Travessia de Viamão (4): Aos 50 anos, Parque de Itapuã é um ‘santuário’ da biodiversidade

Por Cleber Dioni Tentardini *

Não existe uma unidade de conservação no Rio Grande do Sul com a mesma diversidade de ecossistemas do Parque Estadual de Itapuã (PEI), que completa 50 anos neste 14 de julho.

Localizado na zona de transição entre os biomas Mata Atlântica e Pampa, o parque abrange ilhas, lagoas, praias, banhados, dunas, vegetação de restinga, floresta estacional e morros graníticos, distribuídos em 5.566 hectares.

Diferente de uma estação ecológica ou de um refúgio de vida silvestre, onde são permitidos visitantes somente para educação ambiental e pesquisa científica, a área é de uso público. Especialmente no verão, quando a população busca a calmaria das suas praias com águas balneáveis.

São nove praias: das Pombas, da Pedreira, da Onça, do Araçá, do Sítio, do Tigre, do Cascalho, de Fora e Prainha. Mas apenas as duas primeiras estão abertas. A Praia de Fora aguarda obras de infraestrutura. As demais têm limitações de acesso.

Praias da Pedreira, de Fora e das Pombas (abaixo, na sequência)) são as que, normalmente, estão liberadas para uso público. Fotos: Cleber Dioni Tentardini

No parque, são encontrados animais como leão baio (puma), graxaim, ema, capivara, carcará, jacaré, serpente, bugio-ruivo, tuco-tuco, gato maracajá, 29 espécies de anfíbios, 39 espécies da flora endêmicas e com um algum grau na lista de espécies ameaçadas de extinção, como o topete de cardeal e a corticeira do banhado.

Caranguejeira.
Graxaim. Fotos: Mariano Pairet/SEMA

 

 

 

Ouriço
Puma captado por armadilha fotográfica

 

 

 

A bióloga Dayse dos Santos Rocha, analista ambiental da SEMA, assumiu a gestão da unidade faz seis anos e diz que trabalhar em uma área de preservação como essa, onde é permitida visitação pública, é um desafio diário para coibir atropelamentos dos animais, invasões, caça e pesca ilegais, supressão de árvores, subtração de plantas, pedras.

Dayse Rocha, a gestora do Parque Estadual de Itapuã/ Cleber Dioni

“O nosso trabalho é focado na conservação dos ecossistemas, pesquisa científica, uso público e educação ambiental. Temos que ser versáteis para conversar com escolas, pescadores, assentados, indígenas, pesquisadores, produtores rurais”, destaca a bióloga.

Segundo a gestora, já convenceram dois produtores convencionais a plantar o arroz orgânico no entorno da unidade.

– É importante essa redução do uso de pesticida na água, que vai para o solo, contamina as águas subterrâneas, enfatiza.

Ambientalistas salvaram a reserva

Itapuã significa ponta de pedra, na língua Guarani. Os primeiros habitantes de Itapuã foram os povos indígenas de tradição Umbu e Guarani.

Granito em abundância. Foto: Cleber Dioni

A extração do granito de Itapuã foi muito grande na década de 1960 e só não continuou porque a Agapan (Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural), liderou uma campanha nos anos de 1970 para transformá-lo numa reserva ecológica.

– Aquilo é uma das paisagens mais bonitas e ricas do mundo. Mas estava praticamente abandonada. Tinha mais de trinta pedreiras atuando nos morros. Felizmente, parece que vamos conseguir impedir a destruição, disse José Lutzenberger, depois de realizar uma inspeção de rotina no parque de Itapuã, nos anos 1990, na época uma área de 1.500 hectares.

Parque Estadual de Itapuã, Lago Guaíba e Ilha do Junco (à dir.) e Lagoa Negra e Laguna dos Patos (à esq.). Google Earth

Hilda Zimmermann, uma das ativistas mais importantes do movimento ecológico do RS, registrou que havia muita extração de pedras e areia, pesca e caça predatórias. “Certa que certa vez fomos em dois ônibus e convidamos a imprensa para ir ver as pedreiras de Itapuã, que eram exploradas por um ministro de Brasília. Parem as marteladas, gritávamos. Saiu na primeira página um homem com cara de apavorado e eu com as mãos na cintura”, lembrou Hilda no livro Pioneiros da Ecologia (Editora JÁ).

