Caio Lustosa: “Grandes empresas são os verdadeiros prefeitos de Porto Alegre”

À beira dos 90 anos*, Caio Lustosa  não arreda pé de uma militância que vem dos bancos acadêmicos e se confunde com os primórdios da luta ambientalista no  Rio Grande do Sul.

Jornalista, advogado, vereador, secretário de Meio Ambiente, Caio acompanha, desolado, a “mercantilização”  dos parques e outro espaços públicos em Porto Alegre como “símbolos de um grande retrocesso”.

“Nunca, em quase meio século, a área ambiental, tanto no governo do Estado como na Prefeitura, esteve nas mãos de tão ilustres desconhecidos, que não sabem o que estão fazendo, apenas cumprem ordens de cima”.

“Nunca vi uma SMAM e uma Fepam tão submissas ao esquema empresarial. Esse é o nó da questão: essas empresas Melnick, Maiojama, Zaffari, são os grandes prefeitos de Porto Alegre”.

Segundo Lustosa, o caso do Parque Harmonia é exemplar: “A prefeitura foi mais realista que os caras, autorizou o corte de mais de 400 árvores…”

A explicação de que eram árvores plantadas em uma área de aterro, é reveladora da falta de argumento

“Aquilo ali tudo é aterro. Foi o Brizola (1956/58) que começou, depois o Vilella (Guilherme Socias Vilella – 1975/83), mesmo sendo um governo conservador,  criou os parques”.

Ele lembra da luta para que a Orla fosse uma grande área verde, sem prédios, inteiramente pública.

Em 1986, por exemplo: ativistas da Agapan escalaram a chaminé do gasômetro para estender uma faixa contra o projeto do então prefeito Alceu Collares, de construir prédios na orla. Houve até invasão da  Câmara de Vereadores e o projeto acabou rejeitado.

Para Caio Lustosa, o atual prefeito Sebastião Melo é uma decepção:  “Conheci o Melo nas mesas do Bar Tívoli, ponto histórico da Protásio Alves. Era radical, ligado a um grupo de esquerda dentro do MDB. Depois foi se ajeitando, e agora está aí, neoliberal”.

Além da militância incansável, Caio Lustosa, hoje dedica-se às suas memórias. Achou um diário de seu pai com registros da revolução de 1923, que encerrou a Era Borges de Medeiros, que mandou no Rio Grande do Sul por 25 anos.

Pernambucano, como Borges de Medeiros, Eurico de Souza Leão Lustosa, o pai de Caio, foi chefe de polícia no período borgista.

Depois divergiu e teve que se exilar em Santa Catarina. Retornou ao Rio Grande em 1923, engajado na Frente Democrática,o movimento que começou a tirar Antonio Augusto Borges de Medeiros do poder. Ele deixaria o governo realmente só em 1928, quando passou o cargo para Getulio Vargas.

Segundo Lustosa, em dois meses o texto estará pronto. Ele já tem o título: “Um pernambucano que se fez gaúcho”.

*Caio Lustosa completa 90 anos em 18 de novembro de 2023. A integra da entrevista será publicada domingo.

Harmonia: Prefeitura mudou edital para tornar negócio mais atraente

  • No primeiro leilão para concessão do trecho 1 da Orla e do parque Harmonia, em julho de 2020, não houve concorrentes. A prefeitura, então,  para atrair interessados, aumentou a área a ser concedida de 249 mil metros quadrados para 256 mil metros quadrados, com o acréscimo de um terreno de 7 mil metros quadrados, fora do parque, usado como estacionamento.

Para tornar ainda mais atraente o negócio, a Prefeitura  reduziu a expectativa de investimentos de R$ 325 milhões para R$ 281 milhões, aumentou de seis para dez o número de eventos livres (fora de temática cultural gaúcha) e assumiu parte do custo da iluminação.

Além disso, elevou a taxa interna de retorno (lucro líquido) de 9,1% para 9,9% sobre o faturamento.

Com essas mudanças, o leilão efetivou-se no dia 9 de setembro de 2020 com a vitória da GAM3, único concorrente, que pagou R$ 201 mil  (duzentos e um mil reais) pelo direito de explorar os 256 mil metros quadrados (25,6 hectares) por 35 anos na orla do Guaiba.

Quando o empreendimento começar a gerar receita, a prefeitura receberá  1,5% ( um e meio por cento) do faturamento.

Contrato de concessão foi assinado em março de 2021 pelo prefeito Sebastião Melo.

O contrato foi assinado em evento no salão nobre da prefeitura em março de 2021.

O projeto implica em “revitalização completa” do parque com obras e novas estruturas para prepará-lo para: 

  • Operações gastronômicas
  • Operações de diversão
  • Shops
  • Música, arte e cultura
  • Projetos especiais
  • Mega eventos
  • Espaços temáticos
  • Espaços kids e pets
  • Estacionamento

Harmonia: em maio, consórcio anunciou “duplicação do verde” no parque

Sob o título “Parque da Orla ganhará mais de 107% de vegetais”, a assessoria de imprensa da GAM3 distribuiu a seguinte nota, no dia 9 de maio de 2023:

Atualmente em execução, projeto prevê que Parque Harmonia terá mais de 2800 árvores”
“Um dos pontos turísticos mais importantes de Porto Alegre ficará ainda mais arborizado. Depois do plantio de 38 mudas de ipês-amarelos no trecho 1 da orla, a equipe ambiental da GAM3 Parks divulga projeto de arborização do Parque da Orla.

