo outras quatro. Ele foi imobilizado quando ficou sem munição e logo em seguida foi detido pela polícia.

Advogados de defesa, na época, tentaram alegar insanidade, o que o tornaria ininputável: alguém que não tem discernimento sobre certo e errado, e possibilitaria o cumprimento da pena em um hospital psiquiátrico. Alegaram também que ele havia sofrido influência de um jogo de tiro, o clássico Duke Nukem: não colou e ele foi condenado a 120 anos e seis meses de prisão.

Um psiquiatra contratado pela família afirmou que o jovem sofria de Transtorno de Personalidade Esquizoide (TPE), caracterizado pelo distanciamento e desinteresse no convívio social e uma gama limitada de emoções em seus relacionamentos interpessoais.

Membro de família da classe média alta de Salvador, o “atirador do shopping” começou a apresentar indícios de depressão e ideação suicida aos 13 anos: queixava-se à mãe que não tinha amigos. Aos 15, durante um intercâmbio nos E.U.A, foi mandado de volta pela família que o acolheu no exterior por conta da sua agressividade e, ao retornar, passou a agredir fisicamente os próprios pais chegando a fraturar a costela de um deles.

Por recomendação médica, foi morar sozinho em São Paulo, para ter “uma vida social independente”. Na faculdade de medicina (seguindo os caminhos do pai), ingressou como aluno brilhante e foi decaindo. Introspectivo e com reações desproporcionais às brincadeiras dos colegas foi ficando sozinho. Um professor o definiria como uma pessoa “apática, diferente”. Nas primeiras férias da faculdade tentou suicídio, depois teve que sair da pensão onde morava por agredir um colega, na sequência ameaçou o porteiro de um apartamento que os pais lhe alugavam e passou a ter alucinações.

Cinco dias antes do crime, resolveu largar a medicação psiquiátrica por conta própria e fazia uso frequente de cocaína. A polícia encontraria 37 papelotes da droga no apartamento do estudante, que não pagava o condomínio havia dois meses.

Três anos depois do julgamento, a pena foi reduzida a 48 anos e nove meses de prisão por uma tecnicalidade da legislação. Hoje ele segue preso, institucionalizado no Hospital de Custódia e Tratamento de Salvador, destinado a doentes mentais.

Logo após ser detido, policiais do 96º DP perguntaram se havia alguma namorada ou amigos para avisá-los da situação do atirador. “Eu não gosto de ninguém”, ele respondeu. A primeira escola

A cidade de Taiúva, a 363 km de São Paulo foi o palco para o primeiro tiroteio em massa dentro de uma escola que o Brasil registra. Às 14h40min do dia 27/01/2003, um jovem de 18 anos armado com um revólver calibre 38 e 105 projéteis invadiu o pátio da sua ex-escola e disparou quinze vezes contra alunos, professores e funcionários. Após ferir cinco estudantes, zelador e vice-diretora, se matou com um tiro na cabeça. Uma das vítimas ficou tetraplégica.

O colégio estadual Coronel Benedito Ortiz, cena do crime, foi frequentado pelo atirador durante toda sua vida escolar. À época a diretora da escola, Maria Luiza Gonçalves Oliveira disse para a imprensa que eram muito amigos e que “ele nunca deu problemas, era educado, sempre andou bem vestido”.

A polícia concluiu que o atirador teria cometido o crime motivado por revolta, devido ao bullying que sofria por ter “problemas com peso”. Em 1999, segundo a diretora Oliveira, o jovem conseguiu emagrecer quase 30 quilos.

Filho único de família simples, o pai trabalhava no campo e a mãe dona-de-casa, o atirador de Taiúva era tido como bom aluno, sem problemas com disciplina e sem inimigos. Saía pouco e não tinha namorada.Luto nacional

O caso que teve maior repercussão na imprensa e comoção pública, levando a então presidente Dilma Roussef a decretar luto nacional, teve início na manhã de 7 de abril de 2011.