Vista das praias do parque, a partir do Morro da Fortaleza. Foto: Cleber Dioni

A área foi declarada de utilidade pública em dois momentos, nos anos de 1973 e 1976.

O Parque Estadual de Itapuã (PEI) foi transformado em uma unidade de conservação de proteção integral do Estado somente em 1991, já com 5.566 hectares, incluindo a Lagoa Negra. Dois anos depois, incorporou as ilhas das Pombas, do Junco e da Ponta Escura.

Pesquisadores da SEMA na Lagoa Negra, dentro do Parque de Itapuã. Fotos: Cleber Dioni Tentardini

 

 

 

 

 

Detalhe: a gestão era feita pela Secretaria de Agricultura e Abastecimento, pois não havia órgão específico do Estado para cuidar do meio ambiente.

Unidade foi fechada para retirada de moradias

Até 1990, havia 880 casas com moradores dentro do Parque de Itapuã. As praias recebiam ônibus turísticos aos finais de semana. A Praia das Pombas, por exemplo, que suporta 350 visitantes, chegava a ter mil pessoas.

“Lotearam, venderam terrenos e transformaram a reserva em um balneário, sem nenhum regramento sob aspectos ambientais. Isso, associado à extração do granito”, ressalta a gestora Dayse Rocha.

A desocupação começou em 1991, com o parque interditado para demolição das casas. O Estado indenizou os donos de imóveis regulares, com escrituras, e muita gente entrou em negociação com o governo. Dívidas viraram precatórios e algumas ainda não foram pagas.

“Isso explica, em parte, um certo inconformismo das comunidades do entorno com o Parque. Também, porque cortamos a extração de granito, a entrada de milhares de veranistas, coibimos a caça, a pesca predatória, especialmente na época da piracema (subida dos peixes nos rios para a reprodução), também chamada de período do defeso, a lei que protege as espécies.

Além disso, reclamamos dos resíduos sólidos deixados na praia externa ao parque, dos pesticidas nas lavouras”, explica Dayse. O parque foi reaberto em 2002 e vem se recuperando bem, segundo a gestora.

Aspilia montevidensis
Bromélia
Cattleya intermedia
Dickia
Gravatá
Mamica de cadela

 

Mandevilla coccinea
Cactus Parodia Ottonis
Topete-de-Cardeal

 

 

 

 

 

 

Um passeio até o Farol de Itapuã da Lagoa

Farol garante segurança aos navegadores, iluminando mais de 22 quilômetros. Foto: Cleber Dioni Tentardini

A reportagem saiu de lancha, do terminal do Catamarã, em frente ao Mercado Público de Porto Alegre, em direção a Viamão, passando pelo Parque Estadual de Itapuã, pelo Farol, até entrar na Laguna dos Patos.

É uma das maiores do Brasil, com cerca de 300 km de comprimento e margens baixas. A profundidade máxima é de 7 metros. Diz-se que seu nome é proveniente da tribo dos índios patos, que habitavam a região. Atualmente, abriga uma ativa comunidade pesqueira.

Está separada do mar por uma faixa arenosa, com largura que varia de 10km a 36km. Diversas cidades desenvolveram-se às margens da lagoa e dos rios que ali deságuam, dentre elas, Porto Alegre, Pelotas e Rio Grande.

Na condução da lancha, Hugo Eugenio Fleck, empresário do setor de transportes terrestre (Ouro e Prata) e fluvial (Catamarã), e um auxiliar.

Gaúcho de Crissiumal, Fleck acumula experiência de 60 anos de navegação em vários países. Começou aos 15 anos, com um barco comprado pelo seu pai, navegando justamente pelas águas do Delta do Jacuí e do Guaíba.

Hugo Fleck navega desde criança pelo Guaíba. Foto: Cleber Dioni Tentardini

“Pela costa da Capital, em direção à zona Sul, só é possível atracar em dois clubes náuticos ou no ponto de embarque e desembarque do Catamarã, em frente ao Barra Shopping. Agora liberaram outro terminal no Pontal do Estaleiro, mas a burocracia é muito grande, demora uns cinco anos para aprovarem”, lamenta Fleck.

Passava das 9h, e o vento começara a virar do Norte para o Sul. Segundo Fleck, o microclima da região pode provocar ondas.

Ele também estava preocupado com os bancos de areia e as redes, levando em conta a sinalização deficitária. “As pedras são um problema somente próximo à terra firme, explicou o empresário.

