A República Rio-grandense foi um país com hino, bandeira e passaporte, mas não teve uma Constituição e jamais foi abolicionista.
Em 11 de setembro de 1836, um dia após os farroupilhas vencerem os imperiais em uma batalha de grandes proporções no Campo dos Menezes, junto ao arroio Seival, no atual município de Candiota, o coronel farrapo Antônio de Souza Neto declarou o Rio Grande do Sul um país independente do Brasil.
Bento Gonçalves estava entrincheirado em Viamão e, ao partir para se juntar às forças de Neto, foi encurralado na Ilha do Fanfa e teve que se entregar.
A República Rio-grandense completa agora 188 anos. Durou oito anos e dois meses (11/09/1836-28/02/1845). Foi a mais duradoura de todas as tentativas, desde Zumbi dos Palmares, de romper os laços com o Império e estabelecer um regime republicano, mas nunca chegou a ter um poder estável que dominasse todo o território da Província. Porto Alegre, Rio Grande e municípios da colônia alemã eram contrários aos farroupilhas.
Ao contrário, foi um regime itinerante, assediado, que mudou três vezes a capital em menos de nove anos. Teve bandeira, hino, moeda, mas não conseguiu votar uma constituição, e cujo texto não previa cumprir uma das principais promessas dos farroupilhas: a libertação dos escravos.
Nos últimos anos, batida militarmente, a República Rio-grandense se estiolou numa rede de intrigas a que não faltou sequer um duelo em que o presidente Bento Gonçalves matou um de seus generais.
Tristão de Alencar Araripe, funcionário do Império que escreveu a primeira história completa da revolução, em 1881, chamou de República de Piratini, com um sentido pejorativo, de republiqueta.
Ele afirma que houve apenas uma mudança de nome, império por república, e do imperador pelo presidente, já que as leis e a estrutura administrativa seguiam sendo basicamente as mesmas do Império.
Disse ainda que foi “um regime militar”, pois o presidente Bento Gonçalves tinha poderes discricionários, nunca houve consultas para eleger seus magistrados, e a constituinte, que daria novas leis ao país, não chegou a ser votada.
É preciso considerar que os liberais daquela época não eram democratas, no conceito que se usa hoje. Eles não reconheciam no homem comum a capacidade para selecionar os dirigentes.
Muitos autores, como Dante de Laytano, procurando minimizar o caráter separatista que a revolução assumiu a partir de 1836, registraram que a república foi “um afastamento provisório”, um meio para alcançar a federação brasileira mais adiante.
Moacyr Flores, historiador que fez as mais extensas pesquisas sobre o tema, é mais enfático: “Os farroupilhas criaram de fato um Estado separado e independente do Brasil, pois tinham bandeira, dinheiro, projeto de constituição, leis e governo próprios.
Em seus jornais, as notícias sobre o Brasil apareciam na coluna denominada Exterior e os brasileiros eram considerados como estrangeiros.
Este país, porém, não conseguiu ser reconhecido por nenhuma outra nação estrangeira – embora houvesse recebido apoios dos governos uruguaio e argentino, interessados em atrair os rio-grandenses para uma federação platina.
Entretanto, Bento Gonçalves, quando esteve em Paisandu, no Uruguai, recebeu honras de presidente de Estado, o que provocou reclamações do governo imperial ante o presidente uruguaio, Fructuoso Rivera.
Em 1º de dezembro de 1842, o presidente da República Rio-Grandense, general Bento Gonçalves, discursa na abertura da Assembleia Geral Constituinte. A primeira convocação da Assembleia foi feita em 10 de fevereiro de 1840, mas teve sua instalação adiada devido aos imprevistos da guerra.
Bento afirma que as regras fundamentais do Estado serão baseadas nos princípios proclamados na independência do Rio Grande, em 1836. E pede prudência, sabedoria e moderação aos legisladores para fixar uma forma de governo que proteja a vida, a honra, a liberdade, a segurança individual, a propriedade, e a igualdade, bases essenciais dos direitos do homem: “… lembrai-vos de que a moral pública, a segurança individual e de propriedade exigem prontas reformas nas leis, que provisoriamente adotamos, pouco adequadas às nossas atuais circunstâncias (…) A felicidade e a sorte da República está hoje em vossas mãos…”.