Um rapaz com 23 anos, ex-aluno da Escola Municipal Tasso da Silveira, no bairro de Realengo, na zona oeste do Rio de Janeiro, invadiu a instituição armado com dois revólveres calibres .32 e .38 e abriu fogo contra alunos deixando 12 crianças mortas (10 meninas e 2 meninos) e 17 feridas. Uma sobrevivente que foi entrevistada pela TV Record logo após o crime revelou que o assassino atirava nas meninas para matar e nos meninos para ferir.

Após ser baleado na perna por um policial, o atirador se matou.

Os investigadores apuraram que a motivação seria vingança por conta do bullying que sofria. O jovem já havia chamado de “irmão”  o atirador que matou 32 pessoas na Universidade Virginia Tech, nos E.U.A., em 2007. Este último venerava os autores de Columbine. O autor do massacre em Realengo também se identificava com o atirador de Taiúva.

Ele chegou a deixar um vídeo onde dizia ter sido vítima de “bullying”. “Muitas vezes, aconteceu comigo de ser agredido por um grupo e todos os que estavam por perto debochavam, se divertiam com as humilhações que eu sofria sem se importar com meus sentimentos”, declarou em a nota suicida. Nela também havia instruções de como deveriam ser feitas a retirada de seu corpo e o sepultamento. Nenhuma pessoa “impura” poderia tocar no cadáver. Análises do computador do jovem mostraram que ele constantemente fazia pesquisas sobre terrorismo e se identificava com Osama Bin Laden.

15 dias após o massacre nenhum familiar compareceu ao Instituto Médico Legal para liberar o corpo do atirador: ele foi enterrado como indigente.

Padrões se repetem

Mesmo com um intervalo de tempo, parece que o efeito de um atentado em massa se desdobra em cascata.

Em setembro de 2011, 5 meses após Realengo, uma criança de 10 anos atirou contra sua professora e, em seguida, cometeu suicídio na escola Professora Alcina Dantas Feijão, no município de São Caetano do Sul, do ABC paulista.  O crime ocorreu às 15h50min, após uma discussão em sala de aula. A arma foi um revólver calibre .38 que pertencia ao pai da criança, um guarda civil. Ambos foram socorridos com vida, mas após duas paradas cardíacas o menino foi declarado morto às 16h50. A professora sobreviveu. Os investigadores chegaram a afirmar que o menino era “manco”, que sofria gozações dos colegas e esta seria a motivação do crime, mas abandonaram a tese.

Em outubro de 2017 um adolescente de 14 anos matou dois colegas e feriu outros quatro ao disparar uma pistola .40 da mãe, que assim como o pai, era policial militar. O crime ocorreu no Colégio Goyases, em Goiânia (GO). Segundo os colegas, o jovem era constantemente chamado de “fedorento”.

Este ano, o ataque ocorrido na escola paulista Raul Brasil, em Suzano, no dia 13 de março, deixou 10 mortos e 11 feridos, por dois jovens encapuzados que abriram fogo nas dependências da instituição. Suspeita-se que os atiradores tenham sido frequentadores do Dogolachan, onde são celebrados como heróis.

Acompanhe as reportagens da série:

Benfeitor em Rio Grande, malfeitor no Brasil

O aziago mês de agosto do ano da graça de 2011 marcou a confluência de duas comemorações contraditórias: os 45 anos do afogamento sob torturas do ex-sargento do Exército Manoel Raimundo Soares e os 100 anos de nascimento do general Golbery do Couto e Silva.

Uma exalta a memória, outra ofende a história – uma ofensa com o beneplácito do silêncio cúmplice da imprensa.

Em 1966, ainda agosto, o cadáver putrefato do sargento veio à tona num dos afluentes do lago Guaíba que banha Porto Alegre, após 152 dias de tortura num quartel do Exército e nas celas do DOPS. Aflorou nas águas barrentas do rio Jacuí com os pés e as mãos amarradas às costas, marca brutal da tortura que estarreceu até o homem que, dois anos antes, iniciara o golpe que impôs a ditadura: “Trata-se de um crime terrível e de aspecto medieval, para cujos autores o Código Penal exige rigorosa punição”, indignou-se o general Olympio Mourão Filho, então ministro do Superior Tribunal Militar (STM).