Na travessia, é possível avistar os bairros Assunção, Ipanema, Ponta Grossa e Belém Novo até chegar em Viamão. Passados clubes náuticos, pequenas enseadas particulares e as praias da unidade de preservação, surge o Farol de Itapuã e, logo, a Laguna dos Patos. Alguns barcos com pescadores emolduravam a paisagem

Proximidades do farol são locais preferidos dos pescadores. Foto: Cleber Dioni Tentardini

Atrás do Farol, embora encobertas pela mata, ainda podem ser vistas ruínas de um pequeno forte erguido pelos Farrapos para barrar a entrada dos inimigos do Império.

Pouco antes do meio-dia, o barco ancorou na Colônia de Pescadores e Agricultura Z4, em Itapuã, distrito histórico, à beira da Prainha, onde moradores e turistas têm à disposição escolas, igrejas, agências bancárias, lojas, bares e restaurantes, supermercados, posto policial, além de clube náutico e pousadas.

Farol ilumina até 22km

Farol de Itapuã da Lagoa. Foto: Egon Filter

Desde o início do século 19, os navegantes que se aventuravam por suas águas ressentiam-se da ausência de referências visuais que os ajudassem a alcançar aqueles portos em segurança. Requisitavam um farol, sobretudo, para a Ponta de Itapuã, que sinalizaria a foz do Guaíba, e o acesso a Porto Alegre.

Inaugurada somente em março de 1860, a torre de alvenaria tem forma octogonal, e mede 16,25 metros de altura. A sua volta ficam as casas dos faroleiros, protegidas do vento e das águas da lagoa por um paredão de pedras. Pintadas de branco, as construções contrastam com a vegetação e as pedras da Ponta de Itapuã, formando um dos cenários mais bonitos da Laguna dos Patos.

Construção cercada de pedras e vegetação do Parque Estadual de Itapuã. Foto: Cleber Dioni

Em 1903, após 40 anos de funcionamento, o obsoleto aparelho luminoso de Itapuã foi substituído por um Barbier, Benard & Turenne, com queimadores de vapor de petróleo comprimido.

Em 1914, uma comissão da Superintendência de Navegação aprovou, por unanimidade, o emprego de um revolucionário sistema de iluminação automático com gás acetileno.

Farol de Itapuã da Lagoa. Foto: Egon Filter

A partir de 1915, Itapuã da Lagoa, já modernizado, dispensava a assistência permanente do faroleiro.

Hoje, são utilizadas baterias como fonte de energia, e estas, alimentadas durante o dia por painéis solares (energia fotovoltaica).

baterias como fonte de energia, que são alimentadas por painéis solares. Foto: Cleber Dioni

O farol possui uma lanterna de lente de acrílico com um eclipsor no interior. Eclipsor é um dispositivo eletrônico.

O alcance luminoso é de 12 milhas náuticas, mais de 22km, suficiente para iluminar toda a foz do Guaíba. O acesso se dá somente pela água. A operação é de responsabilidade da Marinha do Brasil.

Vestígios farroupilhas no Morro da Fortaleza

A reportagem percorreu a trilha Fortaleza, um dos três percursos oferecidos pela administração do parque.

Godoy

O educador ambiental João Godoy Fagundes guiou a equipe em uma caminhada de quase três horas, levando em conta as paradas para fotos, vídeos, apontamentos da fauna e flora e de registros históricos.

A subida é íngreme em vários trechos dessa trilha e exige um bom preparo físico. O ronco dos bugios acompanha os visitantes durante quase todo o trajeto.

No caminho, há vestígios das trincheiras onde os soldados ficavam à espreita das tropas inimigas. Os Farrapos dominaram Viamão por quase toda a guerra. Tanto é que foi rebatizada de Vila Setembrina, 1838. E os morros permitiam uma visão ampla da região.

Morro da Fortaleza, onde os Farrapos posicionaram a artilharia para barrar a passagem dos imperiais. Fotos: Cleber Dioni Tentardini

 

Vestígios das trincheiras

O líder dos farroupilhas, general Bento Gonçalves da Silva, tinha raízes em Viamão. Sua mãe, Perpétua da Costa Meireles, nasceu e foi batizada no município, e seu bisavô, Jerônimo de Ornellas Menezes e Vasconcellos, povoou os campos de Viamão a partir de 1732.

