Por Cleber Dioni Tentardini *
São 136 mil hectares, área maior que o município de Porto Alegre, de terras alagadiças que encerram o segredo de uma biodiversidade única, na transição da Mata Atlântica para o Pampa.
Em três banhados interligados (Banhado Grande, Banhado do Chico Lomã e Banhado dos Pachecos), porções de terras baixas onde se acumulam as águas de vertentes e das chuvas, que descem das últimas elevações da Serra do Mar.
O maior deles, o Banhado Grande dá nome à Área de Proteção Ambiental (APA), criada em 1998 para protegê-los do avanço das lavouras, da caça predatória e até da mineração. É considerada santuário de biodiversidade e “berçário” das espécies que habitam a região.
A área de preservação se estende por quatro municípios: Viamão (36%), Santo Antônio da Patrulha (33%), Glorinha (24%) e Gravataí (7%).
Das águas que eles acumulam, como uma esponja, se alimenta o Rio Gravataí, um dos principais afluentes do Guaíba, responsável pelo abastecimento de 1,2 milhão de pessoas na Região Metropolitana de Porto Alegre.
– O desafio é compatibilizar as atividades de criação de gado, das lavouras de arroz e, cada vez mais, da soja, enfim, os múltiplos usos no território, com a conservação, diz a gestora da APABG, a engenheira agrônoma Letícia Rolim, da Secretaria de Meio Ambiente do Estado.
As lavouras de arroz, por exemplo, que ocupavam a quase totalidade das terras planas da região – plantações irrigadas, com poucas pragas, necessitando menos venenos – causavam impacto menor.
Mas os produtores estão trocando o arroz pela soja, por causa dos lucros e do mercado internacional.
Além de mais defensivos, a soja exige a drenagem das áreas úmidas, o que afeta todo o ecossistema dos banhados, segundo a analista ambiental.
– A pecuária também é atividade importante no entorno, dada a abundância de pastos e aguadas. Mas o gado não prejudica as áreas úmidas, a não ser quando a lotação do campo é alta. Aí, o pisoteio de muitos animais causa erosão e drena o banhado, ressalta.
Um plano de boas práticas agropecuárias para orientar os produtores e reduzir o uso desses químicos está em desenvolvimento pelo Conselho Gestor.
– Precisamos criar regras que não existem no plano de manejo da APABG para conseguirmos trabalhar algumas áreas sensíveis do Banhado Grande, como a recuperação de áreas úmidas, na zona de adequação ambiental, explica a gestora da UC.
– Um dos problemas mais sérios é o uso de agrotóxicos em lavouras no entorno da unidade de conservação e até dentro dela, reforça a bióloga Cecília Nin, analista ambiental da APABG.
MAPA DO BANHADO GRANDE
Um rio nos extremos
São límpidas as águas do Gravataí quando ele nasce nos banhados em Viamão. Dali, ele percorre 29 quilômetros até desembocar no Delta do Jacuí.
A reportagem tentou navegar por toda a extensão, mas não foi possível devido ao nível baixo do rio.
O Gravataí atravessa uma região de lavouras, fábricas e moradias, que utilizam sua água e nele jogam seus dejetos. No ponto de chegada, quando entram no estuário, as águas carregam uma carga tóxica que faz dele o quinto rio mais poluído do Brasil.
Último refúgio
Quatro anos depois de criada a APABG, os gestores se deram conta de que uma das áreas de preservação merecia uma atenção especial.
Era a menor delas, com 2,5 mil hectares de área, mas a mais rica em diversidade e a mais ameaçada.
Foi criado, então, o Refúgio de Vida Silvestre Banhado dos Pachecos (RVSBP).
O nome vem da família Os Pachecos, dona de uma das primeiras sesmarias dos “Campos de Viamão”.
Em 1998, quando o empresário Renato Ribeiro vendeu a propriedade para o Incra, eram 10 mil hectares. O Incra dividiu a área em lotes menores e neles assentou trabalhadores sem-terra.
Hoje, o Assentamento Filhos de Sepé, é o maior do Estado, em extensão, e o maior produtor de arroz orgânico da América Latina.
O refúgio foi criado a partir da doação de uma fração de terras de cada assentado.
Nesses 20 anos, pesquisadores e monitores já catalogaram mais de 283 espécies de aves, inclusive algumas raras.
Pelo menos nove estão ameadas de extinção, como o veste-amarela, o guaracavuçu, o curiango-do-banhado e noivinha-de-rabo-preto, segundo o biólogo Glayson Bencke, do Museu de Ciências Naturais, da Secretaria Estadual do Meio Ambiente (MCN/SEMA)
Entre os mamíferos, estão no refúgio os últimos cervos do Pantanal que restam no Rio Grande do Sul. “Calculamos cerca de 30 indivíduos”, afirma o gestor do refúgio, o biólogo André Osório, da SEMA. Também o gato maracajá, gato do mato, tamanduá, bugio ruivo e tuco-tuco do Lami, outros em perigo de extinção em âmbito regional.
