Servidores denunciam precarização do atendimento no Hospital de Pronto Socorro

A Associação dos Servidores do Hospital de Pronto Socorro de Porto Alegre está alertando para a precarização do atendimento no hospital, que é referência em emergências no Estado.

Segundo notas que a entidade tem distribuído à imprensa, o HPS vive um quadro de superlotação crônica, resultado de um aumento da demanda, da falta de pessoal e da redução de investimentos.

Há também um crescente avanço das terceirizações dos serviços do HPS, de seguranças a médicos.

O resultado são unidades fechadas, uma UTI inclusive, servidores estressados e a consequente queda na qualidade e redução do atendimento à população, segundo o diagnóstico da ASHPS.

No inverno passado, quando havia pacientes pelos corredores, a Associação mandou a primeira nota aos jornais. As notícias, com as imagens dramáticas na tevê, levaram a Prefeitura a ampliar o quadro de funcionários, com contratos de emergência.  Os contratos eram de seis meses, não foram renovados… e o assunto saiu do noticiário. Se nada for feito, as cenas das macas com doentes nos corredores vai voltar no inverno que se aproxima.

Segundo a ASHPS, são problemas estruturais que se acumulam, consequência de um modelo de gestão que vem sendo adotado.

“Nos dois últimos governos é clara a mudança da proposta. Uma desvalorização dos servidores que fazem parte do quadro, que passaram num concurso, se submeteram a uma preparação. É clara a intenção de mudar essa cultura do servidor público. É uma tendência desvirtuar a função do HPS, que é um hospital referência no Rio Grande do Sul focado no trauma e em queimados. Agora está atendendo tudo, casos clínicos inclusive”.

Os serviços de emergência em Porto Alegre observam uma especialização entre os hospitais: para as emergências clínicas, Santa Casa, Hospital de Clínicas. Para trauma, Cristo Redentor e HPS, este com o diferencial de uma ala de  queimados e a única UTI pediátrica, para trauma em crianças.

A especialização, que garante a excelência, pode ficar prejudicada com a diversificação do atendimento.

Além da redução de servidores,  há afastamentos por stress ou doença, que são consideráveis. As vagas no quadro funcional não são preenchidas, embora haja concursados esperando nomeação há dois anos.

Na medida em que se reduz o quadro de servidores, avança a terceirização dos serviços. Já aconteceu nos postos de saúde vem acontecendo uma forma gradativa dentro do Hospital Presidente Vargas. Inclusive médicos. “Nós temos médicos na UTI que são terceirizados, temos médicos no centro cirúrgico que são terceirizados, nos andares também tem médicos terceirizados e na emergência também, na emergência tem muita residência. Só na enfermagem não tem, mas a tendência é que a enfermagem também passe a vir de empresas terceirizadas.”

Duas representantes da Associação dos Servidores falaram ao JÁ. A vice-presidente Janaína Brum e a diretora administrativa Bernadete Flores, ambas técnicas de enfermagem. Calculam que estejam faltando ao menos 300 técnicos só no HPS, e relatam que médicos estão sendo desestimulados a prestar concurso público, diante do fato de que os contratados recebem até o triplo do valor por plantão.

Elas disseram que estão procurando a mídia depois de levarem suas demandas a todas as instâncias internas, sem obter resposta.

Vamos dar continuidade ao assunto, ouvindo a direção do HPS e a Secretaria Municipal de Saúde.

NOTAS DA ASSOCIAÇÃO DOS SERVIDORES DO HPS DISTRIBUÍDAS AOS ÓRGÃOS DE IMPRENSA

16/06/ 2023:

Novas denúncias, velhos problemas: alagamentos no HPS seguem acontecendo em dias de chuva

Com a chuva iniciada ontem, quinta-feira (15), alagamentos voltam a ocorrer no Hospital de Pronto Socorro de Porto Alegre – HPS. O problema não é novidade há muito tempo, sendo por vezes banalizado, mas segue sem solução por parte do governo municipal que anuncia superávit de R$ 516 milhões em 2022, e divulga uma Porto Alegre que não dialoga com a vida real da população. São servidores, pacientes e familiares tendo que conviver a cada chuva com alagamentos dentro do hospital que ficam apenas com promessas de solução.

As fotos e vídeos em anexo, encaminhadas através de denúncias, registram a consequência da chuva dentro da emergência do hospital, do 5º andar, na farmácia e nos andares onde ficam localizadas as Unidades de Tratamento Intensivo – UTIs.

Só em 2022, nos meses de fevereiro e março, a direção da Associação dos Servidores do Hospital de Pronto Socorro – ASHPS já havia denunciado problemas graves por conta de infiltrações e alagamentos. Segundo a presidenta da associação, a técnica em enfermagem Marília Iglesias,  os problemas não são pontuais por conta de telhas ou de fortes chuvas em dias específicos, como costuma afirmar a Secretaria da Saúde (SMS), a gravidade da situação é crônica e segue sem solução há anos.

11/08/2023:

Situação gravíssima no HPS. Esgoto transbordando, goteiras e roedor morto!

A Associação dos Servidores do HPS – ASHPS, decidiu encaminhar para a imprensa as situações pela qual passam funcionários e pacientes.

O esgoto está transbordando no HPS e causando alagamento na sala amarela.

No corredor do 4° andar há alagamento que coloca em risco a necessidade do trânsito de servidores e pacientes.

No refeitório há goteiras, trazendo transtorno no horário da refeição dos servidores e familiares de pacientes.

Há cerca de dois meses, um roedor em decomposição deixa a sala vermelha insalubre *(https://ashps.com.br/detalhe-blog/ashps-cobra-direcao-por-cheiro-de-bicho-morto-na-sala-vermelha)*

Todos esses problemas têm sido recorrentes, piorando em alguns momentos. A gestão do hospital está ciente dos problemas, mas tudo segue igual.

04/03/2024

NOTA AOS EDITORES/IMPRENSA

“O HPS vem sofrendo nas últimas semanas com  a super lotação na emergência do hospital. Muito, devido ao fechamento de serviços, como o hospital de Viamão, mas também por excesso de demanda espontânea. O que ocorre é que os pacientes tem sido atendidos até nos corredores. A falta de servidores para o atendimento aos pacientes é um problema crônico, que nem o HPS e nem a Secretaria de Saúde resolvem, e já vem sendo denunciada por essa Associação há muito tempo. Acontece que neste momento, no Hospital, a situação está muito crítica, ocasionando fortes riscos aos pacientes, e sobrecarga absurda aos servidores, ocasionando demora no atendimento, e falta de condições para atender dignamente a população.

Gostaríamos de um espaço para denunciar esta situação alarmante no maior hospital de trauma do RS”.