O “Caso das Mãos Amarradas” ficou ali, boiando no medo viscoso de alguns, constrangendo a inércia de muitos, incomodando a consciência de todos. Apesar dos 20 nomes envolvidos na prisão, tortura e morte de Soares – dez sargentos, três delegados, dois comissários, dois tenentes, um guarda-civil, um major e um tenente-coronel do Exército –, o IPM foi arquivado sem que ninguém fosse denunciado. No último dia 26 de agosto, aniversário de sua morte, o sargento Soares foi lembrado em Porto Alegre com a inauguração de um monumento em um parque às margens do Guaíba de onde seu cadáver emergiu para a história.

A viúva, dona Elizabeth, abriu um processo em 1973 contra a União pedindo indenização por danos morais. Sucessivamente, nos últimos 16 anos de presidência dos democratas Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva, a União recorria teimosamente da sentença para defender os assassinos da ditadura.

Dona Elizabeth morreu no Rio de Janeiro em 2009, aos 72 anos, com as mãos amarradas pela impunidade e o coração sangrado pela amargura – ainda sem saber o nome dos assassinos do marido, sem ser indenizada pelo Estado que o matou, sem ver a homenagem tardia ao sargento, trucidado aos 30 anos de idade.

O repúdio da terra

No domingo anterior, 21 de agosto, uma cerimônia parecida resgatou a lembrança de outra ilustre figura, morta em 1987: o mentor da ditadura que supliciou e assassinou o sargento, o general Golbery do Couto e Silva, nascido exatamente um século antes em Rio Grande, o porto mais importante do extremo sul do país.

O prefeito da cidade, filiado ao PMDB bastardo que nada lembra o MDB velho de guerra que combateu o regime militar, plantou na praça Tamandaré a pedra fundamental de um busto em honra ao filho ilustre, conterrâneo do almirante e patrono da Marinha.

A mais alta autoridade militar no ato da praça era um major da guarnição local, o 6º GAC (Grupo de Artilharia de Campanha). Nem o comandante, um tenente-coronel, apareceu por lá. Era a terceira tentativa de homenagear Golbery na sua terra natal: as duas anteriores, para dar seu nome a uma rua, foram negadas pelos vereadores. Até que, no Natal de 2009, o projeto do busto foi aprovado na Câmara local com um único voto contrário.

O pequeno diário de 16 páginas da cidade, Agora, nasceu em setembro de 1975, quando Golbery estava no auge de seu poder como chefe do Gabinete Civil do general Ernesto Geisel. O editorial do Agora que defendia a homenagem, sob o título “Dívida de gratidão”, relacionava alguns benefícios que o general trouxe para sua terra: mudou para lá a sede do 5º Distrito Naval, antes baseado em Florianópolis, defendeu a construção do sistema que capta água do canal de São Gonçalo, facilitou a pavimentação de uma avenida e ruas do bairro Cidade Nova. Apesar disso, dois de cada três habitantes da cidade não são nada gratos a Golbery.

Uma pesquisa onlineno site do jornal, perguntando aos leitores se concordavam ou não com a homenagem, mostrava no domingo (4/9) que Golbery é mais detestado (67,55%) pelo envolvimento com a ditadura do que louvado (32,45%) pela mera condição de riograndino. No fim de semana, mais de 900 pessoas já haviam firmado um abaixo-assinado virtual contra o general, a ser entregue ao prefeito de Rio Grande (ver aqui).

Estrutura gongórica

O busto de Golbery na maior praça do interior gaúcho, com 44 mil m², um terminal rodoviário, uma pracinha infantil e um minizoo, vai dividir espaço com figuras ainda mais famosas: as hermas de Napoleão Bonaparte, Guglielmo Marconi, Marquês de Tamandaré e Jesus Cristo e os restos mortais do general Bento Gonçalves, líder da Revolução Farroupilha (1835-1945).