Através de seu time de biólogos e engenheiros, a concessionária realizou levantamento de cobertura vegetal do Parque Harmonia, identificando 1.361 vegetais na área quando assumiu a concessão.

No projeto de revitalização do parque, está previsto o aumento de cerca de 107% de árvores nativas de Porto Alegre. Ou seja, das 1361 unidades, em breve serão 2820.

— Nossa proposta desde o início é criar um parque integrado com a natureza. Portanto, possuímos um grupo ambiental para planejar e criar ações visando a ampliação da cobertura vegetal — destaca Carla Deboni, diretora administrativa da GAM3 Parks.

Alguns vegetais terão que ser retirados, muitos deles devido ao estado fitossanitário ruim e/ou com risco de queda. Aqueles que foram removidos são estritamente necessários, sendo que a concessionária possui autorização dos órgãos ambientais, além de uma equipe de biólogos dedicados ao acompanhamento.
— Durante nossos estudos não pensamos apenas em compensar aqueles vegetais que foram removidos, queremos ampliar essa cobertura e dar prioridade a árvores nativas, fortalecendo o bioma natural da região — avisa Piettro Kayser, conselheiro da GAM3 Parks e responsável pela equipe ambiental.

A previsão de conclusão total do Parque da Orla é para 2027, então, muito em breve, uma maior quantidade de área verde com características da fauna local estarão presentes no Parque Harmonia.

Esse processo beneficia não só a fauna do parque, mas também a população, que terá à sua disposição um ambiente mais florido e seguro para ser frequentado”.

O texto foi distribuído pela Pulso Comunica.

 

Protesto no Santinho: moradores vão manter vigílias para pressionar o MP

Moradores do Santinho, em Florianópolis, protestaram neste domingo contra a construção de um condomínio com 11 prédios, 200 apartamentos  num terreno que há trinta anos tem uso público – desde festas juninas, aulas de capoeira, torneios de pandorga, oficina de pescadores – além de ser a única área livre que permite  uma visão ampla da praia, na entrada do bairro.

Eles pretendem manter os protestos até que o Ministério Público se manifeste sobre uma ação civil pública que questiona o processo de licenciamento do projeto, cujas obras já começaram há uma semana.


O condomínio Costão dos Atobás está projetado para ser erguido  em frente ao Parque Natural Municipal Lagoa do Jacaré, criado em 2016 após mobilização da comunidade / Ramiro Sanchez/@outroangulofoto

“Eles apresentaram as licenças, tudo bem. Reconhecemos, mas queremos saber como foram conseguidas essas licenças”,  disse uma das líderes do movimento comunitário. Lembrou a audiência pública em fevereiro de 2019,  que foi suspensa ante os protestos dos moradores presentes. “Disseram que teria uma nova audiência. Não teve, aquela  anterior foi validada, sem levar em conta o protesto unânime dos moradores presentes.  Não fomos ouvidos”, disse a moradora.

O Estudo de Impacto e Viabilidade (EIV), decisivo para o licenciamento da obra, também é questionado pelo movimento de moradores: “O EIV sequer menciona o Parque Municipal da Lagoa do Jácaré, uma área de preservação permanente  que fica ao lado  do empreendimento. Que estudo de impacto foi esse que não levou em consideração a vizinhança de uma área de preservação permanente?”

Obras começaram há uma semana, polêmica sobre o “terrenão” tem mais de 20 anos.

Segundo dados do projeto, serão  200 apartamentos, vagas para 700 carros e cerca de mil novos moradores numa comunidade de 3.700 habitantes, segundo a projeção do IBGE com base no censo de 2010. No bairro já há graves problemas de trânsito e carência de serviços essenciais, a começar pela rede de esgotos inconclusa.

O Campão do Santinho, se tiver onze prédios, aumentará em 30% a população do bairro / Ramiro Sanchez/@outroangulofoto

O protesto, que reuniu cerca de 80 moradores, começou por volta das 15 horas, com a colocação de cartazes no tapume que cerca o terreno, faixas ao longo da avenida, e terminou por volta das 18 horas com a proposta de manter manifestações semanais, pelo menos até o pronunciamento do Ministério Público.

O terreno também é ponto de ninhos de corujas, que já foram expulsas de uma área próxima por outro empreendimento imobiliário / Ramiro Sanchez/@outroangulofoto

 

 

“Sou jacaré poiô, movimento que mobilizou a comunidade pela criação do Parque Lagoa do Jacaré, em 2016 / Ramiro Sanchez/@outroangulofoto

 

Protesto dos moradores tenta deter obra na Praia do Santinho

A rede de esgoto, iniciada há mais de cinco anos, não foi concluída. Uma praça prometida há mais de 20 anos até agora não saiu.

Mas um novo megaprojeto já teve suas obras iniciadas esta semana, apesar das irregularidades apontadas numa ação pública em andamento no Ministério Público.

Os moradores vão às ruas protestar neste domingo.

O bairro do Santinho, no extremo norte da ilha, é um dos menores de Florianópolis. Tem pouco mais de três mil moradores e um patrimônio ambiental incalculável: 2,5 km de praia deslumbrante, costões, banhados, lagoas, nascentes.