 

Herdeiros da lepra: governo quer reparar danos e preservar a memória

O deputado Pepe Vargas, do PT/RS, não precisou escrever mais que três linhas para aprovar o tombamento do Hospital Colônia de Itapuã.

A lei que incorpora o antigo sanatório dos leprosos  ao Patrimônio Histórico do Rio Grande do Sul diz apenas o essencial:

“Art. 1° Fica declarado como integrante do patrimônio histórico e cultural do Rio Grande do Sul, o Hospital Colônia Itapuã (HCI), situado no município de Viamão. Art.2° Esta lei entra em vigor na data da sua publicação.

O projeto de Pepe Vargas foi aprovado por unanimidade em duas comissões e virou lei no dia 21 de novembro de 2023, quando o plenário aprovou, também por unanimidade.

Pepe Vargas disse ao JÁ que sua iniciativa se insere numa política nacional de reparação das pessoas que foram contra a vontade segregadas nos 26 Hospitais Colônia, criados pelo governo Getúlio Vargas, em 1940, para isolar os portadores da hanseníase, a tão temida lepra.

“Foi uma política higienista, de um Estado autoritário que cometeu uma violência contra essas pessoas arrancadas de suas famílias e isoladas à força. O Estado brasileiro nunca tinha feito mea culpa disso, não havia feito nada para restaurar os direitos dessas pessoas”, diz o deputado.  Ele lembra que foi Lula, em 2007, quem tomou a primeira decisão nesse sentido com o projeto que garantiu uma pensão vitalícia a todas as pessoas confinadas nesses sanatórios, no valor de um salário mínimo. Agora, em projeto aprovado esta semana, Lula estendeu esse direito também aos filhos dessas pessoas, muitos deles nascidos e criados dentro dos sanatórios, em isolamento.

“O Estado brasileiro está reparando esses danos aos direitos humanos, quem vêm desde o Estado Novo”, diz o deputado.

Além de garantir os direitos, o governo pretende salvar a memória desses hospitais que chegaram a ser pequenas cidades isoladas e, hoje, são o símbolos de um tempo,  entre os últimos vestígios materiais do Estado Novo getulista e marca de seu maior fracasso na área da saúde pública.

A orientação no Ministério dos Direitos Humanos é de que todos os ex-hospitais colônia sejam tombados pelo patrimônio público.  O Ministério prevê recursos para fazer um inventário de todos os 26 hospitais colônia, para integrá-los ao patrimônio histórico nacional e estudar alternativas para sua preservação e destinação.

Hospital em Viamão ocupa uma área de 1.252 hectares, uma mini cidade. Foto: Cleber Dioni Tentardini

O Hospital Colônia de Itapuã, na região metropolitana de Porto Alegre, foi o último dos 26 sanatórios para leprosos a ficar pronto, em maio de 1940. Foi construído dentro de uma área de 1.252 hectares, numa região de exuberante Mata Atlântica.

Igreja Luterana, tombada pelo IPHAE. Foto: Cleber Dioni Tentardini

As construções e a parte urbanizada ocupam 15% da área. Além da enfermaria e demais dependências do pequeno hospital, foram construídos no terreno 142 prédios: casas de moradias, instalações de serviços, igrejas, até cassino, muitos em ruínas, todos abandonados. Essas instalações chegaram a abrigar 700 pacientes, cuidados por 100  irmãs franciscanas e outros tantos funcionários, todos morando lá.

Com a disseminação do tratamento e da cura da hanseníase, o HCI foi-se esvaziando à medida que morriam os seus pacientes, muitos nascidos ali dentro ou levados para lá ainda crianças. No total, 2.474 pacientes passaram pelo hospital ao longo de 80 anos. De lá não sairiam, nem mortos.

Os 26 hospitais colônia criados no Brasil para confinar os leprosos surgiram na contramão da história, num momento em que as pesquisas científicas vinham desmistificando crendices antigas em torno da doença. Desde 1873, o médico norueguês Gerhard Hansen havia provado que ela era causada por um bacilo e não um “castigo de Deus”.

Em 1941, já se sabia que a lepra era curável  e que nem todo paciente precisava ser isolado. Em 1985, foi extinta a política de confinamento compulsório dos hansenianos.

Com diagnóstico precoce, a doença era curável e podia ser tratada em casa, mediante alguns cuidados.

Atualmente o HCI tem os últimos três pacientes ex-hansenianos, que impedem o seu fechamento completo. Um convênio entre o governo do Estado e a Prefeitura de Viamão previa a desocupação do hospital até o final de 2023.

 

Três pacientes travam o fechamento do último hospital colônia do Brasil: “Nós não caminhamos sós”

Textos: Elmar Bones e Cleber Dioni tentardini
Fotos: Ramiro Sanchez/@outroangulofoto

O fechamento do Hospital Colônia de Itapuã que o governo do Estado vem preparando há dois anos foi suspenso pela Justiça na quarta-feira, 27/09, para garantir o direito dos três últimos ex-hansenianos permanecerem no lugar para onde foram levados compulsoriamente e onde vivem há mais de 50 anos.

Em 2021, quando foi iniciada a retirada gradativa dos últimos pacientes para o fechamento definitivo do hospital, restavam 17 ex-hansenianos.

Na última quarta-feira, a  decisão da Justiça de suspender a transferência deles para clínicas particulares, encontrou apenas os últimos três.

Outros 14 já estão em “residências terapêuticas”, casas adaptadas que também acolhem os pacientes com doenças mentais no HCI.

Essas casas são mantidas pela Prefeitura Municipal de Viamão, em convênio com o governo do  Estado.

A decisão de suspender qualquer tentativa de transferir os últimos pacientes atendeu pedido do Ministério Público Estadual, que vai também investigar as condições em que outros pacientes já foram removidos.  Eles poderão retornar, se quiserem.

Outra questão que o MP quer esclarecer é o destino da área que pertence ao hospital – 128 hectares encravados numa área de preservação permanente, junto ao Parque de Itapuã.

“Nós não caminhamos sós”

A lepra ainda assombrava a humanidade em 1940, quando o governo brasileiro começou a inaugurar uma rede de hospitais-colônias para confinar os portadores do mal incurável e que, se acreditava, podia contagiar até pelo ar.

Eles ainda eram chamados de “leprosos” e apedrejados nas ruas quando vistos fora dos locais onde viviam isolados para não transmitir a terrível maldição (“um castigo de Deus”) e poupar as comunidades do feio espetáculo daqueles corpos mutilados, cobertos por trapos.