Livros contam que os insurgentes posicionaram canhões no topo do Morro da Fortaleza voltados para um trecho do Guaíba defronte à Ilha do Junco a fim de impedir a passagem dos navios imperiais provenientes da Laguna dos Patos rumo à Porto Alegre.

Em 1836, uma força imperial conseguiu desembarcar na praia das Pombas – chamada de Saco do Faria, na época – e seguiu por terra até a Fortaleza, onde as refregas provocaram 32 mortes e vários foram presos. O comandante farrapo Simão Barreto teria sido colocado pelos legalistas no cais da vela de um dos barcos, onde morreu.

Balas de canhão, adagas, espora encontradas nas praias do parque

Foram encontradas balas de canhão, adagas, espadas, ganchos, até esporas, indicando que os revolucionários ocuparam os morros também a cavalo. Muitos desses materiais estão no museu do parque estadual. Outros, ficaram soterrados ou perdidos em meio à mata, de difícil acesso.

Há ruínas da época dos Farrapos também atrás do Farol de Itapuã, na embocadura do Guaíba.

Passo do Vigário

Em uma das escaramuças morreu o revolucionário italiano Luiz Rossetti, um dos principais redatores do jornal O Povo, órgão oficial da República Riograndense.

Carbonário e companheiro de Garibaldi, Rosseti, foi vítima de uma lança*, durante a tomada de Viamão pelos imperiais no dia 24 de novembro de 1840, na Batalha do Passo do Vigário (*site Viamão Antigo, editado por Paulo Lilja).

*Colaboraram nesta série de reportagens o repórter fotográfico Ramiro Sanchez e os jornalistas Elmar Bones e José Barriunuevo.  

Intervenções naturistas em madrugadas de pandemia

Um grupo de naturistas de Porto Alegre tem aproveitado as madrugadas vazias desses tempos de pandemia para intervenções em sítios históricos da cidade, como o viaduto da Borges de Medeiros, a Praça da Alfândega, o Largo Glênio Peres.

Em pequenos grupos, tiram a roupa dentro dos carros e circulam pelo local, observando, trocando ideias, tirando fotos, filmando.

“Não é protesto, nem é nada organizado. São iniciativas espontâneas de pessoas que praticam o naturismo, para experimentar uma presença e um olhar fora do comum nesses locais históricos, onde normalmente seria impossível andar nu”, disse ao JÁ uma ativista.

Ela prefere não se identificar por enquanto, temendo o preconceito que cerca a prática mais evidente do naturismo, que é o nudismo: “Na verdade é a continuidade de iniciativas que vínhamos fazendo no ano passado e que foram suspensas devido a pandemia”.

Uma dessas iniciativas era o “happy nu”, a cada semana num bar da cidade onde praticantes do naturismo se reuniam para conversar, beber e dançar sem roupa. Foram mais de 20 eventos com dezenas de pessoas: “Deu super certo, totalmente civilizado, nunca houve um incidente, paramos por causa do coronavírus”.

Outro evento foi o “nu barco” que reuniu 62 pessoas num passeio de seis horas pelas águas do Guaíba em outubro passado.

As intervenções em locais históricos de Porto Alegre surgiram por acaso: “Vínhamos passando e achamos bonito o cenário do viaduto da Borges vazio, decidimos fazer umas fotos. Com muito medo, porque se aparecesse a polícia, certamente iríamos parar na delegacia”.

A principal queixa dos naturistas é a incompreensão com o nudismo, que faz parte de suas práticas em busca de uma relação mais harmônica com a natureza. “A conotação sexual que se dá ao ato de tirar a roupa não tem sentido para nós. Essa relação do corpo nu com sexo, é uma das coisas que buscamos desmistificar. Não tem nada a ver, mas infelizmente é o que vem à cabeça poluída da maioria”, desabafa a ativista que falou ao JÁ.

O naturismo (não confundir com naturalismo) preconiza um modo de vida baseado no retorno à natureza como a melhor maneira de viver e defende a vida ao ar livre, o consumo de alimentos naturais e a prática do nudismo, entre outras atitudes.

Tem raízes históricas e culturais muito remotas, mas se difundiu no início do século XX  a partir da Europa, especialmente Alemanha e França.

No Rio Grande do Sul o movimento naturista teve impulso com o ambientalista José Lutzenberger, que aderiu à prática na Alemanha, onde viveu por 15 anos.

Foi um grupo de naturistas que se reuniu em torno dele na praia de Torres que deu origem ao movimento ambientalista no Estado, com a criação da Agapan, em 1971.