Há muito tempo esse patrimônio ambiental e paisagístico é alvo da especulação imobiliária. Muitos danos já foram causados por uma ocupação predatória, que lucra ao custo do meio ambiente.

Mas o que está ocorrendo agora é um atentado à comunidade do Santinho e à cidadania de Florianópolis de modo geral, porque este é um caso exemplar do que está acontecendo em toda  a ilha: liberação total aos empreendimentos imobiliários sem medir as consequências da ocupação desordenada de todas as áreas disponíveis. Um processo que vai arrasar o maior patrimônio da ilha, que é a natureza – como ocorreu com Camboriú.

Moradores protestam: obra vai impactar o trânsito, os esgotos e o meio ambiente.

No caso exemplar do Santinho, o processo já iniciou há mais de 20 anos, com o resort/hotel Costão do Santinho, cuja obra começou sem licença ambiental. Um Termo de Ajustamento de Conduta, que o empreendedor assinou com o Ministério Público, previa a destinação de área para  uma praça no bairro.  O Santinho não tem praça até hoje.

Não tem esgoto. Há mais de cinco anos está em implantação uma rede de esgoto, um caso relativamente simples, uma rede coletora de 2,5 quilômetros  na estrada geral. Até hoje não está ligada à estação de tratamento.

Enquanto isso, a última área disponível para os eventos da comunidade,  o último espaço  do bairro de onde se tem uma vista de toda a praia, foi liberada para mais um megaprojeto.  Há uma ação judicial da comunidade questionando a legalidade da obra, que terá grande impacto ambiental, inclusive em área de preservação, mas as  retroescavadeiras já preparam o terreno para um condomínio fechado de 11 prédios de seis andares, num total de 200 apartamentos e estacionamento para 800 carros.

 

 

Entrevista: “Brasil precisa da Antártica tanto quanto da Amazônia”

Em entrevista exclusiva, glaciólogo gaúcho explica a interdependência entre os pólos e os trópicos

Por Márcia Turcato

Jefferson Cardia Simões, 64 anos, é glaciólogo, estuda o gelo. Foi o primeiro brasileiro a ter essa especialização, ainda na década de 80, quando o Brasil vivia uma ditadura.

Longe de ser um pesquisador caricato, daqueles que aparecem em filmes, Simões é conversador e é um entusiasta da popularização da ciência, por isso sempre oferece exemplos cotidianos para explicar seu trabalho. Ele é casado há 40 anos com Ingrid Lorenz Simões, tem dois filhos e dois netos e é natural de Porto Alegre.

Foi em sua sala de vice-Pró-Reitor de Pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) que me recebeu por mais de duas horas para falar de seu trabalho mais recente.

O professor retornou dia nove de janeiro da Antártica, uma expedição iniciada no último dia quatro de dezembro. Ele viaja ao Polo Sul desde os anos 90 e também já esteve no Ártico e em outras regiões geladas do planeta. O trabalho consiste, basicamente, na realização de análises químicas da atmosfera e na coleta de testemunhos de gelo, que é uma espécie de paleontologia glacial, ou técnica palio climática.

De acordo com Simões, “o Brasil precisa parar de achar que é um país tropical isolado, isso não existe, é uma fantasia, foi uma fantasia geopolítica das décadas de 50 e 60. Para o meio ambiente global, as regiões polares são tão importantes quanto os trópicos”.

O professor salienta “que não teríamos clima se não houvesse essa diferença de temperatura entre os trópicos e os pólos. Centrar a visão só na Amazônia, evidentemente está errado”.

“A questão da Amazônia é mais ampla porque é território nacional, tem a biodiversidade de fauna e flora e tem população humana, mas nós também temos responsabilidade na Antártica”.

Simões explica que do ponto de vista ambiental, a Antártica e a Amazônia são regiões interdependentes e que mudanças climáticas sempre ocorreram e vão continuar ocorrendo, “mas a estratégia que precisamos adotar é de ações mitigadoras e de adaptação”.

O professor Simões tem graduação em Geologia pela UFRGS. Isso em 1983, quando recebeu uma bolsa do CNPq, e foi estudar Glaciologia em Cambridge, na Inglaterra, onde ficou por seis anos. Chegou a trabalhar no Serviço Antártico Britânico. Naquela época o Programa Antártico Brasileiro – Proantar, era recente, e precisava de especialistas. “Eu cheguei no momento certo e as coisas se encaixaram”.

O gelo antártico tem até 2 km de espessura, são cerca de 27 milhões de km cúbicos de gelo na Antártica, o suficiente para cobrir o Brasil com um manto de gelo de 3 km de espessura em toda a sua extensão. O território brasileiro tem 8,5 milhões de quilômetros quadrados.

A pesquisa

Para chegar na Antártica, o custo da viagem de Simões é de 800 mil dólares, enquanto pesquisadores de outros países viajam por cerca de um milhão de dólares e às vezes até o triplo desse valor.

A última expedição do brasileiro contou com parcerias financeiras do CNPq, National Geographic e Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do RS- Fapergs.

As pesquisas feitas pelo Brasil alcançaram um período de três mil anos e as amostras coletadas estão guardadas no Instituto de Mudanças do Clima, no Maine, nos Estados Unidos, na temperatura de 20 graus centígrados negativos.

Cem metros de perfuração no gelo equivalem a 400 anos de tempo. As informações contidas no gelo coletado mostram qual é a concentração de água, isótopos, minerais e outros elementos.