A bíblica lepra hoje chama-se hanseníase, é uma enfermidade  curável, e os portadores são chamados hansenianos, em referência a Hansen, o  descobridor do bacilo que causa a doença e que abriu o caminho para a sua desmistificação.

O médico norueguês Gerhard Armauer Hansen identificou o bacilo causador de lepra em 1873, mas a cura só seria conhecida em 1941, quando ele morreu aos 70 anos. Foto: Universidade de Bergen.

Identificada a causa, logo descobriu-se que o contágio se dava pela saliva e outras secreções, mas não na intensidade e com o alcance imaginado. O isolamento como única forma de tratamento foi perdendo o sentido.

Em consequência, os 46 hospitais-colônias criados no Brasil para confinar os leprosos surgiram na contramão da história da doença. 

O Hospital Colônia de Itapuã foi o último. Começou a ser construído em 1937 e foi inaugurado em 11 de maio de 1940.

No ano seguinte, foi anunciada a cura da lepra e, em 1985, foi extinta a política de confinamento compulsório dos hansenianos.

Com diagnóstico precoce, a doença era curável e podia ser tratada em casa, mediante alguns cuidados. 

Nesse período,  2.474 pacientes foram internados à força no Hospital de Itapuã. De lá não sairiam, nem mortos.

Sete freiras da Ordem das Irmãs Franciscanas da Caridade e Piedade Cristã receberam os primeiros pacientes.

Mesmo com o risco de contrair a doença, outras cem irmãs franciscanas passariam por lá como voluntárias para o serviço no hospital.

As religiosas eram responsáveis pelo serviço de enfermaria, farmácia, padaria, cozinha, lavanderia, fábrica de sabão e outros serviços.

Também faziam a limpeza da igreja, onde se realizavam missas, casamentos e enterros, oficiados pelo frei Pacífico, outra figura lendária na história do HCI.

As irmãs franciscanas. Fotos: Arquivo Memorial HCI
As irmãs franciscanas
Frei Pacífico

 

 

 

 

Na década de 1950, quando o estigma da lepra ainda aterrorizava e os leprosos eram escorraçados, o HCI chegou a ter mais 600 pacientes (e outro tanto de funcionários). Era uma pequena cidade, quase autossuficiente, com 42 prédios de uso comum, três igrejas, uma escola, 44 casas de moradia, metade delas ocupadas por funcionários que trabalhavam diretamente na “área suja”, em contato direto com os pacientes. Eles também viviam confinados lá.

Nos 15 hectares delimitados para o hospital criava-se gado (chegou a ter 250 cabeças), funcionava um tambo de leite, um abatedouro, hortas, uma padaria e até um cassino, para jogos, bailes e atrações culturais.

Ruínas do tambo de leite
Calçados apropriados para os hansenianos

Os próprios pacientes fabricavam roupas, calçados e até próteses artesanais, de pé, mão, braço, as partes que a lepra primeiro destrói. Para os negócios internos havia até uma moeda.

Desse tempo, o que está mais preservado é o cemitério, que guarda os restos de todos os que um dia transpuseram aquele pórtico com a frase enigmática: “Nós não caminhamos sós”. Inclusive religiosos como o Frei Pacífico de Bellevaux – batizado Luis Narciso Place -, religioso francês que chegou ao Rio Grande do Sul em 1899. Foi co-fundador das Irmãs Franciscanas de Nossa Senhora Aparecida e um dos idealizadores do hospital-colônia, onde foi capelão aos 67 anos. O “Anjo da Caridade”, título que recebeu de Dom Vicente Scherer, então Arcebispo de Porto Alegre,  por sua dedicação e proximidade com os doentes, faleceu em Porto Alegre, aos 84 anos. 

Capela do cemitério.

Últimos pacientes passam maior parte do tempo na enfermaria

Em 2021, quando foi iniciada a retirada gradativa dos últimos pacientes para o fechamento definitivo do hospital, restavam 17 ex-hansenianos.

Na quinta-feira, 28 de setembro de 2023, a decisão da Justiça de suspender a transferência deles para clínicas particulares, encontrou apenas três: O casal Osvaldo Gomes e Eva Venâncio Pereira, e Valdeci Barreto, viúva. Eles têm casa lá, mas como necessitam de cuidados constantes, estão recolhidos à enfermaria.

Seis familiares de pacientes que já morreram também moram lá. É o caso de Jacó, hoje com 70 anos, que nasceu lá dentro e foi retirado da mãe assim que nasceu (as mães leprosas não podiam nem tocar nos recém-nascidos) e levado para uma Casa de Amparo.

Loirinho, de olho claro, aos 10 anos ele foi adotado por uma família de São Leopoldo, mas quando souberam que era filho de uma ex-leprosa, trataram de devolvê-lo e, então, ele foi morar no asilo.

Ele conta que as crianças recolhidas à Casa de Amparo eram levadas uma vez por mês para ver e serem vistas pelas mães.

O ônibus encostava na entrada do hospital, onde as mães se postavam  para ver os filhos através dos vidros do ônibus. Eles não podiam nem descer.

Para atender aos últimos pacientes,  são quatro enfermeiros, 12 técnicos de enfermagem e seis cuidadores que se revezam. Os serviços de segurança, limpeza e manutenção são feitos por empresas terceirizadas. O custo mensal de toda a estrutura para o governo do Estado é de R$ 750 mil mensais.

Se conheceram no final dos anos 1970
E vivem juntos há mais de 20 anos
Seu Osvaldo e dona Eva

Estão curados há muitos anos, mas as sequelas da doença são visíveis: mãos em garra, nariz ‘desabado’, retração óssea, pouca sensibilidade nas mãos e pés, além das dificuldades para falar e ouvir. Mas o carinho entre eles salta aos olhos.

Na cama do casal, uma boneca que dona Eva cuida como se fosse a filha, que sempre quis ter. No armário, a “pilcha” que seu Osvaldo usava para ir aos bailes em Itapuã “quando era mais moço”. Iam de carroça, ele e dona Eva, sua prenda. Hoje o único vício é o fumo, para decepção da enfermeira Salete,  que se esforça para fazê-los largar o cigarro.

Perda do vínculo é o que preocupa

A enfermeira Salete diz que os ex-hansenianos que saíram do hospital estão bem porque ainda mantêm o vínculo com os servidores do hospital.

Apenas uma paciente vive sozinha, totalmente independente, os demais vivem com parentes, mas todos são assistidos pelo Estado, com transporte e acompanhamento a consultas e procedimentos médicos, remédios e alimentos.

Além de uma pensão no valor de cerca de um salário mínimo e meio como forma de indenização pela internação compulsória.