Mas a unidade estava longe da Assembleia Constituinte, principalmente ao tratar da abolição da escravidão.
O deputado e vice-presidente da República Rio-Grandense, José Mariano de Mattos, apresentou na Constituinte um projeto que previa a liberdade dos escravos. Tinha o respaldo de companheiros como os generais Bento Gonçalves e Antônio de Souza Netto. Mas havia os farroupilhas que eram contra, como Vicente da Fontoura e Onofre Pires, e, embora fossem minoria, se opuseram de forma enérgica à abolição dos escravos e não permitiram a provação desse item.
Bento Gonçalves apresentou o Projeto de Constituição da República Rio-Grandense sem tratar da liberdade dos escravos. Seriam considerados cidadãos riograndenses, conforme ficou estabelecido no artigo 6º : “todos os homens livres nascidos no território da República; todos os brasileiros, que habitavam no território da República desde o memorável dia 20 de setembro de 1835, e têm prestado serviços à causa da revolução, ou da independência, com intenção de pertencer à nação Rio-Grandense; os brasileiros residentes no território da República na época em que se proclamou a independência, que aderiram a esta, expressa ou tacitamente, pela continuação de sua residência, bem como todos os outros brasileiros, que atualmente estão empregados no serviço civil e militar da República; os filhos de pai ou mãe, natural do país, nascidos fora do Estado, desde o momento em que vierem estabelecer nele seu domicílio; todos os estrangeiros, que têm combatido ou combateram, na presente guerra da independência, contanto que residam dentro do país, e tenham a intenção de fixar nele seu domicílio; Os estrangeiros, pais de cidadãos naturais da República e os casados pais que professando alguma ciência, arte ou indústria, ou possuindo algum capital em giro, ou bens de raiz, se achem residindo no Estado ao tempo de jurar-se esta Constituição; os estrangeiros naturalizados, qualquer que seja sua religião.”
O silêncio de quase meio século imposto à memória da revolução trouxe dificuldades para o entendimento até de coisas mais simples, como é o caso dos símbolos da República Rio-grandense. O próprio líder do movimento, Bento Gonçalves, morreu esquecido.
Segundo Walter Spalding, as palavras Liberdade, Igualdade, Humanidade, inscritas no brasão da República Rio-grandense, não faziam parte do desenho original, “que deve ter sido criado logo após a bandeira em novembro de 1836”. As palavras foram, no entanto, oficializadas em 1891, pelos republicanos positivistas de Júlio de Castilhos.
A bandeira criada por decreto de Domingos José de Almeida deveria ter um triângulo isósceles na parte superior, outro igual e simetricamente disposto na parte inferior e uma faixa no centro, separando os dois triângulos.
“No entanto, esse decreto foi mal interpretado e as bandeiras começaram a surgir de todos os feitios. Encontramos hoje mais de uma dezena de bandeiras rio-grandenses diferentes”, escreveu Spalding, que chegou a entregar um estudo à Assembleia Legislativa para a uniformização da bandeira que mais tarde se tornou a bandeira oficial do Rio Grande do Sul. Também não é isento de controvérsias o hino da República.
O hino foi composto dois anos depois da proclamação, em abril de 1838, quando os farrapos tomaram a cidade de Rio Pardo e aprisionaram a banda de música, cujo maestro era o célebre músico Joaquim José Mendanha, “figura bastante popular na província”.
Segundo Spalding, o maestro simplesmente adaptou o trecho de uma valsa de Strauss e pôs o ritmo de marcha. O jornalista e crítico musical Ênio Squeff acha pouco provável: “O que sei é que o Mendanha não compôs uma peça original para o hino. Utilizou uma composição de sua autoria, não um trecho de Strauss”. Também a letra teve várias versões. Hoje é o hino oficial do Rio Grande do Sul.