Com isso, os cientistas têm condições de avaliar como era o clima e a vida naquele período, comparar com outras épocas e fazer projeções, por exemplo.

Pesquisas recentes na Antártica indicam que o gelo continha traços de contaminação por urânio, resultado de uma mina a céu aberto na Austrália no século 19. Também foram encontrados traços de cobre no gelo, por conta de minas no Chile, mas que diminuíram graças a intervenção recente do governo de Gabriel Borić  que adotou medidas de mitigação da poluição.

Pesquisadores da França e da Itália já alcançaram testemunhos de gelo de 800 mil anos na Antártica, com perfurações de 3.200 metros na área do Domo C, também conhecido como Dome Circe, Dome Charlie ou Dome Concordia, que está a uma altitude de 3.233 metros acima do nível do mar, é um dos vários cumes ou cúpulas do manto de gelo antártico.

Em breve, pesquisadores da China, em parceria com europeus, pretendem alcançar 1,5 milhão de anos no Domo A, perfurando 4 mil metros no meio do continente Antártico com uma temperatura de  93 graus centígrados negativos durante o inverno.

A água do oceano austral está ficando acidificada por excesso de  CO2, cerca de 30% dele já foi parar nos oceanos desde a primeira Revolução Industrial no século 18, e isso altera toda a flora e fauna dos mares, pode modificar correntes marítimas, mudar a temperatura na costa e tem efeito sobre o clima nos continentes.

“As regiões polares são mais sensíveis às mudanças climáticas e elas nos dão sinais do que está acontecendo”, explica o professor. O derretimento das geleiras expõe as rochas e elas aquecem a região porque propagam calor.

A temperatura subiu no Ártico 3 graus, em relação ao ano de 1900. A navegação marítima é afetada com o degelo no mar, surgem novos portos, novas rotas comerciais, nova geopolítica e até militarização em novas fronteiras.

A expedição

A expedição mais recente de Simões chegou à Antártica no dia 4 de dezembro de 2022, como parte de projetos de redes de pesquisa internacionais. O grupo contribuiu com estudos que monitoram a resposta do gelo da Antártica às mudanças globais e busca  conexões entre o clima do Brasil e o do continente.

A região onde o grupo ficou recebe sua precipitação de dois mares, o de Amundsen, com uma camada de gelo que pode chegar a três metros de espessura, e o de Bellingshausen.  Nesses dois mares se formam grande parte das frentes frias que chegam ao Brasil.

A expedição foi liderada por Simões, com os colegas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Luiz Fernando Magalhães Reis, 65 anos; Ronaldo Torma Bernardo, 54 anos, e Filipe Ley Lindau, 35 anos. Integram o grupo Ellen de Nazaré Souza Gomes, 50 anos, da Universidade Federal do Pará (UFPA) e Jandyr de Menezes Travassos, 70 anos, da Coppe/ Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

O grupo ficou acampado na geleira da Ilha Pine, no meio do manto de gelo da Antártica Ocidental. O objetivo era obter um testemunho de gelo dos últimos 400 a 500 anos da história climática da região.

Um outro grupo ficou encarregado de fazer a manutenção do módulo Criosfera 1, o laboratório latino-americano mais ao Sul na Terra, a 640 km ao Norte do Pólo Sul Geográfico. O módulo mede dados meteorológicos, concentração de micropartículas, composição da atmosfera, estudos sobre a concentração de gases e raios cósmicos.

Faz também estudos de micro-organismos encontrados na neve. Todas as pesquisas são essenciais para entender o impacto das mudanças ambientais na Antártica e como elas se refletirão na América do Sul.

Essa equipe foi liderada por Heitor Evangelista, 59 anos, físico da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e contou com os pesquisadores Heber Passos, 60 anos, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e Franco Nadal Junqueira Villela, 46 anos, do Instituto Nacional de Meteorologia (INMET).

Um terceiro grupo chegou à Antártica no dia 9 de dezembro para complementar a instalação do módulo Criosfera 2, o segundo laboratório remoto brasileiro no interior da Antártica.

Participantes da equipe: o professor Simões, que se juntou ao grupo no dia 30 de dezembro, os gaúchos Francisco Eliseu Aquino, geógrafo e climatologista, 52 anos, professor da UFRGS; a geógrafa Venisse Schossler, 46 anos, pós-doutora da UFRGS; o geógrafo Isaías Ullmann Thoen, 40 anos, técnico em geoquímica e eletrônica, da UFRGS; e o chileno Marcelo Arevalo, 62 anos, engenheiro mecânico.

Amazônia  e gelo

Além dos pólos (Antártica e Ártico), Simões também faz pesquisas em outras regiões geladas, como na cordilheira dos Andes. Ele coletou amostras na maior calota de gelo da América do Sul, a Quelccaya, no Peru, em perfurações de 120 metros, a 5.700 metros de altitude, para avaliar como se dá a circulação atmosférica na amazônia e conhecer como era o clima antes dos portugueses e do espanhóis chegarem à América. O Peru concentra 70% do gelo tropical do mundo.

Esse trabalho é recente, começou em setembro de 2022 e deve trazer muito conhecimento à tona. Quelccaya também é conhecida como a maior geleira tropical do mundo, tem 17 km de extensão, uma área de 44 km quadrados e está apenas 5,1 km da cidade de Cusco, mas o acesso é muito difícil e exige preparo físico. A temperatura média na região é de zero grau. É um lugar muito procurado por turistas praticantes de montanhismo.