“Nós temos competência, vontade e experiência, gostaríamos de ficar no hospital porque existe a possibilidade de a gente servir os pacientes aqui dentro e os que estão morando em Viamão. Caso sejamos todos removidos e o hospital fechado, os pacientes perderiam esse vínculo que mantêm há mais de 50 anos, o que é preocupante”, afirma.

Salete diz que eles precisam não só do amparo financeiro mas também manter o vínculo com o hospital

Salete diz que eles precisam não só do amparo financeiro mas também manter o vínculo com o hospital, principalmente agora por conta das comorbidades próprias da idade avançada como problemas cardíacos, vasculares.

“Este é o compromisso que o Estado está outorgando para outras mãos”, lamenta Salete.

Funcionários também vivem na incerteza

Para atender aos últimos pacientes do HCI  são quatro enfermeiros, 12 técnicos de enfermagem e seis cuidadores que se revezam.

Os serviços de segurança, limpeza e manutenção são feitos por empresas terceirizadas. O custo mensal de toda a estrutura para o governo do Estado é de R$ 750 mil mensais.

Isabel de Souza Ropertti, 53 anos, servidora do HCI há nove anos, é responsável pelo Memorial, um casarão de dois pisos que guarda arquivos, mobiliárias, fotografias e outras lembranças do hospital, inclusive o fichário de todos os pacientes que por lá passaram.

Uma história de quase um século em que lances macabros e aterrorizantes se misturam com exemplos comoventes de superação e solidariedade.

Ela teme que toda essa memória se perca com o fechamento do hospital.

Isabel defronte o Memorial, antiga residências das freiras

Isabel está lá há nove anos. Trabalhava no Ambulatório de Dermatologia Sanitária, na Cidade Baixa, em Porto Alegre, e residia com marido e filhos na Capital, mas decidiram mudar-se para Viamão a fim de ficar mais perto da sogra, que mora em Itapuã e tem idade avançada.

“Então pedi transferência para o hospital e mudei para uma das residências Se for transferida novamente para Porto Alegre, será bem complicado porque vamos permanecer morando no extremo sul de Viamão. Mas, se for o caso, prefiro voltar para o ambulatório, afirma.

Elizeu em frente sua casa

Elizeu Pereira, 58 anos, trabalha no HCI há 28 anos, mas frequenta o local desde criança pois seus pais trabalhavam no hospital. Ele mora com um filho adolescente e também não gostaria de sair, mas sabe que não depende de sua vontade. “É uma vida aqui, não tenho nem pra onde ir”.

Além do Ambulatório de Dermatologia Sanitária, o Estado mantém outras três instituições para onde os servidores podem ser realocados: o Sanatório Partenon, o Hospital Psiquiátrico São Pedro e o Hemocentro.

Outra alternativa seria o Estado ceder os servidores do Hospital Colônia de Itapuã para o município de Viamão. “Contanto que não perdêssemos nenhum direito trabalhista, seria uma boa ideia, mas isso é uma questão que compete aos gestores”, diz a enfermeira Salete Wanke.

Um atrativo para a concessão do Parque Estadual de Itapuã

Último dos hospitais-colônias do país, há dois anos, o HCI passa por programa de “desinstitucionalização”,  para retirada dos últimos pacientes – um processo em que tragédias pessoais e familiares se misturam com interesses econômicos e políticos, e cujo desfecho é incerto.

O esvaziamento do HCI foi lento no início, na medida que se iam desfazendo os preconceitos contra os “leprosos” e os tratamentos, cada vez mais eficazes, foram tornando anacrônico o isolamento.

Ao longo desse tempo, vários projetos foram anunciados para dar uma nova destinação ao HCI, mas sempre esbarraram na condição dos pacientes internados à força, aos quais o Estado deve tutela enquanto viverem.

Tudo indica que, por conta dessa condição, os sucessivos governos  entregaram ao tempo a solução do problema.

O estado em que se encontram as casas e a maioria das edificações revela que estão abandonadas há pelo menos 30 anos. Destelhadas, muros caídos, janelas e portas quebradas – são sólidas construções em ruínas.

Imóveis precisam ser restaurados
Igreja luterana projetada pelo arquiteto Theo Wiedersphan e construída em 1946, está caindo aos pedaços, apesar de tombada pelo Patrimônio Histórico

Desde o início, além da remoção dos pacientes, colocou-se a questão para o governo do Estado, proprietário do terreno e das benfeitorias: o que fazer com aquela área valiosa  e aquele patrimônio construído.

A Secretaria da Saúde tem informado que “o foco do governo, por enquanto, é na destinação dos pacientes” e que a questão do terreno e das instalações será tratada depois de resolvida essa parte.

Na verdade, a pressa em retirar os últimos pacientes do HCI está ligada a razões materiais bem visíveis.

O hospital ocupa menos de dez por cento de uma área de 128 hectares, uma porção de mata atlântica ao pé do morro de Itapuã, junto ao parque e à Lagoa Negra.

Hospital está encravado numa área de preservação ambiental, cercado pelas matas do Parque Estadual de Itapuã, de aldeias indígenas, da Lagoa Negra e Lagoa dos Patos

O ex-prefeito de Viamão, hoje deputado Valdir Bonatto (PSDB) disse ao JÁ que tratativas já avançadas entre o município e o governo do Estado visam um convênio para incorporar toda a área do hospital ao parque de Itapuã, para efeitos de sua futura concessão à iniciativa privada.

Isoladamente, segundo ele, o parque municipal não apresenta atrativos para investidores, porque a preservação e manutenção da área de mais de 1.200 hectares ( Área de Preservação Permanente) tem custo alto e as perspectivas de receitas são muito pequenas.

O terreno do hospital, como já é uma área alterada e ocupada por construções, poderia ser recuperada abrigar serviços, comércio, equipamentos de lazer e até um resort.

Antigas residências dos pacientes moradores
O antigo cassino onde eram realizadas atividades de lazer.

Primeiro sinal de que havia um plano

O primeiro sinal de que o governo tinha um plano para a desativação do HCI foi uma audiência virtual (era tempo de coronavírus) na Assembleia Legislativa, em 27 de outubro de 2021.

O deputado Thiago Duarte (DEM) pediu a audiência para “conhecer as intenções da administração pública diante dos rumores de que o local seria fechado e da falta de informações claras sobre o destino de moradores, pacientes e servidores”.

O representante da Associação de Moradores de Itapuã, Jorge Paixão, disse que “no bairro corria a informação de que o hospital seria fechado para a abertura de um resort na área”.

Explicou que os moradores não eram contra o empreendimento e o desenvolvimento econômico da região, mas o hospital poderia ser mantido, uma vez que ocupava 15 hectares apenas de todo o terreno e não havia outros estabelecimentos de saúde nas proximidades para atender à população.