Dentre as espécies da flora criticamente ameaçadas de extinção, encontradas no Refúgio, segundo o biólogo Martin Molz, do MCN/SEMA, estão a Persea venosa (pau-andrade), do gênero do abacate, e Butia catarinensis (butiá-da-praia).
A Stenachaenium macrocephalum (foto abaixo) não possui dados suficientes na listagem estadual, mas está criticamente ameaçada de extinção a nível nacional, assegura a bióloga Rosana Senna, do MCN/SEMA.
Duas espécies de peixes, endêmicas do banhado, também são raras, como o “peixe anual”, cujo ciclo de vida é muito curto.
– O refúgio é o único lugar do mundo onde essa espécie foi encontrada, afirma o biólogo Marco Azevedo, do MCN/SEMA.
Estudos identificaram dentro do refúgio dois tipos de mata, a floresta de restinga arenosa e a mata paludosa, adaptada às áreas de banhado, importante para espécies ameaçadas. Também foi feito um estudo da vegetação do campo e das áreas úmidas e ali se identificou muitas espécies.
Além de Osório, há guarda-parques, voluntários e bolsistas/estagiários para colocar em prática o plano de manejo, homologado somente este ano de 2022.
Os cervos do banhado
Ele é conhecido como “cervo do Pantanal”, um dos maiores mamíferos terrestres do Brasil, uma das espécies ameaçadas que sobrevivem no Refúgio de Vida Silvestre Banhado dos Pachecos.
O nome gera confusão porque, além do Pantanal, onde é mais numerosa, essa espécie é nativa do Rio Grande do Sul, sempre ocorreu em várias regiões como Planície Litorânea, Central, Sul, Campanha.
Foi desaparecendo em função da degradação das áreas úmidas, dos banhados, onde ele vive.
Pelos registros feitos com armadilhas fotográficas, Osório calcula que existam ali cerca de 30 indivíduos, incluindo filhotes, o que indica que a população está crescendo.
O gestor conta que os especialistas em mamíferos ficaram surpresos com a capacidade de sobrevivência desse animal numa área de grande pressão como é a região metropolitana de Porto Alegre.
“O cervo vem mudando o comportamento, provavelmente por estar ilhado. O padrão de atividade diária desse animal é final de tarde e à noite. Diferente de populações que vivem no Pantanal ou em países como a Argentina, por exemplo, que têm hábitos diurnos. Outra adaptação dele é que passou a se alimentar de folhas de Maricá, além das plantas aquáticas”, conta o gestor do refúgio.
População rejeitou aterro sanitário
A prefeitura de Viamão propôs no ano de 2020 instalar um aterro sanitário regional em uma área de 170 hectares às margens da Rodovia Coronel Acrísio Martins Prates, localizada nos Montes Verdes, zona rural do município.
O projeto da Empresa Brasileira de Meio Ambiente (EBMA), com sede no Rio de Janeiro, ligada ao Grupo Queiroz Galvão, solicitou o zoneamento, uso e ocupação do solo da área, e liberação para remanejar o fauna silvestre a fim de receber rejeitos de 28 cidades, inicialmente.
A mobilização para barrar o processo começou com o Movimento Não ao Lixão, e logo ganhou a adesão das comunidades.
“A prefeitura estaria permitindo um crime socioambiental ao liberar a criação de um lixão com rejeitos de 28 cidades, podendo chegar a 50 cidades, em uma área com oito nascentes de água”, ressalta a professora Iliete Citadin.
A Fundação Estadual de Proteção Ambiental Henrique Luis Roessler (Fepam) negou prorrogar o prazo de entrega do Estudo de Impacto Ambiental a fim de receber licença previa de instalação.
Impactos seriam devastadores, aponta estudo da UFRGS
Professores, pesquisadores e alunos da UFRGS participaram de um projeto de extensão universitária para analisar os recursos naturais e uso do solo em Viamão, nos distritos do Passo da Areia, Espigão e Itapuã. A equipe foi coordenada pela professora e pesquisadora Maria Luiza Rosa, do Instituto de Geociências, com a consultoria do professor Pedro Antônio Reginato, do Instituto de Pesquisas Hidráulicas (IPH).
O relatório técnico-científico concluiu que a localização da Fazenda Montes Verdes apresenta fragilidade geológica e geomorfológica a processos erosivos muito fortes e é imprópria para receber um aterro. E que o aterro causaria impactos devastadores ao meio ambiente porque a região está em área de recarga dos sistemas aquíferos, e há possibilidade de vazamentos no solo podendo atingir redes de drenagem com sentido ao Lami (lago Guaíba), Itapuã (lago Guaíba) e nascentes do Rio Gravataí.
Foram citados também as nove unidades de conservação no entorno: cinco Reservas Particulares do Patrimônio Natural (RPPN Costa do Serro, RPPN Rincão das Flores, RPPN Chácara Sananduva, RPPN Farroupilha e RPPN Professor Delmar Harry dos Reis), a Área de Proteção Ambiental (APA) do Banhado Grande, o Refúgio da Vida Silvestre (RVS) Banhado dos Pachecos, a Reserva Biológica Municipal (RBM) José Lutzemberger (do Lami) e o Parque Estadual de Itapuã.