 

Entrevista: "Foram os consumidores que criaram a primeira feira ecológica"  

“Nada acontece na vida se não houver esse alinhavo, uma junção de elos que vai tendo uma energia de coletivo, com muita clareza do que está sendo construído”.
Foi com esse sentimento que Glaci Campos Alves idealizou junto com amigos a montagem de algumas banquinhas na Redenção, que mais tarde dariam origem à Feira da Coolmeia, considerada a primeira feira ecológica do Brasil. .
Engenheira agrônoma de 74 anos, ex-diretora da Agapan e professora da Escola Técnica de Agricultura (ETA), de Viamão, Glaci falou ao JÁ sobre as origens da Feira dos Agricultores Ecologistas – FAE, que prepara para comemorar neste sábado três décadas de união entre produtores e consumidores em torno da alimentação saudável.

Cleber Dioni Tentardini
A feira foi organizada pelos integrantes da Cooperativa Coolmeia, que instalaram as primeiras banquinhas no dia 16 de outubro de 1989, no Dia Mundial da Alimentação Saudável?
Sim, mas é preciso frisar que a cooperativa foi fundada em 1978 e a feira, na José Bonifácio, aos sábados, começou em 1989. Eu não estava entre os fundadores da cooperativa, como a Ana Lombardi, o Marciano. Até porque eu não vivia no Brasil. Fiquei exilada na França por oito anos devido à ditadura militar e só retornei em 1981, quando fui morar no Bom Fim e vi que o movimento ecológico urbano estava bem forte através de entidades mais antigas como Agapan.
Os pioneiros da ecologia.
Sim, pioneiros do movimento ecológico em muitos aspectos, a ponto de contribuir decisivamente com a elaboração de uma lei estadual sobre os agrotóxicos, em 82, a primeira no Brasil, que viria a inspirar a aprovação de uma lei nacional sobre os venenos, na constituinte de 88. Mas ainda vivia-se a fase da anistia, do movimento Diretas Já, o movimento político-partidário ganhando força novamente, a construção do Partido dos Trabalhadores que começou no final da década de 70.

Esse movimento ecológico era basicamente urbano?
Mas a Agapan conseguiu um feito muito importante ao criar núcleos em vários municípios gaúchos e inspirou o surgimento de outras entidades ecológicas. O grande referencial, o ideólogo era José Lutzenberger, mas começaram a se aproximar outros nomes importantes, como Sebastião Pinheiro, Jacques Saldanha, Magda Renner e Giselda Castro, ambientalistas e integrantes da Ação Democrática Feminina Gaúcha (ADFG), Flavio Lewgoy e tantos outros com muita base teórica e informação.

Onde eram encontrados produtos orgânicos nessa época?
Quase não havia consumidores de produtos biológicos, que é mais correto de dizer do que produtos orgânicos. Quando os jornais gaúchos começaram a dar espaço para grandes reportagens sobre o meio ambiente, principalmente desastres ambientais como em Hermenegildo, foi se criando uma fundamentação dos ecologistas, uma consciência ecológica entre os consumidores. Está aí um dos motivos porque as feiras ecológicas deram muito certo em Porto Alegre. É que foram os consumidores, e não os agricultores, os primeiros a serem estimulados, motivados. Porque não adianta criar um núcleo de produtores de alimentos sem veneno e não ter consumidores, é o que dizíamos aos integrantes de movimentos sociais de países latino-americanos durante os encontros. Eles não entendiam porque as feiras deles não davam muito certo. Provavelmente, porque não houve nesses países um processo de conscientização ambiental tão forte como aqui, capitaneado pela Agapan, que espraiou esse movimento para todo o Rio Grande do Sul.

As feiras ecológicas vêm desse processo de construção de uma consciência ambiental
Muitos não sabem, mas a Coolmeia foi uma cooperativa que tinha por fim uma atividade mais espiritualista. Foi criada por 40 integrantes, a maioria ligada à Grande Fraternidade Universal, preocupada com a qualidade do alimento, a qualidade de vida espiritual. Vivíamos a Era de Aquário. A questão era holística. Soube que fizeram até um mapa astrológico para a criação da Coolmeia. Até aí, a Coolmeia oferecia cursos de ioga, meditação… Era o público alternativo. Então, a partir da construção dessa consciência coletiva, era preciso criar pontos comerciais para vender os produtos.