A coordenadora do Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase (Morhan), Magda Chagas, disse que o não fechamento do hospital era uma luta da própria comunidade e que o Morhan a apoiava.

O então vereador Fabrício Ollermann (MDB), de Viamão (depois cassado), contou que a Câmara Municipal havia aprovado projeto do Executivo que resultou na Lei nº 5.094, que autorizava o município a celebrar convênio com o Estado para proceder à “desinstitucionalização” de pacientes da saúde mental e ex-hansenianos moradores do hospital.

Disse que, como vereador, apresentou propostas para manter os atendimentos à saúde e considerava o lugar ideal para abrigar um Centro de Atenção Psicossocial (Caps). Sugeriu que se convocasse um plebiscito para saber o que a comunidade desejava para o local.

A secretária de Saúde adjunta, Ana Costa, fez questão de esclarecer que eram duas questões distintas: o projeto de “desinstitucionalização” (retirada) dos pacientes, que a Secretaria vinha tratando, e a destinação da área física do hospital, da qual ela não tinha condições de falar.

Naquele momento, segundo a secretária, havia no local 38 pacientes psiquiátricos, e 17 hansenianos, além dos funcionários que moravam nas casas do HC.

Pepe Vargas (PT) disse que como médico e gestor público, havia sempre se aliado à luta pela reforma psiquiátrica e que era, portanto, favorável à desinstitucionalização dos pacientes, mas que concordava com a ideia de as moradias se manterem no próprio local.

Ex-hanseniana e moradora do local há mais de 60 anos, dona Eva fez um relato dramático: “Fui para lá com 12 anos”, disse, corrigindo-se em seguida: “Não fui, me levaram, me atiraram lá dentro”, contou.

Aos 76 anos, disse não aguentar o descaso da administração, a convivência forçada na enfermaria com pacientes psiquiátricos, que não era o caso dela, e agora a ameaça de um “pontapé na bunda”.

O desabafo levou a secretária-adjunta a se comprometer a ir ao local e conversar pessoalmente com ela.

Na audiência na AL, falou também a promotora de Justiça, Giselle Moretto, que apontou a inadequação do termo “desinstitucionalização” usado para se referir tanto aos pacientes psiquiátricos como aos ex-hansenianos do HCI. Questionou se os moradores haviam sido ouvidos e chamou a atenção para “não se repetir o passado”.

A promotora lembrou que, em 2018, haviam movido uma ação para assegurar a duas moradoras idosas o direito de terem seus familiares morando com elas no local. Foi negado, numa primeira decisão, mas acabou sendo reconhecido.

A promotora lamentou a ausência de um representante do governo de Viamão, município que pretendia assumir a tutela dos últimos moradores, que impediam o fechamento do HCI.

“Desistiram de nós”

O desdobramento do assunto chegou a público três meses depois em uma nota da Secretaria da Saúde, divulgada no dia 6 de janeiro de 2022:

O então prefeito Bonatto com a secretária Arita. Foto: Divulgação

“Uma reunião entre a secretária da Saúde, Arita Bergmann, e o então prefeito de Viamão, Valdir Bonatto, deu início nesta quinta-feira (6) ao processo de desinstitucionalização dos 55 pacientes e ex-pacientes do Hospital Colônia Itapuã”.

“Atualmente, vivem no local 38 pacientes de saúde mental, oito pacientes ex-hansenianos que tratam outras doenças e nove ex-pacientes de hanseníase. Os pacientes serão transferidos para quatro residências terapêuticas, cada uma com capacidade para abrigar dez pessoas. Já  os ex-pacientes, que moram sozinhos em casas dentro da colônia, irão para moradias individuais semelhantes àquelas onde vivem hoje”.

“Para concretizar a mudança, o Governo do Estado,  através da Secretaria da Saúde, repassará quatro parcelas de R$ 3,173 milhões à prefeitura, que vai assumir os cuidados aos pacientes e moradores. A previsão é de que a primeira residência terapêutica fique pronta ainda no primeiro semestre.

No jargão dos pacientes e funcionários do HCI,  o termo “desinstitucionalização” foi traduzido para “desistiram-de-nós”.

Eram, portanto, 17 hansenianos e 38 psiquiátricos)  em junho de 2022, quando se iniciaram as transferências com vistas ao fechamento do hospital.

Os primeiros nove pacientes foram transferidos  em outubro de  2022, para o primeira “residência terapêutica”, em Viamão.

Menos de um ano depois, neste final de setembro de 2023, restam apenas três ex-hansenianos e seis familiares deles, nove pessoas no total.

A estimativa do programa era retirar o último paciente do HCI até dezembro de 2023. Meta que pode estar comprometida pela decisão da Justiça de suspender as remoções, anunciada neste final de setembro.

O governo gaúcho explica que a transferência de pacientes de saúde mental é motivada pela necessidade de cumprir a Lei Federal da Reforma Psiquiátrica, de 2001. A legislação diz que manter pacientes psiquiátricos internados por toda a vida é uma violação de direitos humanos e que essas pessoas devem ser reintegradas à vida comunitária. A saída seria alocá-los em “residenciais terapêuticos” ou voltarem para a família ou mesmo viverem sozinhos em moradias pagas pelo Estado.

O problema é que o programa de “desinstitucionalização” do governo do Estado aproveitou a oportunidade e incluiu no mesmo pacote a remoção os ex-hansenianos remanescentes.

Desde o início o Ministério Público questionou essa solução que ignora o direito especial dos ex-hansenianos.

Os pacientes psiquiátricos (doentes mentais) não têm condições de decidir para onde vão, são considerados incapazes. Já os ex-hansenianos foram levados à força para o isolamento no HCI , alguns ainda criança.  Pela Constituição, o Estado é responsável por eles enquanto viverem e só podem ser tirados do lugar onde construíram suas vidas, suas famílias inclusive,  por livre e espontânea vontade.

Por isso, o MP pediu à Justiça a suspensão das remoções para garantir o direito dos três últimos pacientes que não querem sair.

O promotor Leonardo Menin, do Ministério Público Estadual, que acompanha o processo de “desinstitucionalização” do HCI, explica: “Estado e município deixaram claro para nós que, mostrando às pessoas como seria a vida delas fora dali, elas aceitariam. Nós fomos lá e sabemos que as pessoas não querem sair, mas o Estado acredita que, mostrando para eles como a vida pode ser do lado de fora, eles acabarão aderindo. Nossa atuação é para que não haja compulsoriedade”.

Quase cinco mil ex-leprosos recebem pensão vitalícia

Em 2007, o Estado brasileiro se tornou o segundo país, ao lado do Japão, a aprovar lei que estipulou pagamento de pensão vitalícia aos hansenianos segregados da sociedade – filhos não têm direito ao benefício.