Haverá quem considere justa a homenagem a Golbery como benfeitor de Rio Grande. Mas muitos, muitos mais, têm justa razão para lembrar de Golbery como malfeitor do Brasil.

Basta compulsar sua atribulada ficha militar, com uma sádica inclinação pelo mal, pelo conluio, pela trama, pelo ardil, pela conspiração contra a lei, o direito e a Constituição. Golbery tinha um especial fascínio pela manipulação das pessoas certas para fazer as coisas erradas de uma forma inteligente, um talento na hora certa para fazer a coisa errada, uma habilidade que induzia o bem para o mal e dava a uns e outros a errada e útil convicção de cometer o erro como se acerto fosse.

Um típico circunlóquio, uma perífrase, que lembra bastante a parábola do poeta grego Arquíloco, do século 6 a.C., usada pelo pensador inglês Isaiah Berlin no seu famoso ensaio sobre O porco-espinho e a raposa. Ensinava: “A raposa sabe muitas coisas, mas o porco-espinho sabe uma grande coisa”. Golbery pescou este ensinamento e o cravou na conclusão do segundo capítulo (“Aspectos Geopolíticos do Brasil, 1959”)de seu perifrásticoGeopolítica do Brasil, uma seleta de ensaios de sua gongórica estrutura mental, juncada de mapas, esquemas, hemiciclos, geistória, ecúmenos e outras esquisitices.

Os verdadeiros inimigos

Contrariando seu próprio mito, Golbery parecia menos a raposa e mais o porco-espinho. Ele, ao contrário dela, vê o que é essencial e ignora o resto, desprezando a complexidade em torno para concentrar a mira no objetivo central. No mundo bipolar da Guerra Fria do pós-guerra, Golbery enrolou-se cuidadosamente em seu anticomunismo, escolheu o lado e apontou todos os espinhos para a cruzada de salvação que embolou o estamento militar e a elite empresarial numa esfera redonda, pontiaguda e ideologicamente coesa na luta contra o inimigo comum. Como na fábula, e apesar da felpuda astúcia dos inimigos, o porco-espinho de Golbery sempre vence. Como venceu, na maioria das vezes, nas duas espinhadas décadas da ditadura instalada em 1964.

Diferente do tosco sargento afogado no rio Jacuí, o general que emergia no Rio Grande era, desde criança, uma cabeça privilegiada, voraz, ardilosa. Golbery queria saber uma grande coisa, como o sabido porco-espinho, mas também queria saber muitas coisas mais, como a raposa astuta. Com 11 anos era o orador da turma da escola municipal num discurso na capela da igreja da Conceição, em 1922, pedindo a recuperação de Ruy Barbosa, adoentado no Rio. Com 14 anos já tinha lido a maioria dos clássicos da literatura portuguesa. O boletim na escola brilhava com notas 9 e 10 em matemática, português, línguas, ciências.

Com 15 anos ele se formou em ciências e letras no ginásio, exibindo a melhor média da história do colégio: nota 9,3. Aos 16 ingressou na Escola Militar do Realengo, no Rio. Aos 18 o cadete Golbery já era o redator-chefe da Revista da Escola Militar. Em meados de 1929, o precoce conspirador afiava os espinhos no texto principal da revista, intitulado “Antimilitarismo”, avisando:

“Não é caso inédito o fato de batalhões e regimentos e de guarnições de navios de guerra empunharem armas contra o Governo e de mesmo haverem, ao lado dos revolucionários, deposto um chefe de Estado e eleito outro. Os partidários políticos da oposição a um governo não são, propriamente falando, antimilitaristas. Os verdadeiros inimigos das classes armadas são, de fato, os anarquistas e a maior parte dos socialistas”.