Uma das entradas, esquina com a rua Santa Teresinha. Foto: Feira Matheus Chaparini/Arquivo JÁ

Dentre os fundadores da cooperativa havia produtores de alimentos naturais?
Basicamente consumidores. Um ou outro poderia ter um sitio que produzisse mel, vegetais. Então, eles visitavam muito o meio rural para trazer alimentos saudáveis.

E como se deu a união entre produtor e consumidor?  
Foi muito interessante. Aqui no estado esse movimento da agricultura ecológica começou aos poucos, com a Pastoral da Terra, através da Teologia da Libertação, alcançou muitos jovens do campo, que cresceram vendo seus pais colocando muito veneno nos alimentos. A Pastoral da Terra começou a trabalhar essa consciência nos agricultores já na década de 70, um processo de convencimento dos agricultores para dizer não ao veneno. Então, as três forças do campo foram a Pastoral da Terra, os técnicos que formaram ONGs (Organizações não-governamentais) para orientar os agricultores a plantar sem veneno e as ONGs estrangeiras, que financiavam as ONGs nacionais. O Centro Ecológico de Ipê, por exemplo, criou toda uma estrutura a partir de financiamento de entidades da Suécia. Na Europa, na década de 70, já se falava em embalagens sustentáveis, reciclagem de lixo, acondicionamento de óleo vegetal. Em Paris, já havia um movimento forte de agricultores e um comércio em feiras bem constituído para a agricultura biológica. E os grandes escândalos já estavam acontecendo. Foram descobertos os fosforados, os clorados que estavam presentes no leite que as mães amamentavam seus filhos, as contaminações, a coctecnologia dura, termo cunhado por Lutzenberger que achávamos muito pedagógico. A partir da Revolução Verde, no período pós-guerra, pegaram as tecnologias descobertas para a guerra e transformaram em insumos agrícolas. A Revolução Verde criou aditivos e solúveis sintéticos. O que eles fizeram com toda a tecnologia criada para a guerra, que teve um alto custo? Transformaram tudo em produtos agrícolas. Primavera Silenciosa (Rachel Carson, 1962), O escândalo das sementes (Pat Roy Mooney, 1987) esses livros foram traduzidos para o português. O livro do Sebastião Pinheiro ‘O Amor à arma e a química ao próximo’ trata disso.

Então, as primeiras bancas com produtos biológicos em Porto Alegre foram instaladas pelos próprios consumidores, ligados à cooperativa Coolmeia?
Bom, tem uma história bem interessante antes. Mas, sim, apresentei a ideia de montar a feira na José Bonifácio, em frente ao prédio dos padres, nem havia a Maomé ali. Então, marcamos uma audiência com o prefeito Collares (1986-89) para apresentar nosso projeto. Ele não se opôs, mas não viu possibilidade de manter sempre presente os órgãos da Prefeitura porque era sábado e teria que ter escalas de plantões para os funcionários públicos. Bom, seria com a gente mesmo, então escolhemos a semana da luta contra os agrotóxicos e dia mundial da alimentação, em 16 de outubro, para iniciarmos a feira. Estavam presentes, no mínimo, umas dez bancas. Chegaram a participar aqui da feira o deputado federal Henrique Fontana, que plantava num sítio em Viamão com um sócio, o Floriano Isolan, ex-secretário da Agricultura do Collares. O Valdo e o Lovato são dos que estão desde o início da feira. Todos os agricultores tinham consciência politica, com influência principalmente da Pastoral da Terra. Então, desde o início nos preocupamos com o regulamento. Nós tínhamos que esclarecer a opinião pública que era uma feira de produtos vendidos direto do produtor, sem intermediário. Agricultores que estavam ali porque se negaram produzir com veneno. Nas primeiras edições, os produtores ficaram espantados porque vinham pra cá e vendiam toda a produção. Foi a primeira feira desse tipo no Brasil. Começou mensal, depois, quinzenal e semanal. Antes, os agricultores tinham dificuldade de vir a Porto Alegre, devido ao custo alto. Em São Paulo, foi criada uma feira aos moldes da nossa cerca de dois anos depois.