Hoje, 4.725 brasileiros recebem R$ 1.831 por mês, informa o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) – em 2018, eram mais de 9 mil pessoas.

Eva, retirada da escola, aos 12 anos: “Para onde vocês estão me levando?”

A jornalista Ana Carolina Pinheiro acompanhou durante dois anos a rotina do hospital e seus moradores e, após exaustiva pesquisa, apresentou em junho de 2019 seu trabalho de conclusão do curso em Jornalismo, na UniRitter. Este ano, Ana atualizou as informações e transformou o trabalho acadêmico em um livro-reportagem, a ser lançado pela Editora Sulina em novembro, durante a Feira do Livro de Porto Alegre.

Ana e dona Eva durante audiência pública na Câmara Municipal de Viamão, em 2021, pelo não fechamento do HCI_
Foto Artur Custodio

 

 

 

 

 

Aqui, um trecho baseado no depoimento de dona Eva Pereira Nunes, que morou mais de 60 anos no hospital colônia: “(…) No mesmo dia, uma caminhonete preta estacionou no pátio do internato. Dela desceu um casal de enfermeiros, que embarcou Eva no veículo. A menina ia sozinha no banco de trás. Uma grade impedia o contato entre ela e os enfermeiros. Na estrada, sem saber o seu destino, a menina gritava:– Vovó, vão me matar, vovó! Vão me matar! A caminhonete percorreu os cerca de 80 quilômetros que separam Santo Antônio da Patrulha de Porto Alegre e desembarcou Eva na Santa Casa de Misericórdia. As enfermeiras que a recepcionaram orientaram que se despisse e aguardasse sozinha no consultório. O grupo de médicos entra na sala. Imediatamente, começa a examinar as marcas existentes no corpo da paciente. Constatam que a perna direita era, a olho nu, mais fina que a outra, como se a carne tivesse secado e não houvesse mais nada entre a pele e o osso. Isso fazia com que Eva tivesse dificuldade para manter o calçado preso ao pé. A menina apresentava ainda lesões que subiam por suas pernas até suas nádegas e começavam a tomar conta também de seu rosto e de suas mãos. Colheram também amostras que foram enviadas para análise histopatológica, embora o resultado não fosse necessário para a confirmação do diagnóstico. Como a menina apresentava múltiplas lesões em várias partes do corpo, os médicos foram unânimes: lepra lepromatosa. O grupo finalizou o exame e saiu sem trocar nenhuma palavra com ela. Pelas enfermeiras, a menina foi orientada a se vestir e encaminhada para um dormitório. Ao contrário do colégio, onde Eva dividia o quarto com diversas meninas, foi obrigada a passar a noite sozinha. Ali começava a sua rotina de isolamento. Aguardou até umas 15 horas, quando foi avisada que um novo carro chegara para buscá-la. A menina nutria esperanças que o destino fosse a sua escola. Ela ainda não sabia, mas nunca mais retornaria ao internato. Novamente, um casal de enfermeiros a aguardava. A moça carregava um amontoado de papéis na mão. Os dois a embarcaram em um carro preto, descrito por ela como um carro fúnebre. Eram quase 16 horas quando partiram. Foi então que a menina percebeu que o caminho que percorriam não era o que a levaria de volta para casa. – Para onde vocês estão me levando? – Não te preocupa que tu vai para um lugar bom – respondeu a enfermeira. – Eu acho que eles vão me matar. Vão me matar (…)”.

Pacientes podem ficar no Hospital Colônia de Itapuã, decide Justiça

Atendendo pedido do Ministério Público do Rio Grande do Sul, por meio de ação civil pública, a Justiça determinou que o Estado e o Município de Viamão se abstenham de promover a realocação dos moradores remanescentes da política sanitária de higienização social da década de 1940 para combate à hanseníase, vinculados ao Hospital Colônia de Itapuã, assegurando o imediato retorno daqueles que já foram realocados.

A decisão também determina que seja interrompida a abordagem para fins de transferência/realocação dos moradores remanescentes, bem como seja delimitada a área de permanência destes moradores, garantindo sua manutenção no estabelecimento e também para os que retornarem. Ainda, seja ofertado todos os serviços necessários para sua integral assistência e proteção (cuidados de saúde, higiene, alimentação, lazer, condições de remoção imediata, em caso de necessidade de atendimento médico, entre outros, também garantindo os recursos necessários à sua segurança).

A ação foi ajuizada pela promotora de Justiça Gisele Moretto, da Promotoria de Justiça Cível de Viamão, para evitar a realocação compulsória dos pacientes-moradores do Hospital Colônia de Itapuã.

“Muitos dos moradores são pessoas idosas, com mais de 70 anos de idade, que, após a abolição da prática do isolamento social, escolheram permanecer no estabelecimento que passaram a considerar como lar, onde formaram vínculos afetivos indissolúveis. A realocação representa afronta à dignidade da pessoa humana”, explica a promotora.

(Assessoria de Comunicação do MPRS)

QG da rebeldia: Viamão foi verdadeira capital farroupilha

A República Riograndense, proclamada em 11 de setembro de 1836, após uma vitória do general Netto, teve três capitais, enquanto durou.

A primeira,  Piratini, instalada em novembro do mesmo ano, foi capital acéfala, pois Bento Gonçalves, eleito presidente, estava preso. Em janeiro de 1839, um ano e três meses depois,  a capital foi transferida para Caçapava, por razões de segurança. Também durou um ano e pouco, até maio de 1840, quando os rebeldes acossados transferem seu  governo para Alegrete. Em Alegrete, foi instalada a Assembleia que deveria aprovar a constituição da nova República, independente do Império brasileiro. Mas poucas reuniões ocorreram e a carta não chegou a ser votada. Em 1845, quando finalmente se renderam, os farroupilhas tinham seu governo em cima de carretas.

Viamão foi esquecida nesta história. No entanto, tudo indica que a “Vila Setembrina” foi a efetiva capital dos farrapos. Quando eles foram removidos de Viamão, a revolução começou a desandar.

“Quartel-general da rebeldia”, foi como Tristão de Alencar Araripe definiu Viamão no período da Revolução Farroupilha (1835/1845). Araripe era conselheiro do Império e foi presidente da Província dez anos depois da pacificação. Escreveu “Guerra Civil no Rio Grande do Sul”, minuciosa e bem documentada obra, embora parcial. Baseou-se em farta documentação do governo e privilegiou o ponto de vista imperial. Mas é esclarecedor e mostra que Bento Gonçalves fez de Viamão, onde tinha muitas relações de família, uma espécie de capital rebelde, desde as agitações iniciais. Navegando à noite, transportaram homens e armas de Pedras Brancas (atual cidade de Guaíba) para Itapuã, acumulando forças “nas costas da capital”. Canhões foram instalados no alto do morro e na ilha do Junco para impedir a navegação na  Lagoa dos Patos, por onde Porto Alegre poderia receber reforços.

