Otto Guerra: o homenageado menos sério do Festival de Gramado

Matheus Chaparini
Há trinta e poucos anos, Otto Guerra estreava no Festival de Cinema de Gramado com a animação O Natal do Burrinho. De chegada, levou o prêmio de melhor filme na Mostra de Curtas Gaúchos.
Foi premiado em outras seis edições do evento. A mais recente foi em 2013, com o longa-metragem “Até Que a Sbórnia nos Separe”, melhor filme pelo júri popular e direção de arte. Otto é prata da casa, como definiu o jornalista Roger Lerina, na apresentação do prêmio. Desde 1978, é dono da Otto Desenhos Animados.

Do alto da sua seriedade, Otto brinca de tropeçar no tapete vermelho / Diego Vara/ Pressphoto

Durante o primeiro final de semana do festival, Otto andou por Gramado, recebendo cumprimentos a cada meia duzia de metros de calçada. Na tarde de sábado participou de uma entrevista coletiva, onde despertou gargalhadas dos jornalistas, em média, duas vezes a cada resposta. Interrompeu a coletiva para atender o celular e passar uma coordenada, segundo a qual seria impossível achá-lo.
À noite, chorou, tomou um um conhaque, esqueceu o texto do discurso e foi para o palácio dos festivais receber o Troféu Eduardo Abelin. O prêmio foi entregue pelo animador José Maia. Parceiros há 40 anos, os dois estiveram juntos em em seu primeiro festival.
No discurso, Otto fez rir, como de costume, mas falou também da situação política do Brasil. Fez um paralelo entre o período vivido pelo setor audiovisual depois da extinção da Embrafilmes, nos anos 90 e o atual momento político brasileiro. “Naquele momento, a sociedade civil se uniu para juntar os cacos da Embrafilmes e disso nasceu a Ancine, que levou o Brasil a viver, no audiovisual, hoje seu melhor momento.”
Antes da entrega do prêmio, foi exibido um vídeo, com depoimentos de pessoas próximas – e de seu gato. “Melhor contador de história e melhor cliente que um dono de um bar pode querer”, definiu a amiga Sha. Outra moça, Sara, afirmou que Otto é o amigo mais mentiroso que já conheceu e concluiu com “te amo”.
Otto Guerra falou à reportagem do JÁ no dia seguinte à entrega do prêmio.
Tua primeira vez aqui foi em 1984 com o Natal do Burrinho…
No Festival de cinema, sim. Mas eu tinha vindo antes no festival de publicidade, mas é bem diferente, bem triste.
Triste?
Vender os produtos, né? Hehe Puta que pariu. Trabalhei em propaganda, né, cara. Com a grana da propaganda eu comprei os equipamentos e abri a empresa. Eu só consegui produzir um curta em 1984, depois de oito anos, dois trabalhando com o argentino (Félix Follonier) e seis na empresa.
E já estreou com prêmio.
Sim, foi bem surpreendente porque a gente fez um filme para tentar vender pro natal na Rede Record, na época. Era um filme bonitinho. Não conseguimos vender, daí colocamos um final surreal e inscrevemos. Eu e o Maia estávamos aqui quando filme ganhou.
Tu sabia que era o Maia que ia te entregar o prêmio ontem?
Não sabia. Me pegaram. Eu chorei na subida. (ao palco)
Otto Guerra e José Maia são parceiros há 40 anos / Edison Vara / Pressphoto