A calota de gelo de Quelccaya é a maior área glaciar dos trópicos, cobrindo aproximadamente 44 km² nos Andes peruanos. Desde 1978, Quelccaya perdeu 20% de seu tamanho, fenômeno que costuma ser citado por pesquisadores como um sinal das mudanças climáticas.

Porém, existe a dúvida se o derretimento do glaciar é consequência do aquecimento global ou de alguma outra alteração climática, como a diminuição da precipitação de neve.

Glaciólogos de outros países estudam Quelccaya desde 1970 e já perceberam um forte derretimento do glaciar e um consequente aumento do volume de água dos riachos locais, o que pode até provocar inundações no futuro.

O futuro

“Milagrosamente é preciso dizer que o Programa Antártico Brasileiro (Proantar) sempre foi muito apoiado pelos governos”, revela o professor, explicando que no primeiro governo do presidente Luís Inácio Lula da Silva (2003 a 2006) os recursos para pesquisas chegavam por intermédio do então Ministério do Meio Ambiente/Ibama e depois pelo Ministério de Ciência Tecnologia e Inovação  (MCTI). O Proantar é administrado pela Secretaria da Comissão Interministerial para Recursos do Mar.  No entanto, o último edital para pesquisas do Proantar é de 2018, “estamos esperando a publicação de um novo edital para breve”, diz Simões.

O pesquisador explica que a questão do meio ambiente é global e que os pólos estão inseridos na nossa vida, assim como a Amazônia, há uma interdependência.  Mudanças climáticas sempre existirão, mas é necessário reduzir o impacto sobre a sociedade. Mesmo que parassem todas atividades que geram impacto sobre o clima agora, mesmo assim o nível do mar subirá 30 cm até o ano 2100.

Para Simões, “os pesquisadores precisam ter mais interação com o Poder Legislativo porque é lá que as leis são feitas, a comunidade científica não pode ficar isolada. O reconhecimento ao trabalho científico não vem sozinho, o cientista precisa ir à sociedade e falar.  Precisamos inserir a ciência na linha de produção mas, veja, ainda há trabalho análogo à escravidão no Brasil. Estamos muito atrasados.”

E completa:  “precisamos inserir a ciência no Ensino Médio. A crise ambiental faz parte de uma crise civilizatória. Há concentração de renda, trabalho escravo, mas o planeta é finito, não pode ser explorado como se estivesse numa linha de produção. O futuro de qualquer país é o investimento massivo em ciência e tecnologia, não concentrar renda e ter qualidade na educação e na produção”.

De acordo com o professor, toda a comunidade científica está esperando mais recursos e que o Fundo Nacional de Ciência e Tecnologia, criado para financiar a construção do conhecimento, seja de fato implementado com a publicação de editais.

Simões diz que o Brasil precisa financiar projetos inovadores tanto para ciências básicas como para ciência aplicada para o uso de tecnologia na indústria, no agronegócio e na agricultura e pecuária em geral, em diferentes escalas, ter um ensino médio que tenha ciência na sua grade curricular e, para isso, “é necessário acabar com essa reforma ridícula que o governo passado fez, que destruiu a educação”.

O professor Jefferson Cardia Simões é titular de Glaciologia e Geografia Polar da UFRGS, é vice-Pró-Reitor de Pesquisa da UFRGS, Comendador da Ordem Nacional do Mérito Científico e é pioneiro da Ciência Glaciológica no Brasil. Atualmente é Vice-Presidente do Scientific Committee on Antarctic Research/Conselho Internacional de Ciências (SCAR/ISC), com sede em Cambridge, Inglaterra. Ele obteve seu PhD pelo Scott Polar Research Institute, University of Cambridge, em 1990. É pós-doutor pelo Laboratoire de Glaciologie et Géophysique de l’Environnement (LGGE) du CNRS/França e pelo Climate Change Institute (CCI), University of Maine, EUA. Leciona e orienta alunos de graduação e pós-graduação em Geociências e Geografia.

Toda sua carreira foi dedicada às Regiões Polares, tendo publicado 210 artigos científicos, principalmente sobre processos criosféricos. Pesquisador do Programa Antártico Brasileiro (PROANTAR), é consultor ad-hoc da National Science Foundation – NSF (Office of Polar Programs).

Simões participou de 28 expedições científicas às duas regiões polares, criou o Centro Polar e Climático da UFRGS, a instituição que lidera no Brasil a pesquisa sobre a neve e o gelo. Ele coordena a participação brasileira nas investigações de testemunhos de gelo antárticos e andinos e faz parte do comitê gestor da iniciativa International Partnerships in Ice Core Sciences (IPICS). Recebeu o Prêmio Pesquisador Destaque da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (FAPERGS) por sua contribuição à pesquisa antártica.

Energia eólica bate recorde de produção no nordeste

A energia eólica no Nordeste bateu novo recorde de geração instantânea (pico de geração), informou o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS).

Em 8 de julho, as turbinas eólicas produziram 14.167 megawatts (MW), o equivalente a 123,2% da demanda na região.

Esse montante é suficiente para suprir o consumo de energia de todo o Nordeste por um minuto, sobrando 23,2%. Por um minuto naquele dia, a região tornou-se exportadora de energia eólica para o restante do país.