Ilha do Junco vista do Morro da Fortaleza | Foto: Ramiro Sanchez/@outroangulofoto

“Os chefes do movimento haviam se combinado: José Gomes Jardim e Onofre Pires reuniram algumas praças da Guarda Nacional, agregaram alguns peões na Capela de Viamão, distante quatro léguas da capital, e marcharam para esta no dia 20 de setembro de 1835, onde entraram com séquito de 300 a 400 pessoas”, escreve Araripe.

Expulsos da Capital em 1836, “os farrapos acamparam no Morro da Maria Silvestre, na lomba da Taruãá, em 27 de junho de 1836”, segundo Moacyr Flores. “Bento Gonçalves e Onofre Pires ocuparam uma casa junto da antiga Câmara”.

Foi nas colinas entre Viamão e Porto Alegre, na atual “Estrada do Forte” que os revoltosos mantiveram suas baterias para sustentar o cerco que se estendeu, com intervalos, por mais de quatro anos.

QG Farroupilha foi sede da extinta Fepagro, no bairro vizinho a Tarumã | Foto: Ramiro Sanchez/@outroangulofoto

A tomada da fortaleza de Itapuã, em agosto de 1836, foi a segunda grande derrota dos farroupilhas, depois da retomada de Porto Alegre pelas forças do Império. Duzentos soldados desembarcaram de madrugada no Saco do Faria (hoje Praia das Pombas) para assaltar a fortaleza defendida por 42 farroupilhas. Sobreviveram dez feridos, feitos prisioneiros. O comandante Simeão Barreto foi enforcado, segundo Moacyr Flores.

Bento Gonçalves estava em Viamão, em setembro de 1836, quando o general Antonio de Souza Netto proclamou a República Riograndense, nos campos do Seival, em Alegrete. Na tentativa de sair para a campanha e alcançar Piratini, a capital republicana, caiu na armadilha da Ilha do Fanfa, onde foi encurralado e preso. Quando fugiu da prisão na Bahia, um ano depois, reassumiu a presidência em Viamão.

Em 1838, quando tomam Rio Pardo e estão no auge, os farrapos rebatizaram Viamão como Vila Setembrina, “essa dileta criação do governo insurgente”, nas palavras de Araripe.

Foi com a retaguarda que havia em Itapoã que Garibaldi contou para refugiar-se no rio Capivari e aí poder preparar os barcos com as carretas para chegar por terra ao  rio Tramandaí.

Do rebanho da Fazenda Boa Vista teriam saído os bois que puxaram as carretas com os barcos de Garibaldi em terras da estância entre os rios Capivari e Tramandaí, em 1840, para alcançar o mar e chegar à Laguna.

Em “Porto Alegre Sitiada”, o historiador Sérgio da Costa Franco detalha o que foram os quatro anos (de junho de 1836 a dezembro de 1840, com algumas interrupções) do cerco farroupilha à capital.

Ele diz que “o prolongado sítio de Porto Alegre foi um fracasso militar dos farroupilhas” e que teve a única eficácia de manter numerosas forças legalistas retidas na capital, enquanto os farrapos tentavam controlar o interior da Província.

Cruz farroupilha nas Trincheiras de Tarumã | Foto: Franciele Vitoria

No final de 1840, quando começaram as negociações de paz, Bento Gonçalves estava em Viamão e de lá trocava correspondência com o presidente da Província, em Porto Alegre. Quando chegou para oferecer, em nome do governo imperial, anistia aos rebeldes que depusessem  as armas,  o deputado Álvares Machado seguiu imediatamente para  Viamão para se encontrar com Bento Gonçalves e “durante todo o mês de novembro, andou entre Porto Alegre e Viamão em repetidos encontros com o chefe dos farroupilhas”, registra Costa Franco. Era recebido com “amigáveis banquetes”, segundo Araripe.

Quando o governo se deu conta de que as tratativas de paz eram apenas “manobras dispersivas” dos farroupilhas, retomou os planos de reunir uma grande força, para ir batê-los em Viamão. De São Paulo saiu a chamada “divisão paulista”, com mais de mil homens sob o comando do brigadeiro Pedro Labatut, enquanto em Porto Alegre, o governador Soares de Andrea reunia todas as suas forças para um ataque final. Percebendo que o cerco se fechava, Bento Gonçalves despachou uma força de 1.600 homens comandada por David Canabarro, para conter a aproximação de Labatut, e ficou com apenas 500 soldados em Viamão. Informado dessa manobra, o governador mandou o tenente-coronel João Nepomuceno, à frente de 720 homens, “ para fazer um reconhecimento em Viamão”.

Área do Passo do Vigário, do Centro a Tarumã | Foto: Ramiro Sanchez/@outroangulofoto

Uma partida de 300 farroupilhas tentou detê-los no Passo do Vigário, mas teve que bater em retirada, deixando nove mortos, entre eles o jornalista italiano Luigi Rossetti, criador do jornal O Povo, órgão oficial da revolução. Rossetti era editor do jornal, mas havia se desentendido com os chefes e foi mandado para a tropa, como tenente. Esse revés foi fatal, os farrapos tiveram que deixar sua “Setembrina”.

Depois disso, a revolução ficou limitada a escaramuças na Campanha e não mais se recuperou, até o desastre de Porongos em novembro de 1844, quando a derrota se consumou. A paz seria assinada três meses depois.

(Com informações do livro Viamão 300 anos, Já Editora, 2023 )

Como criar um livro sobre uma cidade

Nesta quinta-feira será o segundo encontro do Ciclo de Rodas de Conversas: Memórias, no Memorial do Rio Grande do Sul.
O mote do debate é “Como criar um livro sobre uma cidade: a experiência do livro Viamão 300 Anos”. O livro foi lançado em julho, na Igreja Matriz de Viamão, e em agosto teve sessão de autógrafos em Porto Alegre, no próprio Memorial.

Os debatedores são o autor e editor Elmar Bones, o gestor cultural Vítor Ortiz e o jornalista José Barrionuevo.