Do nazismo à ditadura

Com 19 anos chegou a segundo-tenente e deixou Realengo na crista de sua primeira revolução, a de 1930, como aspirante da primeira turma da nova ordem. Com 33, o capitão Golbery ingressou na War School de Fort Leavenworth, no Kansas, por onde anos antes passaram os generais Eisenhower e Patton, heróis da Segunda Guerra Mundial. No final do ano estava no front italiano da guerra, com a FEB, fazendo o que gosta como oficial de inteligência e informações. O capitão que lutava contra o nazismo, em 1944, mudaria de lado duas décadas depois, como coronel, para implantar a ditadura de 1964.

Os graves desvios de conduta de Golbery, contudo, começaram dez anos antes. Em 1954 redigiu o manifesto de 82 coronéis e tenentes-coronéis que protestavam contra o aumento de 100% do salário mínimo decretado por Getúlio Vargas. A primeira subversão de Golbery acabou derrubando João Goulart do Ministério do Trabalho e o general Ciro do Espírito Santo do então Ministério da Guerra.
Em 1955, nova insubordinação: Golbery escreve o discurso que o coronel Jurandyr de Bizarria Mamede lê no enterro do general Canrobert Pereira da Costa, líder da oposição militar a Getúlio. É a senha para tentar barrar a posse de Juscelino Kubitscheck, que Golbery espicaça como “indiscutível mentira democrática”.

Ganhou espinhosos oito dias de cana por conta do marechal Lott, o ministro da Guerra que abortou o golpe. Em 1961, o teimoso porco-espinho de Golbery reaparece no texto bicudo em que os três ministros militares – ébrios pelo bafo inesperado da renúncia de Jânio Quadros – tentam vetar a posse de João Goulart, detonando a resistência popular em torno do governador Leonel Brizola e a vitoriosa “Campanha da Legalidade”, que festejou meio século agora em agosto.

O pai do monstro

A raposa de Brizola, daquela vez, venceu o ouriço de Golbery. O troco viria três anos depois. Em menos de 90 dias, Golbery já aprontava de novo, assumindo no final de 1961 a conspiração científica do golpe em andamento, pilotando o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais, o notório IPES, que coordenava empresários, jornalistas, políticos, sindicalistas, agitadores, marqueteiros e militares a partir de 13 salas do 27º andar do edifício Avenida Central, no centro do Rio de Janeiro.

No início de 1963, o aparelho subversivo de Golbery já mobilizava 320 dos maiores empresários, de famílias tradicionais do país a poderosas corporações estrangeiras. Era um cartel golpista das 278 maiores empresas do país, que cortavam no ato a publicidade de qualquer jornal, revista, rádio ou TV que desse apoio ao governo Goulart. O porco-espinho, afinal, sempre vence.

Dali, afundado cada vez mais na senda da ilegalidade, Golbery operava o grampo de três mil telefones só na capital fluminense. Com a vitória do golpe, em 1964, Golbery criou e assumiu o Serviço Nacional de Informações (SNI), montado a partir da grampolândia inaugurada por ele no IPES. “O SNI era uma aberração do Estado”, definiu o jornalista Lucas Figueiredo, autor de Ministério do Silêncio, um brilhante histórico do serviço secreto no Brasil, desde Washington Luís (1927) até Lula (2005). Seis meses após a posse de Costa e Silva como o segundo general da ditadura, o diretor do combativo Correio da Manhã, Edmundo Moniz, profetizava em editorial de fins de 1967:

“O SNI ainda não se transformou numa Gestapo ou na KGB dos tempos de Hitler e Stálin. Mas começa a engatinhar e mostrar os dentes. Dentro em breve poderá firmar-se em suas quatro patas. É um filhote de monstro!”.

O SNI gestado e encorpado por Golbery agia dentro, fora e acima do governo, imune a controles externos do Judiciário e do Congresso. Fazia e acontecia, consagrando o Estado da delação e infiltrando o Big Brother do regime em todas as instâncias dos governos, das cidades do interior às capitais, das estatais à Esplanada dos Ministérios.

