Em quase meio século à frente do Movimento de Justiça e Direitos Humanos, o advogado Jair Krischke tem uma coleção de episódios incríveis que viveu defendendo presos políticos, cruzando fronteiras com refugiados, denunciando sequestros, torturas e torturadores, defendendo militantes perseguidos.
Nenhum deles se compara à tomada do aparelho do SNI, que se efetivou em pleno governo Bolsonaro.
“É quase uma piada”, diz ele. ”Parece aquela do serviço secreto português, que participava dos desfiles”.
A história começou numa reunião do condomínio do edifício Missões, um monumento arquitetônico dos anos 1940, no centro histórico de Porto Alegre.
Na condição de presidente do MJDH, Krischke ocupava uma pequena sala no nono andar. Era uma sala cedida por um sindicato, o movimento pagava apenas o condomínio.
Kritschtke reclamou do valor cobrado, quase mil reais para menos de 40 metros quadrados. O síndico explicou que muitos condôminos não estavam pagando e as despesas tinham que ser divididas pelos que pagavam para manter em dia os serviços no prédio. O conjunto 22, por exemplo, não pagava o condomínio há cinco anos. Quem era o dono ou o locatário? Ninguém sabia.
Krischke sugeriu verificar no cartório de imóveis e quase não acreditou na resposta: o conjunto de três salas no número 22 do edifício Missões pertencia ao Serviço Nacional de Informações, SNI, o serviço secreto instituído pela ditadura de 1964, para espionar as oposições.
Não foi difícil para o escaldado Jair Kritschke descobrir para quê o SNI mantinha um “aparelho” no edifício Missões: a janela do 22 dá uma visão ampla do cruzamento entre a Rua da Praia e a avenida Borges da Medeiros, no coração de Porto Alegre. O local para onde confluíam as manifestações de oposição à ditadura e que por isso ganhou o nome de Esquina Democrática.
Pela escritura, o imóvel de 58 metros quadrados foi comprado pelo “Serviço” por 6,2 mil (cerca de 150 mil reais atualmente) em 11 de outubro de 1988.
Naquele ano o PT ganharia sua primeira eleição em Porto Alegre. No dia 14 de novembro, véspera do pleito, a campanha culminou na Esquina Democrática, num comício com Lula (então, deputado federal) ao lado de Olívio Dutra, o candidato petista.
O Brasil tinha um presidente civil há três anos (José Sarney), uma nova constituição democrática, mas os serviços secretos montados no regime militar ainda estavam ativos.
Ainda não se sabe por quanto tempo o SNI usou o apartamento 22. Em 2017, na reunião em que se descobriu o fato, o condomínio não era pago há cinco anos. Teria sido abandonado em 2012? Como foi utilizado nos 24 anos em que esteve ativo?. São perguntas ainda sem resposta.
O SNI foi extinto em 1990, mas ao assumir o imóvel Kristschke deparou com um molho de chaves presas a uma etiqueta com a sigla ABIN, escrita à mão. A Abin (Agência Brasileira de Informações) é a sucessora do SNI.
Para o Movimento de Justiça e Direitos Humanos a história já teve um “final feliz”. Nas suas investigações, Krischke descobriu que o imóvel, de propriedade do governo federal, estava sob responsabilidade da Secretaria do Patrimônio da União. Fez um relato da situação de abandono e requereu o uso do imóvel, em comodato, para o Movimento de Justiça e Direitos Humanos, que estava ameaçado de despejo da sala que ocupava no nono andar do mesmo prédio.
O sindicato que cedia o imóvel ao MJDH, com a perda do imposto sindical, não podia mais manter a parceria.
O processo começou no governo Temer, teve a boa vontade do então chefe da Casa Civil, o gaúcho Eliseu Padilha.
No dia 17 de janeiro de 2019, em pleno governo Bolsonaro, o diário oficial publicou a cessão do imóvel por 20 anos ao MJDH. Temendo que Bolsonaro anulasse a concessão, Krischke, não divulgou o fato. Até julho deste ano quando, pela primeira vez, contou a história ao jornalista Graciliano Rocha, do UOL.
A incrível história do espionado que tomou o aparelho dos espiões.