Os dados ainda estão em fase de validação pela ONS. Além do recorde eólico, o Nordeste atingiu o recorde de geração instantânea de energia solar. Às 10h28 da última terça-feira (12), a região produziu 2.963 MW solares. Isso equivale a 27,5% da demanda de todo o subsistema Nordeste naquele minuto.

Tradicionalmente, o mês de julho no Nordeste é conhecido como safra dos ventos, com os mais fortes no litoral da região impulsionando a produção de energia eólica. Esse foi o primeiro recorde de geração instantânea de energia eólica registrado em 2022. A ONS não descarta a possibilidade de que outros recordes sejam alcançados nas próximas semanas.

Segundo a versão mais recente do Boletim Mensal de Energia, do Ministério de Minas e Energia, a participação da energia eólica na matriz energética deverá aumentar de 10,6% em 2021 para 11,9% em 2022. A participação da energia solar deverá subir de 2,5% para 3,9% na mesma comparação.

(Com informações da Agência Brasil)

A ORLA TEM MÃE

Depois de um século de costas para suas águas, Porto Alegre  “descobriu” a orla, esse contorno de seu território desenhado pelas águas do Guaíba.

A cidade deve essa “descoberta” à arquiteta Lígia Klein Ebessen, jovem funcionária da Secretaria de Planejamento Municipal, em 1999.

Naquele ano, uma pesquisa para orientar a revisão do Plano Diretor apontou pela primeira vez a aproximação com as águas como uma demanda da população.

Por isso o Plano Diretor revisado naquele ano ganhou o artigo 83, que determina “estudos para permitir o acesso até à beira d’água”.

Ficou no papel, teria permanecido provavelmente se não fosse a iniciativa da arquiteta Lígia.

Moradora da zona sul, apaixonada pela orla, ela se interessou pelo assunto e percebeu que ninguém sabia o que era essa orla, uma terra de ninguém entre a cidade e o Guaíba.

“A Lígia ia com seu carro, com sua máquina, para ver, anotar, fotografar e ir mapeando este espaço que era totalmente desconhecido”, conta o arquiteto Marcelo Allet, que integrou a equipe e sucedeu Lígia na coordenação quando ela se aposentou.

Foi ela que, usando seu carro, sua câmera, tomou a iniciativa de mapear e fotografar os 74 quilômetros, da foz do Gravataí na orla norte até a Ponta do Lami, no extremo sul da cidade. Fez um mapa enorme, apelidado “lençol”, pendurado na parede, aonde ela ia colando as fotos, as notícias de jornal, para decifrar o universo da orla.

“Ninguém sabia que a Orla tinha 74 quilômetros”, diz o arquiteto Marcelo Allet, que trabalhou 15 anos com Lígia e foi seu sucessor no GT Orla, o corpo técnico que definiu as diretrizes para a ocupação da orla.

O GT Orla em trabalho de campo para mapear o espaço / Acervo pessoal

Os levantamentos pioneiros que Lígia fez por iniciativa pessoal deram origem aos estudos para urbanização dos trechos da Orla Central, junto à região mais populosa, da Usina até o Beira Rio.

O trabalho da arquiteta Lígia de buscar a identidade de um território no contexto de uma cidade é o caso exemplar de um servidor público consciente da importância de seu papel e seu compromisso com a sociedade.

Foram os esforços dela, muitas vezes incompreendidos, que fizeram com que a cidade tomasse consciência desse espaço que foi por um século abandonado.

“Eu digo que ela é a mãe da orla, porque ela começou sozinha, sem nenhum apoio e quando viram  o resultado dos levantamentos que ela fez é que foram levar a sério a questão da orla”.

Esse é o testemunho do arquiteto Marcelo Allet. Foram os sucessivos estudos do Grupo de Trabalho da Orla, o GT Orla, que ela coordenou até se aposentar, que consolidaram a vocação desse espaço para o uso coletivo. Lígia morreu em 2019, sem ter seu trabalho reconhecido.

Um século de aterros

Pelas águas chegaram os fundadores, pelas águas a cidade se ligou ao mundo, as águas fizeram dela o terceiro maior porto brasileiro, por onde saía a produção e entravam riquezas e novidades.

Mas em algum momento essa cidade ribeirinha deu as costas  para suas águas.  Um fato sempre invocado é a enchente de 1941, que arrasou bairros inteiros. Ali surgiram os planos de construir diques e muros de proteção entre a cidade e as águas.

Outra hipótese invoca os sucessivos aterros pelos quais a cidade avançou sobre o Guaíba, desde as primeiras obras do porto no início do século XX até a ocupação das áreas alagadiças da Praia de Belas, com sucessivos aterros a partir de 1970: onze grandes aterros ao longo de dez anos.

O certo é que antes do muro de concreto na avenida Mauá, um muro imaginário foi erguido. Onde não se aterrou ou ergueu muro, na Zona Sul, as praias ficaram poluídas. A população “deu as costas para o Guaíba”. Uma tentativa do prefeito Alceu Collares de urbanizar um trecho da orla foi rechaçada, em 1987.

 

A preocupação com o abandono da orla surge em 1999, nos preparativos para a revisão do Plano Diretor. Uma pesquisa mostrou que a população queria, pela primeira vez, o acesso à orla, era uma das principais demandas.

