Descaso com o patrimônio histórico está escancarado na rua Duque de Caxias

A rua Duque de Caxias, cuja história se confunde com as origens de Porto Alegre, vai “ganhar” um edifício de 41 andares (134 metros de altura) no seu ponto mais alto.

Pretende ser o primeiro de uma série de “prédios icônicos” que irão moldar  a nova face urbana da cidade, seguindo os padrões globais de verticalização.

O impacto no coração do centro histórico não está devidamente medido. Simulações indicam que o prédio projetará sombra sobre a matriz, o Palácio Piratini e até no monumento a Julio de Castilhos, o Patriarca.

Simulação em 3D feita pelo IAB

Além da pressão na infraestutura e no trânsito, o impacto visual: o espigão vai desfigurar imóveis tombados, como são as casas do Museu Julio de Castilhos.

O projeto, no entanto, é coerente com o que vem acontecendo há muito tempo.

O descaso com o patrimônio histórico está escancarado ao longo de toda a Duque de Caxias, uma das três ruas traçadas pelo capitão  Montanha, o engenheiro militar que definiu o perímetro original do povoado, em agosto de  1773,  há 250 anos, portanto.

A população de Porto Alegre ainda não chegava a mil moradores.

Rua da Praia (Andradas), a rua do Cotovelo (Riachuelo) e, no alto, a rua Formosa (atual Duque de Caxias), três paralelas. Foram as  vias que orientaram a ocupação da cidade, entre as águas  e o espigão, a partir do núcleo original junto à Praia do Arsenal.

Representação esquemática das três primeiras ruas de Porto Alegre: Rua da Praia (Andradas), Rua do Cotovelo (Riachuelo) e Rua Formosa (depois Rua da |greja e atual Duque de Caxias)

Com a construção da primeira matriz no seu ponto mais alto, a rua Formosa passou a ser a “rua da Igreja”.

Quando visitou Porto Alegre, em 1820, o botânico francês, Saint’Hilaire, registrou em seu famoso diário: “Uma das três grandes ruas, chamada rua da Igreja , estende-se sobre a crista da colina. É aí que ficam os três principais edifícios da cidade, o Palácio, a Igreja Paroquial e o Palácio da Junta (que depois foi Assembleia). São construídos alinhados e voltados para noroeste. Na outra face da rua, em frente não existem edifícios, mas tão somente um muro de arrimo, a fim de que não seja prejudicada a linda vista que daí se descortina”.

Numa sessão no dia 29 de dezembro de 1869,  a Câmara Municipal mudou a denominação de rua da Igreja para Duque de Caxias, homenagem ao general que pacificou a Província, foi governador e senador pelo Rio Grande do Sul. Sua gestão, depois da Revolução Farroupilha, foi de reconstrução e de muitas obras em Porto Alegre, inclusive o ajardinamento da Praça da Matriz e outras duas praças na rua Duque de Caxias, “que concorreram para embelezá-la”.

Em 1892 possuía 317 prédios, sendo 55 sobrados e 40 assobradados. Foi uma das primeiras onde circulou um bonde elétrico em 1909 e o bonde “Duque” fez parte do folclore urbano de Porto Alegre.

No início do século 20, a Duque de Caxias tornou-se o endereço da elite política e econômica do Estado, era a rua do poder. É dessa época o palacete dos Chaves Barcellos, a 100 metros do Palácio Piratini,  projetado por Theo Wiedersphan.

Palacete dos Chaves Barcellos: tombado e abandonado | Foto: Ramiro Sanchez/@outroangulo

Eram quatro casarões pertencentes ao clã na Duque — duas delas deram lugar a prédios, uma foi demolida, virou estacionamento.

A que resiste, na esquina da Duque com a João Manoel, desde 2004 é patrimônio histórico do município, em estado de abandono denunciado na imprensa já em 1990.

Em setembro de  2023, a rua Duque de Caxias  tem 23 imóveis tombados ou inventariados pelo patrimônio público, em âmbito federal, estadual e municipal.

Dois terços deles abandonados, quando não depredados e irrecuperáveis.

| Foto: Ramiro Sanchez/@outroangulofoto

 

Fora a Igreja Matriz e os prédios principais do poder público, como o Palácio Piratini, a antiga Assembleia (que está sendo restaurada), o quadro é de abandono total.

Um visitante que percorra a pé os dois quilômetros e pouco da rua Duque de Caxias não terá a menor ideia dos 250 anos de história que ela encerra.  O que ele perceberá chocado é o descaso com o pouco que resta desta memória.

(Com informações do Guia Histórico de Porto Alegre, de Sérgio da Costa Franco)