“Os efluentes lixiviados na área impactariam a rede de drenagem do Arroio Chico Barcelos, onde predominam chácaras, hortifrutigranjeiros e pecuária em propriedades de pequeno porte, além da comunidade Mbya Guarani da Tekoá Jataí’ty (Aldeia do Cantagalo), que faz uso da água de um afluente desde arroio. Atividades como dessedentação animal, irrigação e eventuais atividades recreativas seriam diretamente afetadas. Além disso, a Praia do Lami, local onde a qualidade da água do lago Guaíba é própria para banho também seria impactada. Assim como os impactos recairiam diretamente nas atividades de rizicultura, pecuária e no abastecimento urbano dos municípios de Viamão, Alvorada e Gravataí, que compõem uma população de mais de 660 mil habitantes urbanos.”
Aquíferos têm água de excelente qualidade, mas são vulneráveis
A geóloga Luísa Collischonn está desenvolvendo a sua tese de doutorado na região da Coxilha das Lombas, que envolve Viamão e Santo Antônio da Patrulha. O título do projeto da tese é “Compartimentação Hidroestratigráfica do Sistema Aquífero Barreira Marinha, noroeste da Planície Costeira do Rio Grande do Sul”.
O Sistema Aquífero Barreira Marinha também é conhecido como Coxilha das Lombas.
Luísa integra o grupo que está desenvolvendo o Atlas Socioambiental de Viamão. Ela explica que o aquífero teve origem há cerca de 325 mil anos, quando o mar estava aproximadamente 15 metros acima do atual, chegando até Viamão.
“Da mesma forma como hoje temos campos de dunas em Cidreira, Mostardas e em outros tantos locais do litoral gaúcho, também havia um campo de dunas em Viamão, e são principalmente os seus depósitos sedimentares (paleodunas) que hoje formam o aquífero que conhecemos como Coxilha das Lombas”, afirma.
De acordo com a geóloga, os sedimentos arenosos que formam o aquífero são compostos principalmente por quartzo (o mesmo que predomina nas praias gaúchas atuais), com grãos arredondados, que foram moldados pelo vento, e grãos mais finos, provavelmente gerados a partir do intemperismo (alteração) das rochas graníticas encontradas próximas dali, nas porções Oeste e Noroeste de Viamão e em Porto Alegre.
“Existem espaços entre esses grãos, onde a água subterrânea fica armazenada e flui, formando o aquífero granular (formado por grãos de areia). A feição alongada e arenosa que forma a Coxilha das Lombas é mais alta que as áreas adjacentes e serve como área de recarga do aquífero, sendo que a água da chuva infiltra e circula relativamente rápido entre os grãos, sendo esse um dos motivos pelos quais a água subterrânea do aquífero apresenta boa qualidade. Mas, isso também deixa o aquífero, de certa forma, vulnerável à contaminação oriunda da superfície, que pode chegar ao aquífero a partir de vazamentos em postos de combustíveis, chorume de lixões, e de outras possíveis fontes”, alerta.
Sobre os poços da Ambev, a pesquisadora diz que são tubulares com aproximadamente 100 metros de profundidade e captam água do aquífero Coxilha das Lombas. Foram perfurados pela CORSAN da metade para o final dos anos 90 na região de Águas Claras, e que evidenciaram o potencial que o aquífero Coxilha das Lombas tem, tanto em termos de qualidade da água, quanto em quantidade.
“Em geral, os poços que se encontram em Águas Claras e retiram boas vazões, mostrando uma rápida recuperação do nível do aquífero quando cessa o bombeamento”, ressalta Luísa.
Também ocorrem em Viamão aquíferos formados nas rochas graníticas, chamados de aquíferos fraturados. É o Sistema Aquífero Embasamento Cristalino. Estão localizados nas porções oeste e noroeste de Viamão. Neles, a água se encontra nas fraturas que existem nas rochas. Tiveram sua origem há cerca de 800 milhões de anos, quando dois antigos continentes colidiram: o Rio de La Plata (sul-americano) e o Kalahari (africano). Com a colisão, formou-se uma antiga cadeia montanhosa, conhecida por Cinturão Dom Feliciano.
A partir desse antigo cinturão se formaram rochas graníticas que somente são visíveis hoje em Viamão porque toda a região sofreu intensa erosão, expondo à superfície as rochas que estavam originalmente em profundidade.
“Em Viamão existem muitos poços que captam água do aquífero fraturado, mas, comparado a ele, Coxilha das Lombas se destaca, sendo considerado o melhor aquífero da Região Metropolitana de Porto Alegre e um dos poucos da região onde podem ser projetados empreendimentos que dependem de água subterrânea como fonte de abastecimento”, completa a geóloga.
* Colaboraram nesta série de reportagens o repórter fotográfico Ramiro Sanchez e os jornalistas Elmar Bones e José Barriunuevo.
Um comentário em “Travessia de Viamão (3): “Temos que conciliar uso com preservação”, diz gestora da APA do Banhado Grande”