Os 19 setores mapeados em 74 quilômetros da orla

Em 2003 saiu o primeiro estudo de “Diretrizes para a Orla, com um mapa. Ao longo dos 74 quilômetros foram identificados 19 “setores” (ambientes diferenciados) e definidas as linhas básicas para a intervenção em cada um deles (mapa).

Esse estudo chamou a atenção e, então, foi formalizado o Grupo de Trabalho da Orla, o GT Orla,  envolvendo dez técnicos – arquitetos, engenheiros, biólogos – servidores de sete Secretarias. Definiu-se que a prioridade seriam os cinco quilômetros a partir da Usina do Gasômetro,  que circunda a área mais consolidada da cidade, a chamada Orla Central.

Equipe estudou a orla por 15 anos

Em 2005 e 2006, o grupo estudou experiências que deram certo em outros lugares, como a urbanização do aterro do Flamengo, a requalificação do Porto de Rosário na Argentina, situação semelhante à de Porto Alegre.

Desse trabalho nasceu o Relatório Orla, com as diretrizes para a urbanização dos primeiros trechos. Ali estavam as regras para a ocupação daquele espaço. A expectativa era de ou a equipe já envolvida há 15 anos faria o projeto executivo ou o município chamaria um concurso público.

No entanto, o prefeito José Fortunati mudou a Secretaria do Planejamento. Criou uma Secretaria de Urbanismo. Depois transferiu o GT Orla para a Secretaria de Meio Ambiente e, simultaneamente, contratou por “notório saber” o arquiteto Jaime Lerner, que se notabilizara pela “revolução urbana” que promoveu em Curitiba, onde foi duas vezes prefeito. Foi uma decisão contestada. Numa audiência na Câmara, para apresentar seus primeiros estudos para a orla, ele quase não conseguiu falar a um plenário lotado de manifestantes hostis que lhe atiravam moedas.

O contrato com o escritório de Jaime Lerner foi assinado no dia 16 de dezembro de 2011, para criação do Parque Urbano do Guaíba, num trecho de quilômetro e meio a partir da Usina do Gasômetro. Em 6 de outubro de 2015, começaram as obras, orçadas em R$ 68 milhões, com 18 meses de prazo para conclusão.  Demorou três anos e acabou custando R$ 74 milhões. Foi entregue ao público em 2018.

Haviam passado vinte anos desde os primeiros estudos, mas o sucesso imediato calou as críticas e acelerou as obras em mais dois trechos, um já concluído e entregue à população.

A cidade chega aos 250 anos com menos de cinco quilômetros de orla urbanizada, mas já tem um novo cartão postal para o século XXI.

 

Procurador pede investigação sobre contrato com Cais Embarcadero

Elmar Bones

O procurador-geral do Ministério Público de Contas, Geraldo Da Camino, pediu uma investigação para apurar se o contrato assinado, em nome do Estado, pela Superintendência do Porto de Rio Grande com o empreendimento Cais Embarcadero recebeu um anexo que “extrapola os objetivos estabelecidos”.

Da Camino protocolou na semana passada uma representação ao Tribunal de Contas do Estado (TCE) pedindo que “seja suspensa a contratação, subcontratação, execução de obra e instalação de empresas com objeto distinto ao previsto no contrato do governo do Estado com o empreendimento Embarcadero, no Cais Mauá”.

A representação do procurador foi motivada por uma notícia de jornal, sobre a instalação de uma loja da rede Pompeia para venda de “produtos de moda para o público feminino, masculino e infantil, além de linha de beleza e maquiagem.”

Procurador Geraldo Da Camino. Foto: MP-RS

O procurador diz que “caso mantida a execução do contrato com a inclusão de empresas de ramos de atividade não previstos inicialmente, emergiria a necessidade de que fossem apresentados os estudos demonstrando que somente a Embarcadero possuiria técnica para explorar a área mediante prestação de serviço e atividade comercial”.

“Ademais, a alteração na destinação das áreas apresenta potencial reflexo sobre a modelagem econômica, com provável repercussão sobre os valores a serem percebidos pelo Estado”.

Da Camino pediu, também, que o presidente do TCE determine à Direção de Controle e Fiscalização para que instaure processo de apuração especial para fins de apurar integralmente as questões referidas, “abarcando aquelas já suscitadas na Instrução Técnica no 017/2021 (Processo no 020200-0200/18-1)”

A instrução técnica a que se refere o procurador foi “instaurada para analisar os desdobramentos da denominada “revitalização do Cais Mauá”.

Conforme Da Camino, “há aspectos que estão sendo objeto de ações judiciais e que estão em acompanhamento pelo Tribunal de Contas”. Isso inclui o contrato firmado com o governo do Estado cedendo ao Embarcadero uma área de 19,3 hectares no Caís Mauá, sem licitação.

Área do Embarcadero ao lado da Usina do Gasômetro /Cleber Dioni Tentardini

“A matéria está sendo objeto de análise no âmbito dos processos mencionados inicialmente, não sendo possível externar posicionamento preliminar neste momento”,  disse o procurador em resposta aos questionamentos do Jornal JÁ.

Em sua representação, Da Camino questiona, inclusive, a modelagem financeira do projeto que consta do contrato, analisada por técnicos do MPC. O contrato é temporário e prevê que em quatro anos o empreendedor terá seu investimento remunerado. O procurador conclui: “ Com base nesses estudos, pode-se afirmar que o projeto previsto para ser executado a partir do Protocolo de Intenções (Peça nº 2876688) é inviável economicamente dentro do prazo mínimo acordado de quatro anos”.