Perto do meio-dia começa a movimentação para recolher os produtos. Foto: Cleber Dioni

E qual é a história “bem interessante” que mencionaste?
Eu conheci a Coolmeia na Barros Cassal, depois ela foi para Gonçalves de Carvalho, passou pela João Teles e, finalmente, se estabeleceu na José Bonifácio. Na João Teles, a Coolmeia alugou uma casa junto com a Agapan e a ADFG. Ali, a Cooperativa tinha uma lojinha e uma fruteira nos fundos da casa. O Nelson Diehl, que era naturista, ligado à juventude da macrobiótica, se associou e passou a participar da administração da cooperativa. Trouxe alguns referenciais administrativos para a Coolmeia, cuja gestão era muito empírica. Começamos a participar de todos os eventos de movimentos sociais, mobilizações políticas, e montamos uma banquinha no Brique da Redenção, aos domingos, onde vendíamos produtos não alimentícios, porque não era permitido. Isso foi entre 82 e 88, quando as mobilizações ecológicas foram muitos fortes para garantir emendas na Constituinte de 88, que teve uma metodologia participativa. Uma das nossas bandeiras é para que desburocratizassem a criação de coletivos de trabalho, no caso as cooperativas, para que não precisasse ser grandes cooperativas. Em 86, organizamos um grande evento na área central da Redenção (espelho d’água) para comercializar produtos ecológicos. A feira Tupambaé (palavra de origem tupi-guarani que significa lavoura do comum) foi mais do que isso, levamos artesãos que trabalhavam com papel, o poder público para falar em lixo reciclado, entidades ecológicas para palestras, montamos barracas com bambu. Em 87, fizemos a segunda edição da feira Tupambaé, agora na área do Ramiro Souto, onde montamos uma lona de circo com toda estrutura feita com bambu e cobramos entrada. Havia bancas de entidades espiritualistas, ecológicas, agricultores, e grupos de eventos culturais. Em 88, fizemos uma terceira Tupambaé, em uma escola infantil Amiguinhos do Verde, para levar as questões ecológicas para as crianças. Convidamos várias escolas estaduais, mas pegamos um período de greve do magistério e não deu muito certo. Bom, a partir daí, começamos a pensar em uma feira que fosse permanente, promovida pela Coolmeia, com participação das entidades ecológicas. Ainda montamos outras duas feiras, lá na Secretaria da Agricultura, no Menino Deus, no sábado e às quartas-feiras. Ideia minha. A do sábado, a proposta original era repetir o modelo da Tupambaé, com yoga, artesanato, pintura, livros, alimentos.

Essas são as origens
Desde o início as decisões eram em grupo, para conservar o espírito cooperativista. Nós tínhamos os princípios mais importantes no planejamento estratégico: a visão e a missão. Reuniões periódicas, jantas e cafés uma vez em cada propriedade para as pessoas se conhecerem, trocar experiências. Eles tinham as associações no Interior, com comissões de ética. O MST, em Eldorado, e o MPA, em Torres, entraram depois.

E como vê a feira hoje, ao completar 30 anos?
Tem coisas fortes na feira que não se perderam com o fechamento da cooperativa em 2006. Essa feira não surgiu para resolver problemas de mercado nem para oferecer produtos sem veneno para o consumidor, mas para construir uma nova sociedade, com princípios do movimento ecológico. Por isso que, quando surgiu a ideia de copiar a certificação europeia (de produtos orgânicos), nós questionamos, e aí surgiu a certificação participativa. Porque nós tínhamos gente de alto nível de conhecimento e teorização. Agora que o produto orgânico criou mercado, vamos colocar um selo de certificação de um modelo pronto europeu? Não, nós vamos construir um referencial próprio, como fizemos desde o início, para a certificação participativa. Então, surgiu a Rede Ecovida, formada por consumidores, agricultores e técnicos. Mas percebo que ela está ficando mais individualizada.

Por que?
Porque está estabilizada. Embora a feira tenha criado uma associação que não permitiu que se perdesse o sentido da cidadania, ela teria que ter aventureiros, com suas missões, ou visionários, para dar uma sacudida. Só que é muito difícil mexer em algo que já está estabilizado. A presença dos jovens agricultores é maravilhosa, mas como eles não viveram a construção da feira, pode faltar identidade, então tem que entrar a associação para dar alguma orientação à nova geração. Não pode perder o espírito associativista, como ocorreu em parte com a Coolmeia que, no início da década de 2000, começou a receber pessoas que não vibravam a essência da cooperativa, talvez tenham deslumbrado ali uma forma de ganhar dinheiro porque nem comiam no restaurante da cooperativa.