Tua empresa faz quarenta anos em 2018. Quando tu começou tinha alguma perspectiva de que a coisa engrenasse a longo prazo?
A gente vive de cópias, de referências. De fato no Brasil não tinha referência de empresa de animação, mas no mundo tinha muita. Daí eu pensava ‘bem, se existe o troço…’ Eu lembro bem, eu lá com treze anos, vi o Tintin, do Hergé: ‘então dá pra fazer’.
Mas no fim das contas o que interessa é tu conseguir te jogar, te dedicar com paixão, digamos, ou fé, não sei que palavra suar. Sentar a bunda e fazer, fazer, fazer. É questão de ter saco, vontade.
Era um prazer fazer os filmes, mesmo os comerciais, porque eu conseguia viver de desenho. Nessa coisa de ‘pô, o que eu vou fazer da vida pra poder viver de bonequinhos’, a propaganda foi o caminho. Por outro lado, meu próprio desenho virou uma coisa muito pasteurizada. O Natal do Burrinho a animação ainda é minha. Por isso que é tão bom o filme – tô brincando.
O Maia me perguntava ‘pô, porque tu parou de desenhar?’ Eu parei porque eu desenhava bonecos pasteurizados, com aquela cara de propaganda. Fiquei oito fazendo isso e não consegui mais ter meu próprio estilo. Eu não desenho mais desde 1985. Fiz um filme ou outro que não tinha como delegar.
Qual a tua função na empresa?
Explorador. Eu exploro as pessoas. Não. Eu sou o CEO, na verdade. Uma amiga diz que o que eu faço é o esquema do maestro, juntar todas as coisas, musica, animação, roteiristas, direção de arte. Então, eu não faço nada mas eu estou em todas as etapas.
Do que a empresa se sustenta hoje? De onde vem a grana?
A gente ainda faz, eventualmente, filmes institucionais. Eu fiz aqueles monstrinhos da RBS, sabe? ‘Maltratar as criancinhas…’ Fizemos séries do Zé Gotinha um tempo atrás. E a ficção é o que está nos mantendo agora. Basicamente a gente está vivendo de editais. E vendendo, vendemos para o canal HBO o nosso longa Sbórnia.
Eu nunca tive expectativa de grana, por isso eu consegui fazer o estúdio existir na época. Eu li muito cedo o Henry Thoreau, um pré-anarquista, ele falava assim: no momento que o dinheiro se interpõe entre o homem e seu objetivo, tá fudido. Porque tu vai viver em função da grana e a grande tristeza do mundo é isso.
Como tá o cenário do cinema de animação no Brasil?
O Brasil está com um cinema de animação surpreendente, surpreendeu o mundo. Filmes como a Sbórnia mesmo, O Menino e o Mundo, os curtas, eles estão no topo do mundo. Sbórnia entrou nos 20 indicados aos Oscar – no prêmio da indústria, mas foda-se, é importante. O Menino e o Mundo esteve entre os cinco. Nosso curta Castillo e a Armada esteve entre os 20, nos curtas. Lançado no festival de Veneza, que é super disputado. Ano que vem o Brasil vai ser o país homenageado no festival de Annecy, o maior do mundo, de animação. Por quê? Porque a gente tá com uma técnica de animação fodona e conteúdo surpreendente. Eles não entendem, a gente não trabalha com padrão.
É o melhor momento da animação?
Óbvio. Com certeza. Nem no meu sonho mais otimista eu chegaria ao que nós estamos vivendo, sabe? Tem 25 longas de animação sendo feitos neste momento no Brasil. E quando a Otto começou, tinha três longas na história do cinema brasileiro.
Tu acha que o trunfo da animação brasileira está no roteiro?
Sim. A gente é influenciado pelo Myiazaki, pelo Disney, pelo Leste Europeu, pelos canadenses, pelos franceses… Então a gente tem um esquizofrenia muito saudável, muito única. Essa mistura incrível que formou o povo brasileiro pra mim é uma esperança de que o mundo ainda possa ter empatia. Mas pode ser só utopia também.
Neste momento, o que tá fazendo?
Tamo fazendo uma série que chama Filosofinho – que eu vou acabar preso, né? Porque eu tô fazendo leitura do Marx para crianças. Vão dizer que eu sou degenerador de crianças. É uma série baseada na Tomo Editorial, uma editora de Porto Alegre.
E aprovamos agora – a Érica aprovou, minha sócia, não pára de trabalhar nunca essa guria – a série Rocky e Hudson, série dos caubóis gays, do Adão. Tamo fazendo dois curtas também.
E com Laerte tem um projeto em cima dos Piratas do Tietê. Como está isso?
Tá no fim, cara. A gente conseguiu aprovar a grana para finalizar o filme. Não tem para comprar as músicas todas que eu queria, mas tem suficiente para terminar o filme. Falta 10% da animação, tá todo planejado. Quero lançar aqui em Gramado ano que vem. É um longa.
Tu também está escrevendo um livro autobiográfico?
Ah, sim! Chama ‘Nem doeu’.
Diz que só tem um parágrafo bom, mas isso parece falsa modéstia para vender livro.
Hahaha. Pior é que não é. Eu venho tentando escrever há muitos anos. Eu fui convidado para um evento em Cruz Alta e lá eles têm uma ligação grande com literatura, porque o Érico Veríssimo nasceu lá e tal. E me convidaram para ir. Eu andei de carona com um tal de Marcelino Freire e o cara é muito foda. Eu fiquei muito impressionado. A gente não conversou nada na estrada, mas foi uma viagem onde… Daí eu consegui falar sobre isso, fiz um paralelo o menino nascendo em Sertânia, no interior de Pernambuco – que era ele – e outro menino – que era eu – nascendo burguesinho, no Beneficência Portuguesa. É interessante, assim, daí eu menti, na verdade, tanto sobre ele como sobre mim.
E é um livro autobiográfico ficcional, então?
A verdade tá na ficção, na poesia, na arte. Ele pode estar na literatura, mas não essa coisa objetiva. Então eu já esbarrei no início, daí eu fiz um personagem de mim mesmo, porque é mais fácil falar em terceira pessoa.
O nome do personagem é Otto?
Não. Eu tive um monte de babá, umas babás fiadasputa, cara, que me chamavam de pequeno otário.
Isso na história real ou no livro?
Aí que tá! Eu era maltratado pelas babás. Então, assim, simbolicamente, é exatamente o que aconteceu. Daí a mãe ficava bebendo – ela bebia gim pra caralho – e ela entendeu que era Lotário, que é o personagem subalterno do Mandrake. Então eu sou Lotário e o Marcelino – eu li um negócio que ele fala ‘escrever não é bonitinho, não vem com esse papinho de suspiro’ – daí eu botei o nome dele de suspiro. Então, é uma ficção baseada em fatos surreais.
Che, Otto, tu te leva a sério?
Não, claro que não, né. Me levar a sério, tá louco? Esses dias eu tava brigando com uma mina e ela: ‘tu não é profissional’. E eu disse ‘claro que não né, tá louca? Isso é coisa da direita’.
Mas não sendo profissional e não te levando a sério, tu mantém uma empresa de quase 40 anos. Tu é um empresário bem sucedido.
É que ela fica tendo momentos e quando os momentos são terríveis, simplesmente eu uso o sistema do urso. Eu hiberno, só com a respiração mínima, só pra seguir vivo. Já hibernei umas três vezes. O estúdio acabou sendo um extensão do meu quarto de infância, essa que é a grande jogada.

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