Só quando o movimento republicano ressurgiu em todo o Brasil, a partir de 1880, ela e seus líderes foram reabilitados, agora como heróis para servir à propaganda contra o regime imperial.
Quando a república foi proclamada em 1889, os rio-grandenses, aí já batizados de farroupilhas ou farrapos, ressurgiram como o exemplo pioneiro de rebeldia.

Disputa local decidiu os rumos da revolução
No local onde Neto fundou a República Rio-grandense foi colocado um marco de concepção positivista, em 1935, como parte das comemorações do Centenário da Revolução Farroupilha
Na placa está escrito: “Neste local em 11 de setembro de 1836, travou-se a batalha do Seival e foi proclamada a República de Piratini”.
Um reparo: a expressão “República de Piratini” foi o rótulo pejorativo que os inimigos aplicaram para diminuir o significado da separação – Piratini era um lugarejo perdido no interior da Província. Neto proclamou a República Rio-grandense
Foram os propagandistas republicanos meio século depois que adotaram a “República de Piratini” porque se coadunava com as “pequenas pátrias” de Augusto Comte.
Outro detalhe. Ali onde está o marco se deu uma batalha, não entre duas nações, mas entre dois caudilhos, dois coronéis da Guarda Nacional, que disputavam o poder na região de Bagé
O coronel João da Silva Tavares foi o único comandante da Guarda Nacional que permaneceu fiel ao Império. Era compadre de Bento Gonçalves e foi convidado. Não aceitou o convite para entrar na conspiração. Uma das razões era sua rivalidade com Neto, em Bagé.
Por isso, foi um dos primeiros a pegar em armas em defesa das posições imperiais. Tavares impôs a primeira derrota aos farrapos, menos de um mês depois da tomada de Porto Alegre. Mas com o avanço da rebelião por toda a província ele ficou isolado e teve que emigrar.
A revolução ainda não completara um ano, quando Neto recebe sinais de que Tavares está de volta para retomar Bagé. Tavares faz alto junto ao Arroio Candiota. Netto sai ao seu encontro. Tavares posiciona sua tropa no alto da coxilha, Neto posta-se no baixio, depois de atravessar o arroio Seival.
General Neto
Segundo o historiador Othelo Rosa, Tavares tinha 560 homens e Neto tinha 430. Depois da primeira carga de fogo, as duas forças se atracam de lança e espada. A vanguarda dos imperiais leva vantagem no primeiro embate. Mas um acidente desorganiza sua ação: quebra-se o freio do cavalo de Tavares, o animal dispara e causa enorme confusão entre os que lutavam. Refeitos, os homens ainda tentam reagir, mas o oficial que comanda o ataque é ferido na coxa, cai do cavalo e sua gente se dispersa.
“Silva Tavares completamente destroçado deixa no campo 180 mortos, 63 feridos e mais de 100 prisioneiros”, escreve Othelo Rosa. Não menciona as perdas de Neto. “Foram mínimas”, segundo Araripe, um autor insuspeito.
A vitória na “Batalha do Seival” foi tão cabal, tão entusiasmante, que Neto, instigado pelos oficiais exaltados do seu exército, toma uma decisão gravíssima, no dia seguinte. Ainda no acampamento e diante da tropa perfilada, ele proclama a República Rio-grandense, separada do Brasil.
“Camaradas, nós que compomos a Primeira Brigada do exército liberal, devemos ser os primeiros a proclamar, como proclamamos, a independência dessa província, a qual fica desligada das demais do Império e forma um Estado livre e independente, com o título de República Rio-grandense, e cujo manifesto às nações civilizadas se fará oportunamente. Camaradas! Gritemos pela primeira vez: “Viva a República Rio-grandense! Viva a Independência! Viva o exército republicano riograndense”.
Foi um gesto tomado num local isolado, perante algumas centenas de soldados, num tempo em que as notícias andavam a cavalo. Mas foi suficiente para sustentar a guerra por mais nove anos.
(Com informações da revista JÁ – edição especial sobre a República Rio-grandense)