Dois meses após deixar o governo do general João Figueiredo, no rastro do frustrado atentado terrorista do Riocentro, em meados de 1981, Golbery ecoava o que o jornalista prenunciara 14 anos antes: “Criei um monstro!”. O general, enfim, já não conseguia controlar os espinhos de seu porco de estimação.

A ditadura, sempre

O melhor prontuário do general que saiu de Rio Grande para desestabilizar a democracia brasileira, já em 1954, e arquivá-la por duas décadas, a partir de 1964, está na magistral tetralogia do jornalista Elio Gaspari sobre as Ilusões Armadas, publicada entre 2002 e 2004. Ali, o “feiticeiro” Golbery divide o palco, a cena, os bastidores, o enredo, a trama, os aliados, os inimigos e o poder com o “sacerdote” Ernesto Geisel, seu companheiro de conspiração e trincheira de luta militar e política, do início dos anos 1950 ao final da década de 1970.

Os quatro volumes estão ancorados em 25 caixas do arquivo pessoal de Golbery, com cerca de cinco mil documentos, em 220 horas de conversas gravadas com Geisel e seu staff e no arquivo privado e no diário pessoal do capitão Heitor Ferreira, sucessivamente secretário particular de Golbery (1964-67) e de Geisel (1971-79).

Com base nesses papéis e depoimentos, é possível perceber na obra de Gaspari o ecúmeno do pensamento golberyano, pela via oscilante da “sístole” e da “diástole” política que, em rodízio, explicariam os momentos de contração (centralização autoritária) ou dilatação (descentralização democrática) de nossa história, a partir da cardíaca imagem de Golbery.

O comprometimento do general nesse processo espinhoso fica mais bem definido pelo título comum que atravessa os quatro volumes da obra – A Ditadura –, redefinida pelas circunstâncias históricas de cada período, de Castelo Branco a Geisel:Envergonhada, Escancarada, Derrotada eEncurralada.

São ditaduras diferentes, mas sempre ditadura. Sem perífrase.

É disso que se trata: Golbery do Couto e Silva, com seu engenho e arte voltados para o mal, pensando, agindo, criando, fazendo e acontecendo para desfazer o Estado democrático e impor o seu modelo autoritário, afinado com sua “doutrina de segurança nacional”, imune à suposta contaminação ideológica que o regime liberal, mais do que permitia, induziria.

A derradeira afronta

Era o general e seus comparsas agindo com a máquina do Estado, todo poderoso, contra o cidadão, todo intimidado. Em alguns momentos, Golbery esteve mais distante do centro do poder militarizado, não porque divergia dele, mas por mera medição de força ou simples cálculo político.

Golbery não afrontava o “Sistema”. Golbery era o próprio “Sistema”, pensado e criado para sobreviver às suas peculiares sístoles e diástoles. Sempre preservando o Estado, mesmo que à custa do cidadão, do eleitor – do povo, enfim, de quem toda ditadura prescinde.

Quando Golbery rompeu com Figueiredo e saiu do governo, em 1981, não era por súbita devoção democrática. Era por aversão absoluta àquele que queria ser o sexto general-presidente do regime, Octávio Medeiros, então chefe do renegado SNI. A alternativa presidencial de Golbery, como se sabe, define bem o caráter do general: era Paulo Maluf, o nome civil que a ditadura embalava para lhe dar uma sobrevida no Colégio Eleitoral. O sonho de Golbery foi atropelado pela vitória do adversário Tancredo Neves e virou pesadelo com a posse inesperada do ex-aliado José Sarney.
A confirmação do busto do general em Rio Grande não seria só um novo espinho, cutucando a memória, machucando a consciência.

A intempestiva irrupção de Golbery na praça do povo poderia ser a última afronta do general contra a história do povo que ele sempre combateu, tolheu, bisbilhotou e desrespeitou por atos, fatos e manifestos.

Será que o porco-espinho vai vencer, pela última vez?