Bones trouxe para  este livro e experiência como editor de duas obras fundadoras de um método de trabalho que consiste em contar a História em linguagem jornalística: História Ilustrada de Porto Alegre (1997) e História Ilustrada do Rio Grande do Sul (1998, reeditada em 2015), títulos produzidos por Jornal JÁ Editora.
O evento será das 18h30 às 19h30, no auditório do primeiro andar do Memorial. Aberto ao público.
Rua Sete de Setembro, 1020 – Praça da Alfândega – Centro Histórico – Porto Alegre.

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Uma viagem ao Rio Grande profundo

Elmar Bones

Lançado na igreja matriz de Viamão, dia 7 de julho, o livro “Viamão 300 Anos” chega a Porto Alegre neste 3 de agosto, em evento no Memorial do Rio Grande do Sul.

O título remete a um tempo inaugural, quando os primeiros súditos de Portugal descem para os campos do extremo-sul, um território de contornos imprecisos, disputado palmo a palmo por duas potências imperiais.

Esse é o tempo histórico que o livro percorre para situar Viamão no contexto da formação do que viria a ser o Rio Grande do Sul. As incursões pioneiras, os primeiros arranchados, as primeiras estâncias – a unidade produtiva que deu razão econômica ao território, o “berço” do Rio Grande.

A guerra contra os espanhóis, quando em Viamão se organizou a resistência, depois da tomada e ocupação de Rio Grande, então capital, em 1763.

Essa incrível figura de José Custódio de Sá e Faria, engenheiro militar, arquiteto, cartógrafo, desenhista, que se tornou governador no pior momento: a capitania invadida, um comandante de armas enforcado em Lisboa, o ex-governador na cadeia, onde morreria a espera de julgamento. Ele instala o governo em Viamão, toma providências como regularizar o abastecimento de água, construir uma igreja fortaleza e erguer trincheiras e fortes para deter a invasão. Ee não só resiste como chega a ameaçar os espanhóis em Rio Grande.

No entanto, por circunstâncias que ainda demandam esclarecimento, foi praticamente banido da história. Está sendo recuperado por arquitetos, que resgatam sua obra monumental  no Rio Grande do Sul, Uruguai e Argentina, onde foi um dos formuladores do primeiro plano diretor de Buenos Aires.  É o caso da pesquisa coordenada por Luísa Durán, da arquitetura da UFRGS e  Ramon Gutierrez, da universidade de Buenos Aires, seis anos de buscas no Brasil, Portugal, Espanha e Argentina e  que revelam Sá e Faria como um dos maiores arquitetos do período colonial sul americano.  O livro, financiado pelo Capes, foi publicado (300 exemplares) em 2020, os autores ainda têm um terço da tiragem encalhada.

Outro episódio da história que demanda esclarecimento : a sedição farroupilha, que separou o Rio Grande do Sul do Brasil por quase dez anos e que teve em Viamão um dos baluartes da rebeldia. Dali partiram os rebeldes para tomar a capital e para lá voltaram quando a perderam.

Desalojados de Viamão, os farrapos não mais se recuperaram até o desastre de Porongos. Seria possível sustentar uma tese de que a Revolução Farroupilha foi uma guerra entre Viamão e Porto Alegre. Viamão reduto dos estancieiros, senhores do regime pastoril, contra os comerciantes e burocratas lusitanos que se instalaram na capital.

Sérgio da Costa Franco num livro publicado no ano 2.000 (“Porto Alegre Sitiada”) foi o primeiro a descrever os detalhes dos cercos farroupilhas, a partir de Viamão,  que atormentaram a capital por mais de mil dias. Não por acaso, sobre essa importantíssima obra caiu uma cortina de silêncio.

Marginalizada na história, Viamão ficou também à margem dos dois ciclos de industrialização – o das charqueadas no século XIX, e o das manufaturas no século XX -que desenvolveram e urbanizaram a região metropolitana de Porto Alegre.   Tornou-se cidade-dormitório.

O livro também percorre também um tempo geológico num ensaio em que o professor Rualdo Menegat descreve a formação da paisagem única de Viamão, desde as rochas graníticas que remontam a 800 milhões de anos. As dunas, os morros, os banhados, as lagoas, as florestas, toda a riqueza de um microcosmo que abriga em síntese  toda a diversidade ambiental e paisagística do Rio Grande do Sul.

No tempo presente, o livro lança um olhar jornalístico para as reservas naturais do atual município de Viamão, o maior da região metropolitana, três vezes maior do que o território de Porto Alegre. O parque de Itapuã, 5 mil hectares de mata atlântica, o parque Saint Hilaire, os 108 quilômetros de orla com o Guaiba e a Lagoa dos Patos,  os morros, os aquíferos.

Quase 40% dos 1.500 quilômetros quadrados de Viamão são áreas de preservação e enfrentam algum tipo de ameaça.

A viagem termina com um “sobrevôo” pelos projetos e empreendimentos que assumem o desafio de tirar Viamão da condição de cidade-dormitório pelos caminhos de uma economia sustentável, assentada nos três valiosos ativos de que o município dispõe: história, diversidade e natureza exuberante.

No fundo, o desafio com que se defronta o Rio Grande do Sul neste século XXI.

Viamão 300 Anos. Elmar Bones e José Barrionuevo (org.) Editora JÁ. 

O lançamento em Porto Alegre será no Memorial do Rio Grande do Sul, na quinta-feira 3 de agosto, das 18 h às 20 hs.  

 

 

IPHAN garante R$ 1,5 milhão para reformar a cobertura da matriz de Viamão

O superintendente do IPHAN no Rio Grande do Sul, arquiteto Rafael Passos, já sabe de onde vai obter o dinheiro para reformar o teto da matriz de Viamão.

Terá que remanejar verbas de outros programas para a obra, que é urgente,  e por isso ele não pode garantir se a  reforma vai começar ainda este ano, como pretendia. “Há questões burocráticas a resolver, mas se não for agora no segundo semestre, será no início do ano que vem”, disse Passos ao JÁ.

| Foto: Ramiro Sanchez/@outroangulofoto

A reforma do teto da igreja do século XVIII, está orçada em R$ 1,5 milhão, o projeto está pronto e é urgente porque as infiltrações de água da chuva já deixam sinais nas paredes e até em alguns pontos dos altares entalhados em madeira.

| Foto: Ramiro Sanchez/@outroangulofoto

Num evento que reuniu mais de 200 pessoas na igreja na noite chuvosa de 7 de julho,  as goteiras no teto da sacristia pingavam em dois baldes  colocados no chão para proteger a madeira do piso.

| Foto: Ramiro Sanchez/@outroangulofoto

A reforma do teto, pelos danos que as infiltrações causam, é a parte mais urgente de um amplo projeto de restauro de que necessita a matriz de Viamão, tombada pelo patrimônio nacional desde 1938.

| Foto: Ramiro Sanchez/@outroangulofoto