Leia a íntegra da representação do MPC sobre Cais Embarcadero

Movimento de moradores tenta barrar megaprojeto na Praia do Santinho

Na semana passada duas máquinas perfuradoras fizeram sondagens na única área livre, de onde ainda se pode ter ampla visão das dunas e o mar do Santinho, a última das 14 praias que desenham a costa norte da ilha de Santa Catarina (a 12, no mapa abaixo).

A atividade de perfuração durou dois dias e alarmou os moradores pelo simples fato de que o “campão”, como chamam o terreno que se estende da rua principal até o mar, está envolvido num litígio que já dura 15 anos.

De um lado, uma empresa que constrói condomínios de luxo comprou a área de 7,8 hectares e quer ocupá-la com um megaprojeto: onze prédios, com 200 apartamentos, garagens para 800 carros, com impactos incalculados no ambiente e na vizinhança.

De outro, um forte movimento de moradores, que defende a desapropriação do terreno pelo município para uma destinação já consagrada pelo uso: uma praça e um centro comunitário, que o bairro não tem.

Há muito o espaço, plano e coberto de grama, vem sendo usado como praça e área de lazer e,  bem antes disso, já era usado pelos pescadores locais para estender e consertar suas redes.

“Acho que o Santinho é o único bairro de Florianópolis que não tem uma praça”, diz Rafael Freitag, presidente do Instituto Socio Ambiental do Santinho, um dos líderes do movimento comunitário.

 

Desde 2001, o movimento comunitário desenvolve ações de conscientização e educação ambiental, com mutirões de limpeza da praia (uma das últimas da ilha ainda preservada) e defesa do patrimônio ambiental ameaçado.

Em 2016, depois de intensa mobilização, eles conseguiram a criação de um parque ambiental,  para preservação permanente das dunas, da lagoa do Jacaré e a vegetação de restinga no entorno da praia.

Agora, a mobilização pelo “campão” reúne todos os grupos que compõem a população local – os descendentes das antigas famílias, a associação dos pescadores, os “novos manés” da primeira de ocupação, o surfistas e os moradores recentes.

“Conseguimos inclusive superar as divergências ideológicas e partidárias, colocando a questão do campão  acima disso”, diz Valéria Binatti,  gaúcha que adotou o Santinho, mentora do grupo  “Eu Sou Jacaré Poiô”, braço cultural do movimento comunitário.

O bairro com cerca de 4 mil moradores é alvo de intensa especulação imobiliária e, praticamente, não dispõe mais de áreas públicas.

Estimativas sobre o impacto do projeto indicam um aumento de 30% na população do bairro, que cresce em ritmo acelerado e é carente de infraestrutura pública.

A rede de esgoto, que vem sendo instalada há três anos, está incompleta e com as obras paradas. A Casan, responsável pelas obras, não respondeu às perguntas que encaminhamos há duas semanas.

Duas elevatórias previstas no sistema de esgotamento estão dentro de uma área de preservação permanente, junto a nascentes de água doce.

Desde 2018, o movimento pressiona a Casan para mudar a localização das estações de bombeamento. Apresentou uma proposta de localização alternativa para as elevatórias, com apoio técnico de especialistas, mas ainda não teve resposta.

Perguntas sem resposta

Nesta quarta-feira, 5 de maio, o deputado Pedro Baldissera protocolou um pedido de informações ao Instituto de Meio Ambiente de Santa Catarina para saber se o polêmico projeto do “Costão dos Atobas” (esse é o nome) foi realmente liberado.

O projeto já teve uma Licença Ambiental Prévia, expedida em abril de 2010 e que perdeu a validade três anos anos depois. O processo de licenciamento foi retomado em fevereiro de 2017.

O último movimento desse processo, que chegou aos moradores, foi uma audiência pública no dia 27 de fevereiro de 2019, para apresentação do Estudo de Impacto de Vizinhança.

Mesmo anunciada na véspera, a apresentação atraiu grande público e foi tamanha a reação dos presentes que a audiência  foi suspensa e considerada nula pelo IPUF.

Desde então, os moradores aguardavam uma nova data para a audiência pública até que, na semana passada que foram surpreendidos pelas máquinas fazendo sondagens no terreno, sinal de que o projeto recebeu Licença Ambiental de Instalação.

Quando e como foi dada a licença? A audiência pública, antes anulada, tornou-se válida?

Essas são as perguntas que os moradores estão fazendo e que o deputado agora formalizou com seu pedido de informações ao IMA.  Pela primeira, vez o movimento comunitário pelo campão reúne todos os grupos que compõem a população local – os descendentes das antigas famílias, a associação dos pescadores, os “novos manés” da primeira de ocupação, o surfistas e os moradores recentes.

O que mais preocupa é o histórico da empresa que comanda o projeto do “Costão dos Atobás”. A Procave Empreendimentos Imobiliários, com sede em Camboriu, é responsável pela maioria dos espigões que mudaram o cenário de Balneário Camboriú a ponto de projetarem sombra na praia.

No Balneário Camburiu, sombra dos espigões na praia

“No Santinho é proibido construir mais de quatro andares, mas a gente sabe que as leis podem mudar dependendo dos interesses em jogo”, diz Freitag.